terça-feira, 12 de abril de 2011

Cláudia Lage (O Meu Professor de Literatura)


O homem que desistiu de "assassinar" livros em sala de aula para abrir uma livraria

Às vezes, eu costumava matar aula no colégio para ir ao cinema, outras vezes, vejam só, para ir à biblioteca da escola mesmo. Foi estranho quando, um dia, o meu professor de literatura da época me encontrou numa dessas vezes entre as estantes, procurando um livro. Naquela hora, na minha turma, era a aula dele. Por algum motivo, ele precisou deixar a sala e ir à biblioteca rapidamente. Teve um espanto ao me ver ali. Não sei se por que eu matava a sua aula, ou por que fazia isso na biblioteca, com um livro nas mãos. Ele me olhava e olhava o livro. Ia e voltava com os olhos, perplexo. Eu não soube, por um instante, se devia justificar a minha ausência na sala ou o fato de ter escolhido um lugar cheio de livros para faltar à aula de literatura. Quando enfim comecei a gaguejar alguma coisa, ele se afastou, transtornado, e saiu, mas não antes de olhar mais uma vez o livro que eu tinha nas mãos, com evidente ressentimento.

Eu havia cometido algum delito grave para aquele professor. O fundo em meu estômago dizia isso. Não podia ser só a aula. Outros alunos também a matavam de vez em quando, e ele depois lhes chamava a atenção com uma seriedade divertida e irônica. Nada de perplexidades constrangidas. Olhares graves e ressentidos. Aquela reação perturbadora ele havia reservado apenas para mim. Mas, tampouco, devia ser a biblioteca, ou era? O livro suava em minhas mãos, assumindo talvez a culpa. Levei-o para casa, apertando-o em meu peito. Éramos cúmplices, nós dois, de um ato horrível e misterioso contra o professor. Naquela noite, tive pesadelos. Os olhos do professor tomavam inteiramente o seu rosto, e me enfrentavam indignados e ofendidos.

Na aula seguinte, tentei me comportar da melhor maneira possível. Não passei o tempo olhando para a janela, como costumava fazer, em busca de um horizonte qualquer. Nem me distraí com rabiscos, desenhos e frases inúteis no caderno. Fixava o professor com atenção exagerada, tentando absorver e compreender tudo o que ele dizia sobre o estilo de época Arcadismo, anotando bucolismo e pastoralismo com caligrafia exemplar, e assentindo com a cabeça toda a vez que seus olhos passavam por mim e não me viam. Ao contrário do meu pesadelo, o professor não me olhava mais. Era dessa forma retraída que ele lidava com o ressentimento. Eu, por outro lado, assumia todas as culpas na medida em que ele silenciosamente me acusava. No corredor, evitava cruzar comigo, e se me via no pátio lendo um livro, como eu gostava de fazer, mudava de direção como se estivesse diante de um obstáculo intransponível. Era sempre à noite, na escuridão da insônia, que eu ruminava as atitudes do professor e repassava a matéria. Romantismo: nacionalismo, exaltação do eu. Realismo: racionalismo, crítica social. Não sei por que, naquele dia, eu achei que ele tremera um pouco durante a aula, a voz rasgando a garganta, ao dizer, crítica social.

Semanas depois, eu percebi: o professor não fazia mais a barba, engordava, e, como se não tivesse mais nada a fazer, envelhecia. Se antes não era alegre nem triste, agora não era, simplesmente. Entrava na sala de aula resignado, dizia algumas coisas, escrevia outras, para depois desaparecer. A sua apatia era tão grande que um dia ele deve ter se esquecido que sua presença era aguardada e realmente desapareceu. "Viajou", explicou a diretora, como se o fato de alguém ir de um lugar para o outro explicasse tudo. E assim os anos se passaram sem notícias do professor.

Nos encontramos anos depois, por acaso, numa livraria. Eu a freqüentava sempre, e não sabia que, desde que entrei pela primeira vez ali, era observada pelo professor. Já sentia o livro suando em minhas mãos, quando ele me cumprimentou, perguntando se eu era eu, a sua aluna. Sim, confirmei. Ele me olhava e olhava o livro, como nosso constrangido encontro na biblioteca da escola. De repente, me abraçou, com uma gratidão que eu não pude entender. Mas, em seguida, o professor foi de uma claridade imprevista, de fechar os olhos. Uma de suas alegrias era me ver ali em sua livraria, ele disse. E sorriu, confirmando, sim, sou livreiro. E pegando um livro, levou-o ao peito. A capa sobre o coração, enquanto ele confirmava a satisfação de ver que eu continuava a gostar de ler, apesar de suas aulas. Aquele dia na biblioteca ressurgiu então entre nós. Me ver matar a aula de literatura para ler foi a gota d'água para o professor. Havia passado a noite anterior preparando uma aula de literatura, elencando, não poetas e escritores, seus textos e suas poesias, mas características, datas e nomes que os alunos não podiam deixar de saber, porque ia cair na prova, porque estava no currículo do semestre. Às vezes, conseguia uma aula ou outra para os textos, mas era pouco, muito pouco. Até me ver na biblioteca, o professor me julgava uma aluna desinteressada e desinteressante, daquelas que não se avista o futuro. Não me imaginava abrindo um livro, como podia supor que eu era uma leitora? Mas eu era, e, para ele, havia sido como um marido, que sempre considerara a esposa frígida, descobrir que ela tem um amante. Eu, que já tinha idade e altura para sorrir dessa imagem, sorri, profundamente feliz. O professor abraçava o livro, apaixonado. Contou que um dia, se levantou da cama, se arrumou para ir trabalhar, saiu de casa, mas, em vez de ir à escola, foi para uma livraria. No dia seguinte, pediu demissão. Juntou dinheiro, conseguiu um empréstimo e abriu uma pequena livraria, que se expandira em outras. "Eu queria estar perto dos livros", explicou. "Antes, eu achava que podia ser professor de literatura impunemente", disse. O professor entrara na escola cheio de esperanças de mudar o modo em que é feito o ensino da literatura, de driblar, dia a dia, o sistema. Mas foi ao contrário, era o sistema que estava, pouco a pouco, mudando o professor, encurralando-o numa sala escura. "Até te ver na biblioteca, eu não tinha a real consciência da dimensão do que eu fazia. A cada aula, eu matava um livro. A cada aula, um leitor morria.

Fonte: Rascunho

Instituto Memória (Convite para Lançamentos em 26 de Abril, em Curitiba)


CONVITE!

26/04/2011 -
19H00 -
PALACETE DOS LEÕES



O Instituto Memória Editora & Projetos Culturais e o BRDE - Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul - convidam para o Lançamento Nacional das obras

SILENTES CONFISSÕES (CONTOS JUDAICOS)
Leon Knopfholz

A MAGIA DOS MOMENTOS: um convite para pensar
Carlos Mathias

OS ÍNDIOS E SEUS ALGOZES
Milton Ivan Heller

ECONOMIA DO TRABALHO & SINDICALISMO: escritos avulsos
ANTONIO BENEDITO DE SIQUEIRA

BATENDO DE FRENTE:um tapa no legalismo evangélico brasileiro
Alexandre de Souza Lacerda

IHGPR - BOLETIM LXII
Instituto Histórico e Geográfico do Paraná

A FORMAÇÃO DO PROFESSOR E INTERVENÇÕES PEDAGÓGICAS HUMANIZADORAS
Dra. Marta Chaves
Dra. Ruth Izumi Setoguti
Dra. Silvia Pereira Gonzaga de Moraes
=Organizadoras=

TRADIÇÃO & TRAIÇÃO: Histórias da Medicina
Fahed Daher

CAPÃO DA ONÇA
Paulo Fernando Silveira

REFLEXÕES SOBRE LIDERANÇA
Enos de Castro Deus Filho

O evento contará com a apresentação artistica de Regina Monticelli e Alex Colim, a apresentação do músico Almo Júnior e a participação especial dos

MENINOS DE ANGOLA.

Contamos com a presença de todos para abrilhantar esta noite de valorização da cultura nacional de qualidade e seus autores.
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Instituto Memória Editora & Projetos Culturais

Editora Destaque Nacional - Prêmio Brasileiro de Qualidade Editorial
Câmara Brasileira de Cultura

(41) 3352 3661 - 3352 4515

www.institutomemoria.com.br

Anthony Leahy - Editor Presidente
Conselheiro da Academia Brasileira de Arte, Cultura e História - SP
Membro do Instituto Histórico e Geográfico do Paraná e da Academia de Cultura de Curitiba

Fonte:
Instituto Memória

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 183)


Uma Trova Nacional

Felicidades!...que todas
de vocês prossigam perto,
para os festejos das BODAS
de um grande amor que deu certo !
EDMAR JAPIASSÚ MAIA/RJ–

Uma Trova Potiguar

Estrela d’alva, é bonito
teu casamento no céu!
O teu noivo é o infinito,
a madrugada – o teu véu.
–MINERVINO WANDERLEY/RN–

Uma Trova Premiada

2002 > Niterói/RJ
Tema > RENDA > M/H

Se Deus me deu muitas prendas,
a mais bonita de todas
veio vestida de rendas
no dia de nossas bodas.
–SANDRO PEREIRA REBEL/RJ–

...E Suas Trovas Ficaram

No amor, a felicidade,
com jeitinho permanece,
porque, superando a idade,
quem ama nunca envelhece.
–ALBERTO FERNANDO BASTOS/RJ–

Simplesmente Poesia

–MILTON SOUZA/RS–
Bodas de Oliveira.

Ademar, gostei do fato,
mas nesta eu ganho a parada:
completei 44
na sexta-feira passada.

É claro que estou lembrando
que nunca poderei ter
uma Dalva me esperando
quando o dia amanhecer...

Isso eu sei que só tu tens,
e és grande merecedor...
Eu vivo dizendo "amens"
em troca de um grande amor...

Eu e a Leda, tu e a Dalva,
casais que a vida renova:
casamentos sem ressalva,
regados de amor e trova...

Por este amor muito louco,
Meus parabéns para os dois...
E eu sei que ainda foi pouco:
muito mais virá depois...

