sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Carlos Lúcio Gontijo (Poesias Escolhidas)

ANO NOVO

Não me importa a frase feita
Se a mulher amada não me vem
Não me importa nenhuma seita
Se a fé diz-me amém
Não me importa o termo
Se todos os ermos me acham
Não me importam os fenestrados
Se as portas não me encaixam
Não me importam os enlatados
Se a toda fome me abro
Não me importa o velho quadro
Se já pendurei-me um novo olhar.

CASA DE HERANÇA

Os olhos são o cio das luzes
Sem eles a claridade não teria razão
Nossa emoção espiritual é fio condutor
Calor que faz a prosopopéia dos objetos
Por isso, mãe, ao vender nossa casa
Foi como negociar meu berço
Cortar as asas de pássaro
Perder o terço de orações
Mãe, confesso que chorei
Molhei meu rosto feito nuvem de chuva
Abandonei paredes que erguemos com a mão
E o limoeiro, mãe, lá no meio do terreiro
Quando for de seca a estação
Quem vai adivinhar-lhe a sede?
Mãe, em outra rede a paisagem da janela
Nova sentinela para nossas coisas
Recordo uma vida de menos solidão
Quando antes desta minha viuvez de mãe
Até havia mais doce na acidez do limão!

JESUS SALVADOR

Do Menino-Jesus todos se sentem donos
         Assentados no trono frio do egoísmo humano
         Fazem-No patrono da eterna crucificação
         Depositário fiel de repetida salvação
         Relicário dos Céus à disposição do pecador
         Pincel miraculoso a nos renovar a cor
         Apontando-nos o amor como iluminada prece
         Oração da qual jamais se esquece o Criador! 

LÓGICA DAS BORBOLETAS

Cada borboleta é uma alavanca
Que arranca tumores do chão
Tudo então ganha asas e voa
Em coisa à toa se transforma toda mágoa
Não há por que se afogar em água rasa
Quando até larva se ergue alada
E faz do rastejar vida passada!

ALDEIA CAPITAL

Meço infinitos entre concreto
Num secreto desejo de abolição
Como rio que  sonha cachoeira
Meus olhos voam na poeira das ruas
Senzalas nuas da injustiça social
Crucificando braços, erguendo escuridão
Paisagens e laços da construção capital

Fonte:
Poesias enviadas pelo autor

Carlos Correia Santos (Aplausos para o Espetáculo do Tropeço!)

Chegue-se. Tome seu lugar nessa vã e imensa casa de espetáculos que sãos os tempos atuais. Valha-se de seus doces porque o açúcar sempre atenua a dor. Acomode-se plenamente a contento e prepare-se para aplaudir, pois o espetáculo vai começar.

Espetáculo?

Qual?

O tropeço.

Sim, o tropeço. Eis o grande espetáculo que tanto ganha ovações, aplausos e fãs nos dias de hoje. O tropeço.

Prostram-se as massas diante de seus famigerados twitters e facebooks para ver quem caiu, quem desabou, quem ruir. E assim se ri. O que se quer é rir. Gritar aos ventos todos dessa nau insanidade chamada internet. Gritar: aquele imbecil ali tropeçou. Caiamos como abutres sobre ele. Sim, façamos do clique bico de corvo para furar a carne daquela calma, afligir aquela alma. Lancemos o mouse sobre aquele que tropeçou e, qual ratos a despedaçar lixo (Ave, Chico Buarque), espalhemos tristeza e crueldade.

Em pensar que houve um tempo no qual compartilhar era apenas etimologia: partilhar com. Dividir o que de bom, o que de bem. Agora... Num compartilhar, compraz-se a infâmia. Compra-se intolerância. Vende-se a dignidade. Acha-se o pouco caso. Perde-se a paz de espírito.

Na platéia, o ávido espectador do tropeço, quando não encontra, caça. O fantoche da sanha geral, que baila sobre o fio da navalha diante da turba coberta pela burca do anonimato, tem que se estatelar, tem que se esborrachar. Ah, ele não fará seu número? Pois a turba o leva à lona. Assim, feito perdigueiros das bordas do apocalipse, os espectadores do tropeço dedicam-se a criar dramaturgias que derrubem.

No entanto...

Tão no entanto...

Dos saltos ninguém fala. Para os saltos aplausos tão poucos... Não interessa festejar o que põe para frente. Aos acorrentados à mediocridade, pouco interessa celebrar o ir adiante.

E segue, desta feita, em cartaz o show do tropeço. O irônico é que as platéias se esquecem de algo divinamente poético. O espetáculo da vida é democrático. Você está aí nessa fétida platéia aplaudindo quem cai? Caindo na gargalhada? Aplausos para você. Amanhã o papel de protagonista, bebê, certamente há de ser seu.

Fonte:
Texto enviado pelo autor

Caravelas da Poesia III

CESÁRIO VERDE
Lúbrica


Mandaste-me dizer,
No teu bilhete ardente,
Que hás-de por mim morrer,
Morrer muito contente.

Lançaste no papel
As mais lascivas frases;
A carta era um papel
De cenas de rapazes!

Ó cálida mulher,
Teus dedos delicados
Traçaram do pazer
Os quadros depravados!

Contudo, um teu olhar
É muito mais fogoso,
Que a febre epistolar
Do teu bilhete ansioso:

Do teu rostinho oval
Os olhos tão nefandos
Traduzem menos mal
Os vícios execrandos.

Teus olhos sensuais
Libidinosa Marta,
Teus olhos dizem mais
Que a tua própria carta.

As grandes comoções
Tu, neles, sempre espelhas;
São lúbricas paixões
As vívidas centelhas...

Teus olhos imorais,
Mulher, que me dissecas,
Teus olhos dizem mais,
Que muitas bibliotecas!

ALICE GOMES
Na idade dos porquês

Professor diz-me    porquê?
Por que voa o papagaio
que solto no ar
que vejo voar
tão alto no vento
que o meu pensamento
não pode alcançar?

Professor diz-me    porquê?
Por que roda o meu pião?
Ele não tem nenhuma roda
E roda    gira    rodopia
e cai morto no chão...

Tenho nove anos    professor
e há tanto  mistério à minha roda
que eu queria desvendar!
Por que é que o céu é azul?
Por que é que marulha o mar?
Porquê?
Tanto porquê que eu queria saber!
E tu que não me queres responder!

Tu falas falas    professor
daquilo que te interessa
e que a mim não interessa.
Tu obrigas-me a ouvir
quando eu quero falar.
Obrigas-me a dizer
quando eu quero escutar.
Se eu vou a descobrir
Fazes-me decorar.

É a luta    professor
a luta em vez de amor.

Eu sou uma criança.
Tu és mais alto
mais forte
mais poderoso.
E a minha lança
quebra-se de encontro à tua muralha.

Mas
enquanto a tua voz zangada ralha
tu sabes    professor
eu fecho-me por dentro
faço uma cara resignada
e finjo
finjo que não penso em nada.

Mas penso.
Penso em como era engraçada
aquela rã
que esta manhã ouvi coaxar.
Que graça que tinha
aquela andorinha
que ontem à tarde vi passar!...

E quando tu depois vens definir
o que são conjunções
e preposições...
quando me fazes repetir
que os corações
têm duas aurículas e dois ventrículos
e tantas
tanta mais definições...
o meu coração
o meu coração que não sei como é feito
nem quero saber
cresce
cresce dentro do peito
a querer saltar cá para fora
professor
a ver se tu assim compreenderias
e me farias
mais belos os dias.

DAVID MOURÃO-FERREIRA
Natal, e não Dezembro

Entremos, apressados, friorentos,
numa gruta, no bojo de um navio,
num presépio, num prédio, num presídio
no prédio que amanhã for demolido...
Entremos, inseguros, mas entremos.
Entremos e depressa, em qualquer sítio,
porque esta noite chama-se Dezembro,
porque sofremos, porque temos frio.

Entremos, dois a dois: somos duzentos,
duzentos mil, doze milhões de nada.
Procuremos o rastro de uma casa,
a cave, a gruta, o sulco de uma nave...
Entremos, despojados, mas entremos.
De mãos dadas talvez o fogo nasça,
talvez seja Natal e não Dezembro,
talvez universal a consoada.

BOCAGE
O corvo e a raposa

É fama que estava um corvo
Sobre uma árvore poisado
E que no sôfrego bico
Tinha um queijo atravessado.

Pelo faro àquele sítio
Veio a raposa matreira
A qual, pouco mais ou menos
Lhe falou desta maneira:

- Bons dias, meu lindo corvo;
És glória desta espessura;
És outra fénix, se acaso,
Tens a voz como a figura.

A tais palavras o corvo
Com louca, estranha afoiteza
Mor mostrar que é bom solfista
Abre o bico e solta a presa.

Lança-lhe a mestra o gadanho
E diz: - Meu amigo, aprende
Como vive o lisonjeiro
à custa de quem o atende.

Esta lição vale um queijo,
Tem destas para teu uso.
Rosna então consigo o corvo
Envergonhado e confuso:

- Velhaca, deixou-me em branco
Fui tolo em fiar-me dela
Mas este logro me livra
De cair noutra esparrela.

ANTÓNIO GEDEÃO
Poema da auto-estrada

Voando vai para a praia
Leonor na estrada preta
Vai na brasa de lambreta.

Leva calções de pirata,
Vermelho de alizarina,
modelando a coxa fina
de impaciente nervura.
Como guache lustroso,
amarelo de indantreno
blusinha de terileno
desfraldada na cintura.

Fuge, fuge, Leonoreta.
Vai na brasa, de lambreta.
Agarrada ao companheiro
na volúpia da escapada
pincha no banco traseiro
em cada volta da estrada.
Grita de medo fingido,
que o receio não é com ela,
mas por amor e cautela
abraça-o pela cintura.
Vai ditosa, e bem segura.

Como um rasgão na paisagem
corta a lambreta afiada,
engole as bermas da estrada
e a rumorosa folhagem.
Urrando, estremece a terra,
bramir de rinoceronte,
enfia pelo horizonte
como um punhal que se enterra.
Tudo foge à sua volta,
o céu, as núvens, as casas,
e com os bramidos que solta
lembra um demónio com asas.

Na confusão dos sentidos
já nem percebe, Leonor,
se o que lhe chega aos ouvidos
são ecos de amor perdidos
se os rugidos do motor.

Foge, foge, Leonoreta.
Vai na brasa, de lambreta.

AL-BERTO
Recado

ouve-me
que o dia te seja limpo e
a cada esquina de luz possas recolher
alimento suficiente para a tua morte

vai até onde ninguém te possa falar
ou reconhecer - vai por esse campo
de crateras extintas - vai por essa porta
de água tão vasta quanto a noite

deixa a árvore das cassiopeias cobrir-te
e as loucas aveias que o ácido enferrujou
erguerem-se na vertigem do voo - deixa
que o outono traga os pássaros e as abelhas
para pernoitarem na doçura
do teu breve coração - ouve-me

que o dia te seja limpo
e para lá da pele constrói o arco de sal
a morada eterna - o mar por onde fugirá
o etéreo visitante desta noite

não esqueças o navio carregado de lumes
de desejos em poeira - não esqueças o ouro
o marfim - os sessenta comprimidos letais
ao pequeno-almoço

Coracy Teixeira Bessa (Colheita Noturna)

Rua deserta. Ao longe, os últimos ruídos na noite que se prepara para repousar à espera da próxima manhã. Vulto solitário, a garota, quase ainda criança, se move como sombra indecisa.

