segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Emiliano Perneta (Ilusão) Parte 2


O ENIGMA

Ao Dr. Clovis Bevilacqua

Cansado de querer decifrar o Mistério,
Cujo limiar tocou, mas sem poder entrar,
Como os sons, como os sons longínquos d’um saltério
Que se fanassem com a Luz crepuscular...

Ei-lo de volta enfim ao seu eremitério,
– Batel que se perdeu um dia pelo mar –
Ei-lo sem o fulgor daquele sonho etéreo,
Que já teve na voz, que já teve no olhar...

Todavia, ele é um deus. Mas, inquieto de tudo,
Que é seu, que ele inventou, do seu esforço mudo,
E da sua altivez estoica de leão,

Anseia para ver no meio da peleja,
Dessa refrega, desse ardor que relampeja,
Se ainda pode iludir a cruel Decepção!...

Dezembro – 1903

SALOMÃO

Ao Adolpho Werneck

Tudo o meu coração tem do rei Salomão,
A glória, e o furor, o orgulho, e a crueldade;
Não ambiciona dez, nem cem, nem um milhão,
Mas a terra, e o mar, o céu, e a infinidade...

Em tudo se parece, em tudo é seu irmão,
O mesmo luxo até, a mesma vaidade,
O mesmo fausto ideal, como asas de pavão,
E esse requinte, enfim, essa ferocidade...

Quando soará, porém, a hora maravilhosa,
Em que do alto de uma torre cor de rosa,
Novo rei Salomão, ele, um dia, verá,

Entre poeira e sol, ao longe, a caravana,
Onde em meio d’um régio esplendor, que se ufana,
Fulge o diadema da rainha de Sabá?

Fevereiro – 1906

NO TRONCO D’UMA ÁRVORE

Ao Mario de Barros

Foi num começo esplêndido d’outono,
Quando cheguei. A mata era um gorjeio,
Era um sussurro, languidez e sono,
E um corpo nu, e um perfumado seio.

E que gesto mais lindo de abandono,
Que abraços loucos, e que doido anseio,
Quando me vi perdido aqui no meio
Desta folhagem alta como um trono!

Hoje, anda em guerra o sol como um deus Marte,
É que eu me vou, é que eu me vou embora...
E que fel tão amargo de deixar-te,

Ó Natureza, ó rústica sonora,
Virgem de pés descalços e sem arte,
Que eu como um fauno deflorei agora!

Sítio dos Pinhais, 11 de dezembro de 1909

VENCIDOS

Nós ficaremos, como os menestréis da rua,
Uns infames reais, mendigos por incúria,
Agoureiros da Treva, adivinhos da Lua,
Desferindo ao luar cantigas de penúria?

Nossa cantiga irá conduzir-nos à tua
Maldição, ó Roland?… E, mortos pela injúria,
Mortos, bem mortos, e, mudos, a fronte nua,
Dormiremos ouvindo uma estranha lamúria?

Seja. Os grandes um dia hão de cair de bruço...
Hão de os grandes rolar dos palácios infectos!
E glória à fome dos vermes concupiscentes!

Embora, nós também, nós, num rouco soluço,
Corda a corda, o violão dos nervos inquietos
Partamos! inquietando as estrelas dormentes!

OVÍDIO

O exílio foi cruel e aspérrimo, de fome.
Foi o tédio brutal, a miséria. Curtiste
Toda espécie de fel, o horror que não tem nome,
E ninguém acabou mais feio nem mais triste.

Homem algum jamais sentiu, como sentiste,
Ovídio, ó coração que a cólera consome,
Quão perigoso enfim é ter esse renome,
A glória, que é a ilusão mais louca que inda existe.

Mas, que importa afinal! A mocidade toda,
Quando entravas no Circo, ó Mestre, quase doida,
Recitava de cor a tua arte de amor...

E o orgulho de beijar, que nem o exílio doma,
O corpo mais gentil do lupanar de Roma,
Júlia, e basta, Nasão, filha do Imperador!...

1905

VEIO

Di-lo tanto fulgor maravilhoso, di-lo
Este clarim de sol rubro do meu anseio,
Este verde de mar, como um sono tranquilo,
Este límpido céu azul, como um gorjeio,

Alto, bem alto, assim, para que eu possa ouvi-lo,
Que ela, vencendo o mar, transpondo o serro, veio,
Todo cheirando, em flor, o perfumado seio,
Bela, sonora, ideal, como a Vênus de Milo...

Fosse vaidade ou amor, desespero ou ciúme,
Que a trouxessem aqui, como um leve perfume,
Ou fossem, ai de mim! raivas e temporais,

Veio, mas com a graça e a própria luz do dia...
Ó prazer que me faz soluçar de alegria,
E respirar, e crer nos deuses imortais!

DESDE QUE COMECEI...

Desde que comecei a te olhar, de tal modo,
Com tal encanto, com tal êxtase sorri,
Que tudo que eu amei, mas doido, como um doido,
Este Símbolo até por quem me debati,

Versos, orgulhos vãos, lá no alto, com denodo,
Pompas imperiais, (mal os teus olhos vi,)
Como flores, assim, das minhas mãos, eu todo
Enlevado, deixei cair ao pé de Ti!

Mas que esperar enfim? Mais lindo do que um sonho
Tudo que é teu reluz, magnífico, risonho,
Com palmas, com florões, com Torres de Marfim...

És um manto real, o fausto d’um Castelo,
A Ilusão, o Fulgor misterioso e belo...
És tudo, meu amor! E hás de olhar para mim?...

1904

NÃO É SÓ TE QUERER...

Não é só, não é só te querer, porém tudo
Que é teu, ó girassol girando sobre mim,
Com sorrisos onde há seduções de veludo,
Atrações de luar e vozes d’um jardim...

Sonho que me faz mal, tortura onde me iludo,
Cruel inquietação, ânsia que não tem fim,
Ó delírio de ver palácios com escudo,
Reinos antigos com torreões de marfim!

Gestos lindos e vãos do que já foi, querida,
Graça do que findou, essência e flor da vida,
Origens afinal secretas do teu eu...

Quem me dera beijar tudo isso que me alegra,
No meio da nudez desse infinito Céu,
Desse Ródano Azul, dessa Floresta Negra!

Novembro – 1903

POSTO QUE JÁ...

Posto que já esse frescor, e esse
Brilho com que uma vez me seduziste,
Não fuljam tanto, a primavera existe,
E inda canta, e inda sonha, e inda floresce...

Tua beleza é um mármor que resiste
À dureza dos anos, e parece
Até que quanto mais ela envelhece,
Mais se enobrece, embora um pouco triste...

Nada perdeste, a palidez que tinhas,
Esse aspecto, e essa graça quase fátua,
E aquele gesto teu que é o de rainhas...

Bela do mesmo modo ainda tu és,
Ó estátua de Milo, antiga estátua,
Que tanto orgulho tens calcado aos pés!

Junho – 1904

DONZELAS

Donzelas que passais com esse gesto ameno,
E a doce palidez enfim d’uma cecém,
Em vão esse ar é grave, e esse aspecto é sereno,
Não me olheis, não me olheis, que não vos quero bem.

Sulamitas gracis e de rosto moreno,
E claras como a luz, e cheias de desdém,
Tendes perfume, sei, mas não tendes veneno,
Sois muito lindas, sois, não vos quero porém...

Lírios do campo com figura de mulher,
A minha decadência é um fruto caprichoso
Desta época sem luz que não sabe o que quer,

Não sabe nada; mas, ó candidez ideal,
Eu não posso querer senão o Monstruoso,
E o bem Maravilhoso, e o bem Fenomenal!

Janeiro – 1904

Fonte:
Emiliano Perneta. Ilusão e outros poemas. Re-edição Virtual. Revista e atualizada por Ivan Justen Santana. Curitiba: 2011

Conto Popular Palestino (O Caçador)


Era uma vez um homem quem era caçador, e seu nome era Caçador, também. Um dia, ele estava caçando quando encontrou um cervo. Quando mirou no animal, o cervo desapareceu. Ele mirou novamente e de repente o cervo se transformou num homem. Caçador ficou apavorado. O homem chegou perto dele e disse: "Por que você sempre caça cervos e pássaros? Você não sabe que eles têm um dono?" "Eu tenho que alimentar minha família, e esta é sua única forma", replicou Caçador.

"Qual o tamanho de sua família?" Perguntou o homem. "Dois meninos, uma menina, minha mulher e eu", respondeu Caçador, "e isso é o que nos mantêm vivos".

"Bem", disse o homem, "se eu lhe der dinheiro, você pára com isso?" "É claro", disse Caçador, "assim que eu tiver dinheiro, nunca mais caçarei". Neste momento, o homem pegou cinqüenta dinares e deu-os a Caçador. "Antes que você vá, qual é seu nome?" o homem perguntou. "Sou Caçador, e você?" disse Caçador.

"Chamo-me Abdala", respondeu o homem, "e eu tenho uma família, como você".

Caçador chegou em casa, limpou sua arma e encostou-a na parede. Ele disse a sua mulher que nunca mais iria caçar e que Deus lhe tinha dado uma fonte de dinheiro. Porém, não muito depois, o dinheiro acabou, e Caçador pegou novamente sua arma e saiu para caçar. Quando ele chegou na mata, encontrou o cervo no mesmo lugar e na mesma hora. Ele mirou, e imediatamente o animal transformou-se em Abdala. "Não tínhamos um acordo?" perguntou Abdala. "Mas o dinheiro acabou", disse Caçador, "e nós quase morremos de fome". "Você vê aquela rocha?" disse Abdala, "Sempre que você precisar de mim, apenas vá até ela e diga 'Ó irmão Abdala', e virei imediatamente." Então ele deu ao caçador outros cinqüenta dinares.

Caçador voltou feliz para casa. Quando ele deu o dinheiro a sua esposa, ela exigiu saber onde ele o tinha conseguido. Ele disse que tinha encontrado um amigo que lhe prometera ajuda todas as vezes que necessitasse; Caçador somente tinha que ir à rocha e chamá-lo. "Você é um homem pão-duro!" disse a esposa de Caçador, "Você deveria convidá-lo a vir a nossa casa, nós poderíamos comer juntos e reforçar essa amizade." Então Caçador voltou a rocha e chamou Abdala.