Estrofe do Dia

Parabéns antecipados.
O que desejo a vocês:
cem anos de puro amor
ou uns 200... Talvez....
seja forte como um touro,
prá suas bodas de ouro
tá faltando dezesseis !!!!!!
–AMERICO PITA/RN–

Soneto do Dia

–FRANCISCO MACEDO/RN–
O Amor é Dom Divino

Se essa voz que te chama, é a voz do amor,
não deixe que te chame uma outra vez.
Se achar que deve, vá com destemor,
deixando-se levar na embriaguês.

O amor, quando é real, é insensatez,
desconhece a censura, é sem pudor,
tem fôlego, tem força, intrepidez...
Se ele te chama, vá onde ele for.

E se alguém diz: Amar assim é crime!
Tenha certa certeza que o amor redime,
na vida que por Deus é permitida.

O amor, quando é amor, é dom divino,
quase sempre nos leva ao desatino,
mas, é o prêmio maior da nossa vida.

Fonte:
Colaboração de Ademar Macedo

Revista Cruviana nº 1 (Chamada para Publicação de Contos, Primeiro Semestre de 2011)



Cruviana é uma revista virtual dedicada a publicação de contos inéditos em qualquer língua, e imagens de qualquer artista. O projeto se propõe a unir escritores de todas as tribos e idades, aproximando os mais experientes dos iniciantes, a partir do espaço virtual.

Essa mídia foi criada com muitos propósitos, mas talvez o principal deles seja o de diminuir as distâncias, assim como a literatura que, até hoje, é o meio mais instigante e verdadeiro para se passear pelos vários universos, reais, ou não, da realidade que conhecemos.

A união desses dois mundos vem deslumbrando os mais entusiastas, sobretudo porque encurta caminhos que, até bem pouco, eram inalcançáveis. E é dentro desse contexto que nasce a Revista Cruviana, espaço que pretende não só explorar os novos meios de publicação ou de divulgação, mas, principalmente, utilizar o veículo mais democrático da atualidade para aproximar pessoas.

O que queremos é valorizar as relações humanas entre escritores e demais artistas, não só do Brasil, aproximando os novos literatos de nomes já consagrados e/ou em ascensão, além de servir de vitrine para o tão concorrido mercado editorial.

A Revista Cruviana é uma produção independente que conta com o apoio da editora Sarau das Letras e está aberta para todos aqueles que se propõem a dedicar qualquer tempo que seja para fazer brotar a vida no infinito branco da folha.

CHAMADA

A Revista Cruviana, em sua 1ª edição, está recebendo contos inéditos (tema livre) e ilustrações de autores e ilustradores de qualquer nacionalidade.

Os contos deverão ser enviados para o email: revistacruviana@gmail.com até o dia 30 de abril de 2011, para que sejam lançados no final do mês de junho de 2011. A seleção dos contos será feita pelo conselho editorial.

É importante lembrar que, como este se trata de um projeto sem fins lucrativos, todo e qualquer trabalho disponibilizado para a nossa editoria será uma colaboração espontânea e sem ônus.

A Revista disponibilizará o ISSN (International Standard Serial Number) após organização do sumário, como exige o Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT).

REGULAMENTO

1. Os contos destinados às edições da Revista Cruviana devem ser entregues em anexo no e-mail: revistacruviana@gmail.com dentro dos prazos estabelecidos.

2. Junto com o conto o autor deve entregar a ficha de inscrição preenchida (modelo disponível aqui), declaração de autoria (modelo disponível aqui) e um resumo biográfico que não deve ultrapassar 6 (seis) linhas de folha A4, corpo 12, Times New Roman– todos em arquivo separado. Em seguida, o autor receberá um e-mail de confirmação do envio do material. Caso não receba em até 48h, deverá entrar em contato pelo referido e-mail de postagem.

3. A temática para a produção é livre e os autores devem remeter um único conto para cada edição.

4. Devido às questões de fechamento de edição e editoração, a data de envio do material não haverá adiamento.

5. Os contos recebidos serão lidos e apreciados pelo Conselho Editorial. Os contos que não forem publicados ficarão no banco de dados para edições subseqüentes, respeitando as decisões do Conselho Editorial.

6. Só serão aceitos trabalhos inéditos. Entenda-se por inédito aqueles trabalhos que não tenham sido publicados em outra mídia do tipo a que se destina, seja impressa ou eletrônica, como sites, revistas, periódicos, jornais, blogues-revista, etc.

7. Os trabalhos devem vir digitados em Word para Windows - qualquer língua - em arquivo formato DOC, fonte Times New Roman, tamanho 12, espaço 1,5. Cada trabalho deverá ter no máximo 5 páginas. Trabalhos fora desses padrões não serão publicados e isentos de qualquer parecer por parte do editor.

8. Os autores que tiverem alguma imagem/ilustração para seu conto podem fazer envio em arquivo separado – indicando a que texto se refere. Para saber mais sobre o envio de imagens, consulte a segunda parte deste regulamento.

9. O autor é único responsável pelo texto enviado. Portanto, a Revista Cruviana não se responsabiliza em caso de plágio ou cópia das obras enviadas.

10. Ao participar do projeto o autor não abre mão de seus direitos autorais, entretanto, os textos que não forem publicados não serão devolvidos. Logo, cada autor é ciente de que deve ficar com uma cópia de seu texto.

Envio de imagens

1. Podem ser remetidas fotografias, incursões plásticas, gráficas, grafites, desenhos, colagens, montagens, artes digitais etc. para o e-mail: revistacruviana@gmail.com

2. Podem participar autores consagrados ou iniciantes, brasileiros ou não, e cada um pode enviar o número de imagens que lhe convier.

3. Não necessariamente as imagens devam ser inéditas, entretanto, cada autor deve fazer uso do bom senso para, principalmente em casos de imagens expostas em alguma exposição, física ou virtual, mencionar tais especificidades, além dos créditos de seus autores.

4. Não haverá devolução dos trabalhos, logo cada autor é ciente de que deve ficar com cópia; os trabalhos que não se adequarem a uma edição poderão aparecer em edições subseqüentes da Revista; o autor não abrirá mão de seus direitos autorais.

5. Juntamente com as imagens o autor deve encaminhar uma declaração de direitos (modelo disponível aqui). Não há necessidade de envio de ficha de inscrição.

6. Os materiais devem ser encaminhados dentro dos prazos indicados nas Chamadas para publicações.

Os arquivos para baixar estão armazenados no 4shared. Por isso, sempre que você clica em qualquer arquivo que tenha de baixar será encaminhado à página do 4Shared. Ao chegar nessa página, você encontra o nome do arquivo que quer baixar e, logo abaixo, um botão que lhe diz Baixar agora. Será nele que você deve clicar para ser encaminhado à página do download. Não há necessidade de nenhum registro. Qualquer problema pode notificar ao editor da revista através do correio-eletrônico: revistacruviana@gmail.com.

Para baixar esse regulamento em formato PDF clique aqui.

www.revistacruviana.blogspot.com
JOTTA PAIVA
(84) 8837 - 0585

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Paulo Leminski (Rumo ao Sumo)

"Pessoas Olhando o Céu" -
Pintura a óleo de Fernando Kojo
Disfarça, tem gente olhando.
uns olham pro alto,
cometas, luas, galáxias.
Outros olham de banda,
lunetas, luares, sintaxes.
De frente ou de lado,
sempre tem gente olhando
olhando ou sendo olhado

Outros olham pra baixo,
procurando algum vestígio
do tempo que a gente acha,
em busca do espaço perdido.
Raros olham para dentro,
já que não tem nada.
Apenas um peso imenso,
a alma, esse conto de fada.

Reginaldo Honório da Silva (Poema da Moça ao Lado)


Amigos, permitam-me explicar o poema abaixo.

Em Campinas, embarquei num ônibus que ia para Franca.

Sentei-me na poltrona do corredor e na poltrona da janela tinha uma moça lendo alguma coisa, me parecia artigo escolar, não prestei atenção direito, nem na moça nem no que ela lia.

Apanhei meu NoteBook, pus o fone de ouvido e selecionei as músicas bregas da minha infância para ouvir.

Em seguida comecei a escrever o poema e como normalmente a curiosidade sempre aguça, imaginei que ela por vez ou outro pelo canto do olho espiava o que eu escrevia. Teve uma vez que percebi que ela se deteve um pouco olhando e depois voltou a olhar pela janela do ônibus.

Eu desci em Limeira, para esperar um outro ônibus para Rio Claro, ela seguiu seu destino.
Foi isso.

POEMA DA MOÇA AO LADO

Lê ao meu lado seu futuro que sabe
O mais intrépido poema
Ou a nova escrita sem o trema

Pelo canto do olho curioso
Espia o que escorre na grafia
Dos símbolos de uma poesia

Se pergunta o que me inspira
Se pergunta se me inspira
Mas mastiga o silêncio como resposta

Talvez ao final destas variações
Um sopro ao seu ouvido confessa
Que por ela nasceram estes versos

Não por ser bela que não sei se é
Mal lhe dei meu olhar de poeta
Somente a vi lendo... quieta

A viagem busca seu destino
A moça ao lado continua
Eu? Desço no meio do caminho.

Rio Claro, 04 de abril de 2011.

Fontes:
Poetas del Mundo , colaboração de Delasnieve Daspet
Imagem criada por Vitor =
UFRJ Link

Guilherme Scalzilli (Córtex)


Esta noite sonhei com o acidente pela primeira vez. Acordei ofegante, abalada pela súbita impotência dos remédios. Mentalizei o alerta para a enfermagem. Sei que tocou, pude ouvi-lo do quarto. Mas ninguém apareceu até agora, depois que as listras do sol já passearam no teto branco.

O hospital continua mergulhado nessa quietude estranha. As janelas deixaram de ronronar a habitual agitação das ruas lá embaixo. Forçando o olho à esquerda, percebo que o soro acabou. Devo estar imunda, sinto odores sob o lençol. Entrevejo um canto do vidro que me exibe ao corredor. Não há sinal de movimento. Torço apenas para que a cabeça continue assim, com o queixo inclinado, permitindo-me respirar.

Você procurava entre as ferragens, gritando por socorro. Diluindo-se nas luzes enevoadas da ambulância. Então surgiram enfermeiros em debandada. Médicos de máscara. Cientistas falantes montando e regulando equipamentos. Homens elegantes e solenes. Aquele velho de farda que chorou quando me viu. As lembranças ganharam coerência. Estiveram sempre ali, mas não conseguia decifrá-las. Agora percebo como progredimos desde os primeiros experimentos. Não percebi o tempo correr. Pudera.