Corre e colhe. Colhe. Corre. De tonel em tonel, de saco em saco, do lixo recolhe o hipotético sustento. Latas, vidros, plásticos e papéis configuram o (im)provável lucro. Corre e colhe sujeira, cortes, arranhões. Aos magros dedos, que não aprenderam a escrever nem contar, diligentemente esmiúçam como se fossem à cata de tesouros. Rende-se à tentação de guardar para si um vidrinho vazio de perfume. Aspira-lhe os resquícios do odor outrora ali guardado. Devaneia: um vestido vermelho, um par de sapatos combinando, uma passadeira bordada cingindo-lhe a raiz dos cabelos. E o perfume. Não sabe se é de rosa, jasmim ou alguma flor exótica, daquelas pelas quais gente que pode paga uma fortuna. O das rosas que aspirara no enterro da mãe, emurchecidas, lhe deixara uma desagradável impressão. Do jasmim, remota lembrança da casa da avó, doce demais, deixara-a levemente enjoada. Seria de algo que desconhecia…

O tabefe no ouvido pega-a desprevenida. Rodopia e cai sobre um monte de caixas de papelão vazias – ainda com o vidrinho de perfume na mão. Enfrenta os congestos olhos de beberão contumaz do padrasto: “Ainda não terminei! Falta procurar no lixo da lanchonete! Por favor, pai Dé!”. Surdo ao seu apelo o homem vocifera: “Tu pensa que pode me enrolar?! Quem te deu esse vidro de perfume, vagabunda?!”. Chocada, tentando se levantar, a garota procura se defender: “Ninguém! Achei aqui no lixo…”. Em resposta, o homem chuta-a brutal e repetidamente. O vidrinho de perfume espatifa-se além. Antes que possa recompor o corpo contorcido pela dor, o homem agiganta-se sobre a menina indefesa e a violenta. Satisfeito, cambaleando, apossa-se do saco contendo o produto da colheita noturna da garota e sai à procura de algum boteco ainda aberto àquelas horas…

Sobre os refugos da cidade, uma vida se esvai lentamente, ceifada pela selvajaria (in)humana.

O caminhão coletor de lixo, nesta madrugada, recolhera mais que sacos, caixas e engradados?

Fonte:
Academia de Letras de Maringá. III Concurso Literário Cidade de Maringá – Modalidade Crônica – Troféu Luiz Lourenço. Disponível no site da Academia de Letras de Maringá.

Efigenia Coutinho (Trovas Avulsas)

Meu pescador enlaçado
quero todo o teu carinho,
 sonho um abraço apertado,
vou me perder no caminho.

Os teus sonhos reluzentes
de ternura e emoção,
são como enredos fluentes
pescando nossa emoção.

Acreditando em Deus, fui
pescando meus sonhos sim,
e lá onde o sonho flui,
encontrei você em mim!

Voltar sonhar, não me peças...
perderia a insensatez,
creria em  tuas promessas
p’ra arrepender-me outra vez.

Essa foi a trova classificada com Menção Especial:

Os teus sonhos reluzentes
de ternura e emoção,
são como enredos fluentes,
pescam nosso coração.

Fonte:
Trovas enviadas pela autora

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) Cara De Coruja –VI – Outros convidados

Em seguida veio o alfaiate que matava sete de um golpe. Veio também o soldadinho de chumbo que depois de derretido ao fogo se transformou em coração.

— E como virou soldadinho outra vez ?— quis saber Emília.

— Uma fada, que leu minha história — chorou uma lagrimazinha tão sentida que virei soldado outra vez.

— E a dançarina de saiote cor-de-rosa? Morreu no fogo também?

— Essa morreu para sempre — respondeu o soldadinho, fingindo que se assoava, mas de fato enxugando os olhos. O burrinho supunha que como era soldado não podia demonstrar fraqueza, chorando.

Depois veio um Patinho Feio, filho daquele outro que virara cisne. Assim que entrou, Emília, que já tinha visto tia Nastácia matar um pato, foi depressa cochichar-lhe ao ouvido:

— Não saia daqui, não vá à cozinha, ouviu? Lá mora uma fada preta que não tem piedade nem de frangos nem de patinhos. Pega os coitados e vai logo lhes torcendo o pescoço. Sabe para quê? Para assá-los no forno, imagine!...

Tamanho susto levou o patinho, que teve de encostar-se à parede, mais pálido que uma vela de cera — das que não são cor-de-rosa. Hansel e Gretel vieram em seguida, sendo muito festejados.

Emília quis saber notícias daquele ossinho que mostravam à feiticeira cada vez que ela dizia: “Hansel, mostre o dedinho, para eu ver se está engordando.” Emília achava que como tinham sido salvos por aquele ossinho, era injustiça não terem feito dele um colar para ser trazido ao pescoço. Depois chegou a Xerazade, acompanhada de todos os heróis das Mil e Uma Noites. Como não pudessem entrar na sala, muito pequena para contê-los todos, tiveram de ficar de fora.

Narizinho, Emília e as princesas correram à janela, donde puderam regalar-se de ver o Pescador e o Gênio, o Cavalo Encantado, os príncipes Codadad e Ahmed, Sindbad o Marujo, Morgiana e mais uma multidão de sultões, sultanas, califas e escravos núbios, pretos e lustrosos como jabuticabas.

— Por que não trouxe também o pássaro Roca? – perguntou Emília à Xerazade.

— Que idéia! — respondeu a princesa sorrindo. — Para que esse bruto derrubasse uma pedra em cima do sítio de dona Benta e nos esmagasse a todos, como fez com o navio de Sindbad?

Depois vieram os heróis gregos, o valente Perseu que matou a Górgona, o heróico Teseu que matou o Minotauro e até a cabeça da Medusa, espetada na ponta de um pau, com aquela porção de cobras se mexendo em lugar de cabelos. Tantos personagens maravilhosos vieram, que o terreiro de dona Benta ficou de não caber um alfinete.

Narizinho olhava, olhava, no maior êxtase de sua vida. Só reis e príncipes e fadas e anões e madrastas boas e más, e bruxas e mágicos de chapéus em forma de cartucho, e ursos que viram príncipes, e lobos de dentuça arreganhada... Mas Peter Pan não aparecia — o que muito decepcionava Pedrinho. Seu grande desejo era justamente conhecer Peter Pan. Estavam todos à janela, regalando os olhos naquele espetáculo nunca visto no mundo, quando Emília se pôs a filosofar.

— Estou pensando na vaca mocha — disse ela. — A coitada costuma deitar-se aí no terreiro todas as tardes. Imaginem a surpresa dela agora! Olha dum lado, vê um rei. Vira-se de outro, dá com um anão. Sacode a cauda e bate numa princesa. A coitada deve de estar que nem mover-se pode. Se não morrer de medo, é capaz de secar o leite — e amanhã dona Benta vai ficar danada!...
–––––––
Continua... Cara de Coruja– VII – A Coroinha

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Antonio Botto (Leviandade)


Havia uma figueira muito velha, e o dono, que também era velhote, um dia, depois de a olhar, exclamou:

- Esta árvore não presta.

Durante setenta anos, carregadinha, dera saborosos frutos, mas, maltratada, carcomida pelo tempo, apenas as suas folhas, quando o sol na Primavera aquecia as almas e o mundo, rebentavam ainda viçosas, plenas de graça e de frescura. Já não podia dar figos.

Outro dia, o velho dono, voltando-se para o filho mais novo, murmurou num tom velado de saudade e de tristeza:

- Creio que é tempo de eu poder descansar um pouco e ficar em sossego, sem canseiras, sem cuidados, a aproveitar esta luzerna de vida que me resta, depois de setenta anos de trabalho.

- Setenta anos!, como a figueira, meu pai!

- O velho baixou a cabeça e nunca mais repetiu: - Esta árvore não presta.

Fonte:
Os Contos de Antonio Botto. Livraria Bertrand

Sérgio Reis (Couro de Boi)


Conheço um velho ditado, que é do tempo dos agáis.
Diz que um pai trata dez filhos, dez filhos não trata um pai.
Sentindo o peso dos anos sem poder mais trabalhar,
o velho, peão estradeiro, com seu filho foi morar.
O rapaz era casado e a mulher deu de implicar.
"Você manda o velho embora, se não quiser que eu vá".
E o rapaz, de coração duro, com o velhinho foi falar:
Para o senhor se mudar, meu pai eu vim lhe pedir
Hoje aqui da minha casa o senhor tem que sair
Leve este couro de boi que eu acabei de curtir
Pra lhe servir de coberta aonde o senhor dormir
O pobre velho, calado, pegou o couro e saiu
Seu neto de oito anos que aquela cena assistiu
Correu atrás do avô, seu paletó sacudiu
Metade daquele couro, chorando ele pediu
O velhinho, comovido, pra não ver o neto chorando
Partiu o couro no meio e pro netinho foi dando
O menino chegou em casa, seu pai foi lhe perguntando.
Pra quê você quer este couro que seu avô ia levando
Disse o menino ao pai: um dia vou me casar
O senhor vai ficar velho e comigo vem morar
Pode ser que aconteça de nós não se combinar
Essa metade do couro vou dar pro senhor levar.

Cornélio Pires (Trovas da Vida)


PREFÁCIO
Desejava ter comigo
Uma jóia de alto preço
Não tendo, porém, o ouro
Esse propósito, esqueço...

Mas tendo fé em mim mesmo
Lembro-me, com razão
De ofertar-lhes este livro,
Que me expressa a gratidão

AMBIÇÃO
Conserva a simplicidade,
Observa onde te pões,
A ambição domina os homens,
EM todas as direções.

AMOR
Amor puro é qual diamante
De beleza singular,
Mas se é vendido ou tem preço,
Qualquer um pode comprar.

AMOR NO ALÉM
De alma para outra alma
O amor é um laço tão forte
Que vejo muitos casais
Unidos depois da morte.

ANOTAÇÃO
Jesus deu valor ao pouco:
“Pão nosso de cada dia”
Se tiveres mais e mais,
O “muito” te arruinaria.

BARULHO
Para quem pensa e trabalha
Em benefícios reais
Qualquer barulho atrapalha,
Silêncio nunca é demais.

BENÇÃO DE MÃE
Depois da cruz, Jesus viu
Que o Bom ladrão o seguia...
E o outro? Também foi salvo,
Pela benção de Maria.

BENDITA SEJA
Já que o mal nasce de nós
Como vem e quando vem,
Bendita seja a pessoa
Que apóia a força do bem.

CLONAGEM
Clonagem é um feito antigo;
Fala a Bíblia com razão.
Nosso pai creou Mãe Eva
Numa costela de Adão.

DESENGANO
Ele ajuntou prata e ouro,
Porém, não achou transporte,
Quando buscou pensativo,
A grande agência da morte.

DESEQUILÍBRIO
Há mulheres arruinadas
Na luta em que se consomem.
Não por fraqueza ou maldade,
Mas por desprezo do homem.

DESILUSÃO
Silvino era apaixonado
Pela jovem Maristela;
Numa festa da Laranja,
Silvino ficou sem ela.

DINHEIRO
Registro esta nota sábia
Do Doutor Joaquim de Malta:
“Riqueza não traz ventura,
Mas o dinheiro faz falta.”

DOENÇA
Muitas Vezes, a doença,
Por mais que aborreça e doa,
É socorro necessário
Para guardar a pessoa.

DUAS MÃES
Nossa Senhora chorava,
Lembrando o Filho... Horas mudas...
Alguém soluçou à porta,
Foi ver: Era a mãe de Judas.

DURAÇÃO DO AMOR
O amor é uma luz do Céu,
Dizia o mestre Joaquim,
Sem a praga do ciúme,
Tem duração do “sem-fim”.

ECONOMIA
O dono de muitas capas
Da mais rica às mais singelas
Nas horas de frio ou chuva
Veste somente uma delas.

