sábado, 27 de agosto de 2011

Perpétua Gonçalves (Livro: A Génese do Português de Moçambique)


Impr. Nacional-Casa da Moeda, 2010

Em A Génese do Português de Moçambique, Perpétua Gonçalves descreve o atual processo de nativização do português moçambicano, em estreito contato com as línguas bantas. O enquadramento geral é o da investigação sobre a relação da mudança linguística com a aquisição da linguagem, associada à discussão da emergência das variantes não nativas das línguas coloniais.

Constituída por oito capítulos, a obra foca três áreas de mudança que definem tendências de diferenciação da variedade moçambicana em relação às outras variedades do português: a realização do argumento beneficiário, na qual se neutraliza o contraste entre objeto direto e objeto indireto — «os pais escondem os filhos a verdade», «Tiram aquele dinheiro entregam dono», «Despedimos ao professor fomos nas nossas casas», «Começou a me bater enquanto não lhe provoquei», «Eu expliquei o diretor nacional», «Ordenou os seus soldados para que fossem lá», «Os pais já não prendem tanto aos filhos», «É triste ver-lhe andar pelas ruas»—; os argumentos locativos e direcionais — «Já saiu na escola, ir lutar», «Vai lá em casa tirar os cabritos», «Disseram levar a criança para no hospital», «Nós corremos, fomos jardim», «Cheguei aqui Maputo», «Está a sair no estúdio», «Eu não paro nenhum sítio», «Vinham carros lá na escola» —; e os conetores de subordinação — em orações completivas como «Viram de que afinal o coelho é mais esperto», «Perguntou que lhes conhecia o nome dela» e em orações adverbiais do tipo «Descansaram até chegou um leão», «Embora que sou mais novo mas sou diferente», «Mal que me viu fugiu».

Em síntese, trata-se de um livro destinado a um público universitário, cuja clareza de exposição permite, no entanto, que também o público interessado possa distinguir o perfil da língua portuguesa falada pelos moçambicanos da contemporaneidade.

Fonte:
http://www.ciberduvidas.com/montra.php

Afrânio Peixoto (A Língua Portuguesa no Brasil )


A maior surpresa de quem estuda a história do Brasil deve ser como o pequeno povo português, distraído aliás por interesses maiores nas Índias, conseguiu contra Franceses, Flamengos, Ingleses e Espanhóis, manter por três séculos a continuidade da posse e a unidade territorial de um domínio estendido por 39 graus de latitude e outros tantos de longitude, grande de oito milhões de quilômetros quadrados e exposto em oito mil quilômetros de costas às invasões marítimas.

A Espanha não o soube e não o pôde, com o império colonial quebrado e repartido na dúzia e meia de nações que dele resultaram. Nem o caso dos Estados Unidos, hoje tão extensos como nós, é no nosso comparável: cresceram por justaposição, de compra e de conquista, as treze colônias inglesas da Independência formavam menos de um terço de todo o território atual...

Nós fomos assim, desde 1500, achados, possuídos, principalmente conservados como somos, pelos Portugueses. Se o maior mérito de José Bonifácio e Pedro I, nos dias da Independência, foi de nos manter coesos; se o de Caxias foi de nos combater, contra nós mesmos, nas tentativas de desagregação, não faltemos com a justiça e o louvor àqueles que por três séculos antes nos defenderam das ambições forasteiras soltas no mundo, e que nos deram desde os primeiros tempos coloniais um espírito nacional, com o qual os lográmos ajudar e pudemos enfim sobreviver.

Outra surpresa, quase igual, é a nossa ingratidão, por vezes, a estes e outros benefícios recebidos, tanto mais grave, quanto ela é não raro ilógica e até ridícula. Quando foi da Independência, a reação nativista se exerceu renegando não só a verdade histórica, como a própria voz do sangue, que assim traíamos. Éramos filhos de portugueses: tínhamos pois uma ilustre prosápia, de glorioso povo antigo que, depois de bater os infiéis, repelidos para África, onde continuaram a ser rechaçados, se lançara ao mar tenebroso, contornara o continente negro, tocara a América, alcançara as Índias, atingira o Japão, devastara a Oceânia, e não havendo mais mundo, porque se «houvera lá chegara», tirou-o em prova, dando a volta ao mesmo mundo.

Pois bem, quando a vaidade dos civilizados, ricos e pobres pretende procurar parentes entre os Cruzados, nós que os temos, de facto, entre os da Terra Santa e os da Terra inteira, nós renegávamos os pais que tínhamos, e, não ousando nos gloriar dos negros africanos, invocávamos os selvagens brasileiros. Portugueses é que não queríamos ser. É simbólico aquele caso, entre tantíssimos, de delírio nativista, de um Francisco Gomes Brandão, que passou a ser Francisco Gé Acaiaba de Montezuma, até que a Coroa lhe corrigiu a paternidade, ingratamente repudiada, dando-lhe fictícia nobreza, no título de Visconde de Jequitinhonha, gratificação merecida dos talentos e serviços de patriota e estadista.

Não sabíamos, e talvez ainda não o sabemos todos, que este selvagem brasileiro é dos povos ínfimos da terra, na escala mais baixa da civilização, que tem estudado a Sociologia, mais atrasados e bárbaros que os feitos africanos a quem demos maior desdém e tamanha ingratidão.

Mais ainda. Estes portugueses fizeram uma formosa língua, irmã das línguas romances, derivadas do latim, trabalhada e polida pelo maior Épico dos tempos modernos, por uma legião de prosadores que se contrastam com os mais considerados da Europa inteira. Com efeito, uma autoridade, porque é de estrangeiro, o sr. Edgardo Prestage, da Universidade de Manchester, onde ensina a literatura portuguesa, o afirma: «Não há país, por mais rico que seja o seu pecúlio literário, que não se ufanasse de contar entre os seus filhos cronistas como Fernão Lopes, historiadores como João de Barros e Diogo do Couto, raconteurs como Fernão Mendes Pinto, biógrafos como Frei Luís de Sousa, escritores asiáticos como o padre Manoel Bernardes, moralistas como Frei Heitor Pinto, oradores sagrados como o padre António Vieira, homens inspirados de Deus como Frei Tomé de Jesus, que, no cativeiro de Marrocos, compôs a obra de devoção inigualável, Trabalhos de Jesus. E cita-os todos, para reservar o maior louvor a esse incomparável D. Francisco Manoel do Melo.

Pois bem: deu-nos Portugal esta casta e sonora, forte e sólida língua portuguesa, para a honrarmos e acrescentarmos, na divulgação do grande povo que havemos de ser, e aparecem por aí umas vozes, graças a Deus discordantes, felizmente sem alcance e sem eco, a reclamar, em nome do nativismo, os abusos de prosódia, os erros de sintaxe, os solecismos intencionais, os desleixos de estilo, porque com isso, dizem eles, ou o pensam consigo, faremos uma língua brasileira, tristíssimo dialeto começado assim no erro, não do povo, o que seria de se escusar, mas de letrados, o que apenas é de sorrir. A língua brasileira seria como a parentela brasileira, que alcançou o nosso desvario.

Felizmente, assim como a gente não escolhe os seus parentes e, mercê de Deus, os nossos foram ilustres, também não escolhe a linguagem que balbucia no berço, e bem-aventurados os brasileiros, porque essa é a ilustre língua portuguesa.

É estultícia cuidar em fazer uma língua, sequer um dialeto, obra difícil e longa de um povo inteiro, em muitos séculos, e não decisão política de alguns patriotas descontentes.

Depois, para os consolar, basta que tenham paciência e o tempo lhes dará insensivelmente a variação que desejam, tanto em Portugal como no Brasil, a que a vida impõe, a vida de que a linguagem é a expressão pensada e articulada. Não há muito, um sábio mandado pela a Academia Francesa ao Canadá, para assistir a festas seculares de lá voltava maravilhado por ter ouvido falar – os ouvidos não queriam crer – o francês de grande século, língua de Pascal e de Racine, que já não tem curso em França, e conservara a fidelidade da antiga colônia. No Maranhão, como na Bahia, estão conservados vocábulos e locuções, ainda em uso no Minho ou em Trás-os-Montes, e que Lisboa e o Rio de Janeiro desaprenderam.

O tempo, que faz isso, fará felizmente cada vez menos isso, graças a essa incessante comunicação humana que é a vantagem do nosso tempo. Outrora cantinho de terra, numa Suíça, havia lugar para três línguas e trinta dialetos, insoados nos vilarejos, ninhos alpestres de gente, no regaço dos valados e povoações lacustres, os quais, próximos pela distância, idênticos de raça, entretanto se não entendiam. Hoje, em imensos países, como os Estados Unidos ou o Brasil, de um recanto longínquo ao outro extremo do território, a mesma língua é falada e compreendida por todos os seus milhões de habitantes. Pequenas variações prosódicas, que o clima e o meio social solicitam, vocabulário e expressões pitorescas, que a vida regional diferente inventa e propaga, disseminam-se por todo o país na difusão pronta da imprensa, do correio, do telégrafo, e das gentes que incessantemente se comunicam.

A língua varia assim insensivelmente, mas continuamente, e só a disciplina da educação e da instrução da linguagem lhe põe impecilhos aos desmandos e degeneração, para a glória de sua manutenção e perfeição.

Não faz o lavrador uma árvore; mas, plantada a tempo, adubado e regado o terrão, protegida por tutor quando ainda vergôntea, podada mais tarde dLinke ladrões, esgalhos e demasias de folhagem, dará bela árvore, então sombria, florida e frutuosa.
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Biografia do autor
http://singrandohorizontes.blogspot.com/2011/01/afranio-peixoto-1876-1947.html

Fontes:
De uma conferência pedagógica, da série promovida pelos inspectores escolares do Rio de Janeiro, em 1919, publicada na revista "A Escola Primária", Rio, Junho a Setembro de 1919, in "Paladinos da Linguagem", vol. II. :: 12/02/199
Imagem = Embaixada de Portugal no Brasil

Monteiro Lobato (O Saci) XV – O Boitatá; XVI – O Negrinho


XV – O Boitatá

— Eu ouço falar na Iara e no Boitatá. Será que poderei ver um deles hoje? — perguntou Pedrinho.

— A Iara pode — respondeu o saci — porque há uma que mora por aqui, em certo ponto do rio; mas Boitatá, não. Só existe lá pelo sul.

— Como é?