Após se desculpar por não convidá-lo, Abdala insistiu para que primeiro a família de Caçador fosse a sua casa. Após combinarem para às oito da manhã, Caçador voltou para casa para contar à esposa as novidades.

Caçador e sua família compraram um presente e se dirigiram à rocha com as crianças. Quando eles lá chegaram, encontraram Abdala e sua família esperando.

Cada um da família Abdala deu boas-vindas a um membro da família Caçador e eles sacudiram as mãos. Num piscar de olhos, eles estavam num mundo diferente.
A família Abdala preparou um banquete e convidou todos os vizinhos que trouxeram presentes e dinheiro para Caçador e sua família. Após ficarem algum tempo, Caçador e sua família juntaram os presentes e o dinheiro e foram para casa. Eles tinham dinheiro suficiente para construir uma boa casa. Poucos meses depois, num feriado, Caçador foi visitar seu amigo. Quando Abdala apareceu, ele segurou a mão de Caçador e num piscar de olhos, eles estavam um lugar diferente.

Abdala deu mil dinares a Caçador.

Caçador pegou o dinheiro e foi para casa. Sua esposa disse que eles tinham o suficiente para casar seu filho mais velho. Eles encontraram uma boa garota para ele e marcaram a data do casamento. É claro que Caçador convidou Abdala e sua família. Abdala disse a Caçador que preparasse uma sala separado para ele e outras vinte pessoas e não deixar ninguém se aproximar deles. No dia do casamento, todos da cidade foram convidados e Caçador fez o que Abdala pediu.

As pessoas podiam ver Caçador entrar na sala separada com bandejas cheias e sair com elas vazias, sem no entanto poderem ver o que estava lá dentro.

Após todos irem embora, Abdala perguntou a Caçador se eles poderiam dar o presente da noiva, e cada um deu um linda jóia. Antes de Abdala ir, ele disse a Caçador que todos estavam convidados para sua casa a semana toda.

Uma dupla de ladrões da cidade sabiam onde a noiva tinha colocado sua caixa de jóias, então entraram na casa e levaram. Quando Caçador e sua família voltaram para casa, descobriram o roubo. Todos os Caçadores pediram ajuda a Abdala, que os confortou e lhes disse que abrissem novamente a caixa das jóias. Eles encontraram o dobro de jóias que havia inicialmente. Abdala virou-se para Caçador e disse: "Na próxima vez, meu irmão, quando você for nos visitar, nós protegeremos sua casa".

Fonte:
Jô Andrada (seleção). Contos Populares do Mundo.

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) O Sítio do Picapau Amarelo - X – Saudades

Já estava cheio o palácio, não só de personagens do reino das Abelhas como de muitos outros reinos, inclusive o das Águas Claras.

Narizinho correu os olhos em procura dalgum conhecido. Viu logo o Major Agarra.

— Viva, Major! — exclamou, dirigindo-se a ele alegremente. — Como vão todos por lá?

Antes de dar notícias, o sapo demonstrou mais uma vez a sua gratidão pelo que a menina lhe havia feito, desculpando-se também de não ter aparecido no sítio de dona Benta, como prometera. Depois contou que o príncipe andava cada vez mais taciturno.

— Não se casou ainda?

— Nem casa. Tem recusado a mão das mais belas princesas do reino. Todos dizem que ele sofre de paixão recolhida. Ama alguém que não faz caso dele, é isso.

O coração da menina palpitou mais apressado.

— Não dizem por lá quem é essa que ele ama?

— Dona Aranha Costureira sabe quem é, mas guarda muito bem guardado o segredo. É uma senhora muito discreta.

— E o bobinho da corte, aquele tal gigante Fura-Bolos?

— Nunca mais foi visto. Com certeza teve o mesmo fim do Carlito Pirulito...

Narizinho refletiu uns instantes. Depois:

— Olhe, não se esqueça, quando voltar, de dizer ao príncipe que me viu aqui e que vou bem, obrigada. Diga-lhe também que qualquer dia receberá um convite para vir com toda a sua corte passar umas horas comigo no sítio de vovó, sim?

O Major prometeu não se esquecer do recado. E ia dizer mais

alguma coisa, quando a entrada duma libelinha mensageira o interrompeu.

— Salve, princesa! — exclamou ela.

— Viva! — correspondeu a menina franzindo os sobrolhos.

— Traz alguma mensagem para mim?

— Trago uma carta dum ilustre marquês. Ei-la.

Narizinho tomou a carta e leu:

Pesso-vos-lhe perdão da minha kovardia. Tom Mix stá aqui amolando a fhaca pra me matar. Tenha ddó deste infeliz, que se assina, com perdão da palavra, criado brigado
RABICO.

— O estilo, a letra, a ortografia e a gramática é tudo dele! Este bilhete corresponde a um perfeito retrato de Rabicó — ou Rabico, sem acento, como ele assina. Grandíssimo patife!

E voltando-se para a libelinha:

— Onde está ele?

— No capoeirão dos Tucanos Vermelhos, lá na terra dos lagartões. Prometeu-me um lindo lago azul em paga do meu trabalho de trazer esta carta.

Narizinho não pôde deixar de sorrir, pensando lá consigo: “Sempre o mesmo! Onde Rabicó já viu lago azul?” Mas não quis desiludir a mensageira, visto precisar dos seus serviços para a resposta. Rabiscou um bilhetinho a galope.

— Leve este bilhete a Tom Mix, mas depressa hein? E quando quiser aparecer lá pelo sítio de vovó, não faça cerimônia, ouviu ? Vá, vá!...

A libelinha vibrou as asas e zuct! desapareceu. Voou rápida como o pensamento. Chegou ao capoeirão dos Tucanos Vermelhos no instante em que os cinco minutos concedidos a Rabicó iam chegando ao fim e o carrasco lhe dizia, erguendo a faca:

— Está findo o prazo. Chegou a sua hora, marquês!

Mas Tom Mix teve de interromper o serviço. A libelinha sentara-se justamente na ponta do seu nariz, com o bilhete no ferrão.

Percebendo-o, Tom Mix tomou o bilhete e leu. Era ordem de perdão a Rabicó.

— Tem muita sorte o senhor marquês! — disse ele, enfiando a faca na bainha. — A princesa perdoa o seu crime e comuta a pena de morte nesta outra mais leve — e pregou-lhe um formidável pontapé.

— Uf! — exclamou Rábico depois que se viu livre do perigo. — Escapei de boa! Pontapé dum bruto destes não é nada agradável, mas mesmo assim deve ser mil vezes preferível às suas facadas...

Depois indagou, voltando-se para a mensageira:

— Onde está a princesa?

— No reino das Abelhas.

— E a condessa?

— Também lá, num canto, muito jururu nas suas muletas.

— Muletas? — repetiu Rabicó sem nada compreender. — Será que caiu do cavalo?

— Não sei, não tive tempo de indagar.

Rabicó permaneceu pensativo por alguns instantes. Depois disse:

— Está direito. Pode ir. Passe bem, muito obrigado.

A mensageira franziu o nariz.

— E o meu lago azul?

Rabicó, que tinha muito má memória para as suas promessas, fez cara de surpresa.

— Lago? Que lago?

— O lago azul que me prometeu em troca de levar a carta...

— Ah, sim... Mas menina, para que quer você um lago e logo um lago azul? Eu prometi um lago, é verdade, mas refletindo melhor vi que é um presente muito perigoso, pois você pode vir a morrer afogada. Em vista disso achei melhor substituir esse lago por esta sementinha de abóbora. Tome!

A libelinha ficou furiosa.

— Muito agradecida, senhor. Trato é trato. Faço questão do meu lago azul!

O marquês coçou a cabeça, embaraçado, lançando olhares gulosos para a abóbora que estivera comendo quando Tom Mix apareceu.

— Vamos deixar o caso para ser decidido amanhã — disse por fim. Agora não posso; tenho muito serviço. Imagine que Tom Mix me condenou a comer esta abóbora inteirinha — a mim, um marquês que está acostumado a só comer bombons e presuntos...
––––––––
Continua... A Rainha

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

Cruz e Souza (O Livro Derradeiro) Parte XVII


SE ESTALA A ESTROFE DE FOGO,

Se estala a estrofe de fogo,
Se explode a estrofe do Bem,
Como o verbo demagogo
Se estala a estrofe de fogo,
Não ceda o espírito ao rogo
Do Mal que os erros contêm,
Se estala a estrofe de fogo,
Se explose a estrofe do Bem!

AMOR!!...

Oferecido à Ilma. Sra. D. Pêdra
como prova de imensa amizade e profundo amor
que lhe consagra.
O Autor.

Amor, meu anjo, é sagrada chama
Que o peito inflama na voraz paixão,
Amo-te muito eu t’o juro ainda
Deidade linda que não tem senão!

Virgem formosa, d’encantos bela,
Gentil donzela, meu amor é teu.
Vou consagrar-te mil afetos tantos
Puros e santos qual também Romeu!

Flor entre as flores, a mais linda, altiva
Qual sensitiva, só tu és, ó sim.
Esses teus olhos sedutores, belos
De mil anelos, me pedirão a mim.

Anjo, meu anjo, eu te adoro e amo.
Por ti eu chamo nas horas de dor.
Sem ti eu sofro; um sequer instante
De ti perante só me dás valor.

Meu peito em ânsias só por ti suspira
Como da lira a vibrante voz!
Te vendo eu rio e senão gemendo
Vou padecendo saudade atroz!

Amor ardente de meu coração
Santa paixão em todo peito forte
Eu hei de amar-te até mesmo a vida
Deixar, querida, e abraçar a morte!

Ó FLORA, Ó NINFA DAS ROSAS

Ó Flora, ó ninfa das rosas,
Ó frescura dos morangos,
Abre as pupilas radiosas,
Dá-me as estrelas formosas
Do olhar repleto de tangos,
Ó Flora, ó ninfa das rosas,
Ó frescura dos morangos.