ESTRELA CONSTANTE
No evangelho de Jesus,
Há uma estrela que nos guia
Que de nós nunca se afasta,
Tem o nome de Maria.

EXTRA-TERRESTRES
Extra-terrestre? Existem.
Não são notícia sem fundo;
Elias saiu da Terra
Numa nave de outro mundo.

FELICIDADE
Casais ricos e felizes
Vivem de festa e rumor,
No entanto, a felicidade
Conhece apenas o amor.

FÉ VIVA
Foi exemplo de fé viva
A jovem mãe de Belém;
Chorou com o filho humilhado,
Sem pedir nada a ninguém.

FORÇA
Avistando a força bruta
Ferindo ou pisando alguém,
Age em silêncio e auxilia
À nobre força do Bem.

GUERRA
A guerra surge por vezes
De nação para nação,
Mas é constante
Nos casos de opinião

HUMILDADE
A maior dama do mundo,
Mostrando humildade e fé,
Usava este nome simples:
Maria de Nazaré.

INDISCIPLINA
Há muita morte no mundo
Fora do tempo previsto,
Não por falta de assistência,
Sim, por falta de juízo.

LIBERDADE
Virtude alta e sublime
Ninguém quer viver sem ela:
É a liberdade, no entanto,
Que exige muita cautela.

LIÇÃO SIMPLES
Uma lição clara e simples
A que a verdade nos chama:
- Por força de obediência
Realmente ninguém ama.

MÃOS NOBRES
Branca, amarela ou morena
Nos sofrimentos da estrada
Se é mão que dá socorro
Será sempre abençoada

MORTO VIVO
Ao morrer, disse Romário:
“Volto já...”, falando a custo.
Após seis meses, voltou...
A esposa caiu de susto.

NÃO PODE
Deixou milhões para os órfãos
O avarento João Lasmar,
Deixou para a caridade
Porque não pode levar.

NO ALÉM
Em nosso estado no Além,
Seja em luz, penumbra ou treva,
O que importa é a consciência
Da vida que a gente leva.

PROGRAMA
Quem quiser ter vida longa
Pelos caminhos terrenos,
No curso do dia a dia
Coma pouco e fale menos

PRUDÊNCIA
Falta pouco. Não critiques.
Deixa os outros tais quais são.
Há quem passe a noite em festa
E amanheça em provação

RACISMO
Em qualquer grupo racista
De sábios crentes e ateus,
Perguntemos seriamente,
De que forma é a cor de Deus

REALIDADE
“O homem deixou milhões”
Falei ao sábio Jomar.
Disse-me o sábio: “Deixou
Porque não pode levar”.

RECADO FRATERNO
Se caíste em provação
Por falha de outra pessoa,
Em favor da própria paz,
Trabalha, ora e perdoa.

REFLEXÃO
O homem é sempre poder,
Faz tudo quanto ele quer.
No entanto, não nos esqueçamos:
Somos filhos de mulher.

REMÉDIO
Joel gritava xingando,
Na Fazenda Terra Oca;
O tio deu-lhe um remédio:
O xarope “calaboca”

SALÁRIO
Salário pobre e pequeno?
Não consigo ser ingrato.
Se tenho montes de arroz,
Ao comer, só tenho um prato.

SALÁRIO DE DEUS
Serviço pago é dinheiro
Entre nobres e plebeus;
Serviço-abnegação
Tem o salário de Deus

SE QUERES
Se queres cooperação
Para qualquer obra do Bem,
Não afastes a esperança
Do coração de ninguém.

SERVIÇO AO PRÓXIMO
Sigamos servindo aos outros
E escutai, amigos meus:
Quem trabalha para o bem
Colhe o salário de Deus.

TUDO PASSA
O tempo corre apressado
No campo, na rua, em casa
Tudo passa velozmente
Se a pessoa não se atrasa.

Fonte:
Francisco Cândido Xavier (psicografia). Livro Trovas da Vida.
Digitalizado por Aparecida Tognato. Organizado por José Feldman.

Teófilo de Azevedo (Quadras Populares)


Para quem não sabe:
Quadra Popular
A forma lírica mais comum entre o povo; foi também utilizada por poetas de renome.
Composta por 4 versos de sete sílabas (redondilha maior), a rima surge geralmente no 2º verso e 4º versos, sendo os outros dois versos brancos (sem rima).
A quadra popular pode ser composta por uma única estrofe ou por várias.

Mandei buscar na botica
Remédio para uma ausência
Me mandaram uma saudade
Coberta de paciência

Sete e sete são quatorze
Com mais sete vinte e um
Soletra quem sabe ler
A paixão de cada um

Meu benzinho não é este
Nem aquele que lá vem
Meu benzinho está de branco
Não mistura com ninguém

Menina dos olhos pretos
Sobrancelhas de retrós
Dá um pulo na cozinha
Vá coar café prá nós

Quem quiser pegar morena
Arma um laço na parede
Que inda ontem peguei uma
Morena dos olhos verdes

Em cima daquela serra
Tem um ninho de carcará
Quando olho pra tua cara
Dou vontade de lançar

Atirei meu limão verde
Lá atrás da sacristia
Deu no ouro, deu na prata
Deu na moça que eu queria

Limoeiro pequenino
Carregado de limão
Eu também sou pequenino
Carregado de inluzão

Eu plantei e semeei
Carrapicho na “colonha”
A coisa que tenho raiva
É gente branca sem vergonha

A laranja de madura
Caiu nágua foi ao fundo
Os peixinhos estão gritando
Viva dom Pedro Segundo

Esta noite à meia-noite
Me cantava um gavião
Parecia que falava
Maria, meu coração

Cravo branco na janela
É sinal de casamento
Menina tira seu cravo
Inda não chegou seu tempo

Toda vez que considero
Que tenho de te deixar
Me foge o sangue na veia
E o coração do lugar

A garça pôs o pé n’água
Pode estar quarenta dia...
Eu fora do meu bem
Nem uma hora, nem um dia

Menina dos olhos pretos
Sobrancelhas de veludo
Vamos berganhar os olhos
Com sobrancelhas e tudo

Lá do céu caiu um cravo
De tão alto desfolhou
Quem quiser casar comigo
Vai pedir quem me criou

Eu joguei meu limão verde
Numa moça na janela
O limão caiu no chão
E eu caí no colo dela

Limoeiro pequenino
Carregado de “fulô’
Eu também sou pequenino
Carregado de “amô”

A perdiz pia no campo
Comendo seu capinzinho
Quem tem amor anda magro
Quem não tem, anda gordinho

Anum é pássaro preto
Pássaro do bico rombudo
Foi praga que Deus deixou
Pra todo negro beiçudo

Em cima daquela serra
Passa boi, passa boiada
Também passa moreninha
De cabelo cacheada

Batatinha quando nasce
Esparrama pelo chão
Meu benzinho quando dorme
Põe a mão no coração

Cigarrinho de papel
Fumo verde não fumega
Eu vejo moça bonita
Meu coração não sossega

As moças daqui da terra
Passam fome porque quer
Tanto coco macaúba
Tanto buriti no pé

Um coqueiro de tão alto
Que dá coco na raiz
Uma moça bonitinha
Com três palmos de nariz

Meu amor é só meu
Não é de mais ninguém
Quem tiver inveja dele
É fazer assim também

Amanhã eu vou-me embora
Eu não vou-me embora não
Se eu tivesse de ir-me embora
Eu não estava aqui mais não

O anel que tu me deste
Era de vidro e quebrou
O amor que tu me tinhas
Era pouco e já acabou

Caititu do Mato-Grosso
Corre mais do que cotia
Quando vejo mulher velha
Dou bênção e chamo tia

Se essa rua fosse minha
Eu mandava ladrilhar
Ou de ouro, ou de prata
Para meu bem passear

Alecrim da beira d’água
Não se corta de machado
Corta só de canivete
Cara de sapo rejado

Minha mãe me deu um pente
Todo crivado de ouro
Para fazer uma pastinha
Na janela do namoro

Duas correntes pesadas
Eu arrasto sem poder
Uma é do meu capricho
Outra é do meu dever

Bate bate coração
Arrebenta este peito
Como cabe tanta mágoa
Num espaço tão estreito?

Da Bahia me mandaram
Um presente num canudo
Tinha mais de conto de réis
Fora o dinheiro miúdo

Ninguém viu o que vi hoje
Um macaco fazer renda
E também vi um peru
Caxeirando numa venda

Camisinha de meu bem
Não se lava com sabão
Lava com raminho verde
Água no meu coração

Você disse que vai embora
Eu também já quero ir
Você disse não vai mais
Eu também “arresorvi”

Lá no céu tem três estrelas
Todas três encarrilhadas
Uma é minha, outra é sua
Outra de minha namorada

Mandei fazer um sobrado
De vinte e cinco janelas
Pra prender moça bonita
Morena cor de canela

Em cima daquela serra
Tem um caldeirão de ferro
Quem falar de minha vida
Está na porta do inferno

Calango desceu pra baixo
Foi vender sua farinha
Lagartixa respondeu
Vende a sua e deixa a minha

Lá no céu tem três estrelas
Vestidinhas de nobreza
Quem quiser casar comigo
Não repare minha pobreza

Trepei num morro de fogo
Com “precata” de algodão
Desci numa ponta de nuvem
Com mil coriscos na mão

Eu não dou a mão rapaz
Nem que seja meu parente
Porque rapaz tem o defeito
De apertar a mão da gente

Comprei uma camisinha
Que custou mil e quinhento
Toda vez que visto ela
Acho muito casamento

O anel que tu me deste
Na procissão do Senhor
Era frouxo no meu dedo
Acochado no amor

Da folha da bananeira
Pingou três pingos de prata
Da família de meu bem
É só ele quem me mata

Em cima daquela serra
Corre água sem chover
Os mocinhos da cidade
Me namoram sem me ver

Essas meninas dagora
Só sabem namorar
Botam a panela no fogo
E não sabem temperar

Menina de olhos pretos
Que inda ontem eu reparei
Se há mais tempo eu reparasse
Eu não amava quem amei

Lá vai a garça voando
Com as penas que Deus lhe deu
Contando pena, por pena
Mais pena padeço eu

Eu plantei um pé de rosa
Para te dar um botão
O pé de rosa morreu
Eu te dou meu coração

Baixa baixa serraria
Que eu quero ver a cidade
Meu amor aqui tão perto
E eu morrendo de saudade

Amanhã eu vou-me embora
Pela semana que vem
Quem não me conhece chora
Que fará quem me quer bem

Se eu soubesse quem tu eras
Quem tu havia de ser
Meu coração não te dava
Para agora eu padecer

Você disse que bala mata
Bala não mata ninguém
A bala que mais me mata
São os olhos de meu bem

Menina toma esta uva
Da uva faça seu vinho
Seus braços serão gaiola
Eu serei seu passarinho

A folha da bananeira
De tão verde amarelou
O beijinho de meu bem
De tão doce açucarou

Você disse que sou bonita
Mais bonito é seu cabelo
Cada cacho vale um conto
Cada conto vale um selo

Um coqueiro de tão alto
Pôs a rama na Bahia
Onde tem moço solteiro
Casado não tem valia

Lá no céu tem nuvem
Mas não é para chover
Antes de chegar domingo
Meu benzinho vem cá me ver

Sete cravos sete rosas
Na ponta de um alfinete
Meu benzinho está no meio
Servindo de ramalhete

Toda vez que o galo canta
No retiro onde moro
Me lembro do meu benzinho
Saio do terreiro e choro

Lá no céu está trovejando
Mas não é para chover
Meu benzinho está doente
Mas não é para morrer

Sete e sete são quatorze
Com mais sete vinte e um
Eu tenho sete namorados
Mas eu gosto é só de um