— Pois o Boitatá é um monstro muito interessante. Quase que só tem olhos — uns olhos enormes, de fogo. De noite vê tudo. De dia não enxerga nada — tal qual as corujas. Dizem que certa vez houve um grande dilúvio em que as águas cobriram todos os campos do sul, e o Boitatá, então, subiu ao ponto mais alto de todos. Lá fez um grande buraco e se escondeu durante todo o tempo do dilúvio. E tantos anos passou no buraco escuro que seu corpo foi diminuindo e os olhos crescendo — e ficou como é hoje, quase que só olhos. Afinal as águas do dilúvio baixaram e o Boitatá pôde sair do buraco, e desde esse tempo não faz outra coisa senão passear pelos campos onde há carniça de animais mortos. Dizem que às vezes toma a forma de cobra, com aqueles grandes olhos em lugar de cabeça. Uma cobra de fogo que persegue os gaúchos que andam a cavalo de noite.

— Eu sei dessa história. É o fogo-fátuo. Vovó já nos explicou que esses fogos são fosforescências emitidas pelas podridões. No sul também existe a célebre história do Negrinho do Pastorejo. Conhece? Não será uma espécie de saci dos Pampas?

— Não. Trata-se de coisa muito diferente. Esse negrinho foi apenas um mártir. Sofreu os maiores horrores dum senhor de escravos muito cruel; morreu e virou santinho.

— Conte a história dele. E o saci contou.

XVI – O negrinho

— Havia um fazendeiro, ou estancieiro, como se diz lá no sul, que era muito mau para os escravos — isso foi no tempo em que havia escravidão neste país. Uma vez comprou uma ponta de novilhos para engordar em seus pastos. Era inverno, um dos piores invernos que por lá houve, de tanto frio que fazia.

— Negrinho — disse o estancieiro para um molecote da fazenda, que andava por ali. — Estes novilhos precisam acostumar-se nos meus pastos, por isso você vai tomar conta deles. Todas as tardes tem de tocar a ponta inteira para o curral, onde dormirão fechados, depois de contados por mim. Tome muito tento, hein? Se faltar na contagem um só que seja, você me paga.

O pobre molecote só tinha catorze anos de idade; mesmo assim não teve remédio senão ir para o campo tomar conta do gado. Era gado arisco, ainda não querenciado naquela fazenda, de modo que, para começar, logo no primeiro dia um dos novilhos faltou na contagem.

O estancieiro não quis saber de explicações. Vendo que o número não estava certo, botou o cavalo em que estava montado para cima do negrinho e deu-lhe uma tremenda sova de chicote. Depois disse:

— E agora é ir procurar o novilho que falta. Se não me der conta dele, eu dou conta de você, seu grandessíssimo patife!

E lept! — outra lambada por despedida.

O moleque, com as costas lanhadas e em sangue, montou no seu cavalinho e saiu pelos campos atrás do novilho. Depois de muito procurar, encontrou por fim o fujão, escondido numa moita.

“E agora?”, pensou consigo. “Tenho de laçar este novilho, mas meu laço está que não vale nada, de tão velho, e eu estou tão escangalhado pela sova que ainda valho menos que o laço. Mas não há remédio. Tenho que ir até o fim...”

E, aproximando-se com muito jeito, laçou o novilho.

Se fosse só laçar, estaria tudo muito bem. Mas tinha de trazer o boizinho por diante, até o curral. Teria ele forças para isso? O laço agüentaria?

Não agüentou. Com meia dúzia de sacões o novilho desembaraçou-se do laço, arrebentando-o, e lá se foi pelos campos afora na volada.

E agora? Voltar para casa sem novilho e sem laço? O furor do estancieiro iria explodir como bomba.

Voltou.

— Que é do novilho? — indagou o patrão assim que o negrinho apareceu no terreiro.

— Escapou, patrão. Lacei ele, mas o laço estava podre e não agüentou, como sinhô pode ver por este pedaço.

Se o estancieiro não fosse um monstro de maldade, convencer-se-ia logo, vendo, pela ponta do laço, que o negrinho andara direito. Quando o laço arrebenta, a culpa da presa escapar não é do laçador, sim do laço. Não pode haver nada mais claro no mundo. Mas o estancieiro, que tinha comido cobra naquele dia, em vez de dar-se por convencido, mais colérico ainda ficou.

— Cachorro! — exclamou, espumando de raiva. — Você vai ter o castigo que merece.

O dito, o feito. Agarrou o negrinho, amarrou-o pelos pés com a ponta do laço e depois de bater nele com o cabo do relho até cansar, teve uma idéia diabólica: botá-lo num formigueiro para ser devorado vivo pelas formigas.

Assim fez. Arrastou-o para um sítio onde existia um enorme formigueiro de formigas carnívoras, arrancou as roupas do coitadinho e deixou-o amarrado lá.

No dia seguinte foi ver a vítima, com a idéia de continuar o castigo, caso o grande criminoso não estivesse morto e bem morto. Chegando ao formigueiro, levou um grande susto. Em vez do negrinho, viu uma nuvem que se erguia da terra e logo se sumiu nos ares.

A notícia desse acontecimento correu mundo. Os homens daquelas bandas começaram a considerar o negrinho como um mártir que tinha ido direito para o céu.

Com o tempo virou um verdadeiro santo. Quem quer qualquer coisa, na campanha do Rio Grande, antes de pedi-la a Santo Antônio ou a outro santo qualquer, pede logo ao Negrinho do Pastorejo.

— E ele faz?

— Está claro que faz — sempre que pode. Como sofreu muito, sabe avaliar os apertos dos outros e ajuda-os no possível.
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continua... XVII - Meia-noite; XVIII – Saída dos sacis
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Fonte:
LOBATO, Monteiro. Viagem ao Céu & O Saci. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. II. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

A. A. de Assis (Trovas Ecológicas) - 3


Roza de Oliveira (Relâmpagos Divinos)


Relâmpagos luzindo em noite escura
em seus corcéis de luz aurifulgente,
anunciais de forma rica e pura
um mágico saber - clarividente!

Telegramas de luz cuja linguagem
computador nenhum pode gravar
e, presciente dessa luz-imagem,
só o poeta a sabe decifrar.

Bendito seja tal conhecimento
que em seus raios de luz, força e verdade
emerge dos arcanos de uma alma.

E, assim sendo, relâmpagos divinos,
trazeis da criação a tempestade
que me compensará com paz e calma.

Fonte:
Simultaneidades

Celso Sisto (Atravessando o Tempo)


SILVA, Maria Teresa dos Santos.Contos do arco-da-velha 2. Textos adaptados por Eduardo Brandão. Ilustrações de José Miguel Ribeiro. São Paulo, Companhia das Letrinhas, 2010. 64p.

Há histórias teimosas, que insistem em atravessar o tempo. Com isso vão ficando cada vez mais conhecidas e conquistando um público cada vez maior. Na verdade ninguém sabe quem as inventou ou onde elas surgiram pela primeira vez. Isso acontece com histórias as quais chamamos de mitos, lendas, fábulas e até contos populares.

Esse livro vem de Portugal e precisou ser adaptado para o português do Brasil. São 4 histórias neste volume 2: O velho, o garoto e o burro; Dona Baratinha; A raposa e o galo; Os macacos. Não dá pra dizer que essas histórias são portuguesas, elas são do mundo. Aqui são muito conhecidas, exceto a última. Dizem que chegaram com os colonizadores. É possível. Mas os colonizadores aprenderam essas histórias com quem? Mistérios que costumam persistir quando se trata de histórias de domínio público. É como se perguntar, quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha?

Em “O velho, o garoto e o burro” a polêmica é “quem deve ir montado no burro que vai ser vendido na feira”? Em “Dona Baratinha”, tudo gira em torno de “quem vai se casar com a Dona Baratinha, que é bonitinha e tem dinheiro na caixinha, achado enquanto varria o chão da cozinha”? Em “A raposa e o galo” a questão é: a raposa vai conseguir almoçar o galo, com sua desculpa de que agora reina a paz entre os animais? E em “Os macacos” o leitor quer saber onde foram parar os gorros vermelhos da mala do mercador, enquanto ele dormia?

Essas histórias, conhecidas desde as fábulas de Esopo e La Fontaine, aparecem aqui em versos, rimados, gostosos, divertidos. Com isso, recuperam, de certo modo, a forma “original” das fábulas, que eram em versos. Por serem em versos, as histórias são enxutas e vão direto ao ponto, ao conflito, sem muito desvio ou enfeite. A tônica geral é a mesma: o primeiro verso rima com o terceiro; e o segundo verso rima com o quarto.

A moral da história, que desde o princípio acompanha as fábulas é inserida no texto de uma forma leve e única, sem parecer que está fora do texto. Em geral, essa “mania” de terminar uma história para crianças com um ensinamento provocou uma necessidade, quase que obrigatória na literatura infantil, mas nem sempre com bons resultados literários. Virou vício, mas felizmente, os escritores hoje abandonaram essa regra que transforma literatura em cartilha! Moral em forma de pergunta, como faz o avô da história “do burro” é mais democrática: “Você percebeu, meu netinho? Não há ninguém tão esperto, tão sensato e perspicaz, que cale as bocas do mundo!”. Esse tipo de moral é muito menos impositiva! Funciona!

Mas o livro ganha mais força ainda com as ilustrações de José Miguel Ribeiro. Seu traço, tendendo para o estilizado, é único. Suas imagens de página dupla, seus contornos de linhas grossas e falhadas, seu colorido de tinta acrílica, com predomínio de cores frias, sem saturação e com muito branco fazem os olhos do leitor ficarem deslumbrados.

24/08/2011

Fonte:
Artistas Gaúchos

Ialmar Pio Schneider (O Dilema)


Aguardava, ansiosamente, que alguma novidade pudesse acontecer. Não tinha certeza de que tudo estivesse perdido. Nesta dúvida se assentava o pensamento de Cândido, abandonado pela mulher, após doze longos anos de convivência, que lhe deixou marcas indeléveis para o resto da vida.

Contanto que houvesse progredido financeiramente, sua ingenuidade o fizera acreditar que era aceito, mas agora sentia que não tinha vencido no amor. De fato, Sayonara o traía com Ernesto, quando ele ia exercer seu cargo de guarda-livros em uma firma de beneficiamento de madeiras.

Nas longas tardes de verão, enquanto ele se esfalfava no escritório, ela se encontrava com o amante às margens do rio dos Sinos, onde outrora, quando ainda não era tão poluído, existia um local que denominavam “a prainha”. Lá permaneciam algum tempo, conversando com certo disfarce e depois saíam no carro de Ernesto rumo da casa de Marlene que alugava quartos para encontros amorosos.