MORENA DOS OLHOS PRETOS

Morena dos olhos pretos
Dos olhos pretos, morena,
Escuta os vagos duetos
Morena dos olhos pretos,
Faremos ambos, tercetos,
Com esta esfera serena,
Morena dos olhos pretos,
Dos olhos pretos, morena.

EMBORA EU NÃO TENHA LOUROS

Embora eu não tenha louros
Como esses grandes heróis
Embora eu não tenha louros,
Talvez nos tempos vindouros
Traduza o poema dos sóis,
Embora eu não tenha louros
Como esses grandes heróis.

Ó ALZIRA, ALZIRA, ALZIRA

Ó Alzira, Alzira, Alzira
Estrela resplandecente,
Resplandecente safira,
Ó Alzira, Alzira, Alzira,
As vibrações desta lira,
Acorda do sono ardente,
Ó Alzira, Alzira, Alzira,
Estrela resplandecente.

AOS RELÂMPAGOS SULFÚREOS

Aos relâmpagos sulfúreos
Na esfera zigue-zagando
Como esses pobres tugúrios,
Aos relâmpagos sulfúreos
Se douram, brilham purpúreos
Fulguram de quando em quando,
Aos relâmpagos sulfúreos
Na esfera zigue-zagando.

À SOMBRA ESPESSA DE UM ÁLAMO

À sombra espessa de um álamo
Quando nasceu-me a paixão,
À sombra espessa de um álamo
Que de harpas senti, que cálamo
Por dentro do coração
A sombra espessa de um álamo
Quando nasceu-me a paixão.

ROSA

a A. Moreira de Vasconcelos

Et, rose, elle a vécu ce que
vivent les roses,
l’espace d'un matin.
(Malherbe)

Rosa — chamava-se a estrela
Daquelas flóreas paragens;
Era escutá-la e era vê-la
Metida em brancas roupagens

Todas de pregas e tufos,
De laçarotes e rendas,
Ou mesmo ouvir-lhe os arrufos
Ou surpreender-lhe as contendas

Nas lindas tardes radiadas
Por cores de silforamas
E sentir logo, inspiradas
Do amor, as férvidas chamas.

Ela era um beijo fundido
Ao cintilar de uma aurora,
Um sonho eterno espargido
Nos belos sonhos de Flora.

E tinha uns longes sublimes
De grande força lasciva,
A transudar, como uns crimes
Do sangue, da carne altiva.

Contava tudo... mas tanto,
Em turbilhões, em cascata,
Que recordava esse canto
Uma garganta de prata.

E quando os poetas, rapazes,
A viam passar, vibrante,
Mostrando as curvas audazes,
Do corpo todo radiante,

Diziam de entre os primores
De estrofes mais dulçurosas:
— Tu és a gêmea das flores,
Das rosas, perfeitas rosas.

Convulsionado e sem regra
O coração nos palpita;
Andas alegre e se alegra
A gente quando te fita.

Tens umas coisas estranhas
Nas refrações da pureza...
Umas finuras tamanhas...
Uma sutil gentileza...

Ficas rosada se um tico
Alguém te diz, de mais franco...
Mas como fica tão rico,
Tão belo o rubro no branco,

Nesse grácil e tão claro,
Sereno e cândido rosto
Que é mesmo um céu puro e raro
Das alvoradas de agosto.

Depressa cobre-te o pejo
A face nova e adorada,
De sorte que sem desejo
És — Rosa e ficas rosada.

Dos risos colhes a messe
E és doce como o conforto,
És casta como uma prece
Gemida ao lado de um morto.

Para que a dor não te obumbre
A glória de flores junca
Tua vida e, por isso, nunca
Nas mágoas terás vislumbre.

Permita o bom sol que inunda
De luz os bosques — permita
Que sejas sempre fecunda
De gozo e sempre bonita.

Agora, quando alguém passa
Por onde a estrela morava,
Olhando pela vidraça
Bem junto da qual bordava,

Repara um silêncio triste
Na sala — em crepes envolta,
Onde parece que existe
Profunda lágrima solta.

E sente por dentro d’alma
Aquela angústia que esmaga
Bem como em noites sem calma
A vaga esmaga outra vaga.

Apenas as flores lindas
Que vendo Rosa morriam
Com brejeirices infindas
De invejas que renasciam,

Sem mais inúteis ciúmes,
Abrem os frescos pistilos,
Jogando aos céus, em perfumes,
Os seus melhores sigilos.

No entanto a luz soberana
Do amor desfilam as rimas
Dos poetas — como um hosana
A quem já goza outros climas.

Rosa — chama-se a estrela
Daquelas flóreas paragens;
Era escutá-la e era vê-la
Metida em brancas roupagens,

Para exclamar: — Dentro dela
Existe a fibra gloriosa...
Ninguém viu coisa mais bela
Nem Rosa... tão bela rosa!...

Fonte:
Cruz e Sousa, Poesia Completa, org. de Zahidé Muzart, Florianópolis: Fundação Catarinense de Cultura / Fundação Banco do Brasil, 1993.

57a. Feira de Livros de Porto Alegre (Programação de 15 de Novembro, Terça-Feira)


Canal Futura na Feira - Umas Palavras. Exibição de documentário.
15/11/2011 - 10:00
: Será exbido documentário (Episódios: Diogo Mainardi, Mia Couto, Luiz Ruffato).

Encontro Potteriano
15/11/2011 - 14:00

UNIRITTER - 40 anos em contos, fotos e artes
15/11/2011 - 14:00
Editora: Uniritter

Tenda.doc: Coojornal
15/11/2011 - 14:30
Documentário recupera a trajetória de um dos mais importantes jornais nacionais durante o período da ditadura brasileira. Direção de Carlos Carmo

As Aventuras de Escaminha
15/11/2011 - 15:00
Editora: CORAG

Landell de Moura: o homem, o padre e o cientista
15/11/2011 - 15:30
A figura de Roberto Landell de Moura, gaúcho de Porto Alegre, precursor das comunicações, na perspectiva do homem, do padre e do cientista

Bate-papo com autor
15/11/2011 - 15:30

Contos Populares
15/11/2011 - 15:30
Contação e cantação de histórias com a equipe do QG

Presença de Tariq Ali
15/11/2011 - 16:00
Autor paquistanês fala sobre sua obra

O urso que não queria dançar - Bate-papo com a autora Ethel Peisker
15/11/2011 - 16:00

O cheiro do capim verde
15/11/2011 - 16:00
História que fala sobre solidão, encontros e partidas mediados pela metalinguagem dos meios de comunicação de massa

Literatura, História e Cultura Africana e Afro-Brasileira nas Escolas
15/11/2011 - 16:00
Editora: Uniritter

O Livrão e o Jornalzinho
15/11/2011 - 16:00
Editora: Libretos

Mídias Sociais
15/11/2011 - 16:30
Entre tantas atividades nas redes sociais, sobra tempo para a leitura? Como ela acontece? Palestra com lançamento do e-book gratuito

Caronhoto, a saga (1965-1983)
15/11/2011 - 16:30
Editora: WS Editor

A última notícia: Flávio Alcaraz Gomes e os diários de um repórter
15/11/2011 - 17:00
Mesa-redonda em homenagem ao jornalista e escritor, com discussão do livro Diários de um repórter

O Urso que não queria dançar
15/11/2011 - 17:00
Editora: Editora da Ulbra

O meio ainda é a mensagem? O futuro da escrita
15/11/2011 - 17:30
Convidados internacionais analisam as novas interfaces tecnológicas para a informação e comunicação a partir da célebre expressão cunhada por Marshall McLuhan "O meio é a mensagem"

A noite da borboleta dourada
15/11/2011 - 17:30
Editora: Record

Nóesis
15/11/2011 - 17:30
Editora: Alternativa

Coojornal, um jornal de jornalistas sob regime militar
15/11/2011 - 18:00
A trajetória do Coojornal, que obteve destaque nacional pela proposta editorial corajosa, num período de ditadura militar e luta pela democracia

Oficina aberta: Dicas de telejornalismo
15/11/2011 - 18:00
O correspondente internacional Flávio Fachel em bate-papo com o público

O Repórter Esso - A síntese radiofônica mundial que fez história
15/11/2011 - 18:30
Editora: EDIPUCRS

Cine Santander Cultural
15/11/2011 - 19:00
Sessão Comentada

Coojornal, um jornal de jornalistas sob regime militar
15/11/2011 - 19:30
Editora: Libretos

Tecnologia pra quê? Os dispositivos tecnológicos de comunicação e seu impacto no cotidiano
15/11/2011 - 20:00
Editora: Armazém Digital

Fonte:
http://www.feiradolivro-poa.com.br/

domingo, 13 de novembro de 2011

Trova Ecológica 44 - Wagner Marques Lopes (MG)

Carlos Drummond de Andrade (O Poeta Singrando Horizontes X)


POESIA

Gastei uma hora pensando em um verso
que a pena não quer escrever.
No entanto ele está cá dentro
inquieto, vivo.
Ele está cá dentro
e não quer sair.
Mas a poesia deste momento
inunda minha vida inteira.

VERBO SER

Que vai ser quando crescer?
Vivem perguntando em redor. Que é ser?
É ter um corpo, um jeito, um nome?
Tenho os três. E sou?
Tenho de mudar quando crescer?
Usar outro nome, corpo e jeito?
Ou a gente só principia a ser quando cresce?
É terrível, ser? Dói? É bom? É triste?
Ser; pronunciado tão depressa, e cabe tantas coisas?
Repito: Ser, Ser, Ser. Er. R.
Que vou ser quando crescer?
Sou obrigado a? Posso escolher?
Não dá para entender. Não vou ser.
Vou crescer assim mesmo.
Sem ser Esquecer.

UNIDADE

As plantas sofrem como nós sofremos.
Por que não sofreriam
se esta é a chave da unidade do mundo?
A flor sofre, tocada
por mão inconsciente.
Há uma queixa abafada
em sua docilidade.
A pedra é sofrimento
paralítico, eterno.
Não temos nós, animais,
sequer o privilégio de sofrer.