Sexta-feira faz um ano
Que meu coração fechou
Quem morava dentro dele
Tirou a chave e levou

Joguei o branco n’água
O moreno no jardim
Quem quiser o branco eu dou
O moreno é só para mim

Eu tenho um vestidinho
Todo cheio de babado
Toda vez que visto ele
Quarenta e cinco namorado

Em cima daquela serra
Tem um pé de papaconha
Tira a folha e lava a cara
Descarado sem vergonha

Em cima daquela serra
Tem dois pilãozinhos de ferro
Um bate, outro responde
Meu bem está no inferno

Ante-ontem à meia-noite
Saiu faca da bainha
Estão querendo me matar
Sabendo que a roxa é minha

O padre quando namora
Passa a mão pela coroa
Namora, padre, namora
Namorar é coisa boa

Menina não veste curto
Se tens a perna roliça
O padre da freguesia
Tudo que vê cobiça

Não me chame boiadeiro
Não sou boiadeiro não
Sou tocador de boiada
Boiadeiro é meu patrão

Quem tiver o segredo
Não conte à mulher casada
A mulher conta ao marido
O marido à rapaziada

Se eu soubesse da certeza
Que meu bem vinha cá hoje
Eu varria a casa cedo
Semeava pó de arroz

Amanhã eu vou-me embora
É mentira não vou não
Quem vai embora é meu corpo
Mas não vai meu coraçao

Em cima daquela serra
Tem um banco de areia
Onde assenta mulher velha
Pra falar da vida alheia

Esta noite eu tive um sonho
Mas, ó que sonho atrevido
Sonhei que estava abraçado
Com a forma de seu vestido

Esta noite eu tive um sonho
Um sonho todo de louco
Abraçado com uma pedra
Dando bicota num toco

Quem me dera estar agora
Lá no mato, no sertão
Onde está minha saudade
Onde está meu coração

Joguei meu chapéu pra cima
Para ver onde caía
Caiu no colo da velha
Cruz em credo, Ave Maria!

Adeus plantas, adeus rios,
Adeus gente do lugar
Vou partindo, vou chorando
Com vontade de voltar

Quando vim de minha terra
Muita gente lá chorou
Só uma velha muito velha
Muita praga me rogou

Quem inventou a partida
Não entendia de amor
Quem parte, parte chorando
Quem fica, morre de dor

Oh! linda Pirapora
Lugar de ganhar dinheiro
Vou ganhar mil e quinhentos
Na turma dos engenheiros

Marmelo é fruta gostosa
Onde dá na ponta da vara
Mulhe que chora por homem
Não tem vergonha na cara

Mamãe me chamou de feia
Ela só quer ser formosa
Ela vai ser roseira
Eu vou ser botão de rosa

Não tenho medo do homem
Nem do ronco que ele tem
O besouro também ronca
Vai se vê, não é ninguém

Em cima daquela serra
Tem um velho fogueteiro
Quando vê moça bonita
Fica todo regateiro

Você de lá e eu de cá
Ribeirão passa no meio
Você de lá dá um suspiro
Eu de cá, suspiro e meio

Eu pus minha mão na sua
Você a sua na minha
Ficou uma coisa justa
Como faca na bainha

Você ontem me falou
Que não anda nem passeia
Como é que hoje cedinho
Eu vi seu rastro na areia?

Não dês a ponta do dedo
Que logo te levam a mão
Depois da mão, vai o braço
Vai o peito e o coração

Uma velha muito velha
Mais velha que o meu chapéu
Foi pedida em casamento
Levantou as mãos pro céu

Um surdo disse que ouviu
Um pobre mudo dizer
Que um cego tinha visto
Um aleijado correr

Subi na serra do fogo
Com sapato de algodão
O sapato pegou fogo
E eu voltei de pé no chão

Prima pulga está doente
Taturana está parida
Meu compadre percevejo
Está de espinhela caída

Fonte:
Azevedo,Teófilo de. Literatura popular do norte de Minas: a arte de fazer versos.São Paulo, Global Editora, 1978. Cultura Popular, 3.

Cecília Meirelles (Natal na Ilha do Nanja)


Na Ilha do Nanja, o Natal continua a ser maravilhoso. Lá ninguém celebra o Natal como o aniversário do Menino Jesus, mas sim como o verdadeiro dia do seu nascimento. Todos os anos o Menino Jesus nasce, naquela data, como nascem no horizonte, todos os dias e todas as noites, o sol e a lua e as estrelas e os planetas. Na Ilha do Nanja, as pessoas levam o ano inteiro esperando pela chegada do Natal. Sofrem doenças, necessidades, desgostos como se andassem sob uma chuva de flores, porque o Natal chega: e, com ele, a esperança, o consolo, a certeza do Bem, da Justiça, do Amor. Na Ilha do Nanja, as pessoas acreditam nessas palavras que antigamente se denominavam “substantivos próprios” e se escreviam com letras maiúsculas. Lá, elas continuam a ser denominadas e escritas assim. Na Ilha do Nanja, pelo Natal, todos vestem uma roupinha nova — mas uma roupinha barata, pois é gente pobre — apenas pelo decoro de participar de uma festa que eles acham ser a maior da humanidade.

Além da roupinha nova, melhoram um pouco a janta, porque nós, humanos, quase sempre associamos à alegria da alma um certo bem-estar físico, geralmente representado por um pouco de doce e um pouco de vinho. Tudo, porém, moderadamente, pois essa gente da Ilha do Nanja é muito sóbria. Durante o Natal, na Ilha do Nanja, ninguém ofende o seu vizinho — antes, todos se saúdam com grande cortesia, e uns dizem e outros respondem no mesmo tom celestial: “Boas Festas! Boas Festas!” E ninguém, pede contribuições especiais, nem abonos nem presentes — mesmo porque se isso acontecesse, Jesus não nasceria. Como podia Jesus nascer num clima de tal sofreguidão? Ninguém pede nada. Mas todos dão qualquer coisa, uns mais, outros menos, porque todos se sentem felizes, e a felicidade não é pedir nem receber: a felicidade é dar. Pode-se dar uma flor, um pintinho, um caramujo, um peixe — trata-se de uma ilha, com praias e pescadores ! — uma cestinha de ovos, um queijo, um pote de mel...

É como se a Ilha toda fosse um presepio. Há mesmo quem dê um carneirinho, um pombo, um verso! Foi lá que me ofereceram, certa vez, um raio de sol! Na Ilha de Nanja, passa-se o ano inteiro com o coração repleto das alegrias do Natal. Essas alegrias só esmorecem um pouco pela Semana Santa, quando de repente se fica em dúvida sobre a vitória das Trevas e o fim de Deus. Mas logo rompe a Aleluia, vê-se a luz gloriosa do Céu brilhar de novo, e todos voltam para o seu trabalho a cantar, ainda com lágrimas nos olhos.

Na Ilha do Nanja é assim. Arvores de Natal não existem por lá. As crianças brincam com. pedrinhas, areia, formigas: não sabem que há pistolas, armas nucleares, bombas de 200 megatons. Se soubessem disso, choravam. Lá também ninguém lê histórias em quadrinhos. E tudo é muito mais maravilhoso, em sua ingenuidade. Os mortos vêm cantar com os vivos, nas grandes festas, porque Deus imortaliza, reúne, e faz deste mundo e de todos os outros uma coisa só.

É assim que se pensa na Ilha do Nanja, onde agora se festeja o Natal.

Fonte:
CECÍLIA MEIRELLES. “Quadrante 1”. RJ: Editora do Autor, 1966.

Caravelas da Poesia II


AL BERTO
Acordar tarde

tocas as flores murchas que alguém te ofereceu
quando o rio parou de correr e a noite
foi tão luminosa quanto a mota que falhou
a curva - e o serviço postal não funcionou
no dia seguinte

procuras ávido aquilo que o mar não devorou
e passas a língua na cola dos selos lambidos
por assassinos - e a tua mão segurando a faca
cujo gume possui a fatalidade do sangue contaminado
dos amantes ocasionais - nada a fazer

irás sozinho vida dentro
os braços estendidos como se entrasses na água
o corpo num arco de pedra tenso simulando
a casa
onde me abrigo do mortal brilho do meio-dia

ALEXANDRE O'NEILL
Amigo

Mal nos conhecemos
Inaugurámos a palavra amigo!

Amigo é um sorriso
De boca em boca,
Um olhar bem limpo,

Uma casa, mesmo modesta, que se oferece.
Um coração pronto a pulsar
Na nossa mão!

Amigo (recordam-se, vocês aí,
Escrupulosos detritos?)
Amigo é o contrário de inimigo!

Amigo é o erro corrigido,
Não o erro perseguido, explorado.
É a verdade partilhada, praticada.

Amigo é a solidão derrotada!

Amigo é uma grande tarefa,
Um trabalho sem fim,
Um espaço útil, um tempo fértil,
Amigo vai ser, é já uma grande festa!

ALMEIDA GARRETT
Anjo és

Anjo és tu, que esse poder
Jamais o teve mulher,
Jamais o há-de ter em mim.
Anjo és, que me domina
Teu ser o meu ser sem fim;
Minha razão insolente
Ao teu capricho se inclina,
E minha alma forte, ardente,
Que nenhum jugo respeita,
Covardemente sujeita
Anda humilde a teu poder.
Anjo és tu, não és mulher.

Anjo és. Mas que anjo és tu?
Em tua frente anuviada
Não vejo a c'roa nevada
Das alvas rosas do céu.
Em teu seio ardente e nu
Não vejo ondear o véu
Com que o sôfrego pudor
Vela os mistérios d'amor.
Teus olhos têm negra a cor,
cor de noite sem estrela;
A chama é vivaz e é bela,
Mas luz não tem. - Que anjo és tu?
Em nome de quem vieste?
Paz ou guerra me trouxeste
De Jeová ou Belzebu?

Não respondes - e em teus braços
Com frenéticos abraços
Me tens apertado, estreito!...
Isto que me cai no peito
Que foi?... Lágrima? - Escaldou-me...
Queima, abrasa, ulcera... Dou-me,
Dou-me a ti, anjo maldito,
Que este ardor que me devora
É já fogo de precito,
Fogo eterno, que em má hora
Trouxeste de lá... De onde?
Em que mistérios se esconde
Teu fatal, estranho ser!
Anjo és tu ou és mulher?

BOCAGE
Apenas vi do dia a luz brilhante

Apenas vi do dia a luz brilhante
Lá em Túbal no empório celebrado,
Em sanguíneo carácter foi marcado
Pelos Destinos meu primeiro instante.

Aos dois lustros a morte doravante
Me roubou, terna mãe, teu doce agrado;
Segui Marte depois, e em fim meu fado
Dos irmãos e do pai me pôs distante.

Vagando a curva terra, o mar profundo,
Longe da pátria, longe da ventura,
Minhas faces com lágrimas inundo.

E enquanto insana multidão procura
Essas quimeras, esses bens do mundo,
Suspiro pela paz da sepultura.

ANTONIO GEDEÃO
Arma secreta

Tenho uma arma secreta
ao serviço das nações.
Não tem carga nem espoleta
mas dipara em linha recta
mais longe que os foguetões.

Não é Júpiter, nem Thor,
nem Snark ou outros que tais.
É coisa muito melhor
que todo o vasto teor
dos Cabos Canaverais.

A potência destinada
às rotações da turbina
não vem da nafta queimada,
nem é de água oxigenada
nem de ergóis de furalina.

Erecta, na noite erguida,
em alerta permanente,
espera o sinal da partida.
Podia chamar-se VIDA.
Chama-se AMOR, simplesmente.