Era um dos rendez-vous da cidade, tido como dos mais sigilosos, então existentes. Chegavam e pediam um quarto por duas horas, o que já era de praxe. A empregada da casa lhes entregava a chave e eles seguiam por um corredor até dar a uma porta, nos fundos, onde havia uma cama de casal, um roupeiro, uma cadeira, uma bacia para higiene pessoal e uma jarra com água. O banheiro, naquela época, ficava no corredor e era coletivo. Não existiam os modernos motéis de hoje em dia. Então, após se desnudarem, deitavam e faziam amor: ele impacientemente e ela fogosa, sem qualquer pejo, uma vez que sentia haver trocado o Cândido por Ernesto há algum tempo.

De repente, Ernesto rompe o silêncio e diz:

- Sayô, meu bem, quando poderemos estar juntos, sem nos preocupar com os outros ? Já estou ficando aborrecido de ter que estar fingindo, disfarçando nosso amor. Que me dizes ?

- Ora, Néstinho, tem paciência... Estou bolando uma maneira de deixar o Cândido, mas me falta, talvez, coragem. Sei que não vai demorar, pois não aguento mais viver assim.

Depois desse dia, Sayonara parece ter avivado em seu espírito o desejo de abandonar o marido que não a fizera feliz. Chegava em casa à tardinha e se parava diante do espelho a pensar: “Estou envelhecendo e presa a este casamento sem graça... Até quando?!” Procurava uma ocasião para dar o fora. Não achava nada fácil fazê-lo.

Entretanto, passado algum tempo apresentou-se-lhe a oportunidade. Cândido tivera que viajar a serviço da empresa para São Paulo, a fim de fazer um curso rápido de contabilidade e adquirir, ao mesmo tempo, algumas máquinas para o escritório.

Sayonara aproveitou. Encheu duas malas e uma sacola de roupas e sapatos e se dirigiu para a rodoviária em Porto Alegre onde tomou um ônibus para Pelotas. Antes disso, porém, combinou com Ernesto que a esperasse na rodoviária daquela cidade. Assim foi feito. À noitinha ela chegou lá na Princesa do Sul e se encontrou com ele que aguardava-a, impacientemente. Não sabia o que poderia acontecer, mas, enfim, estariam agora juntos. Desfrutariam a Praia do Laranjal às margens da Lagoa dos Patos, tão famosa em todo o estado do Rio Grande do Sul, quase como se fosse uma praia de mar.

Finalmente Cândido voltou, após uma semana, e chegando em casa, qual não foi a sua surpresa, quando não encontrou a mulher. Apenas sobre a cama do casal havia um bilhete que dizia o seguinte:

Cândido, espero que compreendas minha atitude e me desculpes. De uns tempos para cá senti que o nosso casamento foi um fracasso. Não poderia mais continuar tapando o sol com a peneira, pois além de te iludir, eu me iludia a mim mesma. Amo outro e tenho certeza de que também sou amada por ele. Não queiras saber onde eu me encontro. Assim será melhor. Adeus!
_____________________________
Publicado em 03 de março de 1999 - no Diário de Canoas.
Link
Fontes:
Texto enviado pelo autor
Imagem = Jornal O Rebate

Roberto de Paula (Dispersos Versos Errantes)


GRANDE NOITE

Agora me retraio
A luz me corrompe
As idéias são retalhos
Que diferem a cada dia
Se o meu sonho é pesadelo
Acordo e olho o silêncio
Se a luz está acesa
Procuro a escuridão
Se existem as estrelas
Então eu fecho os olhos
Porque é na noite
Que o calor dos pensamentos
Aquece meus sentidos
Agita meus músculos
E me faz sentir tão forte
E me faz pensar tão lúcido
Nesta errante procura
E quando surge a claridade
Me vejo numa cela
Entre fogos de artifícios
Sendo obrigado a aceitar
Quaisquer regras
Normas e sugestões
Passivo e pacífico
Se tento sair
Sou contido
Pelo brilho dos olhos
Ferozes e acusadores
Pela nobreza dos gestos
Finos e hipócritas
Pela força das palavras
Duras e impostas
A aspereza dos tempos
Afugentou minhas convicções
Dividiu minhas soluções
Criou dúvidas nos meus conceitos
Esta selva me fez fera acuada
Me caçando a todo instante
Alerta nos meus ruídos
Se assim me fizeram
Ou se assim me fiz
Farei meu mandamento
No dia serei sonâmbulo
Na noite acordarei a cidade
Chamando-a para viver

VIVOS E BELOS

Quem nos vê assim tão vivos
Não sabe o que corre além das veias
Quem nos vê assim tão belos
Não sabe o que vai nas cabeças

Quem nos olha não nos vê
Quem nos toca não nos sente
E nas nossas faces sorridentes
O bem e o mal se dão bem

Refletidos diante do espelho
Calamos para não denunciar
Nossos medos e culpas
Ou nossas forças e poderes

Diante desta vida temerosa e atrevida
Vemos passar o nosso filme impróprio
Estampado nas faces e gestos
Destes homens tão vivos e belos

VIVOS E BELOS - (VERSÃO 2)

Quem me vê assim tão vivo
Não sabe o que corre além das veias
Dos músculos, órgãos e massas
Quem me vê assim tão belo e plácido
Não sabe o que está por trás deste sorriso torto
Destes olhos míopes e destas palavras soltas
Quem me olha não me vê
Quem me toca não me sente
Nesta face sorridente
O bem e o mal se dão bem
Para bens, para males
O pensamento é um bicho solto
De possibilidades enormes
A vida é um sorriso torto
Visto por olhos disformes
Em mim tudo vive, nada é morto
Tudo pulsa, nada dorme

ANTEPAROS

Faz do trago
O consolo
No cigarro
Sobe com a fumaça
Faz do choro
O encosto
Para não prosseguir

No sono
Desliga martírios
Libera sonhos
Reprimidos
Faz da rua
A esperança de se perder

Na cabeça
Mora a vontade
De fugir
Sem saber pra onde
Onde não será cobrado
Sem rótulo
Sem marca registrada
Fiel a seu comando

Imperando
Esta fantasia
Está tudo certo
Está tudo bem
É mais um meio
De se esconder

UM PONTO

Parado diante do mundo
Contando horas
Sons que não ouço
Celas que invento
Este sol tão forte
Este lamento

Tempo quente
Não estou neste presente
Passos que não dou
Era e sou um rosto
Um ponto a mais
Ou menos
Entre tantos

Faço uma história
Versos despedaçados
Vou, voo cego
No desencontro
Me entrego

O SOL

Depois
As luzes
Sou só e não me encontro
Sou só um ponto

SAÍDA

A bebida
Antes de descer
Já subiu
À cabeça

Para que se esqueça
O que é imposto
Qualquer gosto
É válido

Tempo árido
Enchendo
Se esvazia
Escapando
Até outro dia

LIBERDADE DOS PÁSSAROS

Não me olhe de frente
Não me cumprimente
Não beba comigo
Não me detenha
Mantenha distância

Estou fechado
Sou meu companheiro
Sou meu prisioneiro

Não pergunte meu nome
Não me telefone
Não pergunte da vida
O que penso ou faço

Meu riso é fel
Envolto em ironias
Meu canto é gemido

Fim de tarde
Pássaros voam
Meu voo é sem asas
Com portas fechadas

Estou comigo
Passos trôpegos
Braços caídos
Penso em liberdade
Liberdade dos pássaros

MAIS UM OU MENOS UM

Esconderijos
São as avenidas
Sou mais um
Ou menos um

Multidão de rostos
Não me perseguem
Não me percebem

Medos retraídos
Passos firmes
Olhos brilhantes
Irradiação da alma

Levo o corpo
Ou ele me leva
Neons me iluminam
Energia canalizada

Vou sem pressa
Voo sem força
Solidão que se foi
E a avenida a percorrer

RELEMBRANÇAS

Um resto de luz
Tinge a vidraça
E timidamente clareia
O minúsculo quarto

O corpo cansado
Cigarro já no filtro
Fumaça se espalhando
Espalhando lembranças

Nos delírios carnais
Ela está presente
Forte e ditadora
Bela e inalcançável

Nervos e músculos
Se contorcem
A mente rabisca
Algo real

É impossível
Para cada razão
Há muitas razões
Para sonhar

Mistura de tédio
E solidão
Claro mistério
Entre quatro paredes

Este filete de luz
Insistindo em alertar
Que lá fora
A vida continua

Agora vem o silêncio
O infinito silêncio
Comprimindo a cabeça
Derramando lágrimas

Gemidos
Tremores
Outro cigarro
Outras lembranças

FREQUÊNCIA MOTIVADA


Os temores nas nossas faces
As vozes abafadas
Saindo das gargantas roucas
Tremendo de medo
Trancamos as portas
E nos escondemos
Nos nossos lençóis
Outra noite invariavelmente
Silenciosa e massacrante

No dia vamos tilintar copos
Enchendo nossa mesa
Quando o milagre do álcool
Completará nossas cabeças
Na conversa revigorante
Giraremos ao nosso redor
Até podermos conhecer
Ou inventar nossa fortaleza

Nossos pavores unidos
E nosso terror sob controle
Hão de nos confortar
Somaremos os tristes sentimentos
Para poder de novo continuar

ÁRIDOS TEMPOS

Áridos tempos
Tragicômicas faces
Mortes asfálticas
Jornais de papel
Ou eletrônicos
Borbulhando sangue

Fé ambulante
Vendida pelos salvadores
Estéreis campos
Fechados para produção
Férteis mulheres
Fabricando famintos

Sentimentos abortados
Desencontradas ligações
Mentiras nos púlpitos
Nas tribunas e altares
Manchetes criando o caos
E o homem a dizer amém

Nebulosos e tensos dias
Arrastando as horas
Procissão de males
Na avenida do tédio
Nesses áridos tempos

SÓ UM SONHO

Meu sonho sai do quarto
E voa pela cidade
Se detém nas amarguras
Mas logo segue em frente
O voo continua

Meu sonho se entrega aos desejos
Se embriaga nas paisagens
Mas segue em frente
A fantasia continua

Contrastes e uniformidades
Crianças e flores
Velhos e jardins
Casas e lares
Sol e neon
Verdes e celestes
Rubros e nebulosos
Bares e escritórios
Casos fatais
Assuntos banais

Meu sonho se distrai
Segue em frente
E nada mais

EU

Nada do que sei é certeza
Viajei sem sair do lugar
Nada do que vi me satisfez
Distribui amores sem nada levar

Saí buscando razões
Me perdi em evasivas
Aumentaram as interrogações
Acabaram minhas teses conclusivas

Sou corpo, alma e coração
Risos, lágrimas, abraços e adeus
Um a mais buscando explicação
Um ser, uma voz, uma vida, eu.