Concordo, é uma espécie de prisão. E alguém seria realmente livre, encapsulada nesta carcaça inútil? Considerando as circunstâncias, tenho sorte de contribuir para algo importante. Aliás, parece muito, muito importante. Mas ignoro as poucas digressões técnicas. Sei que não esclarecem coisa alguma. Quando ouso perguntar-lhes, quase nem se dão ao luxo de mentir. Tento não atrapalhar, já estorvo o suficiente. Você me conhece. Basta continuarmos unidas, nesse vínculo milagroso. A salvo de controles. Vencendo a distância e o isolamento em que me puseram. É o nosso segredo. É tudo que nos resta.

Eles não sabem, não quis frustrá-los depois de tantas cirurgias, mas continuo vulnerável a sensações físicas. Em mim e nos outros. Soa desagradável? Pois garanto que tem um gosto emocionante de contravenção. É disso que se trata, afinal. Compartilhar estímulos. Fundir-se em outras mentes ativas. Participar de seus sonos inertes. Sorver tormentos e prazeres nos esconderijos mais íntimos, onde pulsam, à espera. Como tumores de possibilidades. Desbravar a matéria desconhecida, idêntica e previsível. Emancipá-la.

Sim, prazeres. Ah, poupe sua mãe de pudores beatos. Faço tudo que me pedem. Ou não? Abro-lhes as imensidões microcósmicas de minhas tempestades nervosas, sem impor obstáculos a essa aventura incerta. Jamais sobreviveria se parecesse inapta ou resistente. Bastar-lhes-ia apertar um botão, ou deixar de acioná-lo. Creia, fizeram isso muitas vezes. Para eles não passo de uma velha fatigada, suspensa na brisa tênue do simulacro vital. Um emaranhado de células. Que eles ainda não conseguiram manter funcionando numa caixa sem desejos ou escrúpulos. Ainda.

Ora. Nada mais inofensivo que o intercâmbio honesto entre pessoas adultas. E conscientes, na medida do possível. Míseras descargas elétricas. Comunhão de impulsos desprovidos de barreiras estéticas, etárias ou sociais. Ali, nos abismos das entropias alucinantes, podemos ser muitos, enormes, ágeis, viris. Podemos esquecer esses membros reduzidos a ossos. Os pudores inúteis. As carecas horrendas pontilhadas de sensores. Vocês, limitados à crosta sensível, não imaginam a plenitude da sintonia entre essências imemoriais. Elaboradas a partir dos mesmos resquícios primitivos, porém minuciosamente variáveis. Assustadoramente complementares.

Diverte-me constatar que demorei anos para mover triviais peças de xadrez, teclas aleatórias, um único polegar mecânico. Arcaicos e desengonçados braços de ferro e fios. É fascinante acompanhar a inescapável obsolescência da tecnologia. De artifícios frágeis, que um dia pareceram definitivos. O pueril ilusionismo virtual. A combustão. Telefones. Mas você é jovem demais para saber. Conhece apenas essa completude automática, acessível ao toque, limpa de papéis, tempestades, inimigos reconhecíveis. Tudo fácil e asseado, longevo e seguro.

Também usufruo uma ilusão de conforto. Apenas durmo. Distraída e aliviada por evasões clandestinas que meus guardiões provavelmente conhecem e toleram. Sobrevivo. Mas não pense que é fácil. Às vezes participo de certezas dolorosas bastante convincentes. E terríveis. Assustadoramente reais. Antes, quando me recuperava do trauma e as conexões ainda pareciam ingovernáveis, gostava daquilo. E, quer saber? Algumas torturas podiam ser libertadoras. Deliciosas. Ah, a adorável intransigência da carne ferida. A indescritível sensação de vitalidade que o suplício proporcionava.

Depois a dor ficou repetitiva. Alienante, como a atrofia. Quase prefiro que me abandonem desperta, angustiada. Cansei da prostração confortável e passiva. Cansei de não sonhar. Precisavam realmente deixar-me tão alheia a tudo? Entendo. São os tais revolucionários. O exército de cérebros interligados ameaçando a civilização que os criou e desenvolveu. Detesto política, estou bem assim. Usem-me como quiserem. Iludam-se. É tarde para retroceder.

Mas... que barulho foi esse? Um tremor surdo. Um baque, um estampido, não sei. Lá fora. Janelas, paredes, teto, vibraram de repente. Veio de baixo. E parou.

Silêncio.

Espero. Reviro os olhos. Da rua chega um clarão vermelho. Não é crepúsculo, se esvai. De novo. A explosão. O quarto lateja por segundos. E agora. Mais próximo. Os suportes de soro caíram. Copos, bandejas. As máquinas, num estrondo. Metais. Estilhaços. Uma confusão de alarmes sonoros, por toda parte. Algo espatifa no corredor.

Percebi um vulto. Uma sombra. Passou rápido, ali. É verdade. Voltou. Parece me observar. Sumiu.

Tudo escuro.

Apagaram-se as luzes do prédio. Os barulhos cessaram. Treva absoluta. Rumores imprecisos. Arranhões sutis, remexendo ao redor. Minha respiração atrapalha. Prendo o ar. Tento ouvir. Nenhum movimento. Noite opressa. Calor. Pulsações aceleradas.

Um estalo.

A porta. Abrem a porta. Há alguém no quarto. Posso ouvir seus passos. Senti-los. Vibram. Cadenciados. Rascam devagar sobre os cacos. Aproximam-se. Ao pé da cama. Ao meu lado. Aqui.

É um travesseiro. Deita seu perfume gelado em meu rosto. Macio. Delicado.

- Filha, por favor, continue dormindo.
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GUILHERME SCALZILLI é historiador e escritor. Autor do romance Crisálida (Casa Amarela), entre outros livros. Vive em Campinas (SP).

Fontes: Rascunho Imagem = http://alzheimers.about.com/od/caregivers/ig/Brain-Changes-in-Alzheimer-s/cerebral_cortex.htm

Carlos Leite Ribeiro (Encontro Inesquecível)


Joaquim Saraiva era um pacato cidadão. A sua vida era uma perfeita rotina: levantava-se às 7.30 horas para apanhar o Metro às 8.15 horas para estar no emprego sempre às 8.55 horas, altura em que picava o cartão de presença na firma onde trabalhava. Os colegas, por graça, alcunharam-no de “relógio suíço”. De regresso a casa, entretinha-se a fazer o seu jantar, para depois ver a televisão quando lhe interessava ou ler um livro ou revista enquanto o sono não chegava.

Já há mais de um ano que não ia a um cinema ou teatro. Ah, também gostava de ver futebol na televisão ou ouvir pela rádio o relato do seu clube favorito.

Um dia, ao chegar a casa encontrou na caixa do correio uma carta do Tribunal Distrital, a convocá-lo para comparecer em determinado dia para prestar declarações e com multa por ter faltado à primeira convocatória. Ficou muito admirado com o que leu, pois, em consciência não tinha faltado a nenhuma convocatória e nem sabia porque tinha sido convocado.

Na data e hora marcada pela convocatória, o Joaquim (Quim, para os amigos) entrou no Tribunal. Passou pela Secretaria onde o mandaram esperar numa sala de espera, onde já se encontrava um militar da GNR, pois, a Delegada do Ministério Público queria falar com ele. Esperou mais de uma hora e por fim chamaram-no. Já em frente da Delegada, esta perguntou-lhe:

- O seu nome é Joaquim Saraiva?

- Sim, Srª. Doutora. Só não sei porque estou aqui, pois, em consciência nada fiz.

- É a desculpa que todos dão… Está aqui como testemunha de um embate de carros e, também, para se justificar a sua ausência na primeira convocatória.

- Perdão Sr. Doutora, em não testemunhei (felizmente) nem faltei à primeira convocatória, pois, não a recebi.

- Vamos ver se nos entendermos: seu nome é Joaquim Saraiva e mora em Leiria, na rua Almirante Reis, nº 1233: Certo?

- Certíssimo. Moro nessa morada, há mais de 22 anos. Numa casa…

- Vamos ver: onde estava você, na madrugada do dia 22 de Novembro. Pelas 2.40 horas?

- Sem receio de me enganar, estava em minha casa e a essa hora a dormir. Não tenho hábito de sair à noite nem de fazer madrugadas. Não tenho ninguém que possa confirmar, pois, vivo sozinho.

- Não queira criar confusão (que eu nem aceito confusões). Rosa, chame o militar da GNR…

GNR: - v. Exª., posso entrar?

Delegada: - Entre – respondeu-lhe a Delegada, que continuou – Conhece ou lembra-se deste senhor?

GNR: - Saiba V. Exª, que não conheço nem me lembro de alguma vez o ter visto. Nem sei a que processo se refere.

Delegada: - O processo é referente àquele embate entre dois carros, na Batalha, em Novembro último que provocou ferimentos ligeiros numa senhora. O Sr. Tomou conta da ocorrência…

GNR: - Deve haver qualquer engano, pois, o indivíduo que provocou esse acidente, era estrangeiro e mal falava o português. Além de ser mais alto que este senhor, tinha o cabelo louro e olhos azuis.

Delegada: - Já vamos ver o que está a acontecer. Rosa, vá à Secretaria e traga-me todo o processo nº 222233/11. Não demore por favor.

Poucos minutos depois, a secretária da Delegada entrou no gabinete com dois dossiers debaixo do braço. “Aqui tem todo o Processo, Srª. Delegada”

Delegada: - Vamos ver… até aqui tudo bem: nome e morada…

Quim: - A Srª Delegada pode dizer-me a data em que o Tribunal mandou a primeira convocatória?

Delegada: - Foi no dia, foi no dia, 3 de Janeiro. Seu nome está correcto, mas a morada não… O Sr. Joaquim Saraiva morou (ou esteve alguns dias) na cidade de Setúbal?

Quim: - Nunca vivi nessa cidade e há mais de 25 anos que não vou a Setúbal, e, quando ia lá era para apanhar o barco para Tróia.