AUGUSTO GIL
Balada da neve

Batem leve, levemente,
como quem chama por mim.
Será chuva? Será gente?
Gente não é, certamente
e a chuva não bate assim.

É talvez a ventania:
mas há pouco, há poucochinho,
nem uma agulha bulia
na quieta melancolia
dos pinheiros do caminho...

Quem bate, assim, levemente,
com tão estranha leveza,
que mal se ouve, mal se sente?
Não é chuva, nem é gente,
nem é vento com certeza.

Fui ver. A neve caía
do azul cinzento do céu,
branca e leve, branca e fria...
- Há quanto tempo a não via!
E que saudades, Deus meu!

Olho-a através da vidraça.
Pôs tudo da cor do linho.
Passa gente e, quando passa,
os passos imprime e traça
na brancura do caminho...

Fico olhando esses sinais
da pobre gente que avança,
e noto, por entre os mais,
os traços miniaturais
duns pezitos de criança...

E descalcinhos, doridos...
a neve deixa inda vê-los,
primeiro, bem definidos,
depois, em sulcos compridos,
porque não podia erguê-los!...

Que quem já é pecador
sofra tormentos, enfim!
Mas as crianças, Senhor,
porque lhes dais tanta dor?!...
Porque padecem assim?!...

E uma infinita tristeza,
uma funda turbação
entra em mim, fica em mim presa.
Cai neve na Natureza
- e cai no meu coração.

ANTÓNIO NOBRE
Balada do caixão

O meu vizinho é carpinteiro,
Algibebe de Dona Morte,
Ponteia e cose, o dia inteiro,
Fatos de pau de toda a sorte:
Mognos, debruados de veludo,
Flandres gentil, pinho do Norte...
Ora eu que trago um sobretudo
Que já me vai a aborrecer,
Fui-me lá, ontem: (Era Entrudo,
Havia imenso que fazer...)
- Olá, bom homem! quero um fato,
Tem que me sirva? - Vamos ver...
Olhou, mexeu na casa toda.
- Eis aqui um e bem barato.
- Está na moda? - Está na moda.
(Gostei e nem quis apreçá-lo:
Muito justinho, pouca roda...)
- Quando posso mandar buscá-lo?
- Ao pôr-do-Sol. Vou dá-lo a ferro:
(Pôs-se o bom homem a aplainá-lo...)

Ó meus Amigos! salvo erro,
Juro-o pela alma, pelo Céu:
Nenhum de vós, ao meu enterro,
Irá mais dândi, olhai! do que eu!

CESÁRIO VERDE
Cinismos

Eu hei-de lhe falar lugubremente
Do meu amor enorme e massacrado,
Falar-lhe com a luz e a fé dum crente.

Hei-de expor-lhe o meu peito descarnado,
Chamar-lhe minha cruz e meu calvário,
E ser menos que um Judas empalhado.

Hei-de abrir-lhe o meu íntimo sacrário
E desvendar-lhe a vida, o mundo, o gozo,
Como um velho filósofo lendário.

Hei-de mostrar, tão triste e tenebroso,
Os pegos abismais da minha vida,
E hei-de olhá-la dum modo tão nervoso,

Que ela há-de, enfim, sentir-se constrangida,
Cheia de dor, tremente, alucinada,
E há-de chorar, chorar enternecida!

E eu hei-de, então, soltar uma risada.

DAVID MOURÃO-FERREIRA
Crepúsculo

É quando um espelho, no quarto,
se enfastia;
quando a noite se destaca
da cortina;
quando a carne tem o travo
da saliva,
e a saliva sabe a carne
dissolvida;
quando a força de vontade
ressuscita;
quando o pé sobre o sapato
se equilibra...
e quando às sete da tarde
morre o dia
- que dentro de nossas almas
se ilumina,
com luz livida, a palavra
despedida.

ARY DOS SANTOS
Estigma

Filhos dum deus selvagem e secreto
E cobertos de lama, caminhamos
Por cidades,
Por nuvens
E desertos.
Ao vento semeamos o que os homens não querem.
Ao vento arremessamos as verdades que doem
E as palavras que ferem.
Da noite que nos gera, e nós amamos,
Só os astros trazemos.
A treva ficou onde
Todos guardamos a certeza oculta
Do que nós não dizemos,
Mas que somos.

João do Rio (A Parada da Ilusão)


Como tinha sido aquilo! Diante do espelho, a dar um laço frouxo no lenço de seda, Geraldo sorria o sorriso satisfeito e vagamente mau que têm todos os homens quando recordam uma aventura em que foram os mais espertos. Como tinha sido!... O acaso, apenas o acaso. Pobre, sem pretensões, alugara por uma ninharia aquele casinhoto do morro, bem na rua de Santa Luzia, defronte do mar. O mar é um fornecedor de energia. Contemplar as ondas, aspirar o ar infiltrado de salsugem fazia-lhe bem. Depois, acordava cedo, quase de madrugada, e como a vizinhança era quase toda de pescadores, de banhistas, de jovens dos centros de regatas, ia mesmo de camisa-de-meia, com os pés nus metidos nuns enormes tamancos, ao estabelecimento balneários. Quem o visse grosso, forte, o bigode espesso, a negra cabeleira ondeante, o braço cabeludo, não o diria jamais um estudante de medicina. Havia no seu olhar qualquer coisa dos barqueiros de Nápoles, do langor das serenatas, e na alegria do semblante, na gesticulação, o ar da raça, o ar que não falha. Basta olhar um homem para se sentir de onde ele veio. Geraldo começara humilde, de origem italiana. De trabalho em trabalho fizera-se afinal acadêmico, graças à pertinácia da sua inteligência. Mas, por mais querido que fosse entre os colegas, era uma delícia para sua alma ir arrastar as pernas pela madrugada nos corredores da casa de banhos, quase nu, a conversar em napolitano com os banhistas, os tradicionais banhistas há vinte anos os mesmos.

Era tão bom, tão bizarro! A princípio, postava-se no pátio, junto da barraca do gerente, escura de roupas em trouxas com um quadro das chaves e o bico de gás aceso. Era a chegada dos freqüentadores. Havia mulheres pálidas, mães de família acompanhadas de crianças e de criadas, verdadeiros regimentos de cloróticos; havia sujeitos de passo trôpego, reumáticos, beribéricos, talvez tísicos; havia os habituais, senhores respeitáveis, de ar solene, que tomavam banho de mar desde crianças, aconselhando para todas as moléstias um mergulho no salso elemento; e sujeitos que vinham especialmente para a pândega, as lições de natação, os namoros com apertões debaixo da água, as meninas assanhadas, as cocotes, as cocotes de uma palidez mortal àquela hora... e havia também muita mulher chique, muita mulher de estalo, que os mirones da praia até olhavam de binóculo.

Mas Geraldo não tinha pretensões a conquistas, e aquele espreguiçamento na casa de banhos era apenas uma tonificação para o estudo, que recomeçava horas mais tarde, com o curso dos hospitais, as aulas, os livros. Depois descansar na gerência ia trocar palavras com os banhistas, rindo, brincando. Afinal atirava-se à água, no meio da algazarra dos conquistadores e das pequenas, e sempre tímido, só metido a gente do serviço. Ninguém o tomaria por um estudante e o próprio pessoal da casa tratava-o familiarmente por tu.

Uma vez, estava no corredor estreito e escuro a conversar com Nicolau, quando mesmo ao pé abriu-se a porta a um dos quartinhos e uma linda criatura loira chamou:

- O senhor banhista, venha cá.

Nicolau adiantou-se.

- Não, o outro. Sim, você mesmo.

Geraldo sorriu enleado. Tomavam-no por banhista! Ele, um estudante, um acadêmico! Mas, ao mesmo tempo que o fato o humilhava um pouco, sentia um desejo imprevisto e romântico de se deixar passar por banhista e ter assim a sua primeira façanha de estudante. Os estudantes são todos levados da breca! Apertou o braço de Nicolau, disse-lhe em calão de Nápoles que o deixasse, e aproximou-se. A dama loira estava já vestida para o banho.

- Não quero mais aquele banhista velho. Há cinco dias que tomo banho e logo no primeiro pedi-lhe conservar-se o quarto seco. Não há meio. Veja só. Fica você. Quer?

Geraldo curvava-se, sem uma palavra. A dama loira abriu a bolsa de prata, tirou uma nota.

- Tome. Não quer receber? Ora esta! Receba. Para esquentar. Ande lá.

- Grazzie, signorina...

- Diga: é italiano?

- Io sono venuto da Napoli fa tre anni...

- Ah! bem. E quantos anos tem de idade?

- Vinte e due.

A dama loira olhou-o profundamente, teve um leve suspiro, e ainda indagou:

- Como se chama?

- Túlio.

- Venha dar-me banho.

Infinitamente alegre com a aventura, Geraldo seguiu para o oceano a dar banho na dama loira, e quando voltou estava a arrebentar de riso. Não é que a mulherzinha o tomava mesmo por um banhista? Entretanto, o imprevisto do caso acendia-lhe o desejo de continuar. Sim, continuaria. E falou ao dono da casa de banhos. O homem, um italiano velho, não gostava de patifarias no estabelecimento. Mas, como era ele, Geraldo, consentia. Os outros riam a perder, um pouco envaidecidos porque, afinal, um estudante era tal qual eles. E Geraldo, que não dissera a coisa na escola por um certo pudor, não faltou mais. Logo cedo lá estava no estabelecimento, de pés nus, calção de meia, camisa aberta. A dama loira chegava sempre às seis e meia.

- Então, Túlio, o meu quarto?

- Pronto patroa, prontinho.

No fim do quinto dia ele fazia o papel de banhista de opereta, que ela lhe disse o nome. Era Alda Pereira, brasileira, do sul, tinha vinte e sete anos, e um protetor sério, o senador Eleutério, que a tomara depois da separação do marido. Dizia essas coisas naturalmente, aprendendo a nadar.

- Ai! não me afogues, rapaz. Morrer aos vinte e sete anos...

Ou então:

- Palavra de rio-grandense e de Alda Pereira que aprender a nadar custa!

Ele sorria queria levá-la para longe.

- Não, que o senador Eleutério pode saber; e eu, meu filho, depois que me separei do meu marido, tenho muito medo do ciúme...

Uma suave intimidade brotava aos poucos daquela hora de banho,.

Ele procurava termos vulgares, copiava o rir dos outros, dizia coisas grossas com um ar ingênuo, o seu tom de analfabeto, e ela parecia ter cada dia mais confiança. Já se encostava ao seu ombro, já lhe agarrava o pulso potente de certo modo. Uma vez perguntou-lhe:

- Você, um rapaz inteligente, por que não muda de vida?

- Para que, signorina? Aqui vivo, aqui hei de morrer...

- Criança! E não tens aspirações?

- Não, signorina!

- Aposto que nem sabe ler? Ele parou um instante atônito. Estaria ela a brincar, já sabedora de tudo? Seria o caso de avançar e não gozar mais o prazer de ser conquistado. Mas Alda tinha uma expressão de tão velutínea piedade, que não hesitou na farsa.

- É verdade. Nem sei ler.

- Meu Deus! Um rapaz de vinte e dois anos que não sabe ler!

Os seus olhos nesse dia tornaram-se mais úmidos, e ao rebentar de uma onda na ponte ela se deixou positivamente cair no seu largo peito. Não tinha dúvida! A mulher amava-o como certas damas amam os impetuosos adolescentes das classes baixas; a criatura era uma nevrosada romântica. Decididamente estava de sorte.

No dia seguinte, à saída, Alda Pereira indagou:

- Ó Túlio, quereria você aprender a ler?

- A signorina paga o professor?

- Ensino eu mesma.

- Então quero. Onde?

- Vá à minha casa. Logo, à noite, às sete; é a melhor hora.