O TEMPO E O CORAÇÃO


Minha boca
Já não beija tanto
Meu abraço
Já não é tão forte
Mãos nervosas
Passos inseguros
Solidão agora
Chega ligeira
Fica num canto
Parceira
Sorriso pálido
Olhar sem brilho
O tempo
É um relógio preguiçoso
Muitas badaladas de dor
Poucas de gozo
O coração maquinal
Nem bem
Nem mal
No vai-e-vem
Da cadeira de balanço
Olho o céu e a terra
Descanso

Fonte:
http://www.dispersosversoserrantes.blogspot.com/

Olivaldo Junior (Violãozinho; Vontade)


VIOLÃOZINHO

Não era só meu,
mas era um caminho.

Nem era um caminho,
mas era por Deus.

Nem era por Deus,
mas era um carinho.

Nem era um carinho,
mas era como eu.

Nem era como eu,
mas o “meu” violãozinho,
assim, tão sozinho,
vai ser sempre só: só meu...

23/08/2011

VONTADE

E era sempre a vontade de ter amigo,
de cantar em dupla, de virar bem-te-vi.

E era sempre um coração bem antigo,
com estrelas e lua, num canteiro que ri.

E era sempre eu mesmo, sem amigos,
sem asas, na rua, sempre só, aqui e ali.

Porque todos têm seus companheiros,
alguém que os chame pra cantar e sair,
que o mundo é rir, brincar, se divertir,
quando existem dois ou três canteiros
onde se pôr e ficar.

Fiquei só, porque sou só, sem amigo.
Quando penso que vem, logo se esvai,
e eu, sem razão,
busco o amigo lá,
tocando violão.

12/08/2011

Fonte:
Textos enviados pelo Autor

Nilto Maciel (Carmélia Aragão e a Transparência dos Seres)


(Pedro Salgueiro, Carmélia, Nilto Maciel,
Aíla Sampaio e Raymundo Netto,
numa festa literária, em Fortaleza)


Achava-me numa praia, sentado na areia. Ninguém à vista, nenhum banhista, nenhum pescador. À esquerda, centenas de pequeninas tartarugas corriam para as águas. Como se aquilo eu visse todo dia, voltava a olhar para o mar. Que fossem cumprir seu destino. Pássaros sobrevoavam as ondas. Aqui e ali, salpicavam luzes na crista agitada do monstro. Ondinas em constante saltitar. Uma delas, porém, me pareceu mais nítida, insistente, como se viva estivesse. E crescia aos meus olhos ou de mim se aproximava. Que seria? Como me fazia falta um binóculo! Não, não precisava disso. O corpo, cada vez mais próximo de onde eu me encontrava, lembrou-me uma sereia. Primeiro vi os cabelos molhados, longos, escuros. Rosto de mulher. Mostraram-se o pescoço, o colo, a veste branca. Não nadava, flutuava. Assustei-me, cocei a cabeça, esfreguei os olhos. Meu Deus, vinha ao meu encontro aquela mulher saída do mar! A sorrir, faceira, pernas à mostra.

Assim se deu minha única aproximação irreal com Carmélia Aragão. Na verdade, nunca a vi em sonho. Conheci-a não sei quando nem onde. Talvez numa livraria, num bar, em minha casa, numa plateia. No bar do Assis, estive com ela uma ou duas vezes. Sempre cercada de escritores jovens. Pedro Salgueiro a dizer-lhe gracinhas, Raymundo Netto a paparicá-la, o Poeta de Meia-Tigela a rir (dela?). Ofereciam-lhe cerveja, petiscos, mimos. Ela arregalava os olhos (vivia de olhos arregalados, como se assustada com tudo e com todos), sorria (parecia sempre feliz), recusava isto e aquilo, alegava pressa em sair dali. Talvez não se sentisse à vontade num boteco daqueles, repleto de homens fedorentos, tagarelas, piadistas, excessivamente obscenos.

Certa noite, no Dragão do Mar, assistimos a um filme ou a uma palestra ou participamos de um debate. À saída, anunciei fome e vontade de beber. Eu a convido para a ceia do senhor. Ela sorriu, cochichou com duas amigas e aceitou o convite. Sentamo-nos ao redor da mesa, ao ar livre. A gente só quer beber uma coca-cola. Por que não bebemos cerveja? Ela me parecia assustada, com medo de se aproximar de mim. Teria me imaginado um velho assanhado, desses que parecem galinhos fogosos quando veem franguinhas? Pouco falamos, por mais que eu tivesse insistido. A gente precisa ir. Amanhã deverei acordar cedo. E eu fiquei a ver saias de longe, cara enfiada no copo amargo de minha solidão.

Carmélia mandava-me contos, de vez em quando, por e-mail. Queria minha leitura e minha opinião. As narradoras me pareciam ser ela. E eu a imaginava solitária, morando numa quitinete pobre, a olhar para as vizinhas, os gatos das vizinhas, o chão dos corredores, a sonhar com narrativas extraídas daquela vidinha de moça que passava o dia a ler, estudava na faculdade, cuidava da moradia, lavava as próprias roupinhas e sonhava com a glória literária.

Visitou-me uma vez, quando eu morava na Parquelândia. Visita anunciada por Pedro, que me fez contratar uma jovem cortesã. Diga que é sua amante. Obedeci. No dia certo, Carmélia chegou com um magote de rapazes e moças, todos bons leitores e escritores em formação. Mandei a dama servir cerveja e refrigerantes. Os homens se entusiasmaram. Quiseram dançar com ela. Carmélia ria, bebia e mal conseguia deixar o sofá. Netto a arrastou para o centro da sala. Vamos dançar forró. E dançaram mesmo. Pedro se interessava por Priscila, franzina e risonha, e lhe passava a mão nas ancas, a rir, safadamente. Ela se mostrava incomodada: Deixa disso, Pedro. Eu molhava o bigode, enciumado. Urik Paiva só faltava morrer de rir. Tércia Montenegro gargalhava dos requebros de Netto e Carmélia.

O primeiro livro de minha pupila, Eu Vou Esquecer Você em Paris, saiu em 2006. Parece ter sido ontem. Como o tempo passa muito lentamente para mim. Rabisquei umas notas, em março do ano seguinte: “Carmélia Aragão: Literatura como paixão”. Não sei se delas gostou. Talvez não tenha gostado, pois nunca mais apareceu em minha casa. Estou brincando: gostou, sim. Pois, se não tivesse gostado, não teria escrito “Nilto Maciel: Próximo da carne”, belíssimo estudo de meu romance Carnavalha.

Depois eu soube de sua transferência para a antiga capital da República, onde iria se doutorar em Letras. E não a vejo desde então. Em razão destas ausências, em meu espírito se veio formando uma imagem fugidia dela, perdida no entrechoque das ondas, neste meu mar sempre revolto, quase tempestuoso.

Fecho os olhos para relembrar o sonho. A imagem da moça de branco se aproximava de mim e eu via que era Carmélia, vinda do mar, saída das ondas. Caminhava pela areia, avizinhava-se de mim, a sorrir. Eu me alegrava, punha-me de pé, pronto a recebê-la. Porém, meus amigos, ela passava por mim como quem se perde na multidão das ruas. Como se eu, sim, fosse transparente, invisível, diáfano. E sumia atrás de mim, no rumo do interior, do sertão, do continente. E eu me ficava líquido, liquidado, pó, poeira, areia, sujeito ao vento, à ventania que tudo carrega, destroça, dilui, dissolve. Castelo de areia.

Fortaleza, 4 de maio de 2011

Fonte:
Literatura Sem Fronteiras

Isabel Sprenger Ribas (Teia de Poesias)


Dedos, Inverno, Outono, Primavera,Verão e Vida!...

Faz o frio mais barulho em mim
do que faria o vento
nas copas das velhas árvores frondosas...

É o Inverno...

Debandam folhas,
deixando nus troncos assexuados e encabulados.
Emigra a beleza. Tomba no chão.
Transformada, é tapete gratuito,
Macio, amarelado,
por poucos, os sensíveis, notado.

É o Outono...

Meus dedos... São eles velhos dedos sem medos!
Mas suas juntas nodosas,
não suportam os invernos.
E nem os outonos, na ausência dos vales e campos floridos...

Meus dedos e minha alma,
clamam por ipês amarelados,
por ondas de mar,
montanhas rochosas,
vagalhões nas pedras, espatifados...
Meus dedos enrijecidos
querem tocar margaridas, colibris,
alguma flor colorida, muito colorida.

Meus dedos desejam com urgência,
de novo, tocar a Primavera, o Verão e a Vida,.

02/11/07. Curitiba

Urbanas Cerejeiras

Ao fundo um som de gente.
E nos olhos uma visão
que domina a alma .

Baila em mim,
saltimbanco e acrobático, um sorriso.
Com calma,
mas cheia de magia, gingado e extraordinária estripulia
nos meus olhos,
uma dança ocorre.

Em algum canto, no cérebro, se agita um guizo...

Sem senões nem agonias,
baila meu coração
nesta dança de euforia.

Unânimes, em ciranda, entrelaçadas,
a alegria
e, do meu viver,
esta momentânea magia olham.

Tanta beleza...

Dizem: Deus, só Ele! Só.
Terá criado tais flores, as da cerejeira,

obra prima eterna da natureza!

Criatividade do Recriar.

Criar...Verbo digno de imitação.

Quase semelhante a editar...
Trás ao Homem a lembrança,
sublime e absoluta, da divina criação.
Certa forma de legado. Uma herança...
Seis dias de labor, um de descanso e oração.
E nestes sete, em exercício permanente,
a todo instante, subjetiva mas premente,
no ser humano,
a necessidade de recriar.

O que Deus, com sua majestosa obra
já nos legou como lição!

Fonte:
Textos enviados pela autora

Isabel Sprenger Ribas


Natural de Paranaguá atualmente reside em Curitiba - PR.

Casada. Três filhos, duas noras, quatro netos.

É Professora, atuou no MEC e é Técnica em Planejamento e Pesquisa do IPEA /Ministério do Planejamento/ Brasília, concursada e aposentada.