Delegada: - Que confusão… vamos ver a participação da ocorrência feita aqui pelo Sr. da GNR … pois, o nome que aqui está é Joaquim (com letra “n”) Swart, com residência em Setúbal. Este engano foi feito aqui na Secretaria. Vou tratar do caso…

Rosa: - Srª Delegada, chegou a D. Isabel Rosa, a vítima desse acidente. Posso mandar entrar?

Delegada: - Mande entrar. – D. Isabel Rosa, conhece este senhor?

Isabel: - Não sei, Srª. Delegada…

Delegada: - Não se lembra se foi este senhor que abalroou o seu carro e provocou-lhe ferimentos?

Isabel - : - Pode ser… não sei… pela altura e corpulência…talvez…

Delegada: - Talvez, nunca foi certo: É ou não é – responda por favor.

Isabel: - Eu estava no chão e não o via bem… Talvez seja…

Delegada: - Estou elucidada. O Sr. Joaquim Saraiva pode retirar-se em paz, assim como o Sr. da GNR. Quanto a D. Isabel, tenho que fazer-lhe mais umas perguntas.

Na saída do Tribunal, Quim suspirou profundamente. Psicologicamente, não se sentia capaz de ir trabalhar (o que era muito raro nele). Apanhou um táxi e foi para casa: deitou-se na cama e só acordou à noite.

O tempo passou e o caso foi esquecido.

Uma manhã, quando o Quim saia do Metro e a caminho do trabalho, um carro parou junto dele e uma voz, depois de baixar o vidro, gritou-lhe:

Isabel: - Olhe lá seu homezeco, o carro que você abalroou, como vê, já está arranjado. Mas você vai-mas pagar – isso vai…

O Quim não lhe respondeu, mas pensou para si: “Ai que o dia me vai correr mal!”

Poucos minutos de se sentar à sua secretária da companhia de seguros onde trabalhava, um colega foi ter com ele:

Vitor - o Abel hoje não vem e está no balcão uma senhora que quer saber em que ponto está o processo de um acidente que teve. Tu que trabalhas em colaboração com ele, vai atendê-la. Mas já te vou avisar que essa senhora, é muito bonita mas tem cá uma língua de víbora, que não é brinquedo nenhum. Não te demores muito pois senão ela é bem capaz de invadir as instalações!

Com pouca vontade, o Quim levantou-se e dirigiu-se ao balcão para atender a cliente. Quando chegou ao balcão, ouviu logo a “saudação” com que a cliente o presenteou:

Quim – Em que lhe posso ser útil? … Mas você aqui?!

Isabel – O mesmo direi eu: que faz você aqui? Até parece que me anda a perseguir depois de ter amachucado meu carro!

Quim – Perdão, primeiro, não tenho carro e já há muito que não conduzo (dirijo). Portanto e como ficou amplamente demonstrado que não fui eu que provoquei o acidente. Disto isto, diga-me por favor, em que lhe posso ser útil?

Isabel – Sempre a mesma desculpa… Olhe, quer saber quando esta seguradora me paga os prejuízos que tive?

Quim – Só lhe posso dizer que esta firma lhe pagará tudo a que tem direito quando receber o processo que o Tribunal nos vai. Só não lhe sei dizer quando isso acontecerá.

Isabel – Oxalá que você não atrase essa comunicação, por simples vingança…

Algumas semanas depois.

O Quim e os colegas estavam na pausa da tarde para tomar café, perto da seguradora, quando junto ao balcão, quando uma voz de mulher pediu em alta voz “Tire-me um café bastante forte, pois estou com muita pressa”.

Ao ouvir aquela voz, o Quim voltou-se e viu a moça que o acusava de ter amachucado seu carro, ao mesmo tempo que ela também o via. Ela, já com a chávena (xícara) na mão, sem quer fez um movimento brusco e entornou o café por cima do Quim.

Isabel – Desculpe sr (não sei quantos), não foi por mal. Mas estou disposta a pagar a lavagem da camisa…

Quim – Como lhe posso perdoar, se estou todo sujo de café? E não é só a camisa como as calças e roupa interior até às meias? Como posso voltar ao escritório neste estado?

Isabel – Já lhe disse que pago tudo!

Quim – Recuso essa opção. Você, é que tem de lavar tudo e passar a ferro, senão…

Isabel – Eu lavo tudo pois até me fica mais barato. Quer boleia até sua casa para mudar de roupa?

Quim – Se não me der boleia, também paga o táxi!

No Domingo seguinte, logo pela manhã, a campainha da casa onde morava o Quim, tocou. Com grande admiração sua, quando abriu a porta encontrou uma linda moça com as suas calças e camisa na mão e um pequeno saco com as meias e cuecas. Estafado pela situação, só pode balbuciar:

Quim – Não sei seu nome? Eu sou o Quim…

Isabel – E eu sou a Isabel!

Quim – Fico-lhe muito agradecido pela sua gentileza de vir entregar-me a roupa. Pode entrar…

Isabel: - Não entro não!

Quim – Então, como já são horas do almoço, convido-a para almoçar comigo. Você dá a boleia e eu pago-lhe o almoço?

Isabel – Bem… Então despache-se pois, eu com fome só impossível de aturar. E já agora, onde vamos almoçar? Olhe que não gosto de peixe com muitas espinhas…

Quim – Contava ir almoçar uma pizza ao Colombo…

Isabel – Não se demore. Olhe que só espero 8 minutos!

O almoço correu bem, com conversa de nível elevado, principalmente, quando o Quim lhe disse que a indenização da seguradora estava pronta para ser entregue e o que o verdadeiro culpado do acidente tinha sido apanhado pela polícia quando se preparava para sair do país. A partir desse dia, começaram a tomar o café depois do jantar, em princípio uma vez por semana, depois duas vezes até que chegaram a tomar o café todos os dias e ao domingo almoçavam juntos quase sempre.

Num sábado, ela atrasou-me na hora marcada para o café depois do jantar. Desculpou-se que tinha ido ao veterinário com seu gato, para este fazer uma “pequena” cirurgia (castração), pois, as vizinha se queixavam que o gato andava sempre atrás de suas gatas.

Quim – Coitadinho, nem gato se pode ser nesta terra!

Isabel – Também tive pena, mas teve de ser…

Num sábado de Lua Cheia, o parzinho depois do jantar no restaurante onde costumavam frequentar, resolveram ir a uma discoteca perto de uma praia. A discoteca estava cheia e o barulho era muito. Por essa razão, resolveram sair e ir admirar a lua (que estava linda) numa falésia junto à praia. A conversa era banal e em determinada altura, num movimento natural e brusco de suas cabeças, seus lábios se colaram num longo e lânguido beijo. Naquela situação, começaram a aliviar a roupa um ao outro, esquecendo de admirar a Lua…

Algum tempo depois, Isabel começou a ver uma luz que se dirigia para o carro, e exclamou:

Isabel – Quim, será que a Lua descesse à Terra?

Quim – Estou a vê-la lá em cima…

Isabel – Então o que será aquele foco de luz?

Quim – Não faço a menor ideia do que seja. Talvez seja um extraterrestre. Mas pelo sim pelo não, vamos enrolar a roupa em volta dos nossos corpos.

Segundos depois, a tal “luz” bateu no vidro do carro e pediu para abrir. Era uma guarda-florestal que andava a passar a ronda:

Guarda – Que estão aqui a fazer a esta hora?

Muito atrapalhados e sem saberem qual a melhor justificação a dar ao guarda-florestal, disseram ao mesmo tempo:

- Estamos a admirar a Lua que está belíssima!

O guarda deu uma enorme e sonora gargalhada, antes de responder:

Guarda – E para admirar a Lua, é preciso estarem meios nus?

A situação era embaraçosa. A Isabel teve então uma “brilhante” ideia:

Isabel – Senhor guarda, nós pertencemos a um grupo de adoradores da Lua Cheia e, para melhor a adorámos, temos que tirar a roupa…

Perante tal resposta, o guarda-florestal voltou a dar uma sonora gargalhada e aconselhou-os:

Guarda – Bem, bem… vistam-se que a noite está fresca e regressem a casa. Boa Noite!

Os meses foram passando e cada vez a amizade crescia, embora por vezes com umas discussõezinhas à mistura. Durante um jantar, o Quim pediu a mão a Isabel. Ela sorriu.
Isabel – Mas só a mão, pois não podemos esquecer aquela Lua Cheia, aquela luz e sobretudo o guarda-florestal. Mas prometo-te que vou pensar muito bem e com muito cuidado na tua proposta. Por fim, pensou a aceitou.

Meses depois, na véspera do casamento, Isabel telefonou a seu noivo.

Isabel – Quim, sempre vais à despedida de solteiro com os teus colegas?

Quim – Sim vou. Vais ser uma pequena festa num restaurante…

Isabel – Num restaurante? Olha, antes dessa despedida, convido-te a acompanhar-me ao veterinário.

Quim – Ao veterinário? O que vais lá fazer? O gato está doente?

Isabel – O gato está de boa de saúde. Quero ir lá para o veterinário te fazer a operação que fez ao gato – recordas-te?

Quim – Deixa-me rir! Podes ter confiança em mim, para mais, hoje não é dia de Lua Cheia!

Ano e meio depois, numa maternidade, Isabel acaba de dar à luz um lindo bebé. Depois do parto, Quim aproximou-se da mulher.

Quim – Como estás minha querida? Ainda tens muitas dores?

Isabel – Já sinto menos dores, mas, continuo a pensar que devia ter-te levado ao veterinário… Olha, desde já fica combinado que se tivermos mais algum filho, será tu que o tens…

Fontes:
Colaboração de Carlos Leite Ribeiro – Marinha Grande – Portugal

Monteiro Lobato (Histórias de Tia Nastácia) IX – A Madrasta


Havia um viúvo com três filhas. Um dia resolveu casar-se de novo — e casou com uma mulher muito má, que tinha ódio às meninas. Fazia-as trabalhar como verdadeiras escravas.

No quintal havia uma grande figueira. Quando chegou o tempo dos figos, a madrasta botou as meninas lá tomando conta para que os passarinhos não bicassem os figos.

As três coitadinhas passavam debaixo da figueira o dia todo, dizendo aos sanhaços que se aproximavam:

Xô, xô, passarinho,
aí não toques o biquinho.
Vai-te embora pro teu ninho...