Ele arranjara um dólmã de brim, um capote comprido; comprara o lenço de seda e um chapéu desabado para aparecer com a cor local. E fora. A dama loira habitava, numa rua transversal à Lapa, uma casa elegante e discreta, com duas criadas apenas. Fizeram-no entrar para uma saleta de estilo moderno, em que os móveis eram incômodos e as paredes tinham mulheres de túnica soprando trombetas. Alda lá estava.

- Entre, Túlio. Nada de acanhamentos. Francine, deixa a porta aberta... Sabe que já lhe comprei o seu livro? Sente-se, menino, sente-se...

Evidentemente, ela estava comovida, com um riso nervoso, as faces coradas. Ele achava aquilo deliciosamente ridículo. Outro qualquer teria avançado; a sua natural timidez, a pretensão de levar a cabo uma fantasia inibiam-no de um movimento de ataque. E parecia-lhe o cúmulo aprender o alfabeto ensinado por aquela interessante mulher, tal qual nos vaudevilles franceses, numa cena de burla. Sentou-se. Ela mostrou-lhe o livro na mesa, aproximando a cadeira do outro lado. E começou a ensinar, com a voz molhada de mistério.

- Que letra é esta?

Geraldo fazia-se inteiramente bronco, curvava-se muito para sentir os loiros cabelos dela roçando-lhe ao de leve a fronte. Às vezes as mãos se encontravam. As dela estavam geladas. As dele eram de brasa. Ao fim de uma hora, ela disse num suspiro:

- Bom, vai embora.

Ele quase não podia falar. Curvou-se mais, respirando forte, e ia tocá-la, quando ela chamou:

- Francine, acompanha o Túlio até a porta...

Como saiu ele furioso! A sua vontade foi declarar a verdadeira posição, tomar uma atitude. Mas para quê? Não teria realizado nada! Não a gozaria! Era uma aventura falha. Nunca! Tivesse que estudar o alfabeto a vida inteira - aquela, ao menos, não lhe escaparia. E, desde a madrugada, foi esperá-la na casa de banhos, apaixonado. Sim, de fato, apaixonado. Ele não estava senão apaixonado. A paixão é quase sempre o desejo de um triunfo, que se imagina de um certo e determinado modo. Há sempre um vencedor na alma de um amante. Ele queria pregar uma peça. Que peça? Enfim, queria confundir a linda mulher de estranha vontade. E Alda Pereira parecia também amá-lo, porque apareceu de olheiras, com ar fatigado.

- Sabe que estudei? fez ele, olhando-a fixo.

- Palavra?

- Quer tomar a lição hoje?

- Não, amanhã...

Ele se preparou, e foi. Já sabia o alfabeto. Alda Pereira sorria, enlevada.

- Mas como é inteligente! Vamos a soletrar. Olhe que você pode dar orgulho a um professor.

A aula ia continuar. Ela tinha a cabeça curvada, mostrando a nunca nua. Ele estava encostado à mesa, com aquele tom vulgar e potente, que o seu físico ajudava. A luz tênue. Geraldo moveu apenas a cabeça e roçou o bigode no pescoço venusto. Ela estremeceu, estendeu as mãos e suspirou como uma rola.

- Ah! Túlio...

Ele firmou os lábios polpudos e apertou-lhe as mãos. Ela se debateu, voltou a cabeça e a sua boca purpurina, ansiosa e ávida, sugou o lábio de Geraldo. Nem uma palavra. Estavam em outro mundo. Ele caiu de joelhos, ela pendeu, rolaram os dois. Era frenética e deliciosa. Deliciosamente deliciosa. A própria paixão a vibrar. E Geraldo voltou ao casinhoto, outro homem, aturdido, sem compreender o que via, a lembrar-se dos seus abraços e das palavras suas:

- Túlio! Túlio! não digas a ninguém! É a minha vida! Lembra-te do que fiz por ti. Só o amor, muito amor...

A vida de delírio começou então. Ela entregava-se e sentia-o como um imenso acorde do seu próprio ser. Cada beijo era uma revelação, cada abraço a dissolução do mundo. E a necessidade de ocultar de olhares profanos aquele sentimento ainda mais o incendiava. No banho, ela esperava o momento de apertá-lo, de mordê-lo, esperava com a porta do quarto entreaberta para um beijo; em casa, as lições de leitura eram a leitura de Paulo e Francesca, no verso de Dante. Jamais, porém, ela mostrava desconfiar da sua verdadeira situação, e Geraldo, sentindo-se indigno de si mesmo, continuava a ser o banhista Túlio, sem forças para dizer a verdade.

Afinal, o senador Eleutério soubera do caso, e, mais pai do que amante, resolvera mandar Alda à Europa, a ver se o escândalo terminava. Alda chorava, queria viver sem roupas, em Santa Luzia, com o seu Túlio, e fora um verdadeiro trabalho o convencê-la de uma breve separaçào.

- Tu queres, Túlio?

- É para o teu bem.

- Queres mesmo? É o nosso amor que matas...

Eleutério comprara as passagens combinara tudo. Era no dia seguinte que Alda partiria. Geraldo, preparando-se para a última visita, relembrava aqueles dois meses loucos de romantismo. Como aquilo fora! Era lá possível prever? Antes, porém, da partida era preciso dizer-lhe a verdade. Ele ia para o último ato.

Então penteou o cabelo como os banhistas, com muita brilhantina, pôs o chapéu e o capote, consertou ainda uma vez o lenço de seda e partiu. Alda estava na mesma sala da primeira vez, muito abatida. Estendeu-lhe as mãos e a boca.

- Meu amor... A última vez!

E deixou-se cair.

- Alda, que é isso? ânimo...

- Lembras-te? Há dois meses!... Quanto amor! Quando te vi, desde que te vi, meu amor, amei-te. Que me importava que tu fosses banhista? Se era a tua carne, o teu corpo, os teus olhos que eu desejava, meu adivinhado querido... Nunca, nunca mais sentirei o que senti por ti, no mar, quando te tinha ao meu lado, forte, meu fiel... Dize!... Nenhuma outra será como eu. Pois não?

- Mas, Alda...

- Àquela casa vão tantas mulheres! E tu tens que servir a todas, tens que as segurar, tens que as salvar...

Geraldo viu que era o momento.

- Alda, tenho que te dizer...

- Não digas! não digas nada!

- Não, há um engano; um engano que não pode continuar.

- Não há, Túlio, não há!...

- Há.

- Pois deixa-o!

- Não. Tu pensas que eu sou o banhista Túlio, nascido em Nápoles.

- E não és? És sim, és o meu Túlio.

- Criança! Eu sou estudante de medicina, chamo-me Geraldo Pietri.

Mas, como Alda recuava, com a fisionomia transmudada, Geraldo teve um resto de piedade.

- Sim, Geraldo, estudante, que se fez passar por banhista para te amar...

Um silêncio tombou. Alda sentara-se. Depois, como Geraldo se aproximasse, sorriu, afastando-o.

- Não, senta-te. Ou vai-te. É melhor ires. Vai-te.

- Mas a nossa última noite?

- Vai-te.

- Zangaste-te?

- Não, pensei que tinhas mais espírito. Não tens. Eu sabia, ouviste? eu sabia desde o primeiro dia, quem eras tu. Se não soubesse, teria perguntado por ti e dar-me-iam informações. Eu sabia. O meu amor nasceu de uma brincadeira. Tudo na vida é ilusão e só a ilusão é verdadeira. A verdade é a mentira porque é o comum e o vulgar. Amei-te, querendo fazer desse sentimento uma parada de gozo superfino em que ambos nos esforçássemos por dar a cada um a ilusão. Nunca se desengana uma mulher porque não se mata a ilusão. Eu amava um ser idealizado, que seria chocante se fosse verdadeiro, um banhista imprevisto, um selvagem, filho do mar e das canções, em ti que o fingias bem. Tu mataste Túlio. Que me importa a mim o estudante Geraldo? Já nem parto. Não é preciso. Adeus! E nunca, ingênuo rapaz, queiras ser verdadeiro nas coisas do sentimento que ama a ilusão.

Geraldo, nervoso, sem saber o que fazer do seu chapéu calabrês, sentia a lamentável, uma curiosa e lamentável sensação de que retornava o seu eu; um eu vulgar e comum. Alda fez-lhe ainda um vago gesto. Na rua, outra vez, envergonhado, furioso, triste, o pobre rapaz deitou quase a correr, com o receio de que o reconhecessem ainda mal vindo da parada romântica. E só no quarto humilde é que pôde chorar, chorar longamente não ter sabido guardar integralmente o princípio da vida - a ilusão…

Fonte:
http://www.biblio.com.br/conteudo/PauloBarreto/contosgeral.htm

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas de Natal n. 433)


Uma Trova Nacional

Peço a Deus, neste momento,
no fervor de minha prece,
um natal sem sofrimento
pra todo irmão que padece.
–THALMA TAVARES/SP–

Uma Trova Potiguar

Natal de festa e de luz,
desejo a todos os lares...
Que em dobro te dê Jesus!
Tudo o que me desejares.
–FRANCISCO MACEDO/RN–

Uma Trova Premiada

2001 - Petróplis/RJ
Tema: “JESUS” - 25º Lugar.

Que o renascer de Jesus,
nesta Noite de Natal,
traga uma réstia de luz
à cegueira universal!...
–MARIA MADALENA FERREIRA/RJ–

Uma Trova de Ademar

O Natal é uma beleza:
tem presentes, festa e luz...
Mas vejo que em cada mesa
falta um lugar pra Jesus!
–ADEMAR MACEDO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram

Deus com seu saber profundo,
para nos trazer a paz,
mandou o seu filho ao mundo
há dois mil anos atrás.
–MIGUEL RUSSOWSKY/SC–

Simplesmente Poesia

“O Dia de Natal...”
–RAIMUNDO NONATO/CE–

É bastante especial
porque de Deus, segue as leis:
é depois de vinte e quatro
e antes de vinte e seis
“Natal”, o nome da festa
Dezembro, o nome do mês!

Estrofe do Dia

No Natal eu me comovo
com o espírito natalino,
então peço ao Deus menino
pra vir na terra de novo,
pra convencer esse povo
e mostrar quem é Jesus,
trazer um pouco de luz
para esse povo infiel;
mesmo com o risco cruel
de voltar pra mesma cruz!
–ASSIS BRAGA/RN–

Soneto do Dia

Hoje é Natal.
–SÔNIA SOBREIRA/RJ–

Hoje é Natal, pressinto uma saudade
que se achega nas horas do sol posto
e na sombra que envolve a claridade,
tento esconder as lágrimas do rosto.

Hoje é Natal, por que tanta ansiedade?
Na insensatez deste aguilhão imposto,
que deixa um rastro de intranquilidade
aumentando ainda mais o meu desgosto.

Mas Deus Menino chega em passos lentos,
sem pressa, conduzido pelos ventos
a desfazer tristezas e cansaços.

Abraça-me a sorrir, apaga as mágoas,
estende pontes sobre turvas águas
e deixa uma esperança entre os meus braços.

Fonte:
Textos enviados pelo Autor

Fernando Sabino (Mais um Natal)


Aviso num restaurante de Brighton, que o dono fez imprimir no cardápio, à revelia dos garçons:

“Somos seus amigos e lhe desejamos um Feliz Natal. Por favor, não nos ofenda, dando-nos gorjetas.”

Junto à porta de saída, entretanto, os garçons fizeram dependurar uma caixinha sob o letreiro: “Ofensas”.