SUAS MÃOS

Aquele doce que ela faz
quem mais saberia fazê-lo?

Tentam. Insistem, caprichando.
Mandam vir o leite mais nobre.
Ovos de qualidade são os mesmos,
manteiga, a mesma,
iguais açúcar e canela.
É tudo igual. As mãos (as mães?)
são diferentes.

SOMEM CANIVETES

Fica proibido o canivete
em aula, no recreio, em qualquer parte
pois num país civilizado
entre estudantes civilizadíssimos,
a nata do Brasil,
o canivete é mesmo indesculpável.

Recolham-se pois os canivetes
sob a guarda do irmão da Portaria.

Fica permitido o canivete
nos passeios à chácara
para cortar algum cipó
descascar laranja
e outros fins de rural necessidade.

Restituam-se pois os canivetes
a seus proprietários
com obrigação de serem recolhidos
na volta do passeio, e tenho dito.

Só que na volta do passeio
verificou-se com surpresa:
no matinho ralo da chácara
todos os canivetes tinham sumido.

SONETILHO DO FALSO FERNANDO PESSOA

Onde nasci, morri.
Onde morri, existo.
E das peles que visto
muitas há que não vi.

Sem mim como sem ti
posso durar. Desisto
de tudo quanto é misto
e que odiei ou senti.

Nem Fausto nem Mefisto,
à deusa que se ri
deste nosso oaristo,

eis-me a dizer: assisto
além, nenhum, aqui,
mas não sou eu, nem isto.

QUARTO EM DESORDEM


Na curva perigosa dos cinquenta
derrapei neste amor. Que dor! que pétala
sensível e secreta me atormenta
e me provoca à síntese da flor

que não sabe como é feita: amor
na quinta-essência da palavra, e mudo
de natural silêncio já não cabe
em tanto gesto de colher e amar

a nuvem que de ambígua se dilui
nesse objecto mais vago do que nuvem
e mais indefeso, corpo! Corpo, corpo, corpo

verdade tão final, sede tão vária
a esse cavalo solto pela cama
a passear o peito de quem ama.

Carlos Drummond de Andrade (Reverência ao Destino)


Falar é completamente fácil, quando se tem palavras em mente que expressem sua opinião.

Difícil é expressar por gestos e atitudes o que realmente queremos dizer, o quanto queremos dizer, antes que a pessoa se vá.

Fácil é julgar pessoas que estão sendo expostas pelas ircunstâncias.

Difícil é encontrar e refletir sobre os seus erros, ou tentar fazer diferente algo que já fez muito errado.

Fácil é ser colega, fazer companhia a alguém, dizer o que ele deseja ouvir.

Difícil é ser amigo para todas as horas e dizer sempre a verdade quando for preciso. E com confiança no que diz.

Fácil é analisar a situação alheia e poder aconselhar sobre esta situação.

Difícil é vivenciar esta situação e saber o que fazer. Ou ter coragem pra fazer.

Fácil é demonstrar raiva e impaciência quando algo o deixa irritado.

Difícil é expressar o seu amor a alguém que realmente te conhece, te respeita e te entende. E é assim que perdemos pessoas especiais.

Fácil é mentir aos quatro ventos o que tentamos camuflar.

Difícil é mentir para o nosso coração.

Fácil é ver o que queremos enxergar.

Difícil é saber que nos iludimos com o que achávamos ter visto.

Admitir que nos deixamos levar, mais uma vez, isso é difícil.

Fácil é dizer "oi" ou "como vai?"

Difícil é dizer "adeus". Principalmente quando somos culpados pela partida de alguém de nossas vidas...

Fácil é abraçar, apertar as mãos, beijar de olhos fechados.
Difícil é sentir a energia que é transmitida. Aquela que toma conta do corpo como uma corrente elétrica quando tocamos a pessoa certa.

Fácil é querer ser amado.

Difícil é amar completamente só. Amar de verdade, sem ter medo de viver, sem ter medo do depois. Amar e se entregar. E aprender a dar valor somente a quem te ama.

Fácil é ouvir a música que toca.

Difícil é ouvir a sua consciência. Acenando o tempo todo, mostrando nossas escolhas erradas.

Fácil é ditar regras.

Difícil é seguí-las. Ter a noção exata de nossas próprias vidas, ao invés de ter noção das vidas dos outros.

Fácil é perguntar o que deseja saber.

Difícil é estar preparado para escutar esta resposta. Ou querer entender a resposta.

Fácil é chorar ou sorrir quando der vontade.

Difícil é sorrir com vontade de chorar ou chorar de rir, de alegria.

Fácil é dar um beijo.

Difícil é entregar a alma. Sinceramente, por inteiro.

Fácil é sair com várias pessoas ao longo da vida.

Difícil é entender que pouquíssimas delas vão te aceitar como você é e te fazer feliz por inteiro .

Fácil é ocupar um lugar na caderneta telefônica.

Difícil é ocupar o coração de alguém. Saber que se é realmente amado.

Fácil é sonhar todas as noites.

Difícil é lutar por um sonho.

Eterno, é tudo aquilo que dura uma fração de segundo, mas com tamanha intensidade, que se petrifica, e nenhuma força jamais o resgata.

Fonte da Imagem
http://elisleaoblogspot.com

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 394)

Jogos Florais de Santos 2011
Uma Trova Nacional

Só Deus, através da igreja,
que é sinal de salvação,
concede a paz benfazeja,
misericórdia e perdão!
–ALOÍSIO BEZERRA/CE–

Uma Trova Potiguar

O sol, eterno andarilho,
nas rotas do movimento,
abre as cortinas com brilho
no escuro do firmamento.
–HÉLIO ALEXANDRE/RN–

Uma Trova Premiada

1999 - Barra do Piraí/RJ
Tema: DEVANEIO - Venc.

A distância achando meios
para unir nossas metades,
somou nossos devaneios
e dividiu as saudades...
–MARIA NASCIMENTO/RJ

Uma Trova de Ademar

Numa caminhada inglória,
com minha alma enternecida;
pude ver a minha história
no retrovisor da vida.
–ADEMAR MACEDO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram

Angústia é a mágoa escondida
dos que, amargando o sofrer,
vegetam perto da vida
sem ter direito a viver.
–ELTON CARVALHO/RJ–

Simplesmente Poesia

Pódio da Trova
–JOSÉ OUVERNEY/SP–

Todo concurso de trova
cumpre esta finalidade:
pôr o trovador à prova
em originalidade.

Se não quiser ver na "cova"
sua obra, em tenra idade,
trilhe alguma estrada nova,
fuja da trivialidade.

Não se acomode, pesquise,
vá ao fundo da valise,
encontre o que ninguém vê.

Depois... é só constatar:
no pódio há sempre um lugar
guardado para você!

Estrofe do Dia

Nossas brigas cessou nossos carinhos
mas depois o amor curou as dores;
que um casal quando vive em mar de flores
muitas vezes se furam com os espinhos,
se eu feri os meus pés pelos caminhos
ao andar pelas zonas proibidas,
só você é quem cura tais feridas
pois em ti encontrei meu baluarte;
nossas brigas de amor já fazem parte
do romance maior de nossas vidas.
–WELTON MELO/PE–

Soneto do Dia

Renascer
–JOSÉ ANTONIO JACOB/MG–

Sei que andas longe, meu amor, eu sei...
E enquanto outros passeiam vou à igreja,
Todo sonho que existe já sonhei,
E quando rezo a minha voz gagueja...

Anos se foram e eu não me arredei
Da nossa pobre casa sertaneja,
Ainda repousa em cima da bandeja
O que era nosso e nunca mais usei.

Não te demores mais minha querida
Já arrumei a casa e colhi flores
Para enfeitar de aroma a nossa vida.

Este jazigo não é o teu fim!
Recompõe a tua alma e tuas dores
E vem nascer de novo para mim!

Fonte:
Textos enviados pelo Autor

Paraná em Trovas Collection - 2 - Adélia Maria Woellner (Piraquara/PR)

Emiliano Perneta (Ilusão) Parte 1


PRÓLOGO

Estrelas que luzis na abóbada infinita,
Inquietamente, assim, como um olhar que fascina,
Vendo-vos palpitar, meu coração palpita,
Mordido de paixão por essa luz divina...

Largos céus ideais, região diamantina,
Mirífico esplendor, ó pérola esquisita,
Quanta cobiça vã, que nunca se imagina,
Quanto furor enfim o ânimo me excita!

É o impossível, pois, que eu amo unicamente,
A névoa que fugiu, a forma evanescente,
A sombra que se foi tal qual uma visão...

E por isso também, por isso é que eu suponho
Que a vida, em suma, é um grande e extravagante Sonho,
E a Beleza não é mais do que uma Ilusão!

***

Plumas

***

DAMA

A noite em claro, o mundo inóspito, e dessa arte
Urdem contra a Beleza as coisas mais abjetas...
Reina o Pesar, mas como um Rei, por toda parte;
E ordena Herodes que degolem os poetas...

Cavaleiros por terra e plumas inquietas;
Esqueletos, que importa? a rir... Hei de vibrar-te
Aos quatro ventos, e com formas obsoletas,
Ó gládio nu! meu esotérico estandarte!

Delírio! assim no ar este sinal eu traço...
Escarótico pois? É bem! Vibrião do Ganges?
Combaterei, se for mister, num circo d’aço...

Combaterei, embora eu saiba que me perdes,
Com versos d’ouro, que reluzam como alfanjes,
Dama! com teu orgulho! ó dama de olhos verdes!

O MEU ORGULHO LEVANTOU-ME...


O meu orgulho levantou-me pelo braço:
“Olha, como esse abismo é infinito! Através
Do universo tu és grão de areia no espaço;
Mas tudo há de ficar um dia sob teus pés!”

A Vaidade me olhou: “Eu sou o antigo leito,
A púrpura ideal com que te cobrirei;
Trabalha que serás o Artista perfeito,
O Domínio, a Grandeza, o Poder e o Rei!”