Mas mesmo assim aparecia um ou outro figo bicado e a madrasta batia nas três.

Um dia em que o homem fez uma longa viagem a madrasta aproveitou-se para mandar enterrar vivas as coitadinhas. Quando o homem voltou e indagou das filhas, a peste respondeu que haviam caído doentes e morrido, apesar de todos os remédios. O pobre pai ficou muito triste.

Mas aconteceu que no lugar onde as meninas tinham sido enterradas brotou logo um lindo capinzal — dos cabelos delas, e quando batia o vento o capinzal murmurava:

Xô, xô, passarinho,
aí não toques o biquinho.
Vai-te embora pro teu ninho...

Um negro, tratador dos animais da casa, andando a cortar capim, ouviu aqueles murmúrios e teve medo de mexer nas pontinhas. Foi contar o caso ao patrão.

O patrão não quis acreditar, e disse-lhe que cortasse o capim com murmúrio e tudo. O negro obedeceu. Mas quando levantou a foice, ouviu novamente a misteriosa voz, que dizia:

Capineiro de meu pai,
não me cortes os cabelos;
minha mãe me penteava,
minha madrasta me enterrou
pelo figo da figueira
que o passarinho bicou.

O negro foi correndo contar o caso ao patrão, com um grande susto na cara. E tanto fez que o obrigou a chegar até lá. E então o pai das meninas ouviu o lamento das filhas enterradas.

Mandou buscar uma enxada e cavar, e retirou-as da terra, vivas por milagre de Nossa Senhora, que era madrinha das três.

Quando voltaram para casa, na maior alegria deram com a madrasta estrebuchando. Um castigo do céu tinha caído sobre a peste.
–––––––––
— Bom — disse Emília — esta história já está bem mais aceitável. Tem sua originalidade e explica tudo. Desde que houve milagre, era natural que as enterradinhas vivas não morressem. Milagres não se discutem.

— E há ainda um traço delicado — disse dona Benta — esse das cabeleiras das meninas que viraram capinzal murmurejante ao vento. Aparece também a figura da madrasta, que é muito comum nas histórias populares. Toda madrasta tem que ser má. O povo não admite a possibilidade de madrasta boa.

— E não há — disse Narizinho. — As que eu conheço, como a madrasta da Quinota e a da Maricoquinha, não chegam a ponto de enterrar crianças vivas — mas boas não são.

— E a do Zeferininho da Estiva, que dava na cabeça dele com a colher de pau? — acrescentou Pedrinho.

— Sim — disse dona Benta. — Talvez a regra seja a madrasta má, embora as haja excelentes. Sei dois casos de madrastas boníssimas, quase como mães. Tudo depende da criatura, e não do ato de ser mãe ou madrasta. Há mães tão perversas como as piores madrastas.

— Mas o povo assentou que as madrastas não prestam e não prestam mesmo — concluiu Emília. O coitado do povo sofre tanto que há de saber alguma coisa. Esse ponto da madrasta má o povo sabe. São más como caninanas — embora haja alguma degenerada que seja boa. Madrasta boa não é madrasta. Para ser madrasta, tem que ser uma bisca das completas. Eu, se pilhar alguma por aqui, furo-lhe os olhos.
–––––––––––––
Continua… X – Manuel da Bengala
–––––––––––––-
Fonte:
LOBATO, Monteiro. Histórias de Tia Nastácia. SP: Brasiliense, 1995.
Este livro foi digitalizado e distribuído GRATUITAMENTE pela equipe Digital Source

Delasnieve Daspet (Poesias ao Anoitecer)


SUAVE BRISA

Gosto de te ouvir,
Deixa um sussurro no meu travesseiro!

Gosto de te sonhar,
Fecho os olhos e vôo nos meu sonhos!

Gosto do teu silêncio,
Tu transformas o inverno e o silêncio em flor de saudade!

Gosto que me toques,
Teu toque me inebria e excita!

Gosto do teu cheiro,
Trazes ao meu olfato o cheiro da vida!

Gosto de andar contigo,
Peguei a estrada no meio do nada e segui tua estrela!

Gosto da tua partida,
Pois estarei pronta quando minha hora chegar,
Não vou me atrasar para o nosso encontro.

Gosto da tua ausência,
Ela virou uma lágrima quente que banha minhas faces!

Gosto de te seguir,
Vou atras de ti - para onde a água correr e o vento soprar!

Gosto de te sentir,
Roçando em minha face como um terno beijo!

Gosto de ti,
Brisa Suave que me embala os sonhos e o porvir!

ESCREVO PARA NÃO MORRER...

Para não morrer, para não explodir,
Para desabafar meus sentimentos,
Esta força que me avassala e oprime,
É por isso que escrevo!

E por que tenho vida - vou escrevendo;
Meu interior pede a tradução em letras e versos
Do que se agiganta em mim...

Escrevo, enfim, para renascer.
Pois o turbilhão que minh´alma encerra
Me lança a extratosfera...

Escrevendo chego ao infinito,
E como uma onda num oceano de areia,
Densa, vou num crescendo, rolando nas dunas...

Escrevo, pois preciso dizer o que aprendi!
Muitas coisas nos esperam além da estrada,
Da imensidão, indiziveis e invisiveis a olhu nú,
A eternidade!

E escrevo, enfim, para que caibam dentro de mim,
Todas as angústias e dores que carrego,
E antes que eu desabe, como um grão de areia
Que se joga ao vento,
Escrevo para não morrer....

COM CHEIRO DE TERRA MOLHADA ...

Olho a chuva cair na tarde,
Molhando minhas saudades...
Penso em versos...
Vou construir um poema úmido
Com cheiro de terra molhada.

Leve e perfumado
Como o vento que se enrosca
Nas folhas mortas das árvores
E sibilando as carrega,
Mudando tudo de lugar...

Muduram com o vento
Os meu sonhos e as minhas emoções!
Rolaram as ribanceiras
Com tanta velocidade
Que me arranhei toda
Com as idas e vindas da vida!

E nas sombras das nuvens
Meu coração se esconde!
Entre um olhar e outro,
Na esfera da fumaça,
A chuva cai.

E na terra que o asfalto comeu
A água se coagula em lama,
Como lágrimas borradas
Na maquiagem!

Eu preciso
Fazer a água escoar pelos
Canais do tempo
Diluindo minhas verdades e mentiras
Apagando minhas inseguranças,
Limpando minhas impurezas,
Fazendo brotar a vida
Na verde folha da paz!

QUANDO AS ESTRELAS NÃO APARECEM ...

Quando fico no escuro
E as estrelas aparecem,
Não importa a situação,
Os dedos tocam os sonhos,
E te buscam na eternidade
De uma canção.

Cansei de andar só,
Como um pardal na chuva.
E sem usar as máscaras permitidas,
Mal consigo sobreviver...

Para fechar o ciclo,
Não busco piedade
Sigo pela estrada, caminhando...
Quando as trevas se fecham em delírios,
Quando as estrelas não brilham
Lágrimas queimam a minha alma,
E escurecem a minha noite.

Fonte:
Colaboração da Autora

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 182)


Uma Trova Nacional

Planta sem folhas, despida!
Teus galhos tortos, tristonhos,
lembram que o outono da vida
também desfolha os meus sonhos...
–MARINA BRUNA/SP–

Uma Trova Potiguar

O outono ali vem chegando,
já me sinto à sua espera...
contudo vou degustando
uns restos de primavera.
–UBIRATAN QUEIROZ/RN–

Uma Trova Premiada

2002 > Belém/PA Tema > FRUTO > M/E

Alegrias coleciono
neste meu tardio amor.
É na colheita do outono
que os frutos têm mais sabor!
–WANDA DE PAULA MOURTHÈ/BH–

...E Suas Trovas Ficaram

No outono, seca, sofrida,
sou a folha da ilusão;
vou pairando, esmaecida,
por sobre a relva no chão.
–EVA REIS/MG–

Simplesmente Poesia

–EFIGÊNIA COUTINHO/SC–
Tardes de Outono.

Nestas tardes monótonas de outono
Onde o mormaço em árvores repousa,
Tendo o céu imenso como patrono,
As sombras, na minha alma fazem pouso.

No silencio, vem chegando à memória
Em subtis lapsos, vou meditando,
Como se eu pudesse atravessar a trajetória
Que meu coração foi alimentando...

Mas a mercê da solidão escondida,
Que o mundo vai levando tudo de meu.
Num trajeto de ansiedade desmedida
Como vôo do pássaro que geometriza o céu.

Em silencio e mais nada me entrego,
Em busca da minha plural realidade
E na esperança que no peito carrego,
Bendigo do outono, a monótona tarde!

Estrofe do Dia

Em nome de CAMINHADA,
eu te agradeço, Ademar.
Os poemas de que falas
são frutos do meu pomar,
que colhi durante o outono,
quando Apolo, no seu trono,
me pôs feliz a sonhar.
–JOSÉ LUCAS DE BARROS/RN–

Soneto do Dia

–MIGUEL RUSSOWSKY/SC–
Solidão.

Maio. Minha tristeza avisa ser outono...
Poucas nuvens no céu... Uma rima vadia,
começa a solfejar pela casa vazia,
tentando afugentar os recados do sono.

Envelhecer me dói... ( mas antes não doía )
Meus sonetos de amor – cães magrelos sem dono –
se põem a reclamar que os deixei no abandono.
Folhas caem, devagar,na tarde azul e fria.

Domingo sem ninguém, de novo o mesmo tema
querendo constituir-se em núcleo do poema...
(Falo com meus botões, os botões tem bom senso )

O silêncio parece um anseio que chora...
Aprender a ser só, se aprende, mas demora...
Uma lágrima só... não faz peso num lenço.

Fonte:
Colaboração de Ademar Macedo

domingo, 10 de abril de 2011

Ialmar Pio Schneider (Soneto a Cora Coralina)

Casa de Cora Coralina (autor: ???)
(In Memoriam – Cidade de Goiás, 20 de agosto de 1889 — Goiânia, 10 de abril de 1985)

Poesia simples, plena de filosofia,
de gente humilde da cidade e do interior,

que só nos trouxe tanta vida e tanto amor,

colhidos no lutar no afã do dia-a-dia...