E no dia de Natal, como sempre, todos os bares de Londres permanecem fechados. Mas consegui realizar o milagre de encontrar em Chelsea um bar aberto, lá para as dez horas da noite. Meio desconfiado, fui entrando — logo um dos fregueses se adiantou, copo de cerveja na mão:

— Perdão, cavalheiro, mas o senhor já foi à igreja hoje?

E se justificou estendendo o braço ao redor, para apontar os demais fregueses, que bebiam cerveja em silêncio.

— Porque aqui dentro, nós todos já fomos.

E sem esperar resposta, passou-me o seu copo de cerveja, pedindo ao barman outro para si.

Festejou-se o Natal, já se festeja o Ano Novo. Há, porém, muita gente na triste perspectiva de passar ambas as festas em completa solidão. Como é o caso de Ethel Denham, ma velhinha com mais de oitenta anos de idade. Dona Ethel não tem filhos nem marido: nunca chegou a se casar.

Mora sozinha numa pequena casa de Exeter, fruto de sua aposentadoria. Para que não lhe aconteça alguma coisa sem ter a quem apelar, foi instalada à porta de sua casinha uma luz vermelha, que ela pode acender para pedir socorro, em caso de necessidade.

Na noite de Natal esta necessidade veio, mais imperiosa do que nunca. A boa velhinha não agüentava a idéia de estar sozinha e passar o Natal sem ninguém. Então acendeu luz de socorro e aguardou os acontecimentos.

Em pouco chegava um guarda de serviço, para ver o que tinha acontecido. E viu que não tinha acontecido nada.

— Fique um pouquinho — pediu ela. — Vamos conversar um pouco.

O guarda teve pena e resolveu ficar. Para não estar sem fazer nada, enquanto conversava fiado com a velhinha, fez um chá, aproveitou e lavou a louça, limpou a cozinha, deu ma arrumação na casa.

Para quê! Há gestos de solidariedade e compreensão que exigem outros, pois acostumam mal. Ou acostumam bem, ainda que na simples necessidade de participar da humana convivência. A dona da casa, encantada, na noite seguinte, depois de fazer o jantar, ficou esperando o seu Papai Noel tornar a aparecer. Como ele nunca mais viesse, não teve dúvida: acendeu a luz do pedido de socorro. Em pouco surgia outro guarda, para saber o que havia.

— Fique um pouquinho — pediu ela: — O senhor não aceita uma xícara de chá?

Mas este estava de serviço mesmo, não era mais noite de Natal nem nada. Então confortou a velhinha como pôde e caiu fora.

Ela, desde então, está esperando o primeiro guarda voltar — aquele sim, tão bonzinho que ele é. Não se conformando mais, depois de três noites de espera, vestiu um capote, enrolou-se num chale e saiu para o frio da rua até a guarnição local, a fim de saber onde andava o seu amigo. Mas não lhe guardara o nome, de modo que o comandante da guarnição, apesar de sua boa vontade, não conseguiu localizá-lo. Agora, a velhinha apela através do jornal, pedindo ao próprio que apareça uma noite dessas, para um dedinho de prosa, para uma xícara de chá.

Outros, cuja necessidade material é mais imperiosa ainda que o convívio, tiveram quem apelasse em nome deles durante o Natal. O vigário da minha paróquia, em West Hampstead, resolveu perder a cerimônia, durante a prédica:

— Vou ser claro e quem tiver ouvidos para ouvir, ouça: estamos nas vésperas do Natal, é preciso ser generoso, proporcionarmos aos pobres um fim de ano decente. Eles também têm direito. Quero hoje uma coleta mais abundante que nos outros domingos. Falei claro? Pois vou lançar mão de uma parábola, para não perder o hábito, e porque fica mais bonito. Já usei essa parábola em outros Natais, e com grande sucesso. Lá vai ela, prestem atenção.

E pôs-se a contar a história daquele inglês que estava passeando pelo campo, como só os ingleses costumam fazer, quando de repente caiu uma chuvarada. Ele, naquele descampado, não tinha onde se esconder. Avistou ao longe uma árvore solitária, correu para lá — mas era uma árvore desgalhada e desfolhada, quase que só tinha tronco. No tronco havia um oco — o homem não teve dúvida: meteu-se no oco da árvore, para se esconder da chuva.

Vai daí, no que a chuva amainou, o homem quis sair do oco da árvore, não houve jeito: a água tinha feito inchar a madeira e a passagem, já estreita, estreitara-se ainda mais. Ali estava ele, prisioneiro da árvore, sozinho no meio do campo, jamais sairia dali, certamente morreria entalado. Então começou a meditar na estupidez que fora sua vida, sempre preocupado com o próprio bem-estar, sem jamais pensar em seus semelhantes. Nunca lhe ocorrera dar uma esmola para os pobres no Natal, por exemplo. Se freqüentasse a igreja da sua paróquia (e aqui o vigário fazia um parêntese: “que certamente podia ser esta aqui mesmo, ele podia ser um dos senhores
que estão me ouvindo”), ele seria sensível a este apelo à sua generosidade.

Mas não: gastava dinheiro à toa, com bobagem, nunca abrira mão de um mínimo que fosse para atender à necessidade de alguém. E foi-se sentindo cada vez mais ínfimo, diminuindo diante de si mesmo, com a consciência da sua própria iniqüidade. Deu-se então o milagre: tanto diminuiu, ficou tão pequenino, que conseguiu sair do oco da árvore.

E o vigário arremata:

— Vamos ter uma estação bem chuvosa este fim de ano! Cuidado com o oco da árvore em que se meterem! Lembrem-se da própria pequenez! Dêem esmolas aos meus pobres!

Já o dono de uma área de estacionamento de automóveis onde costumo parar o meu carro, em pleno centro de Londres, deixa-se impregnar à sua maneira do espírito de generosidade reinante no Natal. Tanto assim, que dei com o seguinte aviso ali afixado:
“Feliz Natal! Hoje o estacionamento aqui é gratuito. Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade. Em tempo: a paz na terra aos homens de boa vontade termina impreterivelmente à meia-noite.”

Fonte:
Fernando Sabino. Livro Aberto. RJ: Editora Record, 2001.

Flávia Brocchetto Ramos (A Brincadeira na Poesia Infantil)


A literatura infantil, desde o seu surgimento, vem se debatendo com um sério dilema: tem ou não função educativa. Se nos reportarmos a sua origem, contatamos que o nascimento do gênero está associado, inicialmente, ao surgimento do sentimento de infância na sociedade ocidental. Mais tarde, a escola vê a literatura como um meio de auxiliar na educação das crianças. No momento em que se consolidam as instituições que pretendiam formar os pequenos, o gênero aparece com a finalidade de prepará-los para o convívio com os adultos, retirando-os da promiscuidade que tinham com os mais velhos (ARIÈS, 1981)

Se tanto o sentimento de infância como as instituições educacionais são invenções do adulto, nada mais lógico do que este também definir o que deveria e poderia ser dirigido aos pequenos como material de leitura. Assim, consolidam-se as fábulas, cuja função primeira era revelar uma lição de moral explícita aos leitores. Aliadas a elas, aparecem outros textos que orientam o leitor mirim sobre como ele deve relacionar-se com os adultos, sejam pais ou professores. Essas histórias acabam se consolidado e se mantêm até a atualidade, com algumas variações, como é o caso de Chapeuzinho vermelho, coletada entre camponeses e adaptada primeiro por Perrault e depois pelos irmãos Grimm. No Brasil, até hoje essa história ganha novas versões através de escritores como Guimarães Rosa, Aurélio de Oliveira, Chico Buarque, Dionísio da Silva, Pedro Bandeira, entre outros.

Multiplicaram-se os escritos que visavam orientar, explicitamente, as crianças sobre hábitos de higiene ou alimentares, como comer frutas e verduras frescas e saudáveis:

Devemos os nossos dentes
Zelar como maior rigor
Ser com eles negligentes
Causa sempre dissabor.

Fixaram-se ainda textos que pretendem atuar na formação da personalidade do infante, entre eles, aqueles que reverenciavam a figura materna e paterna, recitados no dia das mães ou dos pais. A mãe, que tanto reclamava das travessuras infantis, transforma-se em rainha do lar. Há também poemas para serem recitados nas comemorações como o dia do trabalho, do índio, do descobrimento do Brasil, da proclamação da independência, da bandeira. Qual estudante brasileiro, por exemplo, não lembra dos versos de Bilac, publicados em Poesias infantis, 1904, sobre as estações do ano, a bandeira nacional, o trabalho e, em epsecial, no poema “A boneca” que narra a briga de duas crianças por desejarem o brinquedo:

“E, ao fim de tanta fadiga,
Voltando à bola e à peteca,
Ambas, por causa da briga,
Ficaram sem a boneca...”

José Paulo Paes, reconhecido poeta para a infância, em Poesia para crianças (1996), lembra que, por muito tempo, a literatura para os pequenos privilegiou versos de má qualidade: Achei um relógio / Com uma corrente / Que lindo, que lindo / Agora sou gente. O escritor afirma que lia o texto na sua infancia, mas achava bobo, pois qual a criança, apenas por encontrar um relógio, iria se assumir como humano. Entretanto, ao lado de poemas encomendados para dar lições de moral ou para homenagear certos feitos, tendem a se fixar versos folclóricos que as crianças decoravam pelo prazer de ouvir a melodia.

Eu vi Mariquinha
Na beira do rio
Pescando peixinho
Tremendo de frio

Eu vi Mariquinha
Na beira da praia
Pescando peixinho
Enrolando na saia

Eu vi Mariquinha
Na beira do poço
Pescando peixinho
Atirando pros moços.

Há, ainda, as quadras populares que contém palavras proibidas pelos adultos, mas apreciadas pelas crianças:

Tico-tico foi a venda
Mas não tinha o que comprar
Comprou uma cadeirinha
Mas cadê bunda pra sentar?

A tradição oral de textos lúdicos vai além de quadras e cantigas e abrange os trava-línguas, as adivinhas, entre outros. As crianças gostam muito dessas manifestações populares, porém a escola geralmente as ignora. Afinal, cabe à instituição educacional a formação do sujeito e para que serviriam quadras e poemas que não têm uma mensagem explícita?

Não há como conciliar poesia com uma mensagem direta. Enquanto a escola, na sua tentativa de educar, privilegia mensagens objetivas e claras, a poesia, constituída por uma linguagem condensada, privilegia a plurissignificação, a dubiedade, a incerteza quanto ao sentido mais preciso. Será possível a união feliz entre escola e poesia? O que fazer neste caso?

Não dá para esquecer que a escola tem a função de auxiliar no desenvolvimento das potencialidades cognitivas da criança como também de contribuir para a constituição da identidade, do autoconhecimento do infante. Será que o professor poderia ver na poesia um caminho possível para tornar o aluno mais capaz?

Sabe-se, a partir de estudos de Gardner (1994), que a mente humana desenvolve diferentes inteligências: lingüística, musical, lógico-matemática, espacial, corporal-cinestésica e pessoais. Há evidências significativas de que as diversas competências intelectuais gozam de relativa independência, isto é, o homem não precisa ter a mesma aptidão em todos os campos.

Na tentativa de união entre escola e poesia, interessa particularmente a inteligência lingüística. Esta é mais ligada à produção artístico-literária e o texto verbal constrói-se por meio da palavra.

Quem melhor do que o poeta perceberia e colocaria em prática as diversas operações e potencialidades da linguagem? Cabe a ele, devido à sua extrema sensibilidade e trabalho árduo com a palavra, ordená-la no que se refere ao seu som e significado, mantendo à coerência do texto. Além do aspecto semântico, é fundamental para a construção do texto poético, o domínio fonológico, responsável pelos sons e seus possíveis efeitos, pois ambos podem gerar significados. A seleção vocabular, com vistas a construir certas imagens e a transmitir determinadas emoções, não se restringe apenas ao sentido das palavras, respeita as variações de uso e também o aspecto sonoro. Os sons, aliados à carga semântica dos termos e ao lugar da palavra no verso (sintaxe), estabelecem novas significações para o conjunto de vocábulos do poema, de modo que a interação entre os diferentes níveis do texto torna-se mais complexa do que parece.