A Glória me sorriu como uma primavera:
“Este diadema é teu, e este ramo d’hera
É para te cingir a fronte. Tu hás de ver!”

E eu cri nesse milagre de apoteoses,
E nunca poderei deixar de crer, ó deuses!
Porquanto se eu deixar, então antes morrer!

Março – 1905

VOZES

... bercé par ce continuel bourdonnement
qu’entendent ceux qui n’entendent d’autre voix.
Francis Jammes

Ó rumor ideal! Ó ilusão secreta!
Vozes tristes, vozes doces que me chamais,
Com a saudade cruel e a lembrança completa
De um outro mundo, que eu perdi, não acho mais...

Vozes antigas como as barbas d’um profeta,
Ó vozes de paixão, ó vozes de metais,
Ó vozes que feris a minha alma inquieta,
Vozes de multidão ruidosa sobre o cais...

Vozes lindas assim como um efebo louro,
Vozes, filhas, não sei, das entranhas do Ar,
Vozes d’Apolo e de marfim e prata e ouro...

Ó vozes de embriaguez, ardentíssimas vozes,
Vozes, bem como se quebrasse, ao longe, o mar
Sob penhascos nus e rochedos atrozes!...

QUANDO UM POETA NASCEU...

Quando um poeta nasceu, como o sol que desponte,
Logo por sobre o mar longas e brancas velas
Desfraldam-se; e por fim, tudo palpita, o monte,
O céu, a flor, a luz – ó róseas bambinelas!

É um barulho de rio, um murmúrio de fonte,
Uma palpitação universal de estrelas;
Um sussurro, um fragor de beijos quentes pelas
Ondulações sem fim e rubras do horizonte!

Menino, homem depois, de um assalto ele ganha
Os ermos, que transpõe, os vales e os barrancos,
Tendo sempre a sorrir nos olhos a Quimera...

Chegam os anos e vêm os cabelos brancos...
Todavia, ele só, em pé sobre a montanha,
Inda sonha, inda crê, inda deseja e espera!...

A MÃO...

Ao Dr. Claudino dos Santos

Tantas vezes, bem sei, e eu ouço, quando cismo,
Meu coração bater depressa, não o nego,
Mão invisível tem-me salvo, a mim, um cego,
Rolando como se rolasse num abismo...

Babilônias de horror, e montanhas de lodo,
E torres de Babel, sangrentas como lava,
Eu mais afoito do que um jovem deus, mais doido,
Eu passei sem saber por onde é que passava...

Sorrindo pelo ar, miraculosa e a esmo,
Tudo pôde abrandar, os ventos, e a mim mesmo,
Por um prodígio enfim que eu não explico, ateus!

...Donde veio essa mão nervosa, que me arranca
Dos abismos do mal, a Mão ideal e branca,
A mim, que nem sequer mais acredito em Deus?...


EMBARQUE PARA CITERA


De resto, quanto a mim, a mais doce quimera
É sempre essa ilusão de uma nova paisagem,
E por isso também, por isso quem me dera
Que a minha vida fosse uma grande viagem.

Quem me dera poder, à tarde, quando a aragem
Sopra ríspida, entrar na primeira galera,
E errando sobre o mar, ó rude marinhagem,
No outono, estar aqui, e ali, na primavera!

Quando o encanto, porém, sorri, quando me vejo,
Ora num coração, ora noutro, que esteve
A palpitar por mim de orgulho e de desejo;

Ah! quando vibro assim! É melhor, na verdade,
Que se andasse no mar, numa trirreme leve,
De prazer em prazer, de cidade em cidade...

1907

ORGULHO

Ao João Itiberê

Nasci para viver no meio do que é belo.
A miséria me causa um horror sem igual.
Eu não posso tocar de leve com o escalpelo
Numa ferida, sem que isso me faça mal.

Nasci para viver no meio d’um castelo,
Onde eu domine, mas com um gesto senhorial.
Não quero conhecer o mal, não quero vê-lo;
O mando d’um artista é um manto imperial.

Antes morda-me o Ódio assim do que a Piedade;
Antes quero rugir, do que chorar de dor;
E prefiro ao pesar, que o coração me invade,

E abate-me a tremer, tal qual uma criança,
O furor de brandir nas mãos, como uma lança,
Este Orgulho, que enfim é uma giesta em flor!
23–12–1902

Fonte:
Emiliano Perneta. Ilusão e outros poemas. Re-edição Virtual. Revista e atualizada por Ivan Justen Santana. Curitiba: 2011

Guilherme Voitch (Curitiba de Musas e Símbolos)

Festa da Primavera,
na Rua XV de Novembro,
no início do século 20

Ao comentar o frisson que Emiliano Perneta causava na Curitiba do início do século 20, o crítico literário Andrade Muricy afirmou que o poeta parecia sempre andar com uma banda de música à frente, tamanha a agitação do séquito de seguidores que ele arrastava pelas ruas da cidade. O deslumbramento atingiu seu ponto máximo em agosto de 1911, quando Perneta, depois de chegar em uma carruagem, foi coroado – literalmente –“príncipe dos poetas paranaenses” diante de uma multidão que se espremia no Passeio Público.

A idolatria se explica. Perneta foi o mais destacado em uma geração de escritores curitibanos que contou com Dario Vellozo, Silveira Neto, Júlio Perneta, Leôncio Correia, Romário Martins, entre outros. O grupo de poetas fez Curitiba ser uma espécie de capital do movimento simbolista no Brasil e revolucionou a vida cultural curitibana. “Eles foram a representação artística de uma cidade que se transformava”, afirma o historiador Marcelo Sutil.

A transformação era evidente. Em dez anos, de 1890 a 1900, a população de Curitiba tinha duplicado. A cidade via nascer uma nova elite econômica, respaldada pelo dinheiro do mate. Com essa elite, surgia uma maior preocupação estética. A cidade avançava rumo a dois extremos: o Batel e o Alto da Glória. As casas e casarões construídos já não eram as meias-águas, umas grudadas nas outras. Pela primeira vez, as residências eram construídas mais para dentro dos terrenos, separadas de seus vizinhos. “As casas passaram e ter jardins e serem vistas em três eixos, o que garantia uma série de melhorias sanitárias e de iluminação”, conta o arquiteto e professor da Universidade Positivo, Irã Dudeque.

A transformação atingia também os espaços públicos. Parques e praças eram construídos. Surgem nesse período o Passeio Público, a Praça Carlos Gomes e a Pracinha do Batel, cujo desenho fazia as referências aos temas gregos cantados pelos simbolistas.

A Rua XV de Novembro, consolidada como centro da cidade, recebia cafés, livrarias, cinemas e teatros e via nascer, onde antes era um depósito de lixo, a Universidade Federal do Paraná (UFPR).

A XV era o trajeto obrigatório de quem queria ver e ser visto e os simbolistas, no melhor estilo dândi, eram especialistas em chamar a atenção dos passantes pelo refinamento dos trajes.

Era a Belle Époque curitibana.

Na biblioteca

O grupo que mandou na cultura curitibana nas primeiras décadas do século 20 está intimamente relacionado a dois dos principais símbolos da cidade: o Gymnásio Paranaense, atual Colégio Estadual, e o Clube Curitibano. “Foi na biblioteca do Curitibano, que funcionava no centro da cidade, que esse grupo de amigos resolveu criar sua primeira revista literária, a Cenáculo”, explica a pesquisadora e professora aposentada da UFPR, Cassiana Lacerda.

A Cenáculo foi a primeira de muitas revistas em que os poetas publicavam suas obras. Por muito tempo, a própria revista do Clube Curitibano foi conduzida por Vellozo e Perneta. Era no Salão do Clube que Daryo Vellozo, principal orador do grupo, fazia suas apresentações e recebia autores de fora.

Mais tarde, Vellozo decidiu criar uma sede para as reuniões dos poetas e seus pupilos. Em sua própria chácara, na Vila Isabel, foi levantado o Templo das Musas, sede do Instituto Neo-Pitagórico.

O instituto, mantido pelo genro de Vellozo é um dos poucos locais a conservar obras e documentos dos simbolistas e do tempo da Curitiba das musas.

Movimento deu início à literatura curitibana

Para o crítico literário Wilson Martins, o movimento simbolista marca uma espécie de nascimento da literatura curitibana. “Foi um movimento organizado que produziu bastante e teve relevância nacional”. Os autores curitibanos produziram algumas das principais revistas literárias nacionais, entre elas a Cenáculo, Victrix, A República, Palium e Jerusalém. Para Martins, o principal autor do grupo é mesmo Emiliano Perneta. “É um grande poeta e o que teve, merecidamente, mais destaque nacional.”

Na visão da professora aposentada da Universidade Federal do Paraná Cassiana Lacerda, uma das principais pesquisadoras do simbolismo brasileiro, o culto a Perneta, no entanto, foi prejudicial ao poeta. “A província o idolatrou pelo que ele não merecia e não o idolatou pelo que ele merecia”, explica. O melhor da produção do autor, segundo ela, foi feito quando ele estava longe de Curitiba, em contato com escritores de maior relevância. Mais do que pela obra em si, porém, Perneta era comemorado em Curitiba pelo seu reconhecimento nacional.

A influência dos simbolistas durou até a década de 30, quando o modernismo vindo de São Paulo e do Rio de Janeiro passou a ditar as regras na produção literária.

O simbolismo foi uma típica manifestação cultural da passagem do século. Teve como característica a sofisticação, o culto a valores aristocráticos, usados como uma reação ao pensamento racionalista, o misticismo e a influência de culturas orientais.

Fonte:
Gazeta do Povo

Amosse Mucavele (Relógio)

Pintura de Salvador Dali
Á Marilía mulher que o tempo levou

É impossível que eu durma sem dar uma palmada no teu vertiginoso trilho

Impossível é, o meu acordar sem saudar a sua majestade voz

É impossível que eu me sente a mesa antes de namorar a sua redonda face

Impossível é, que eu vá ao serviço na sua ausência

Resumindo é impossível que eu viva sem ti, pois você é a menina dos meus olhos, de beleza infindável, incontornável é a sua sabedoria secular.