Viveu a transmitir sua sabedoria,
na qual não faltaram as pitadas de dor,
mas momentos também de jovem alegria,

em que desenvolveu seu talento de humor...

Foi Cora Coralina, a poetisa exemplar,
cuja existência de noventa e cinco anos,

quase um século de conhecimento audaz...


Seus versos vão viver por longo tempo,
a dar
uma bênção sublime aos viventes humanos,
porque ela foi feliz, sempre pregando a paz...
--
Porto Alegre – RS, 10 de abril de 2011-04-10, às 10h07min. em frente ao Rio Guaíba, cujas águas aparecem sob a neblina da manhã nublada.

Fontes:
Colaboração do Autor
Pintura obtida em http://curtapoesia.blogspot.com/ (autor desconhecido)

Cora Coralina (Livro de Poemas)


CORA CORALINA, QUEM É VOCÊ?

Sou mulher como outra qualquer.
Venho do século passado
e trago comigo todas as idades.

Nasci numa rebaixa de serra
Entre serras e morros.
“Longe de todos os lugares”.
Numa cidade de onde levaram
o ouro e deixaram as pedras.

Junto a estas decorreram
a minha infância e adolescência.

Aos meus anseios respondiam
as escarpas agrestes.
E eu fechada dentro
da imensa serrania
que se azulava na distância
longínqua.

Numa ânsia de vida eu abria
O vôo nas asas impossíveis
do sonho.

Venho do século passado.
Pertenço a uma geração
ponte, entre a libertação
dos escravos e o trabalhador livre.
Entre a monarquia caída e a república
que se instalava.

Todo o ranço do passado era presente.
A brutalidade, a incompreensão, a ignorância, o carrancismo.
Os castigos corporais.
Nas casas. Nas escolas.
Nos quartéis e nas roças.
A criança não tinha vez,
Os adultos eram sádicos
aplicavam castigos humilhantes.

Tive uma velha mestra que já
havia ensinado uma geração
antes da minha.
Os métodos de ensino eram
antiquados e aprendi as letras
em livros superados de que
ninguém mais fala.

Nunca os algarismos me
entraram no entendimento.
De certo pela pobreza que marcaria
Para sempre minha vida.
Precisei pouco dos números.

Sendo eu mais doméstica do
que intelectual,
não escrevo jamais de forma
consciente e racionada, e sim
impelida por um impulso incontrolável.
Sendo assim, tenho a
consciência de ser autêntica.

Nasci para escrever, mas, o meio,
o tempo, as criaturas e fatores
outros, contra-marcaram minha vida.

Sou mais doceira e cozinheira
Do que escritora, sendo a culinária
a mais nobre de todas as Artes:
objetiva, concreta, jamais abstrata
a que está ligada à vida e
à saúde humana.

Nunca recebi estímulos familiares para ser literata.
Sempre houve na família, senão uma
hostilidade, pelo menos uma reserva determinada
a essa minha tendência inata.
Talvez, por tudo isso e muito mais,
sinta dentro de mim, no fundo dos meus
reservatórios secretos, um vago desejo de analfabetismo.
Sobrevivi, me recompondo aos
bocados, à dura compreensão dos
rígidos preconceitos do passado.

Preconceitos de classe.
Preconceitos de cor e de família.
Preconceitos econômicos.
Férreos preconceitos sociais.

A escola da vida me suplementou
as deficiências da escola primária
que outras o destino não me deu.

Foi assim que cheguei a este livro
Sem referências a mencionar.

Nenhum primeiro prêmio.
Nenhum segundo lugar.

Nem Menção Honrosa.
Nenhuma Láurea.

Apenas a autenticidade da minha
poesia arrancada aos pedaços
do fundo da minha sensibilidade,
e este anseio:
procuro superar todos os dias
Minha própria personalidade
renovada,
despedaçando dentro de mim
tudo que é velho e morto.

Luta, a palavra vibrante
que levanta os fracos
e determina os fortes.

Quem sentirá a Vida
destas páginas...
Gerações que hão de vir
de gerações que vão nascer.

(Meu Livro de Cordel, p.73 -76, 8°ed, 1998)

TODAS AS VIDAS

Vive dentro de mim
uma cabocla velha
de mau-olhado,
acocorada ao pé do borralho,
olhando pra o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço...
Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai-de-santo...
Vive dentro de mim
a lavadeira do Rio Vermelho,
Seu cheiro gostoso
d’água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
pedra de anil.
Sua coroa verde de são-caetano.
Vive dentro de mim
a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga
toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.
Vive dentro de mim
a mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda,
desabusada, sem preconceitos,
de casca-grossa,
de chinelinha,
e filharada.
Vive dentro de mim
a mulher roceira.
– Enxerto da terra,
meio casmurra.
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos.
Seus vinte netos.
Vive dentro de mim
a mulher da vida.
Minha irmãzinha...
tão desprezada,
tão murmurada...
Fingindo alegre seu triste fado.
Todas as vidas dentro de mim:
Na minha vida –
a vida mera das obscuras.

O CHAMADO DAS PEDRAS

A estrada está deserta.
Vou caminhando sozinha.
Ninguém me espera no caminho.
Ninguém acende a luz.
A velha candeia de azeite
de lá muito se apagou.

Tudo deserto.
A longa caminhada.
A longa noite escura.
Ninguém me estende a mão.
E as mãos atiram pedras.
Sozinha...
Errada a estrada.
No frio, no escuro, no abandono.
Tateio em volta e procuro a luz.
Meus olhos estão fechados.
Meus olhos estão cegos.
Vêm do passado.

Num bramido de dor.
Num espasmo de agonia
Ouço um vagido de criança.
É meu filho que acaba de nascer.

Sozinha...
Na estrada deserta,
Sempre a procurar
o perdido tempo que ficou pra trás.

Do perdido tempo.
Do passado tempo
escuto a voz das pedras:

Volta...Volta...Volta...
E os morros abriam para mim
Imensos braços vegetais.

E os sinos das igrejas
Que ouvia na distância
Diziam: Vem... Vem... Vem...

E as rolinhas fogo-pagou
Das velhas cumeeiras:
Porque não voltou...
Porque não voltou...
E a água do rio que corria
Chamava...chamava...

Vestida de cabelos brancos
Voltei sozinha à velha casa deserta.

DAS PEDRAS

Ajuntei todas as pedras
que vieram sobre mim.
Levantei uma escada muito alta
e no alto subi.
Teci um tapete floreado
e no sonho me perdi.

Uma estrada,
um leito,
uma casa,
um companheiro.
Tudo de pedra.

Entre pedras
cresceu a minha poesia.
Minha vida...
Quebrando pedras
e plantando flores.

Entre pedras que me esmagavam
Levantei a pedra rude
dos meus versos.

ASSIM EU VEJO A VIDA

A vida tem duas faces:
Positiva e negativa
O passado foi duro
mas deixou o seu legado
Saber viver é a grande sabedoria
Que eu possa dignificar
Minha condição de mulher,
Aceitar suas limitações
E me fazer pedra de segurança
dos valores que vão desmoronando.
Nasci em tempos rudes
Aceitei contradições
lutas e pedras
como lições de vida
e delas me sirvo
Aprendi a viver.

HUMILDADE

Senhor, fazei com que eu aceite
minha pobreza tal como sempre foi.

Que não sinta o que não tenho.
Não lamente o que podia ter
e se perdeu por caminhos errados
e nunca mais voltou.

Dai, Senhor, que minha humildade
seja como a chuva desejada
caindo mansa,
longa noite escura
numa terra sedenta
e num telhado velho.

Que eu possa agradecer a Vós,
minha cama estreita,
minhas coisinhas pobres,
minha casa de chão,
pedras e tábuas remontadas.
E ter sempre um feixe de lenha
debaixo do meu fogão de taipa,
e acender, eu mesma,
o fogo alegre da minha casa
na manhã de um novo dia que começa.”

POEMINHA AMOROSO

Este é um poema de amor
tão meigo, tão terno, tão teu...
É uma oferenda aos teus momentos
de luta e de brisa e de céu...
E eu,
quero te servir a poesia
numa concha azul do mar
ou numa cesta de flores do campo.
Talvez tu possas entender o meu amor.
Mas se isso não acontecer,
não importa.
Já está declarado e estampado
nas linhas e entrelinhas
deste pequeno poema,
o verso;
o tão famoso e inesperado verso que
te deixará pasmo, surpreso, perplexo...
eu te amo, perdoa-me, eu te amo...”
-----------------
Biografia
http://singrandohorizontes.blogspot.com/2009/04/cora-coralina-1889-1985.html
Mais Poesias
http://singrandohorizontes.blogspot.com/2009/12/cora-coralina-casarao-poetico.html
http://singrandohorizontes.blogspot.com/2009/04/cora-coralina-teia-de-poesias.html

Cora Coralina (O Lampião da Rua do Fogo)


Ali, naquele velho canto onde a Rua de Joaquim Rodrigues faz um recanteio, morava Seu Maia, casado com Dona Placidina, numa casa de beirais, janelas virgens da profanação das tintas, porta da rua e porta do meio. Portão do quintal, abrindo no velho cais do Rio Vermelho. Isso, há muito tempo, antes da rua passar a 13 de Maio e da casa ser fantasiada de platibanda.

Seu Maia era muito conhecido em Goiás e era porteiro da Intendência. Boa pessoa. Serviçal, amigo de todo mundo e companheirão de boas farras. Gostava de uma pinguinha em doses dobradas, dessas antigas que pegavam fogo. Então, se misturava vinho, conhaque e aniseta; só voltava para casa carregado pelos companheiros, que o entregavam aos cuidados da mulher.

Esta, acostumada, embora com a sina ruim, como dizia, não poupava a descalçadeira quando recebia o marido naquele fogo, arrastando a língua, de pernas moles, isto quando não virava valente, quebrando pratos e panelas e disposto a lhe chegar a peia.

Dona Placidina era muito prática, nessas e noutras coisas... Ajeitava logo um café amargo, misturado com frutinhas de jurubeba torrada, que o marido engolia careteando e o empurrava para a rede, onde roncava até pela manhã ou se agitava e falava a noite inteira.

— Coitada de Dona Placidina, comentavam as amigas. Seu Maia é um santo homem sem esse diabo da pinga.