Possui diversas publicações, entre as quais: Um Livro, seis idades, três mãos; Quase entre Aspas, Cheio de Reticências; Mulheres de Coragem. Efervescência em Ebulição, O Homem que Ensinou a Amar, dois últimos em fase de revisão.

Durante sua trajetória literária recebeu diversas premiações e homenagens destacam-se entre estes, em 2008 o Troféu Escalada Feminina, oferecido pela Prefeitura Municipal de Curitiba, Conselho Municipal da Condição Feminina e Fundação de Ação Social e em 2010 o Troféu Reconhecimento ao Comprometimento com a Divulgação Soroptimista Internacional.

Pertence a diversas entidades culturais tais como Academia Paranaense Feminina do Paraná; Academia de Cultura de Curitiba; Centro Paranaense Feminino de Cultura e Centro de Letras do Paraná, além de desenvolver atividade como voluntária Soroptimista Internacional como Secretária da Região Brasil, Biênio 2010/2012.

Fonte:
Simultaneidades

Marcelo Spalding (O Gato diz Adeus)


O romance contemporâneo, a grosso modo, tem duas vertentes fundamentais: a conteudista e a formalista. À primeira pertencem aqueles romances nos quais a história contada é o mais importante, com enredos claros e bem elaborados, enquanto que, na segunda, o mais importante é a forma com que se conta, não havendo necessariamente um enredo ou uma "historinha" que leve o leitor adiante. Os grandes romances, porém, são aqueles que encontram um ponto de equilíbrio entre forma e conteúdo, como Dois Irmãos, de Milton Hatoum. Porque, quando a balança pende demais para um lado ou outro, temos o risco de um romance despretensioso, em que a história carrega um texto fraco, ou de um romance estéril, feito para um restrito público de intelectuais preocupados estritamente com as questões técnicas.

Leite derramado, mais recente romance de Chico Buarque, é um bom exemplo de um tipo de literatura que beira o experimentalismo, construindo o romance não em formato linear, mas como uma teia em que os fatos aos poucos vão se ligando e formando o enredo por trás do narrado, sem cair na esterilidade do puramente estético. Há, ali, conflitos e personagens que aos poucos vão surgindo e revelam ao leitor mais atento questões sociais muito além dos problemas particulares do protagonista. Mas não tente resumir a história do romance ou explicar sua temática de forma apressada, pois cada capítulo, cada frase e cada palavra foram construídos dentro de uma lógica maior, cerebral, formal.

Também é assim o quarto livro de Michel Laub, O gato diz adeus (Companhia das Letras, 2009, 80 págs.). Romance conciso, "recupera, com um tom que varia entre a frieza, a ironia e o ódio, a trajetória de dois casamentos ― um que termina, outro que tenta começar ― e suas consequências ― a paternidade, o abandono, os sentimentos de perda e culpa", segundo definição da orelha do próprio livro. Mas não espere encontrar este enredo de forma simples, clara e sequencial no livro, pois a narrativa alterna a voz de quatro personagens: Sérgio, um voyeur, escritor e professor universitário; Márcia, uma atriz casada com Sérgio que depois o deixará para ficar com Roberto; o próprio Roberto, também professor universitário que se verá envolvido na trama de Sérgio; e Andreia, apresentada inicialmente como leitora do livro, estudante de Letras e aluna de Sérgio, mas que se revelerá uma personagem fundamental para o romance.

Como temos quatro narradores distintos, em O gato diz adeus não há um enredo definitivo, uma história com claro começo, meio e fim, ainda que dispersos na forma de teia, como em Leite derramado. Temos, isso sim, quatro versões de uma história, quatro pontos de vista por vezes contraditórios e sempre incompletos. O risco, como bem aponta resenha de Daniel Benevides publicada na Bravo!, é que O gato diz adeus sofra do "mal de Montano, aquela 'doença' diagnosticada pelo espanhol Vila-Matas, cujo sintoma é certa palidez das emoções e a insistente rendição ao exercício estritamente literário".

Para começar, as personagens da própria narrativa são escritores, professores universitários, estudantes, o tipo de leitor a que se destina um romance experimental como o de Laub. Nesse sentido, logo o romance se revela também metalinguístico, pois ficamos sabendo que Sérgio, após seu livro de estreia ― "que teve meia dúzia de resenhas, e foi traduzido para meia dúzia de países, e esgotou a primeira edição em meia dúzia de anos" ―, publicou um romance contando sua história chamado, adivinhe, "O gato diz adeus".

O livro que lemos, então, torna-se personagem da própria história, mas ao livro supostamente escrito por Sérgio, composto pelas partes narradas por ele, soma-se também as intervenções de Roberto, de Márcia e de Andreia, intervenções essas que depois saberemos serem de tempos completamente distintos, numa clara opção pela técnica polifônica em detrimento da verossimilhança dos fatos. Como podemos estar lendo as intervenções de Márcia e Andreia ao mesmo tempo, como se tivessem sido escritas no mesmo momento?, se pergunta o leitor ao final do romance.

Não será essa, é claro, a única pergunta que o leitor irá fazer ao final do livro. Ocorre que o conflito principal, relacionado à paternidade da filha de Márcia, não receberá um desfecho, permanecendo em suspenso e emaranhado nas muitas versões que temos (diferentemente de Dois Irmãos, que narra a tentativa de Nael descobrir seu pai até o momento em que ele desiste da busca, terminando aí o romance, em O gato diz adeus a interrupção é da obra, não da personagem). Dessa forma, sequer a tragédia anunciada nos primeiros capítulos se concretiza para o leitor, à medida que os acontecimentos trágicos estão num tempo fora da história e seus efeitos já parecem sacramentados e, até, perdoados pela única que poderia perdoá-los.

Mas não parece que Michel Laub esteja mesmo preocupado em responder esse tipo de questão tão banal aos leitores. Enredar, surpreender, sugerir, jogar com o leitor parecem preocupações mais condizentes a um escritor que usa como protagonista outro escritor, a um livro que é também parte do próprio livro, a um romance que no final revela obras que o influenciaram.

Ao fim e ao cabo, o que fica do livro são belas imagens e algumas belas passagens que revelam a qualidade do autor por trás do jogo formal, como esta em que uma das narradoras, Andreia, sintetiza com maestria um irônico casamento "feliz", oposto ao narrado por Sérgio e Márcia:

"Eu me pergunto o que ele deixou de fora do livro. Fico imaginando se o casamento era apenas aquelas brigas. Se em algum momento os dois não baixavam a guarda. Duvido que isso não acontecesse, que eles não fossem vez que outra ao cinema ou visitar um amigo, que não andassem de carro pela cidade comentando as vitrines das lojas e as pessoas na calçada, que também não fossem capazes de ficar em casa à noite ocupados cada um com suas coisas, ele no escritório, ela cozinhando, e quando os dois estavam bem ela vinha até ele perguntar alguma coisa sobre o tempero da comida, e depois os dois jantavam e ele dizia algo engraçado e ela contava alguma história e os dois terminavam e ouviam um pouco de música e ficavam até tarde conversando no sofá que os dois tinham escolhido e iam para a cama quando a vizinhança e a cidade inteira já estava em silêncio".

Fonte:
Digestivo Cultural

José Faria Nunes (Poesias Escolhidas)


DESAMOR

Análoga lâmina
Fina
Frio corte
Silente ação
No profundo do aço.

Navalha
Valha noite
Lâmina ferina
Felina
De sequioso corte

Sangra a alma
Corta o sono
O sonho
Assanha
A sanha de fria lápide
Em profundo talho.

Tangidos cartilagem e osso
Dilacerado universo
Entalhe
Do profundo corte.

Detalhe
Negada premissa.

O certo
Prova-se no contexto
Pretexto.
Arrimado parasito
Antítese do amor.

AUSENTE PRESENÇA

Presença ausente no universo
da saudade. Presença
etérea de alma anônima
mesmo sufocada pela multidão.
Solidão não ausência
do ponderável. É ausência
da alma gêmea.
De repente a solidão
esmaga-me na multidão
e se dilui no imponderável.
Ela esvai-se
de mim no instante
em que, mesmo só,
sacia-me o âmago
da alma na interação
de imaginada presença.
O poeta mesmo só
nunca fica á sós.
Acompanha-se-lhe
sempre a presença
do ente sonhado.
O poeta só está só
se perdido na multidão
do inimaginável.
O poeta só está só
se tiver a alma
vazia de sonhos para sonhar.

TRANSCENDÊNCIA

Qual bisturi a extrair o cisto
arranco minhas angústias
e as deposito, amorfas,
em um tubo de ensaio
como um troféu de batalha.
Agora quero rir da tristeza
e dizer que o amor pode mais
que a mágoa secular
cristalizada no peito.
A partir desta hora
a poesia transcenda os limites
da cibernética
seja esta humanitária
e se dilua etérea sobre seres mal-nascidos.
Mesmo que a vida tenha sido negada
e o futuro um sonho precocemente abortado
não maldigo o poema: com meus sentidos despertos
faço caminho no espaço
enlaço o céu num abraço
arranco os olhos do sol
e faço meu firmamento.

POESIA E LIBERDADE

A caneta do poeta
rebela-se
ante a injustiça
do poder.
E faz-se poder
na liberdade
do ato de pensar.
Quando o poder
em seu império de força
impõe-se
sobre a caneta do poeta
então este carece
de ser mais que poeta:
dele se exige
a engenharia dos deuses
na construção mágica
do amor.

Fonte:
Textos enviados pelo Autor

Rafael Castellar (E se...?)


Quando você se pergunta:

“E se o momento não for o certo, ou se as coisas correm mais que o calendário – ou o relógio?!

E se a poeira ainda não baixou, ou se as feridas ainda não fecharam, ou se palavras ainda doerem e as lembranças ainda rondarem?

E se não for a pessoa certa, ou se for o começo de mais um fim, ou se for pior dos infernos que volta a se formar?

E se as coisas saírem do controle, ou se ainda estão sob controle, ou se é loucura?

E se for a coisa certa a se fazer, ou se for tudo o que foi procurado agora batendo à porta, ou metade?

E se for um começo diferente, uma coisa diferente, estranha, ou quem sabe algo predestinado?

Mas se não for isso? E se for o que sempre foi? E se estiver errado? Está errado? Tudo?”

É quando eu lhe pergunto:

“E se o que está por vir for a pior das coisas? O pior dos fins - e não o último?

E se não houver controle? E não houver como e porque controlar?

Mas e se for o fim? O maldito fim que tanto fugiu? Que tanto foi procurado e buscado?
E se for um começo único e último?

E se for tudo o que foi negado? E se for o motivo de tantos calos?