O teu silêncio ensina a pontualidade a falar todas as línguas

Querida ensina-me a fabricar verdades a hora certa. sabe admira-me bastante este seu jeito de ser e estar. mulher de mil e uma face pintadas a mesma cor ..

No pulso da parede que assombra a sala você declara o seu amor de forma leve, e eterna

Na parede do meu braço nossos sentimentos percorrem 365 dias sem intervalo, acendem o brilho das estrelas que iluminam o mundo.

A surdez dos ponteiros apontam o gatilho a nudez dos números, pois a muito que anda teso

Nós impávidos, assistimos a interminável guerra dos dois amantes

Que a cada hora carregam a certeza da morte dos sonhos e o nascer da nova aurora

Eu e você meu amor , escalaremos a montanha que cresce a cada olhar esboçado a compasso No cronômetro da distância que tem a nossa cara: o tempo - onde a hora se enamora com os minutos e os segundos.

Fonte:
Texto enviado pelo autor

Thomas Bonnici (Lançamento do livro “Multiculturalismo e Diferença”)


Thomas Bonnici é organizador deste livro, que conta com outros autores do Brasil e outros países.
––––––––––-
Não é suficiente falar de identidades de raça, classe e gênero; devemos também debater as identidades em sua relação com o poder, ou seja, até que ponto cada um se identifica com as forças de dominação e participa em atividades que reforçam a predominância e a exploração que a acompanha.
(T. Córdova: Power and Knowledge: Colonialism in the Academy)
(citação da contra-capa)

––––––––––-
(O texto a seguir se encontra na primeira orelha do livro)

No mundo altamente globalizado contemporâneo, a presença de imigrantes, outrora colonizados, e seus descendentes nas metrópoles imperiais, tornou-se um fator constantemente conflituoso diante de paradigmas coloniais ainda enraizados nos povos europeus. Multiculturalismo e diferença mostra como a literatura representa a afirmação e a negociação da identidade não-européia no contexto de políticas multiculturais de países hegemonicamente brancos, caracterizados por atitudes de racismo e outremização. Vários autores brasileiros e estrangeiros discursam sobre a literatura contemporânea no Reino Unido, Malta, Nigéria, Austrália, Brasil e outros países latino-americanos e analisam as tentativas de negociação identitária para uma maior conviviabilidade na diversidade.

Multiculturalismo e Diferença é dividido em três partes. Precedendo a análise de várias obras literárias, principalmente da primeira década do século XXI, na primeira parte discutem-se os problemas levantados pelo multiculturalismo e pela literatura escrita por autores ‘negros’ britânicos. Baseada nos termos do parâmetro latino-americano da antropofagia, a identidade do não-europeu é afirmada no contexto hostil da exclusão e da outremização. Analisam-se na segunda parte os romances britânicos Dentes Brancos (2000), de Zadie Smith; The White Family (2002), de Maggie Gee; Fruit of the Lemon (1999) e Pequena Ilha, de Andrea Levy; Foreigners (2007) e In the Falling Snow (2009), de Caryl Phillips; e Um lugar chamado Brick Lane (2003), de Monica Ali. Nestes romances o sujeito diaspórico adota uma variedade de atitudes e comportamentos, a partir da assimilação à subversão, para remembrar a sua subjetividade rompida pela hegemonia branca. A terceira parte faz surgir vozes multiculturais da Nigéria, Austrália e Malta, verificando a negociação cultural envolvendo outras culturas e povos.

A discussão sobre o ensino da literatura estrangeira no Brasil, a representação do excluído e a ética de inclusão constituem o Epílogo. O ensino da literatura jamais é uma atividade neutra, mas altamente política, especialmente em sua dimensão de conscientização e de afirmação identitária.

Fonte:
BONNICI, Thomas (organizador). Multiculturalismo e diferença: narrativas do sujeito na literatura negra britânica e em outras literaturas. Maringá/PR: EDUEM, 2011.

Thomas Bonnici e Helliane Christine Minervino de Oliveira Corrêa (Representações Multiculturais na Literatura Infantil Inglesa Contemporânea)


(excerto do artigo dos autores acima apresentado no CELLI – Colóquio de Estudos Linguísticos e Literários, na Universidade Estadual de Maringá)

A questão do multiculturalismo é amplamente discutida na Inglaterra contemporânea devido ao fato de a nação inglesa ser constituída por uma vasta gama de culturas e identidades.

Hall (2001) assevera que a mídia britânica, TV, rádio, jornais, revistas e Internet, demonstra acentuado stereotyping quando se refere às comunidades negras. O autor jamaicano, em 1971, já chamava a atenção para o fato, em entrevista à BBC inglesa, afirmando que havia algo de radicalmente errado na forma como os imigrantes negros eram apresentados pela mídia. Hall defende que não é apenas uma questão que vai ser resolvida colocando “mais alguns rostos negros na tela ou fazer um ou dois documentários sobre os problemas dos imigrantes” (p.1), mas deve-se rever as estruturas dos meios de transmissão e difusão. Ele completa Os meios de comunicação em massa desempenham um papel crucial para definir os problemas e questões de preocupação pública. Eles são os principais canais de discurso público em nossa sociedade segregada. Eles transmitem estereótipos de um grupo para outros grupos. Eles anexam sentimentos e emoções a problemas. Eles determinam os termos em que os problemas são classificados como ‘centrais’ ou ‘marginais’ (p.2).

Hall acredita que a situação atual se explica devido à invisibilidade dos negros na história da Grã-Bretanha por séculos. O autor afirma que os negros foram o componente oculto no destino e no sucesso da Grã-Bretanha como uma potência imperialista mundial e que, quando esse poder começou a diminuir, os negros vieram em grandes números para viver e trabalhar naquela que acreditavam ser a “pátria mãe”, a qual, no entanto, ao invés de acolhê-los, os excluía.

Segundo Hall, o que é mostrado na mídia sobre os negros pode levar a um tipo de doutrinamento em massa. O autor cita
Quando os negros aparecem em documentários ou noticiários, estão sempre associados a alguma ‘questão de imigração’: eles têm que estar envolvidos em algum tipo de crise ou drama para tornarem-se agentes visíveis para a mídia. Mas programas centrados em problemas como estes, selecionam e processam os participantes com base em fórmulas muito rígidas. Os negros participam, então, de programas da mídia definidos pelos meios de comunicação como ‘problemas relacionados aos negros’[...] É muito raro ver programas onde os próprios negros tenham definido o problema da maneira como eles o vêem (p.3).

Além dos documentários e noticiários, Hall também ressalta que os programas de entretenimento e drama reforçam os estereótipos e acredita que eles exerçam um impacto ainda maior na formação de atitudes em relação a outros grupos. O autor afirma que os programas infantis são ‘whiter than white” [mais brancos que o branco] e os filmes mostram mais vilões negros que brancos e mais famílias negras problemáticas.

O autor adverte que se deve ter consciência de que esses programas educam, mesmo que informalmente e que, ao se lidar com problemas e situações da vida real na ficção, eles podem criar imagens que podem perfeitamente desencadear sentimentos e emoções em situações reais.

Telles (2003) cita uma pesquisa realizada em 1995 que comprova a existência de estereótipos raciais no Brasil. Idéias como “as únicas coisas que os negros sabem fazer bem são música e esportes”, foram confirmadas por uma considerável parcela da população, seja ela representada por negros, brancos ou pardos. O autor afirma, portanto, que “tanto negros quanto brancos expressam estereótipos semelhantes sobre os negros” (p.237). Bailey (2002, apud Telles, 2003) sugere que isso se deve à falta de uma consciência de grupo racial no Brasil. Nos Estados Unidos, a situação é diferente, conforme menciona Telles (2003). Segundo o autor, ao comparar a questão “quem são mais inteligentes, os brancos ou os negros?”, 83% dos brasileiros afirmaram não haver diferença quanto ao nível de inteligência. Nos Estados Unidos, apenas 42% dos brancos acreditavam não haver diferença contra 57% que indicavam que os brancos eram mais inteligentes. Entre os negros, 66% apontavam não haver diferença, 18% acreditavam que os brancos eram mais inteligentes e 16% que os negros eram mais inteligentes.

Na literatura, estudos demonstram a presença de estereótipos raciais em obras direcionadas ao público infantil. Gouvêa (2005), desenvolveu um estudo sobre as imagens do negro na literatura infantil brasileira nas primeiras décadas do século XX, o período escolhido se deveu ao fato de haver considerável produção artística e científica nacionais, a partir de 1920, discutindo a identidade brasileira. A autora observou que até a década de 1920, havia a ausência de personagens negros ou, quando apareciam, eram remetidos ao recente passado escravocrata. As obras analisadas demonstraram um deslocamento: os personagens negros tornaram-se mais freqüentes e descritos de forma a caracterizar uma suposta integração racial.

No entanto, Gouvêa (2005) conclui que os negros ainda apareciam como “personagens estereotipados, descritos a partir de referência culturais marcadamente etnocêntricas que, se buscam construir uma imagem de integração, o fazem a partir do embranquecimento de tais personagens” (p.1). A autora acredita que a literatura analisada dirige-se e produz um leitor modelo identificado com os personagens e as referências culturais brancas.

Além dos negros, outros grupos que representam minorias são estereotipados. Segundo Brah (2002), o termo ‘minoria’ (minority) foi aplicado primeiramente para categorizar cidadãos britânicos de ascendência africana, caribenha ou asiática. A autora esclarece que, na verdade, era um “código pós-colonial que atuava como um substituto polido, cortês para ‘pessoas de cor’ ” (p.186). Consoante Jongman & Schmid (1994), um grupo minoritário (minority group) refere-se a “um grupo numericamente inferior comparado ao restante da população de uma nação, que estão em uma posição não dominante e cujos membros – sendo nascidos naquele país – possuem características étnicas, religiosas ou lingüísticas que os distinguem do resto da população. Os autores ressaltam, porém, que às vezes, o grupo chamado minoritário pode representar a maioria numérica, mas ocupam a posição de um grupo minoritário, o que pode ser determinado a partir de fatores referentes a algum tipo de discriminação. Brah (2002) sustenta que mesmo com as tentativas de mudança no conceito de ‘minoria’, há, ainda, uma forte tendência em se usar o termo para descrever apenas grupos étnicos e raciais. A autora entende que, ao se falar em referências numéricas, “reduz-se o problema das relações de poder a [apenas] um problema de números” (p.186).