E ensinavam remédios, simpatias, responsos, rezas fortes. Simpatia que dera certo em outros casos, era nada para ele. Remédios? Inofensivos como a água do pote. Os próprios santos se faziam desentendidos dos responsos, velas acesas e jaculatórias recitadas.

Dona Placidina, cansada daquele marido incorrigível, acabou botando o coração ao largo, embora achasse, no íntimo, que melhor seria uma boa hora de morte para ela... ou antes, para o marido, esta parte no subconsciente.

Naquele dia, como a dose da boa fosse mais pesada, Seu Maia, que já vinha se ressentindo do fígado com passamentos e vista escura, se achou pior.

Os amigos o trouxeram para casa mais cedo. Tiveram mesmo de o levar para a cama e o meter entre as cobertas. De nada valeu a chazada caseira.

No dia seguinte, chamaram Seu Foggia que diagnosticou empanchamento e doença do coração. Receitou um purgativo e uma poção. Seu Maia piorou. Dona Placidina se desdobrou em cuidados especiais. Esqueceu o defeito do marido, as desavenças, os pratos quebrados e passou a sentir, antecipadamente, os percalços da viuvez.

Os amigos não arredaram. Faz-se a conferência médica das vizinhas prestativas. Escalda-pés, benzimentos, sinapismo, nada deu jeito. Nem valeu promessa de muito boa cera ao senhor São Sebastião. Seu Maia morreu.

Os companheiros tomaram conta do morto. Levaram o corpo.Vestiram-lhe o fato preto de sarjão, que tinha sido do casamento. Calçaram meias, ajuntaram-lhe as mãos no peito. Pearam as pernas e passaram um lenção branco, bem apertado, no queixo. Chamaram um canapé, largo de palhinha, para o meio da sala, deitaram o cadáver, cobriram com um lençol. Cuidou-se do pucarinho de água benta, com seu ramo de alecrim. Acenderam-se as quatro velas e, nos pés do morto, botou-se um caco de telha com brasa e grãos de incenso. Era assim que se arrumava defunto em Goiás, antigamente.

Os amigos foram chegando, tomando posição e começou o velório. Dona Placidina, entregue aos cuidados das amigas, mal escapava de uma vertigem, caía noutra. Afinal, à força de chás de arruda, de casca de tomba e de Água Florida de Murray, voltou a si e, como era decidida e de espírito prático, botou de parte o abatimento e passou a cuidar do pessoal que fazia sentinela.

Café com biscoito pelas 10 horas. Mais tarde, mexido de lombo de porco e ovos fritos com farofa, comido na cozinha, e requentão quando a noite esfriou mais e os galos passaram amiudar.

Entre a diligência caseira e suspiros puxados, a viúva, de vez em quando, levantava a ponta do lençol que cobria o marido e enxugava umas lágrimas hipotéticas. “Bom marido”, lastimava e, lá consigo, “não fosse a pinga, era a falta que tinha...”

No dia seguinte, veio o caixão com tampa solta, como de costume. Agasalharam ali o defunto. Chegaram mais amigos e mais comadres. Dona Placidina louvava as virtudes conjugais do finado, em crises nervosas de choro seco — sem lágrimas, o choro mais difícil que existe.

A cada visita que chegava, com seu carinhoso abraço e formalíssimos “meus pêsames”; havia uma exaltação no choro ressecado da viúva.

Pelas duas horas, começou a fazer vento de chuva e um trovão surdo se ouviu ao lado da Santa Bárbara. Como o caixão teria mesmo de ser carregado na força dos braços, os amigos resolveram apressar o saimento, antes que o tempo enfarruscado se decidisse em água. Vento da Santa Bárbara é chuva certa no São Miguel. E enterro debaixo de chuva era a coisa mais estragada que podia acontecer em Goiás.

Dona Placidina se debruçou em cima do morto. Não queria deixar sair Seu Maia, coitado... As amigas com chazadas de alecrim. Os amigos tomaram conta das alçadas e ganharam a rua. Entraram na outra, que era Direita, naquele tempo. Passaram a ponte da Lapa, subiram e entraram no Rosário para encomendação do corpo.

Os sinos das igrejas, todas, dobrando a lamentação de finados. Pela intenção do morto, cada amigo mandava dar um sinal nas igrejas, quanto quisesse. Ainda que os sinos tocam como a gente quer, alegres ou soturnos.

Os sineiros sempre tiveram esmero especial para anjinho ou defunto. Essas duas palavras, em Goiás, delimitavam as circunstâncias da idade, sem mais explicações. Anjinho era criança mesma ou moça virgem e, defunto, gente pecadora.

Ia o cortejo subindo e os homens se revezando nas alças, que o morto estava pesado. Com a doença curta, nem tivera tempo de emagrecer. Iam depressa, que a chuva já tinha posto uma carapuça branca no cocuruto do Canta Galo.

Na frente, um popular, afeito àquele préstimo, carregava a tampa que só ia ser colocada na beira da cova. Outros levavam os dois tamboretes, tradicionais, para o descanso do ataúde, quando se trocavam os que iam carregando. Os músicos, de fardão escuro, tocavam um funeral muito triste. Sendo de notar que não havia enterro em Goiás sem acompanhamento de música, somente os muito pobrezinhos. Na rabeira, a molecada da rua. Queriam ver o caixão descer no buraco, se divertiam com aquilo.

Na esquina da Rua do Fogo com a Rua da Abadia, existiu, durante muito tempo, um poste de lampião antigo, saliente, fora de linha, puxando mesmo para o meio da rua. Era um tropeço. Coisa embaraçosa. Não foram poucos os esbarros, cabeçadas, encontrões verificados ali.

Enterros que subiam, já de longe, começavam a torcer à direita para se desviar do lampião, que não tinha outra conseqüência senão atrapalhar. Naquele dia, com a aflição da chuva que vinha perto e com o peso do caixão que era demais, ninguém se lembrou do poste. Foi quando o compadre Mendanha, que ia na alça dianteira pela esquerda, pisou de mau jeito num calhau roliço, falseou o pé, fraquejou a perna e... bumba! Lá se foi o caixão bater com toda força no lampião.

Com a violência do baque, o defunto abriu os olhos, desarrumou as mãos e fez força de levantar o corpo.

A essa hora, o pessoal do enterro tinha se desabalado, em doida carreira pela rua abaixo e largado o morto se soltando da laçada das pernas. O dia inda estava claro, não era hora de assombração. Alguns, mais esclarecidos, resolveram voltar e ver de perto o acontecido.

Encontraram Seu Maia de pé, muito amarelo, escorado no poste, com tremuras pelo corpo e olhando, com desânimo o caixão vazio. Reconheceram, então, que o mesmo estava vivo e que era preciso voltar com ele para casa. Guardaram o caixão inútil na igreja da Abadia e desceram a rua, amparando o ex-morto.

Todas as janelas, agora, com gente assombrada ante aquele caso novo na cidade. A meninada na frente, gritava:

— Evém o defunto...

De dentro das casas, os moradores corriam para as portas e só se ouvia:

— Vem ver, Maricota... vem ver, Joaninha. Óia o defunto que evém voltando...

Amparado pelos amigos, metido naquele sarjão preto, desusado, calçado só de meias, lenço na cara e muito devagarinho vinha Seu Maia de volta.

Um portador foi na frente avisar Dona Placidina, daquela ressurreição e conseqüente retorno, ao que ela só teve expressão sintomática:

— Seja pelo amor de Deus.

Seu Maia chegou afinal, entrou, recebendo um abraço de boas-vindas mais ou menos calorosas da mulher. Bebeu um cordial. Meteu-se na cama e de novo foram chamar Seu Foggia. Este veio. Examinou, apalpou, auscultou, pediu para ver a língua. Concluiu, com sabedoria, que tinha sido um ataque de catalepsia, muito parecido com a morte, mas que não era morte, não.

A providência tinha sido o lampião do meio da rua, senão teria sido mesmo enterrado vivo.

A cidade comentou o caso por muito tempo. Seu Maia foi entrevistado por todos os sensacionalistas da terra — gente insuportável daquele tempo. Muita língua desocupada levantou a suspeita de que vários fulanos e sicranos daquele tempo tivessem sido enterrados vivos e toda a gente ficou se pelando de catalepsia. Os letrados foram até o Chernoviz e Langard. Conferiram-se diploma no assunto e discorriam de doutor e com muita prosódia, sobre catalepsia ou morte aparente.

Enquanto os comentaristas faziam roda, o doente recuperava a saúde. Dona Placidina, muito prática como sempre, aproveitou o acontecimento para uma pequena homilia doméstica, complicada e cheia de boa dialética feminina, de que “aquilo fora aviso do céu e castigo de Deus...”

E já pelo choque emocional — vá lá que naquele tempo não havia destas coisas não — já pelo medo de novo ataque e de ser mesmo enterrado vivo, o certo é que o homem moderou a bebida.

Dona Placidina, no entanto, já havia, no seu foro íntimo, aceitado a idéia da viuvez e aquela volta inesperada do marido vivo não melhorou de muito os pontos de vista da ex-viúva.

Alguns meses depois, Seu Maia adoecia gravemente. Vieram os amigos da primeira viagem. Apareceram as clássicas e inefáveis comadres. Deram-se os remédios. Da botica e extrabotica. Foi bem purgado e lhe aplicaram ventosas e sinapismos. Nada serviu. Seu Maia morreu.

Seu Foggia então declarou que, por via das dúvidas, só levassem o morto quando começasse a feder. Fez-se de novo o velório com todas as regrinhas de costume. Café com biscoito pelas dez horas. Viradinho de feijão e lingüiça comidos, com voracidade e discrição na cozinha, e quentão forte de canela e gengibre, quando a noite esfriou e os galos amiudaram.

Contaram-se casos. Louvaram as virtudes do finado, num breve necrológio. Passaram a anedotas discretas. Falou-se da carestia da vida, dos erros do governo e se fez a filosofia da morte.

A viúva chorou, mais ou menos conformada com aquela segunda via. O compadre Mendanha tomou conta de trocar as velas que iam se consumindo, de regrar o pucarinho de água benta com seu raminho de alecrim.

No dia seguinte, quando perceberam que não mais haveria engano, os amigos ajuntaram as alças e levantaram o caixão.