E se amanhã os ‘eu’ não mais o serem? E se amanhã a encontrarmos esperando atrás da porta?

E se amanhã Deus se revelar um tirano sarcástico e der seu basta em uma fúria incontrolável?

E se amanhã eu não puder lhe desejar ao menos bom dia? E se estas forem as últimas palavras?

E se esse amanhã for hoje? Daqui um pouco? Agora? Nem tchau?

E se amanhã não for nada disso e isso tudo se tornar apenas um nada? Ido, passado, quem sabe lembrado ou até desejado, mas ido!

E se, seja lá o que for amanhã, se perguntar ‘e se?’ e a resposta for ‘não sei, quem sabe’?
Ninguém sabe e nem se importará, pois já foi!”

Larga suas pedras! Solta as correntes e liberta seus pensamentos, suas perguntas, suas angústias e deixa-os voar para longe e lhe trazerem sonhos para serem vividos: nesta vida ainda!

E quando assim escolher, olha em volta e me verá, pronto!

Caminhe em minha direção, faça-o a passos largos, de braços abertos, sem sentir as pernas, mas o vento em seu rosto, e sorria ao balanço único deste caminhar. Caminhe com seu todo, seu tudo!

E seus olhos brilharão aos meus, seu sorriso será gargalhada às minhas, e flutuará a mim!

E quando a mim chegar, enxugarei suas lágrimas com meu rosto, limparei seu sangue com meu corpo, fecharei suas feridas com meu toque.

Perca-se em meus braços como me perco nos seus.

E será com o meu mais verdadeiro e mal-intencionado beijo que lhe mostrarei que não estou nem atrás nem a sua frente, mas ao seu lado, sem “e se”; apenas sendo!

São Paulo, 22 de junho de 2009.

Fonte:
Texto enviado pelo autor

Antonio Ozaí da Silva (Saber Acadêmico e Analfabetismo Cultural)


Não é fácil assumir que, de fato, somos analfabetos culturais. É difícil aceitar que o conhecimento enciclopédico e os títulos acadêmicos que porventura temos não são garantia de que sejamos culturalmente alfabetizados. Sabemos ler e escrever, podemos conhecer as teorias, dominar os conceitos filosóficos, políticos, etc., mas isto, longe de nos aproximar do outro e da nossa própria humanidade, pode, paradoxalmente, ter um efeito inverso e perverso: o distanciamento do mundo real, da mísera realidade que nos cerca. Tendemos a tudo racionalizar e nada sentir. O adágio “Penso, logo existo” sugere uma questão: existir para quê? Para além do pensar, que nos dá a certeza do existir, é preciso sentir que existimos.

O especialista tende a separar a palavra do mundo, o conceito da realidade. As palavras dissociam-se da vida real, das contradições, sofrimentos e esperanças dos que vivem no mundo. Se quisermos ir além do saber livresco, do formalismo titulado, enfim, do “balé dos conceitos”[1], precisamos superar os limites da fria racionalidade e assumirmos uma postura diante do mundo.[2] É preciso sentir, indignar-se, comprometer-se. Os que dominam a palavra escrita iludem-se em equivaler conhecimento formal e alfabetização cultural. O ser humano cujas condições sócio-econômicas não lhe permitiu freqüentar os bancos universitários tem o que ensinar. Para compreender este fato singelo é mister desmistificar a noção de cultura, predominante e arraigada em nossos corações e mentes, que confunde cultura com saber acadêmico.

O saber racionalista e eurocêntrico é importante, mas também é fator de colonização das nossas mentes e herança introjetada em nosso ser. Se nos atermos a isto, nos tornamos analfabetos culturais. O resultado é a cegueira da consciência, a anulação da subjetividade e da intersubjetividade. Só superando esta cegueira é que teremos condições de estabelecer o diálogo com o outro. Portanto, o comprometimento intelectual, ou o engajamento, não nos torna necessariamente melhores nem indica que estejamos alfabetizados culturalmente.

A alfabetização cultural é parte da construção da utopia que respeita a subjetividade e estabelece o dialogo entre as diferentes manifestações étnicas, de gênero e de classe. Isto pressupõe uma concepção não elitista da cultura e uma postura pedagógica apoiada na autodeterminação. É preciso, portanto, incorporar uma nova atitude fundada na compreensão de si e no diálogo com o outro, uma atitude que persiga a coerência entre os meios e os fins, entre o discurso e a prática.

Não é fácil, pois os valores dominantes nos envolvem o tempo todo. Mesmo intelectuais críticos e militantes dos movimentos sociais, partidos etc., encontram-se impregnados pela cultura opressiva – muitos querem libertar os oprimidos, mas atuam na mesma perspectiva dos opressores. Muitas vezes, cegos em seu fanatismo, nem percebem. Os valores predominantes da competição, do vigiar e punir fundados em prêmios e castigos, são muito fortes e impõem barreiras à uma nova atitude solidária e dialógica.

A alfabetização cultural exige o reconhecimento das nossas fraquezas, do “bicho”[3] que habita em nós. Resistir é fundamental, mas também é preciso construir barricadas que sustentem a nova atitude. Os que agem como demiurgos da história, missionários da utopia, apóstolos da razão, em geral praticam o oposto. O discurso, mesmo quando crítico e pretensamente democrático, é negado pela prática autoritária. É preciso estimular a reflexão sobre as nossas incoerências e as possibilidades de ser e agir diferente. É necessário esforçar-se continuamente para conhecer-se a si mesmo!
============================
* Versão modificada e inspirada na resenha “Sobre o Analfabetismo Cultural: dialogando com Dan Baron” (BARON, Dan. Alfabetização Cultural: a luta íntima por uma nova humanidade. São Paulo: Alfarrabio Editora, 2004), publicada na REA nº. 37, junho de 2004, disponível em http://www.espacoacademico.com.br/037/37res_baron.htm

[1] Como assinalou Paulo FREIRE: “Em última análise, tornamo-nos excelentes especialistas, num jogo intelectual muito interessante – o jogo dos conceitos! É um “balé de conceitos”. (FREIRE, P e SCHOR, I. Medo e ousadia – O cotidiano do professor. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986, p.131).

[2] Ver “Os intelectuais diante do mundo: engajamento e responsabilidade”, publicado na REA, nº. 29, outubro de 2003, disponível em http://www.espacoacademico.com.br/029/29pol.htm

[3] O mal habita em nós, como o bem. A natureza humana é boa e má, e deve ser analisada em relação com os contextos sociais específicos – os quais modificam inclusive a moral. Maquiavel, Thomas Hobbes, Rousseau e outros se debruçaram sobre este tema. Mas também na literatura encontramos obras que nos ajudam a refletir sobre a natureza humana e a vida em sociedade. É o caso, por exemplo, de O Senhor das Moscas”, escrito por William Golding (São Paulo: Folha, 2003). É inspirado nesta obra que utilizo o termo “bicho”.

Fonte:
Blog do Ozaí

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 315)


Uma Trova Nacional

Uma Trova Potiguar


Eu vejo ó linda criança,
neste teu sorriso lindo,
a mais feliz esperança
das esperanças dormindo!!!
–PROF. GARCIA/RN–

Uma Trova Premiada


2000 - Niterói/RJ
Tema: DELÍRIO - M/E.

Finda a magia da estréia
e o delírio do apogeu,
não sei se o mundo é platéia
ou se a platéia sou eu!
–PEDRO ORNELLAS/SP–

Uma Trova de Ademar

Morre um homem e o seu cão,
amigo por natureza...
entrega-se a solidão,
e morre, em fim... de tristeza!
–ADEMAR MACEDO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram

Vivo tanto a tua vida,
na vida do sonho meu,
que até me sinto esquecida
da vida que Deus me deu.
–LILINHA FERNANDES/RJ–

Simplesmente Poesia

Sino da Minha Sina.
–ANTONIO M. A. SARDENBERG/RJ–

Badala o sino sonoro
Tocando no vilarejo.
Em minha prece eu imploro
E rogo num só lampejo
Que a vida traga de volta
O amor que tanto desejo.

Pulsa, sino, em minha sina,
Ensina-me a entender
Por que a saudade bate
Fazendo a gente sofrer.

Sina, sino, sentimento,
Sonoro som a tanger,
Tristeza, dor e lamento...
No meu peito o sino bate
Louquinho por te querer!

Estrofe do Dia

Foge à falta de pão, busca socorro
porque vive sem ter dignidade,
quando troca o sertão pela cidade
é o jeito vender porco e cachorro,
quando chega na rua vai pro morro
com a cara de fome e magricela,
num barraco sem porta e sem janela
sem telha, sem muro e sem portão,
quem escapa da seca do sertão
morre embaixo dos morros da favela.
–EDMILSON FERREIRA/PI–

Soneto do Dia

Seca...
–CAROLINA RAMOS/SP–

O sol delira! Abrasa! A terra, exangue,
abre os lábios sedentos! Sem valia,
os rios secam, veios nus, sem sangue,
sugados pelo solo em agonia!

Pele crestada, passo frouxo e langue,
o retirante segue...tem, por guia,
uma esperança de que o céu se zangue,
lançando sobre a terra a chuva fria!

Chovesse, voltaria ao mesmo beco,
que enfrentar a caatinga é seu destino!
Mas, a chuva não vem... O pranto é seco!

Reza!... O sol, em delírio, mais abrasa!
O céu rubro gargalha! E o nordestino
Parte... deixando a própria alma em casa!

Fonte:
Textos e imagem enviados pelo autor

Maria Nascimento Santos Carvalho (Discurso no Concurso Anual da UBT – Seção São Paulo – 2010)


São Paulo 18, de julho de 2010.

Srs. Membros da Mesa, Autoridades presentes, queridos Irmãos Trovadores, Amigos da Trova, minhas senhoras, meus senhores.

Hoje, é um dia muito especial em minha vida, como tantos outros, que ainda recordo com saudade, guardando no coração o agradecimento que, muitas vezes, as palavras morrem presas na garganta, ou se ditas, não conseguem expressar o nosso sentimento, a nossa emoção.

A UBT e várias outras entidades literárias já me prestaram significativas homenagens, inclusive a UBT São Paulo, quanto foram realizadas duas palestras focalizando o meu modesto trabalho poético, pelas quais renovo os meus agradecimentos aos queridos irmãos Trovadores Maria Bruna e Jayme Silveira da Pina.

Mas, como me reporto em meu novo livro, ainda no prelo, “Alem do Infinito”,

Ontem foi passado... passou... Hoje, é ao mesmo tempo, passado, presente e futuro... Amanhã, é um advérbio de tempo e apenas um expectativa de vida.