A sintaxe já anunciada é outro elemento presente no texto poético. É a partir dela que os vocábulos são ordenados nos versos e depois nas estrofes. Uma das marcas do poético é o desvio da norma, mas para o leitor perceber o desvio, há que primeiro conhecer a regra, pois só assim sente-se elogiado por perceber o jogo proposto pela subversão. A sintaxe estabelece uma íntima relação com o aspecto semântico, já que a escolha de determinada estrutura causa um efeito específico, contribuindo para a significação do texto.

Além da fonologia, da sintaxe e da semântica, há que considerar o direcionamento do texto, fator que também auxilia na construção do sentido da obra. Qual é a função do texto? Em que momento ele será apresentado? O texto até pode ser lúdico, mas, muitas vezes, o docente no seu desejo de buscar uma finalidade, subverte-o. A linguagem poética deve estimular, persuadir, encantar, informar, confirmar. Jakobon aponta seis funções para a linguagem em uso: referencial, centrada nos referentes textuais ou situacionais; expressiva, revela atitude do emissor no que tange a mensagem a ser comunicada; fática, verifica o contato entre os interlocutores; metalinguística, confere a precisão do código e as possíveis explicitações; conotativa, centra-se no destinatário; e poética, evidencia as potencialidades da mensagem, já que a linguagem centra-se em si mesma. O discurso diário encontra-se contaminado pelas funções apresentadas, dependendo do contexto onde ele está inserido e da sua finalidade.

A escola privilegia a inteligência lingüística e a linguagem referencial. A poesia, no entanto, através da função poética, põe em evidência o lado palpável dos signos, através da sonoridade, do ritmo e de suas potencialidades criativas. A função poética não é privilégio de gênios, ela pode estar presente no cotidiano e manifesta-se com freqüência, por exemplo, no discurso publicitário e na fala infantil.

As considerações de Gardner atribuem ao poeta o grau máximo de capacidade na exploração das potencialidades lingüísticas. Assim, fica a sugestão de que a poesia pode iluminar ações pedagógicas. A leitura do poema apela para a atuação de diversos processos mentais, desde a observação e percepção da realidade, extração de sensações sobre a mesma até a concretização de imagens que são expressas por meio de palavras-sínteses, evidenciando operações centrais da linguagem como a poética, impondo-se a presença do texto poético na escola.

Bem, se o homem sempre pode ser mais inteligente, mais capaz, como deve se portar a escola em relação à competência lingüística do falante? Que espaço pode oferecer à poesia? Lamentavelmente, a poesia tem encontrado obstáculos para adentrar nas escolas. Porém, concebendo o processo de aprendizagem como uma possibilidade de tonar o homem mais inteligente, impõe-se o contato do público mirim com poemas de qualidade, devido a aspectos intrínsecos do texto como: a condensação da linguagem que provoca a plurissignificação aliada à originalidade, seja pela temática seja pela linguagem.

Com a palavra, a poesia ...

O jogo, tão apreciado pelas crianças, surge na poesia através da brincadeira com as palavras como uma forma de representar o jogo social e de conhecimento do mundo e de si mesmo. O poema brinca com as palavras, seja pela repetição de fonemas seja pela surpresa no emprego de certos vocábulos. Esse jogo pode ser vivido na leitura da poesia infantil brasileira produzida na atualidade. Nesse sentido, serão observados alguns aspectos do livro Um passarinho me contou, de José Paulo Paes (1997), como o ludismo que se constitui pela linguagem visual e verbal, pois a ilustração contribui para o sentido gerado pelo leitor. O texto, no livro, é a união da palavra e da ilustração.

Que tal trocar os versos de “achei um relógio”, que o poeta José Paulo Paes escutava na infância, por um poema escrito por ele, denominado "Pura verdade":

Eu vi um ângulo obtuso
Ficar inteligente
E a boca da noite
Palitar os dentes.

Vi um braço de mar
Coçando o sovaco
E também dois tatus
Jogando buraco

Eu vi um nó cego
Andando de bengala
E vi uma andorinha
Arrumando a mala.

Vi um pé de vento
Calçar as botinas
E o seu cavalo-motor
Sacudir as crinas.

Vi uma mosca entrando
Em boca fechada
E um beco sem saída
Que não tinha entrada.

É a pura verdade,
A mais nem um til,
E tudo aconteceu
Num primeiro de abril

O texto composto em primeira pessoa auxilia o leitor no processo de identificação com as novidades apresentadas pelo eu-poético, de modo que aquele se assume também como o ser que descobre as incoerências reveladas. Através da métrica oscilante entre cinco e seis sílabas poéticas, o poema de seis estrofes revela um tecido melódico formado por rimas consoantes externas como inteligentes/dentes, sovaco/buraco; e internas, cocando/jogando, andando/arrumando. Há ainda as rimas toantes, mais sutis, no interior dos versos que também contribuem para a melopéia: mosca/boca, ficar/palitar.

Brincando com a imaginação infantil, o poema sugere uma série de imagens, aparentemente ilógicas, as quais contêm humor e podem ser visualizadas pelo leitor, levando-o ao riso e a constatação de paradoxos existentes. Algumas das contradições exploradas pelo eu-lírico retomam aspectos da natureza: a boca da noite / palitar os dentes, andorinha / arrumar uma mala, pé de vento / calçar botinas. O ilogismo sugerido pela palavra contribui para o ludismo da poesia e pode ser considerado um recurso instigante para a imaginação infantil, assim como as brincadeiras lingüísticas próprias da criança. O jogo sonoro estende-se ao emprego inusitado dos vocábulos.

O poema “Roda” inicia por uma cantiga de roda: Ciranda cirandinha / vamos todos cirandar, anunciando o vínculo com o folclore. O eu-lírico brinca, novamente, com o leitor, agora recriando a cantiga. A métrica oscilante de 6 ou 7 sílabas da “Ciranda” é mantida no poema, mas ocorre a inserção de um personagem que entra na brincadeira assim como o leitor que está sendo convidado a brincar . Trata-se de Ciro, um menino paraplégico que só brinca de ciranda se for levado nas costas - Ciro participa da brincadeira porque é levado pelos colegas e o leitor pela atribuição de sentido dada às constituições semânticas propostas, tanto pela palavra como por aspectos da visualidade, seja a ilustração seja a cor e os rabiscos colocados na base da página:

Ciranda cirandinha
Vamos todos cirandar.

E se o Ciro não andar
nós o levamos nas costas:
aposto que o Ciro gosta,
nas tuas costas ou nas minhas,
de dançar com a perna alheia
a ciranda cirandinha.

Vamos dar a meia-volta
Volta e meia vamos dar.

Mesmo se a meia furar
e se furar o sapato
daremos por desacato
volta sem meia ou sapato,
volta e meia em pés descalço
cantando todos bem alto:

Ó ciranda cirandinha
Vamos todos cirandar
Vamos dar meia-volta
volta e meia vamos dar.

O ludismo sonoro é criado por meio do ritmo, das rimas, aliterações e também da paranomásia, que aproxima palavras com sons semelhantes mas significados distintos: costa e gosta. A obra não esquece de outro elemento da tradição popular, as adivinhas, que aqui aparecem impressas e acompanhadas de ilustrações. Surgem como um enigma, elemento do jogo, em que a síntese está presente. O leitor precisa pensar para responder a charada. E ajudar o aluno a pensar é justamente a maior atribuição da escola.

Na primeira adivinha - Não me decapite / Pensando que eu faleça / Da cauda faço cabeça - a ilustração, auxilia na resolução da charada. É mais um elemento que contribui para chegar a resposta. Outra charada é: Visto por inteiro/ o que pisa o chão / mas não sou inteira não. A estrutura da adivinha é mantida, mas são inseridas outras idéias que estão em consonância com o modo como a criança apreende a realidade, como se percebe no poema “Metamorfose”:

Me responda você
Que parece sabichão:

Se lagarta vira borboleta
Por que trem não vira avião?

A indagação do eu-lírico, assemelha-se a indagação da criança que tenta compreender o mundo por meio de processos associativos.

O poeta não esquece da poesia narrativa. "O capitão que fugiu do frio", construído por quatro estrofes de quatro versos e uma estrofe de dois, tem versos de seis a oito sílabas poéticas que rimam entre si, pelo esquema AABB ou ABBA. As rimas ora são consoantes como em frio/navio, ora toantes como entre lobo/ fogo. Além disso, do ponto de vista da sonoridade, destaca-se ainda a assonância, provocada pela repetição do som nasal, conferindo um tom musical que tanto agrada ao leitor infantil.

O poema salienta a oposição entre frio e calor, explicitada pelo logro que o capitão sofre. Ele vai para a terra do fogo em busca de calor, mas encontra apenas frio, evidenciando a incoerência do nome, fato que orienta o leitor sobre uma característica da linguagem: a arbitrariedade entre o ser e o signo que o nomeia.

Através de um jogo de associação e síntese, o poema “Anatomia” apresenta relações aparentemente ilógicas sobre partes do corpo do palhaço, mas que surpreendem positivamente o leitor pelo jogo semântico. Esse jogo tira as palavras do contexto habitual, inserindo-as em outro contexto e o deslocamento gera a brincadeira que provoca o riso. A associação é a operação empregada para definir os termos: “A careca do palhaço / é a lona do circo.” Como se definem os olhos, o nariz, a boca e o coração do palhaço? Como é o nariz do palhaço? De que cor? De que forma? As respostas das questões cabem ao leitor.

Em "Bons e maus negócios", a oposição semântica já é evidenciada no título. O poeta joga com a duplicidade de termos Peru, pois ora o relaciona a um país da América Latina, ora a uma ave doméstica: “ .... se for para o Peru / não espere que lhe respondam / quando gritar "glu, glu, glu!"”

A disposição da palavra na página, além da ilustração pode ser um elemento que contribui para a significação, como se constata no poema “Terremoto”, cujas sílabas do vocábulo terremoto estão espalhadas como se tivesse sofrido um tremor. A compreensão do texto passa pela leitura dos códigos visual e verbal.

A proposta lúdica permeia todo o livro e instiga a imaginação do leitor. A obra rebela-se com a idéia de poesia como uma linguagem enfeitada e sempre marcada com rimas e métrica fixa. Ao contrário, mostra a poesia voltada para questões da realidade infantil, através de uma linguagem que revela tanto a surpresa do mundo interno do leitor como também do meio externo. O livro atua como o companheiro que evidencia paradoxos da linguagem e da vida, atendendo a constantes inquietações da criança que vive a indagação dos porquês. O poeta assume a perspectiva da criança, ao olhar o mundo e o revelar a partir das indagações mirins.

Referências
ARIES, Philippe. História social da criança e da família. 2.ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1981.
PAES, José Paulo. Um passarinho me contou. Il. Kiko Farkas. 2. ed. São Paulo: Ática, 1997.
GARDNER, H. Estruturas da mente: a teoria das inteligências múltiplas. Trad. Sandra Costa. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.
PAES, José Paulo. Poesia para crianças. São Paulo: Giordano, 1996.

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Dra. Flávia Brocchetto Ramos. Professora no Departamento de Letras da Universidade de Caxias do Sul e no Programa de Pós Graduação em Letras - Leitura e Cognição - na Universidade de Santa Cruz do Sul.

Fonte:
http://www.ucm.es/info/especulo/numero29/brincade.html