Banks (1991, apud Dietrich & Ralph, 1995) aponta que até o ano 2020, um em cada dois estudantes nos Estados Unidos será uma pessoa de um grupo chamado minoritário. Verifica-se, então a necessidade de a literatura, principalmente a infantil, abordar valores e experiências de outros grupos étnicos e culturais, já que, muitas sociedades atualmente não podem mais ser consideradas homogêneas.

Apesar de ser reconhecida a importância de uma literatura multicultural na formação da criança, pertencente ou não um grupo minoritário, pesquisas revelam que há uma grande carência de obras autenticamente multiculturais na literatura infantil, incluindo clássicos, obras premiadas e bestsellers. Muitas vezes, percebe-se a ausência total de personagens ou temas que envolvam outras culturas, outras, quando aparecem, são apresentados de maneira estereotipada.

Adams (1981, apud Pirofski, 2003) analisou 57 obras publicadas entre 1697 e 1981, 25 clássicos e 32 livros premiados, a fim de verificar a representação multicultural nas obras. A autora levou em consideração fatores como idade, gênero, situação sócio-econômica, religião, deficiências físicas, ascendência étnica, cultura regional e língua. Desses fatores, apenas os relacionados à idade, situação sócioeconômica e cultura regional apresentaram aspectos mais favoráveis. Em Mary Poppins, um clássico da literatura infantil, foi encontrado um exemplo negativo no que se refere à língua usada por um personagem Afro-americano em uma viagem de Mary Poppins ao Pólo Sul. A mulher diz a Mary Poppins:
Ah bin ‘specting you a long time Mar’Poppins…You bring dem chillum dere into my li’l house for a slice of watermelon right now. My but dem’s very white babies. You wan’ use a lil bit black boot polish on dem (Adams, 1981 apud Pirofski, 2001, p.19).

A autora encontrou outras distorções referentes a dialetos Afro-americanos, principalmente nos clássicos. A categoria que apresentou menor nível de aceitabilidade, segundo Adams (1981, apud Pirofski, 2001), foi relacionada à ascendência étnica dos personagens que não eram anglo-saxões. A autora constatou estereótipos negativos com respeito à aparência dos personagens. Ela cita o personagem Prince Bumpo, um Afroamericano, no livro Doctor Doolittle como exemplo de estereótipo pejorativo. O personagem diz a Doctor Doolittle:

Se você me transformar em branco, eu poderei ir até a Bela Adormecida. Eu lhe darei metade do meu reino e qualquer outra coisa além dele...Nada mais me satisfará [mais que isso]. Eu preciso ser um príncipe branco (Gary, 1984, apud Pirofski, 2001, p.20).

Gary (1984, apud Pirofski, 2003) também observou a presença de estereótipos negativos na descrição física de Afro-americanos, como a ilustração de um garoto com a cabeça maior que o normal, e sua mãe, obesa e com traços exagerados, ou uma garota com lábios e nariz de proporções grandes. Gary (1984) também encontrou exemplos de stereotyping negativo relativos ao status da comunidade Afro-americana. O lugar habitado pela comunidade era descrito como desorganizado, superpopulado e em condições precárias.

Reimer (1992, apud Pirofski, 2003) pondera que os livros infantis tendem a não apresentar grupos minoritários, os personagens principais são basicamente brancos. Quando há a presença de personagens pertencentes às minorias, eles tendem a retratar estereótipos de Afro-americanos, hispânicos ou asiáticos, por exemplo.

De acordo com o Cooperative Children’s Book Center, da Universidade de Wisconsin, dos 4.500 livros infantis publicados nos Estados Unidos em 1997, 88 foram escritos ou ilustrados por Afro-americanos, 88 por autores latinos ou abordavam temas relativos aos latinos e 66 eram sobre os asiáticos. A partir desses dados, podemos observar que os números representam apenas 5,3% dos livros publicados. Esses números, ou outros até menores, provavelmente representam a realidade em muitos outros países do mundo. Pirofski (2003) acredita que um dos fatores que colaboram para o presente estado da questão é a escassez de autores pertencentes aos grupos minoritários, bem como de membros desses grupos no júri de conceituados prêmios outorgados em várias partes do planeta.

Independente da sociedade à qual pertençam, as crianças estão expostas a atitudes racistas. Essas atitudes, muitas vezes, perpetuam-se na literatura e na mídia levando a criança a uma imagem distorcida da realidade. No entanto, pouco a pouco, essas imagens, esses estereótipos com relação às raças, às minorias, à mulher e tantos outros, podem ser aceitos como fatos reais.

Vandergrift (1993) compara a história do desenvolvimento da literatura infantil multicultural às teorias feministas no sentido de que o foco primeiro de ambas seria na necessidade do sujeito em definir a si mesmo ao invés de ser definido pelo outro. Christian (1985, apud Vandergrift, 1993) corrobora:
Como pobre, mulher e negra, a mulher Afro-americana teve que gerar a sua própria definição para sobreviver, pois ela descobriu que foi forçada a negar seus aspectos essenciais para adequar-se à definição de outros. Se definida como negra, sua natureza de mulher era freqüentemente negada; se definida como mulher, sua negritude era muitas vezes ignorada; se definida como classe trabalhadora, seu
gênero e raça eram silenciados. É primariamente em suas expressões de si mesma que ela poderia ser sua [própria] totalidade” (p. 355).

Vandergrift levanta a questão de como jovens negras reagem ao serem definidas por outros quando são pobres, mulheres e destituídas de poder. O autor sustenta que há a carência de uma literatura que propicie “poderes básicos de linguagem expressiva que permita a um [indivíduo] que defina e crie a si mesmo” (p.355).

O autor postula que os estudos da teoria feminista contribuem para a discussão da literatura infantil multicultural. De acordo com Vandergrift, na primeira parte do século XX, muito pouca literatura infantil ou juvenil multicultural foi produzida nos Estados Unidos, e provavelmente, na Inglaterra, no auge do imperialismo e colonialismo. Apesar desses grupos multiculturais possuírem suas estórias, as editoras não se interessavam em tornar essas estórias disponíveis para a cultura dominante, os jovens americanos tinham acesso a publicações sobre culturas de terras distantes, mas muito pouco sobre as culturas presentes em sua própria sociedade. Segundo o autor, algumas seleções de contos folclóricos poderiam ser encontradas, mas obras com retratos realistas de outras culturas que não as sobre a cultura da classe média branca raramente encontravam-se disponíveis: “a cultura da classe branca dominante é apresentada como se todo o mundo fosse um grupo homogêneo ou, ao menos, como se todos aqueles que diferem sejam indignos de inclusão, e, sendo assim, permanecem invisíveis” (p. 357)

Pirofski (2003) descreve vários estudos que revelam resultados semelhantes, como apresentamos anteriormente. Os estudos demonstram que apesar de um número maior de obras infanto-juvenis multiculturais entre 1950 e 2000, se comparados com a primeira metade do século XX, personagens representantes de outras raças e grupos que não da classe branca dominante ainda permanecem escassos.

Nos livros analisados neste trabalho, o quadro se repete: apenas um personagem negro é apresentado e nominado, Ezzie, no livro Who’s Afraid of the Big Bad Book?. É um personagem secundário, amigo de Herb, o protagonista, e que aparece em apenas duas ilustrações. O personagem aparece de forma positiva, brinca com Herb e colabora com ele no final, colocando os personagens dos contos de fadas nos livros aos quais pertenciam originalmente e ajudando Herb a limpar seus rabiscos..

A outra obra, Rapunzel - a Groovy Fairy Tale, apresenta apenas ilustrações de duas pessoas da raça negra, a primeira é um aluno que aparece no refeitório com cara de assustado, sendo servido pela temível Aunt Esme, e a segunda pessoa é um dos músicos da banda de Roger, que aparece em duas ilustrações. No entanto, nenhum dos dois tem participação ativa ou alguma fala ou menção é dedicada a eles.

Dos 141 personagens, entre principais e secundários, identificados nas obras, apenas um pode ser contabilizado, e como personagem secundário, e das 1253 ilustrações, apenas 5 apresentam personagens negros, ou seja, 0,4% do total. Nenhuma mulher da raça negra faz parte das estórias ou é ilustrada nas obras, o que retrata uma total falta de representatividade da combinação gênero feminino e raça negra no corpus analisado.

Esses resultados reforçam estudos desenvolvidos previamente, que atestam que o cânone literário infantil é dominado por obras que relatam as estórias de brancos do sexo masculino ( Vandergrift, 1993).

Quanto à representatividade de outras culturas, o quadro muda timidamente. No livro The Story Giant, de Brian Patten, escrito em 2004, dois dos personagens principais são representantes de outras culturas: Hassan, que é árabe, e Rani, que é indiana. A presença de personagens multiculturais é positiva, todavia, algumas imagens podem ser detectadas ao longo da descrição dos personagens que os colocam em contraste com os personagens de Betts, uma americana e de Liam, um inglês.

Em nenhuma das outras obras há a presença de personagens representantes de outras culturas ou raças, resultado que confirma estudos feitos previamente que constatam ainda haver uma carência de obras multiculturais na literatura infantil (Vandergrift, 1993, Pirofki, 2003), mesmo considerando que na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos, uma considerável parte da população é constituída de representantes de outras culturas.

Sumarizando, ao analisarmos a representação multicultural nas obras, constatamos que ainda apresenta-se significativamente modesta. Poucos personagens representam outras culturas que não a branca ocidental. Menos de 0,5% é representativo da raça negra, sendo que desse número, apenas um personagem é dotado de nome e tem alguma participação ativa na estória. Nenhuma mulher negra aparece nas narrativas e nem mesmo nas representações pictóricas. O achado corrobora a denúncia de Vandergrift (1993) que afirma que há uma preocupante carência na representação da mulher negra na literatura infantil.