Dona Placidina, muito experiente, despediu-se do morto em soluços alternados. Teimou com as amigas: dessa vez havia de acompanhar, ao menos até a porta.

O compadre Mendanha, muito metódico e apegado aos velhos hábitos de sempre pegar caixão pela alça da frente e da esquerda, tomou posição. Outros pegaram pelos lados, adiante saiu a tampa, carregada por um popular e os tamboretes indispensáveis, renteando o caixão aberto.

Espalhado pelas ruas, o acompanhamento, só de homens. Agrupada com seus instrumentos enlaçados de crepes, a banda do funeral. Arrumado o cortejo, Dona Placidina botou o corpo fora da porta e chamou alto:

— Compadre Mendanha... Escuta, compadre, cuidado com o lampião da Rua do Fogo, viu... Não vá acontecer como da outra vez.

Fontes:
CORALINA, Cora. Estórias da casa velha da ponte. SP: Global, 2000.
Imagem = http://casadecoralina.blogspot.com

Monteiro Lobato (Histórias de Tia Nastácia) – VIII – A Moura-Torta


Era uma vez um pai de três filhos, que não tendo dinheiro com que dotá-los deu a cada um uma melancia, quando eles falaram em sair a correr mundo. Mas recomendou que não as abrissem em lugar onde não houvesse água,

O filho mais velho, ansioso por saber de sua sina, abriu a melancia à beira do caminho logo adiante. De dentro pulou uma moça muito linda, a gritar: "Dai-me água ou leite!" Mas como ali não houvesse água nem leite, ela inclinou a cabecinha e morreu.

O filho do meio, que havia tomado por outra estrada, também resolveu conhecer sua sina e abriu a melancia num ponto onde não havia nem sombra de água perto. Surgiu de dentro uma jovem ainda mais bela, que disse: "Dai-me água ou leite!" Mas como não houvesse por ali nem uma nem outra coisa, ela também pendeu a cabecinha e morreu.

O filho mais moço, porém, deu muito tento à recomendação paterna, de modo que só abriu a sua melancia ao pé duma fonte. Também de dentro pulou uma moça belíssima, que pediu água ou leite. O moço deu-lhe água da fonte, que ela bebeu a fartar. Mas como estivesse nua, o moço pediu-lhe que subisse a uma árvore e lá ficasse escondidinha entre as folhas enquanto ele ia buscar-lhe um vestido. A moça subiu à árvore e escondeu-se entre as folhas.

Logo depois apareceu uma moura-torta, com um pote à cabeça. Vinha enchê-lo naquela fonte. Olhou para a água e viu o reflexo da moça escondida na árvore.

— Ora que desaforo! Pois se eu sou uma beleza assim, como é que ando a carregar água para os outros? — E jogou o pote, quebrando-o em vinte pedaços.

Mas ao voltar para casa tomou uma grande descompostura da patroa, que a mandou à fonte com outro pote. A moura-torta foi e novamente viu o reflexo da moça na água. E quebrou o segundo pote.

A moça na árvore não conteve uma gargalhada. A moura-torta olhou para cima e percebeu tudo. Jurou vingar-se.

— Linda, linda moça — disse ela fazendo voz macia — que bela cabeleira tu tens, minha flor. Que vontade de correr os dedos por esses lindos fios de ouro! Deixa-me que te penteie.

A moça, sem desconfiar de nada, deixou. A moura-torta subiu à árvore e começou a pentear aquela belíssima cabeleira loura. Súbito, zás! — fincou-lhe um alfinete na cabeça. Imediatamente a moça virou uma pombinha e voou. A moura-torta, muito contente, ficou no lugar dela.

Nisto apareceu o moço com o vestido, mas ao ver a sua beleza transformada naquele monstro arregalou os olhos.

— Que queres? — disse a moura. — Demoraste tanto que o sol me queimou, deixando-me preta assim.

O moço deu um suspiro; mas como se tratasse de sua sina, não podia evitar coisa nenhuma. Levou a moura para o palácio e com ela se casou, tudo na maior tristeza.

Desde o primeiro dia começou a aparecer por ali uma pombinha, que se sentava nas árvores do jardim e dizia ao jardineiro:

"Jardineiro, jardineiro, como vai o rei meu senhor e mais a sua moura-torta?"

Dizia isso e voava. Mas tanto repetiu aquela frase que o jardineiro falou ao rei.

O rei, já meio desconfiado, mandou armar uma armadilha de prata para pegar a pombinha. A pombinha não caiu no laço. Mandou armar uma armadilha de ouro — e nada. Uma de diamante — e nada. Por fim o jardineiro fez uma de visgo e nessa a pombinha ficou presa.

O jardineiro levou-a ao rei, o qual a pôs numa gaiola muito linda.

Imediatamente a moura-torta manifestou desejo de comer a pombinha assada, e tanto insistiu que o rei foi obrigado a dar licença para aquele crime. Mas no dia em que a pombinha ia morrer, o rei tomou-a nas mãos e afagou-a. Percebeu logo em sua cabeça um carocinho. Olhou. Era uma cabeça de alfinete. Puxou-o — e logo que o alfinete saiu a pombinha se transformou na linda moça da melancia.

— Oh! és tu, minha amada! — exclamou ele, na maior alegria.

A moça contou-lhe toda a traição da moura-torta. O rei, furioso mandou amarrá-la na cauda de um burro bravo e soltá-la pelos campos.
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— Essa história — disse Emília — começa bastante bem e vai bem até certo ponto. Depois derrapa como automóvel na lama. O tal moço era um coitado que só possuía uma melancia. De repente está num palácio, e sem mais aquela vira rei...

— Isso mostra — explicou dona Benta — como na tradição do povo as histórias se vão adulterando. Vê-se que está incompleta. Com a passagem dum contador para outro, perdeu um pedaço.

— A idéia — disse Narizinho — me parece linda e original — a idéia do alfinete fincado na cabeça da moça, embora seja um absurdo. Em cabeça de gente não entra nem prego, quanto mais alfinete. Mas passa, porque nas histórias não há naturalismo; tudo é possível. O que não engulo é o moço deixar-se enganar pela moura-torta. Isso é demais.

— Um bobo desse tamanho — ajuntou Pedrinho — eu nunca vi igual. Pois então toda a feiúra da moura-torta ele acreditou que fosse dum bocadinho de sol que a moça havia tomado? Grandíssimo sandeu! Além do mais, ele a havia deixado escondida dentro da folhagem — e que sol é esse que penetra dentro da folhagem das árvores?

— Esta história está cheia de "popularidades" — disse Emília — mas pelo menos tem o mérito de alguma coisa nova: o alfinete enterrado na cabeça da moça, a sua transformação em pombinha e, melhor que tudo, o caso da moura confundir o reflexo da moça com a sua própria imagem. Está tudo muito tosco e bruto, mas passa. Dou grau seis.

— Só porque apareceu uma pombinha! — exclamou dona Benta. — As histórias com pombinhas dentro sempre encantaram a Emília.

— E tenho razão — disse a ex-boneca. — Não há nada mais lindo que uma pombinha bem branca, com aqueles olhos tão redondos. A minha ave predileta sempre foi a pombinha. E a sua, tia Nastácia?

A negra teve vergonha de dizer. A ave predileta de tia Nastácia sempre fora uma galinha bem gorda, das boas para fazer de molho pardo.
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Continua… IX – A Madrasta
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Fonte:
LOBATO, Monteiro. Histórias de Tia Nastácia. SP: Brasiliense, 1995.
Este livro foi digitalizado e distribuído GRATUITAMENTE pela equipe Digital Source

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 181)


Uma Trova Nacional

Sem medo estou afirmando
não merece compaixão.
Quem passa a vida sonhando
vivendo só de ilusão!
–FRANCISCO JOSÉ PESSOA/CE– Uma Trova Potiguar

Por maldade, um certo amor
habitou meu coração,
tornou-se dono e senhor
e partiu sem compaixão...
–MARIA ANTONIETA BITTENCOUR/RN–

Uma Trova Premiada


1993 : Niterói/RJ

Tema : GRITO ; M/H


Dou Gritos de compaixão
quando penso nos sem-terra...
Mas, ao pensar nos sem-pão,
os meus gritos são de guerra!
–JOSÉ MARIA DE ARAUJO/RJ–

...E Suas Trovas Ficaram

Sem entender o tormento
que a seca traz ao sertão,
o boi se arrasta sedento
implorando compaixão.
–HILDEMAR DE ARAÚJO/BA–

Simplesmente Poesia


DJALMA MOTA/RN–
Ave dos meus Sonhos

Há tempos, não ouvia a tua voz!
Ausente tantos dias
do pomar dos sonhos meus...

Ó ave encantadora!
Quão imensa a minha felicidade
em ver-te outra vez
amenizando a minha solidão.

Vem... Vem... Alimenta minha verve.
Minh'alma carece de tua sonoridade.

Acalenta-me...
Canta a doce e adorável melodia...
Abre tuas asas... Vai... Mas, volta!
Um dia, talvez, sintas compaixão de mim...
Ave dos meus sonhos!

Estrofe do Dia


Angélica causou-me uma emoção,
talvez foi a maior da minha vida;
quando ela olhando assim enternecida,
me perguntou com ar de compaixão:
por que só tens uma perna e não duas?
Pois das pessoas que andam pelas ruas
nunca vi uma assim igual a tu;
mas não vá fique triste... Eis o por que:
vou comprar uma perna pra você
Quando eu for mais vovô no “Carrefu”!
–ADEMAR MACEDO/RN–

Soneto do Dia

–MARTINHO FERREIRA DE LIMA/PB–

Eu Vejo

Eu vejo a dor na face dos que penam,
mas não tiveram do mundo a compaixão,
e perdoando não culpam, não condenam,
nem a revolta lhes chega ao coração;

Eu vejo os lenços brancos que acenam,
pois não enxergam na guerra a solução,
e entretanto os fortes, os que ordenam,
na ambição de poder negam perdão.

Eu vejo um dia melhor onde a ciência,
seja usada enfim com consciência,
não a serviço do ódio que destrói.

E vejo a era de um homem diferente,
onde harmonia e paz mostrem pra gente,
que a semente do amor, amor constrói.

Fonte:
Colaboração de Ademar Macedo.