Por isso mesmo, tenho muito a agradecer pelos acontecimentos passados e viver intensamente este momento mágico que estou vivenciando, graças à generosidade dos irmãos Trovadores da UBT – São Paulo, lamento profundamente a ausência do querido irmão Trovador Izo Goldeman, almejando o seu feliz retorno ao nosso meio, com bastante saúde, salientando a falta que nos faz a sua presença amiga.

Desde criança, inventei que sabia fazer poesias e numa véspera de São João, com 9 anos, declamei o meu primeiro trabalho que recebeu muitas gargalhadas de deboche e repreensão. – Eu dizia:

Me lembro que certa feita
pertinho de uma fogueira,
desejei uma caneta
só para escrever besteira...

E eu sabia lá o que era certa feita?

No momento das risadas, pensei que havia falado um bruto palavrão, mas não desanimei e continuei produzindo, a meu modo, poesias que só a minha imaginação acreditava que era poesias.

Iniciei no movimento trovadoresco em janeiro de 1963, quando passei a frequentar o Grêmio Brasileiro de Trovadores, dirigido pelo saudoso Trovador Luiz Otávio, de quem recebi o maior incentivo.

Confesso que, apesar de passados quarenta e sete anos, ainda mantenho o mesmo entusiasmo, a mesma vontade de colaborar com a União Brasileira de Trovadores, uma das grandes razões da minha vida, pelos laços de fraternidade que me unem aos Trovadores e à UBT, desde o dia 21 de agosto de 1966, quando foi fundada, vitoriosamente.

Mesmo ficando até 1968 sem ganhar nem uma medalhinha como prêmio de consolação, para me alegrar, continuei concorrendo nos Concursos de Trovas e Jogos Florais.

Parece que eu estava seguindo o exemplo da Trova do saudoso Trovador Élton Carvalho, que diz:

Trovador “cobrão” eu sou,
pois nos concursos passados
reparem que sempre estou
entre os “des... classificados...”

Em 1969 descobri “o caminho das pedras” e felizmente, nunca mais o esqueci, nem por ele fui esquecida.

Por todos esses motivos, ilustre Presidenta Selma Patti Spinelli, esta homenagem é, sem dúvida, o maior prêmio que já recebi em minha vida, não só pelo seu valor, em si, mas pelo amor que devoto a UBT São Paulo, Seção em que fui tantas vezes premiada, pela gratidão inconteste por seus gestos de amizade e pelo respeito com que sempre me distinguiu, razão do meu eterno reconhecimento, bem como pelos seu profículo trabalho em prol da União Brasileira de Trovadores, que tanto amamos.

E eu fui falando... falando,
quase esquecendo o presente...
Mas volto lhes confessando
Tudo que a minha alma sente...

Permitam-me lhes dizer
com infinita humildade
que nem sei como conter
meu grau de felicidade...

Estou realmente encantada
por tudo que me fizerem
e levo na alma guardada
toda a atenção que me deram.

Em meio a tanta afeição
a minha emoção é tanta
que as frases de gratidão
morrem presas na garganta.

E abrindo o meu sentimento
lhes confesso, agradecida,
que este momento é o momento
mais feliz da minha vida.

A UBT, desejo a glória
e trajetória infinita,
para escrever sua história
da maneira mais bonita.

Que toda a Diretoria
que tem sempre ideia nova
como eterna estrela guia
guie os destinos da Trova...

Pela amizade, que fez
maravilhoso o meu dia,
eu partilho com vocês
todo esplendor deste dia.

Caros irmãos Trovadores
num preito de gratidão
lhes trouxe milhões de flores
no jardim do coração.

Findando esta cerimônia
que me deixou encantada,
eu quero ter muita insônia,
para sonhar acordada.

Agradecimento à querida Irmã Trovadora, Selma Patti Spinelli, Presidenta da UBT São Paulo, aos demais membros da Diretoria, aos Sócios, aos amigos de Trova de referida Seção, e todos os presentes que testemunharam a alegria que se reflete no meu semblante e cala em minha alma, finalizando dizendo:

Deus é tão amigo dos poetas que lhes deu inspiração para cantar, em versos, a grandiosidade da Natureza e dotou o “homem comum” de sensibilidade para entender a bendita linguagem do amor e da poesia...

Monteiro Lobato (O Saci) XIII – Novas Discussões; XIV – O Medo


XIII – Novas discussões

Tinham de esperar a meia-noite, porque só a essa hora é que os duendes da floresta saem de suas tocas. Para matar o tempo, o saci começou a explicar a Pedrinho o que era a vida na natureza.

— Você nunca poderá fazer idéia da vida encantada que temos por aqui — disse ele.

— Ora, ora! — exclamou o menino. — Não há o que os homens não saibam. Vovó tem lá uma História natural que conta tudo.

O saci riu-se e tirou uma baforada do pitinho.

— Tudo? Ah, ah, ah!... Livros como esse não contam nem isca do que é, e estão cheios de invenções ou erros. Basta dizer que para cada inseto seria preciso um livro inteiro só para contar alguma coisa da vidinha deles. E quantos insetos existem? Milhões...

— Em todo caso — volveu Pedrinho — nós, homens, pomos o que sabemos nos livros e vocês, sacis, não escrevem coisa nenhuma. Nunca houve livros entre vocês, e quem não escreve obras não pode ensinar aos filhos o que sabe.

— Não temos livros — disse o saci — porque não precisamos de livros. Nosso sistema de saber as coisas é diferente. Nós adivinhamos as coisas. Herdamos a sabedoria de nossos pais, como vocês, homens, herdam propriedades ou dinheiro. Nascer sabendo! Isso é que é o bom. Um pernilongo, por exemplo. Sabe como é a vidinha dele? Nasce na água, saído de um ovinho. Logo que sai do ovinho ainda não é pernilongo — é o que vocês chamam “larva” — uma espécie de peixinho que nada e mergulha muito bem. Um dia essa larva cria asas, pernas compridas e voa. E que faz quando voa?

— Vai cantar a música do fiun e picar as pessoas que estão dormindo em suas camas. É isso o que esses malvadinhos fazem.

— Muito bem! — tornou o saci. — E quem ensina o pernilongo a fazer isso? Os pais? Não, porque depois de soltar os ovos na água os pais dos pernilonguinhos morrem. Os livros? Não, porque eles não têm livros. Pois apesar disso sabem tudo quanto precisam saber. Sabem que no corpo das gentes há sangue, e que o sangue é o alimento deles. Sabem que as gentes moram em casas. Sabem que a melhor hora de sugar o sangue das gentes é de noite, porque estão dormindo. E sem que os pais lhes ensinem coisa nenhuma, ou que as aprendam nos livros, os pernilonguinhos logo que saem da água vão em busca de casas, entram, escondem-se nos escuros, esperam que todos durmam e sossegadamente picam as pessoas e enchem de sangue as suas barriguinhas. Depois escapam pelas janelas e voltam à mata ou outros sítios, em procura de agüinhas paradas onde porem os ovos. E assim eternamente. Sabem tudo direitinho — e ninguém os ensina. Logo, eles têm a ciência de tudo dentro de si mesmos, como vocês têm tripas e estômago e pacuera.

Pedrinho teve de concordar que era assim mesmo. O saci continuou:

— E como fazem os pernilongos, assim também fazem todas as outras vidinhas aqui da floresta. Cada qual nasce sabendo fazer o certo — e não erram. Os grilos nascem sabendo abrir buracos. Há um inseto chamado bombardeiro. Se outro maior o ataca, vira-se de costas e lança-lhe no focinho um líquido que se evapora imediatamente e tonteia o inimigo. Quando este volta a si, o bombardeiro já está longe. Quem o ensina a fazer isso? Ninguém. Nasce sabendo. Certos besouros, quando querem pôr ovos, fazem o seguinte: pegam uma pequena quantidade de estéreo e a vão rolando pelo chão com as patas de trás. Para quê? Para formar uma bola. Quando o estéreo está uma bola bem redondinha, eles a furam e botam lá dentro os ovos. Quem ensina esses besouros a fazer essas bolas tão redondinhas? Os pais? Não! Algum livro? Não! Eles nascem sabendo.

— Sim — disse Pedrinho. — Nascem sabendo e nós temos de aprender com os nossos pais ou nos livros. Isso só prova o nosso valor. Que mérito há em nascer sabendo? Nenhum. Mas há muito mérito em não saber e aprender pelo estudo.

— Perfeitamente — concordou o saci. — Não nego o mérito do esforço dos homens. O que digo é que eles são seres atrasadíssimos — tão atrasados que ainda precisam aprender por si mesmos. E nós somos seres aperfeiçoadíssimos porque já não precisamos aprender coisa nenhuma. Já nascemos sabidos. Que é que você preferia: ter nascido já com toda a ciência da vida lá dentro ou ter de ir aprendendo tudo com o maior esforço e à custa de muitos erros?

O menino foi obrigado a concordar que o mais cômodo seria nascer sabendo.

— Sim, nesse ponto você tem razão, saci. Mas que é que faz todas essas vidinhas viverem? Está aí uma coisa que minha cabeça não compreende.

— Ah, isso e o segredo dos segredos! — respondeu o saci. — Nem nós sabemos. Mas o que acontece é o seguinte: dentro de cada criatura, bichinho ou plantinha, há uma força que a empurra para a frente. Essa força é a Vida. Empurra e diz no ouvido das criaturinhas o que elas devem fazer. A Vida é uma fada invisível. É ela que faz o pernilongo ir picar as pessoas nas casas de noite; e que manda o grilo abrir buraco; e que ensina o bombardeiro a bombardear seus atacantes.

— Mas é invisível até para vocês, sacis, que enxergam mais coisas do que nós, homens? — perguntou Pedrinho.

— Sim. Eu que enxergo tudo nunca pude ver a fada Vida. Só vejo os efeitos dela. Quando um passarinho voa, eu vejo o vôo do passarinho, mas não vejo a fada dentro dele a empurrá-lo.

— Então ela deve ser como a gasolina dos automóveis. Sem gasolina os carros não andam.

— Perfeitamente — concordou o saci — mas com uma diferença: nos automóveis a gente vê e cheira a gasolina, mas a Gasolina-Vida ninguém ainda conseguiu ver nem cheirar.

— E morrer? Que é morrer? A Vida então acaba, como a gasolina do automóvel?