Apenas uma obra apresenta personagens de outras culturas, um árabe e uma indiana. Embora, em alguns momentos detectam-se certas imagens sutilmente estereotipadas, a mensagem contida na estória está a favor da construção de uma maior integração entre as culturas e uma aceitação das diferenças. Os resultados sugerem que esforços ainda são necessários por parte das editoras e autores para proporcionar às crianças uma literatura que dialogue com todas as crianças e que reflita a coexistência de diversas comunidades em uma mesma sociedade.

REFERÊNCIAS

BRAH, A. Cartographies of Diaspora: Contesting Identities. London: Routledge, 2002.

DIETRICH, D. & RALPH, K. S. Crossing Borders: Multicultural Literature in the Classroom. The Journal of Educational Issue of Language Minority Students, v. 15, 1995.

GOUVÊA, M. C. S. Imagens do negro na Literatura Infantil Brasileira: análise historiográfica. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 31, n.1, p.77 – 89, janeiro/abril 2005.

HALL, S. Revealed: How UK Media Fuelled Race Prejudice. Chronicle World, 2001. Disponível em http://www.thechronicle.demon.co.uk .Acesso em: 8/5/2006.

JONGMAN, A. J. & SCHMID, A. P. Monitoring Human Rights. Manual for Assessing Country Performance. Leiden: LISWO, 1994.

PATTEN, B. The Story Giant. London: Harper Collins, 2004.

PIROFSKI, K. Multicultural Literature and the Children’s Literary Canon. EdChange, 2001. Disponível em http://www.medchange.org/multicultural/papers/.html. Acesso em: 5/5/2006.

PIROFSKI, K. Multicultural Representations in Basal Reader Series. Edchange, 2003. Disponível em http://www.medchange.org/multicultural/papers/basalreader.html. Acesso em: 5/5/2006.

TELLES, E. Racismo à Brasileira: uma nova perspectiva sociológica. Trad. Nadjeda Rodrigues Marques e Camila Olsen. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003.

VANDERGRIFT, K. E. A Feminist Perspective on Multicultural Children’s Literature in the Middle Years of the Twentieth Century. Library Trends, v. 41, p.354 – 377, winter 1993.

Fonte:
CELLI – Colóquio de Estudos Linguísticos e Literários. 3, 2007, Maringá. Anais... Maringá, 2009, p. 455-463.

Thomas Bonnici


Possui graduação em Letras Anglo-Portuguesas pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Jandaia do Sul (1984), graduação em Filosofia - Faculdades Associadas do Ipiranga (1983), graduação em Inglês e Literaturas em Língua Inglesa, Literatura Italiana e Latina - Royal University of Malta (1964), graduação em Filosofia - Royal University of Malta (1962); doutorado em Teoria da Literatura pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (1988).

Professor da Universidade Estadual de Maringá, onde leciona as literaturas em lingua inglesa.

Editor da Acta Scientutarium: Language and Culture.

Publicações em Acta Scientiarum (UEM), Teoria e Prática da Educação (UEM), Diálogos (UEM), Gragoatá (UFF), Revista de Letras (UNESP), Revista Letras (UFPR), Mimesis (USC, Bauru).

Desenvolve pesquisa sobre racismo, diáspora e multiculturalismo nas literaturas da África do Sul e do Caribe e na Literatura Negra Britânica.

Publicações:
– Short stories: An Anthology for Undergraduates (2005);
– Poetry of the Nineteenth and Twentieth Centuries (2004, 2010);
– Pós Colonialismo e Literatura: Estratpegias de Leitura (2000; 2005);
– Conceitos-chave da Teoria Pós-Colonial (2005);
– Teoria Literária: Abordagens Históricas e Tendências Contemporâneas (em parceria, 2000, 2004 e 2009);
– Teoria e Crítica Literária Feminista (2007);
– Resistência e Intervenção nas Literaturas Pós-Coloniais (2009)

Fontes:
Currículo Lattes
BONNICI, Thomas (organizador). Multiculturalismo e diferença: narrativas do sujeito na literatura negra britânica e em outras literaturas. Maringá/PR: EDUEM, 2011.

Quintino Lopes Castro Tavares (Multiculturalismo e Diferença)


(excerto do artigo do autor “Multiculturalismo”)

A diferença é um dos conceitos centrais do multiculturalismo. É necessário saber como tratá-la, qual lugar ela ocupa no sistema social, se é um fator de enobrecimento ou empobrecimento, um trunfo ou uma ameaça. Não se trata simplesmente de um conceito filosófico ou uma forma de semântica. Nas palavras de Semprini, “a diferença é antes de tudo uma realidade concreta, um processo humano e social, que os homens empregam em suas práticas cotidianas e encontra-se inserida no processo histórico”.32

Conforme determinada teoria do liberalismo (L1), as pessoas têm iguais liberdades de ação, sob a forma de direitos fundamentais e, nos casos litigiosos, os tribunais decidem a quem corresponde o direito ou os direitos. Deste modo, a igual consideração toma corpo apenas sob a forma de uma autonomia protegida juridicamente de que cada um pode se valer para construir e/ou levar adiante seu projeto de vida. Trata-se do Liberalismo do tipo desenvolvido por Rawls ou Dworkin, que exige um sistema jurídico eticamente neutral, capaz de assegurar a cada um oportunidades iguais para defender sua própria concepção do bem.

A tradição liberal democrática de direito (L1), como já dissemos, se constituiu como um ideal de liberdade, igualdade e direitos universais que, quando muito, apenas parcialmente conseguiu realizar seu intento, uma vez que se comprometeu quase que absolutamente com os direitos individuais e, a partir destes, com um Estado neutro, sem projetos culturais, religiosos ou qualquer espécie de objetivos coletivos para além da liberdade das pessoas, segurança, bem-estar e seguridade social.

Mas a compreensão do multiculturalismo pode ser estendida e alcançar um liberalismo mais ampliado (L2), que possibilita um Estado comprometido com a sobrevivência e o florescimento de grupos particulares, de modo que os direitos básicos de seus membros possam realmente ser protegidos. Neste sentido, a política e a ética da dignidade humana são aprofundados e ampliados, de maneira que o respeito das individualidades possa ser compreendido de forma a não envolver somente o respeito ao potencial humano universal de cada um, mas também o respeito ao valor intrínseco das diferentes formas culturais, mediante o qual cada indivíduo reanima sua humanidade e expressa sua personalidade própria e única. Assim, o multiculturalismo, longe de se guiar por metas antiliberais, se insere no próprio contexto do liberalismo (L2), mas na perspectiva daquele que espera do Estado o asseguramento dos direitos fundamentais em geral, tanto quanto a intervenção em prol da sobrevivência e fomento do marco cultural em que cada indivíduo, preferencialmente os menos favorecidos, encontra-se inserido e com o qual se identifica. Trata-se de uma forma liberal-universalista que considera entre os seus princípios básicos a cultura e o contexto cultural que dignificam os indivíduos.

Se aceitarmos que a maioria precisa de um marco cultural seguro para dar sentido e orientação a seu plano de vida, então um contexto cultural seguro faz também parte dos artigos primários básicos para as perspectivas das pessoas com vista à vida boa. Deste modo, os Estados democrático-liberais têm a obrigação de ajudar os grupos em desvantagem, visando permitir a eles preservar a sua cultura contra as interferências das culturas majoritárias ou “de massas”.

Reconhecer a diferença exige não só o respeito à singularidade de cada um, independentemente do marco no qual se encontra inserido ou é identificado, mas também a consideração à sua visão de mundo, inseparável de si mesmo, construída por força do grupo ao qual pertence. Como explica Gutmann, o pleno reconhecimento público da igualdade pode exigir duas formas de respeito: 1) o respeito à identidade singular de cada um, independente de seu sexo, raça ou etnia; 2) o respeito àquelas atividades, práticas e modos de ver o mundo que são objeto de uma valoração singular ou inseparáveis dos membros dos grupos (principalmente os) em desvantagem.

Se o liberalismo (do tipo L1) reconhece a diferença, ele a restringe ao espaço privado, longe do diálogo aberto e na medida em que não interfira na esfera pública. Amy Gutmann37 coloca bem a questão ao concordar com Taylor:38 a identidade humana se produz dialogicamente, em resposta às nossas relações, o que inclui nossos diálogos reais com os outros. Por conseguinte, se a identidade de cada um se forma e se constitui dialogicamente, é preciso mais do que uma exigência negativa de não discriminar ou positiva de tolerar o diferente. É necessário um reconhecimento público da identidade de cada um, capaz de possibilitar a discussão pública de ações políticas que possam favorecer os aspectos identitários.

Dialogicamente o indivíduo cria a sua referência identitária: com base no que recebe de seu grupo de pertença, projeto de conscientização sobre si mesmo, e no que extrai nas relações sociais da realidade do dia-a-dia. É assim que a sua determinação enquanto pertencente a um determinado grupo social diferenciado é constituída; não dependente, como diz Semprini, apenas de sua consciência enquanto formação social diferenciada, mas, com igual peso, do fato de ser externamente percebido como “minoria”. Pois, muitas vezes, é o sentimento de marginalização que leva os indíviduos a se identificarem como possuidores de valores comuns e, portanto, um grupo à parte.

Para terminar: reconhecer a diferença exige o respeito ao plano de vida de cada um, sua construção social inerente e inseparável de si mesmo, construída por força dos valores que compartilha e do grupo no qual está inserido ou com o qual é identificado. Apoiado pelo ideal da dignidade humana, o reconhecimento público aponta, no mínimo, para duas direções: 1) para a proteção dos direitos básicos dos indivíduos enquanto seres humanos e 2) para o reconhecimento das necessidades particulares dos indivíduos enquanto membros de grupos culturais distintos.

Fonte:
Quintino Lopes Castro Tavares. Multiculturalismo. Disponível em BuscaLegis.ccj.ufsc.br.
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