— A Vida muda-se de um ser para outro. Quando o ser já está muito velho e escangalhado, a Vida acha que não vale mais a pena continuar lidando com ele e abandona-o. Vai movimentar um novo ser. A fada invisível diverte-se com isso.

Pedrinho ficou muito impressionado. A fada invisível também morava dentro dele, e o empurrava para a frente. Era quem o fazia ter fome e comer, ter sede e beber, ter sono e dormir, querer coisas e procurá-las. Mas um dia essa boa fada enjoar-se-ia dele. Por quê? Porque ele já estaria de cabelos brancos e sem os dentes naturais, e com reumatismo nas juntas, e catacego e com a pele toda enrugada, e com o coração tão fraco que até subir a escadinha da varanda seria uma proeza. E então a fada torceria o nariz e enjoar-se-ia dele: — “Sabe que mais, Senhor Pedrinho? Você está um caco velho e eu não gosto disso. Vou procurar outro ente” — e abandoná-lo-ia e ele então morreria.

Essa idéia entristeceu Pedrinho, porque a idéia que não entristece ninguém é bem outra: é a idéia de não morrer, nunca, nunca...

Conversou a respeito com o saci.

— Ora, ora! — disse este. — O que morre é o corpo só, a parte que em nós tem menos importância. A grande coisa que há em nós, e nos diferencia das pedras e dos paus podres, que é? A Vida. E essa não morre nunca — muda-se dum ser para outro. Tal qual a eletricidade. Quando a pequena bateria daquela lâmpada elétrica que você tem se descarrega, a bateria morre — mas morreu a eletricidade? Não. Apenas mudou-se. Saiu daquela bateria e foi para outra, ou foi para as nuvens, ou foi para onde quis. Assim como a eletricidade não morre, a Vida também não morre. A Vida é uma espécie de eletricidade.

— Mas eu não queria que fosse assim — lamentou Pedrinho. — Tenho dó do meu corpo. Estas mãos, por exemplo — disse ele abrindo-as. — Estou tão acostumado com elas... Desde pequenininho que estas mãos fazem tudo o que eu quero, e fico triste de lembrar que um dia vão ficar paradas, mortas...

— Pior do que perder as mãos é perder os olhos — disse o saci. — Já reparou como é triste não ter olhos, ou tê-los e não ver nada? Feche os olhos bem fechados.

Pedrinho fechou-os bem fechados. O saci disse:

— Pois quando a fada invisível abandonar o seu corpo, Pedrinho, seus olhos vão ficar assim, cegos — como se não existissem. E nunca mais esses olhos, que hoje vêem tanta coisa, verão coisa nenhuma. Nunca mais, nunca mais...

Pedrinho sentiu uma tristeza tão grande que quase chorou — mas o saci deu uma grande risada.

— Bobo! O que nesses seus olhos enxerga, não são os olhos: é a fada invisível que há dentro de você. A fada é como o astrônomo no telescópio; e os olhos são como o telescópio do astrônomo. Qual é o mais importante: o telescópio ou o astrônomo?

— É o astrônomo — disse Pedrinho.

— Pois então alegre-se, porque o astrônomo não morre nunca. O telescópio é que se desarranja e quebra.

XIV – O medo

Longamente filosofaram os dois, lá debaixo da grande peroba que os abrigava do sereno da noite. A floresta tinha uma vida noturna tão intensa quanto a vida diurna. Entre os homens tudo pára durante certa parte da noite, mas na floresta a vida continua, porque uns seres dormem de dia e vivem de noite e outros dormem de noite e vivem de dia. Assim que os sabiás, sanhaços e tico-ticos se recolhem aos pousos ou ninhos, começam a sair das tocas as corujas e morcegos. E as borboletas e mariposas noturnas vêm substituir as borboletas e mariposas diurnas, que adormecem logo que chega a noite. E as caças medrosas, tão perseguidas pelos homens, saem de noite a pastar e beber água nos rios. E os vaga-lumes, que de dia não deixam os lugares escurinhos, começam a piscar por toda a parte com as suas lanterninhas.

— Esses eu sei — disse o menino. — A vida desses animais eu conheço mais ou menos. O que me interessa agora é a vida dos tais “entes das trevas”, como diz Tia Nastácia — os misteriosos — os que uns dizem que existem e outros juram que não existem.

— Compreendo — disse o saci. — Você refere-se aos chamados “duendes”, “monstros”, “capetas”, “gnomos”, etc....

— Isso mesmo, amigo saci. Ando desconfiado que tudo não passa de sonho. Eu não via nada na garrafa, antes de ter caído naquela modorra. Assim que a modorra chegou, você apareceu na garrafa e começou a falar. Desconfio que estou sonhando... Desconfio que isto é um pesadelo... Nos pesadelos é que aparecem monstros horríveis. Por quê? Por que é que há coisas horríveis?

— Por causa do medo, Pedrinho. Sabe o que é medo?

O menino gabava-se de não ter medo de nada, exceto de vespa e outros bichinhos venenosos. Mas não ter medo é uma coisa e saber que o medo existe é outra. Pedrinho sabia que o medo existe porque diversas vezes o seu coração pulara de medo. E respondeu:

— Sei, sim. O medo vem da incerteza.

— Isso mesmo — disse o saci. — A mãe do medo é a incerteza, e o pai do medo é o escuro. Enquanto houver escuro no mundo, haverá medo. E enquanto houver medo, haverá monstros como os que você vai ver.

— Mas se a gente vê esses monstros, então eles existem.

— Perfeitamente. Existem para quem os vê e não existem para quem não os vê. Por isso digo que os monstros existem e não existem.

— Não entendo — declarou Pedrinho. — Se existem, existem. Se não existem, não existem. Uma coisa não pode ao mesmo tempo existir e não existir.

— Bobinho! — declarou o saci. — Uma coisa existe quando a gente acredita nela; e como uns acreditam em monstros e outros não acreditam, os monstros existem e não existem.

Aquela filosofia do saci já estava dando dor de cabeça no menino, o qual suspirou e disse:

— Basta, amigo saci. Não quero mais saber de filosofias, quero conhecer os segredos da noite na floresta. Mostre-me os filhos do medo que você conhece. Desde que há tanta gente medrosa no mundo, deve haver muitos filhos do medo.

— Se há! — exclamou o saci. — Os medrosos são os maiores criadores das coisas que existem. Não tem conta o que lhes sai da imaginação. As mitologias daqueles velhos povos estão cheias de terríveis criações do medo. Aqui nestas Américas, temos também muitas criações do medo, não só dos índios chamados aborígines, como dos negros que vieram da África.

Pedrinho lembrou-se do Tio Barnabé, que era africano.

— Tio Barnabé, por exemplo — disse ele — é um danado para saber essas coisas. Conhece todos os filhos do medo. Foi ele quem me explicou o caso dos sacis. Conte-me no que é que os índios acreditavam.

— Os índios — começou o saci — não usavam durante a noite aquelas luzes que Dona Benta usa lá no sítio — aqueles lampiões de querosene. Nem usavam a luz elétrica que há nas cidades. Só usavam fogueirinhas de pouca luz e por isso o medo entre os índios era grande. Quanto maior é o escuro, maior o medo; e quanto maior o medo, mais coisas a imaginação vai criando. Já ouviu falar no Jurupari?

— Não...

— Pois é o diabo dos índios, o espírito mau que aparece nos sonhos e transforma os sonhos em pesadelos horríveis. Insônia, mal-estar, inquietação, tudo que é desagradável vem desse Jurupari.

— Mas como é ele?

— Um espírito sem forma. Um espírito mau que se diverte em agarrar os que estão dormindo e causar-lhes todos os horrores dos pesadelos. E parece que segura as vítimas pela garganta, porque elas esperneiam e se debatem, mas não podem gritar.

— Oh, eu já tive um pesadelo assim! — disse o menino. — Lembro-me muito bem. Eu ia caindo num buracão enorme. Quis gritar por vovó, mas foi inútil. A voz não saía...

— Pois era o Jurupari que estava apertando a sua garganta. O divertimento dele é esse. Anda de casa em casa provocando pesadelos horríveis nos que encontra dormindo.

Nesse momento um ruído entre as folhas chamou a atenção de ambos.

— Psit!... — fez o saci. — Atenção... Qualquer coisa vem vindo...

Ficaram os dois imóveis. O coração de Pedrinho batia apressado.

— O Curupira! — sussurrou o saci, quando um vulto apareceu. — Veja... Tem cabelos e pés virados para trás.

— Parece um menino peludo — murmurou Pedrinho.

— E é isso mesmo. É um menino peludo que toma conta da caça nas florestas. Só admite que os caçadores cacem para comer. Aos que matam por matar, de malvadeza, e aos que matam fêmeas com filhotes que ainda não podem viver por si mesmos, o Curupira persegue sem dó.

— Bem feito! Mas como os persegue?

— De mil maneiras. Uma das maneiras é disfarçar-se em caça e ir iludindo o caçador até que ele se perca no mato e morra de fome. Outra maneira é transformar em caça os amigos, os filhos ou a mulher do caçador, de modo que sejam mortos por ele mesmo.

Pedrinho achou que não podia haver nada mais justo. O saci prosseguiu:

— Esse que vai passando está a pé, mas em regra o Curupira anda montado num veado e traz na mão uma vara de japecanga.

— Que é japecanga?

— Uma planta que é remédio para doença do sangue. Também é conhecida como salsaparrilha.

— E por que anda com essa vara de japecanga? Que idéia!

— Não sei. Ele é que sabe. E o Curupira tem um cachorro, de nome Papa-Mel, que não o larga. Assim que avista um caminhante na estrada, começa logo a cantar:

Currupaco, papaco Currupaco, papaco...

— Isso é cantiga de papagaio! — lembrou Pedrinho. — Na casa do Coronel Teodorico há um que só diz isso.

— Pois foi com o Curupira que os papagaios aprenderam o currupaco. Papagaio não inventa palavras, apenas repete as que ouve.

Mas o Curupira, com os seus pés voltados para trás, não se demorou muito por ali. Descobriu um rasto de paca e lá se foi, com certeza para ver como ela ia passando em sua toca.

— Que horas serão? — perguntou o menino.

O saci respondeu que faltava pouco para meia-noite.

— Como sabe?

— Por aquela flor — respondeu o saci, indicando uma flor que não estava de todo aberta. — É o meu relógio aqui. Só abre completamente à meia-noite...
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continua... XV - O Boitatá; XVI – O negrinho
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Fonte:
LOBATO, Monteiro. Viagem ao Céu & O Saci. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. II. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa