Rua deserta. Ao longe, os últimos ruídos na noite que se prepara para repousar à espera da próxima manhã. Vulto solitário, a garota, quase ainda criança, se move como sombra indecisa.
Corre e colhe. Colhe. Corre. De tonel em tonel, de saco em saco, do lixo recolhe o hipotético sustento. Latas, vidros, plásticos e papéis configuram o (im)provável lucro. Corre e colhe sujeira, cortes, arranhões. Aos magros dedos, que não aprenderam a escrever nem contar, diligentemente esmiúçam como se fossem à cata de tesouros. Rende-se à tentação de guardar para si um vidrinho vazio de perfume. Aspira-lhe os resquícios do odor outrora ali guardado. Devaneia: um vestido vermelho, um par de sapatos combinando, uma passadeira bordada cingindo-lhe a raiz dos cabelos. E o perfume. Não sabe se é de rosa, jasmim ou alguma flor exótica, daquelas pelas quais gente que pode paga uma fortuna. O das rosas que aspirara no enterro da mãe, emurchecidas, lhe deixara uma desagradável impressão. Do jasmim, remota lembrança da casa da avó, doce demais, deixara-a levemente enjoada. Seria de algo que desconhecia…
O tabefe no ouvido pega-a desprevenida. Rodopia e cai sobre um monte de caixas de papelão vazias – ainda com o vidrinho de perfume na mão. Enfrenta os congestos olhos de beberão contumaz do padrasto: “Ainda não terminei! Falta procurar no lixo da lanchonete! Por favor, pai Dé!”. Surdo ao seu apelo o homem vocifera: “Tu pensa que pode me enrolar?! Quem te deu esse vidro de perfume, vagabunda?!”. Chocada, tentando se levantar, a garota procura se defender: “Ninguém! Achei aqui no lixo…”. Em resposta, o homem chuta-a brutal e repetidamente. O vidrinho de perfume espatifa-se além. Antes que possa recompor o corpo contorcido pela dor, o homem agiganta-se sobre a menina indefesa e a violenta. Satisfeito, cambaleando, apossa-se do saco contendo o produto da colheita noturna da garota e sai à procura de algum boteco ainda aberto àquelas horas…
Sobre os refugos da cidade, uma vida se esvai lentamente, ceifada pela selvajaria (in)humana.
O caminhão coletor de lixo, nesta madrugada, recolhera mais que sacos, caixas e engradados?
Fonte:
Academia de Letras de Maringá. III Concurso Literário Cidade de Maringá – Modalidade Crônica – Troféu Luiz Lourenço. Disponível no site da Academia de Letras de Maringá.
Corre e colhe. Colhe. Corre. De tonel em tonel, de saco em saco, do lixo recolhe o hipotético sustento. Latas, vidros, plásticos e papéis configuram o (im)provável lucro. Corre e colhe sujeira, cortes, arranhões. Aos magros dedos, que não aprenderam a escrever nem contar, diligentemente esmiúçam como se fossem à cata de tesouros. Rende-se à tentação de guardar para si um vidrinho vazio de perfume. Aspira-lhe os resquícios do odor outrora ali guardado. Devaneia: um vestido vermelho, um par de sapatos combinando, uma passadeira bordada cingindo-lhe a raiz dos cabelos. E o perfume. Não sabe se é de rosa, jasmim ou alguma flor exótica, daquelas pelas quais gente que pode paga uma fortuna. O das rosas que aspirara no enterro da mãe, emurchecidas, lhe deixara uma desagradável impressão. Do jasmim, remota lembrança da casa da avó, doce demais, deixara-a levemente enjoada. Seria de algo que desconhecia…
O tabefe no ouvido pega-a desprevenida. Rodopia e cai sobre um monte de caixas de papelão vazias – ainda com o vidrinho de perfume na mão. Enfrenta os congestos olhos de beberão contumaz do padrasto: “Ainda não terminei! Falta procurar no lixo da lanchonete! Por favor, pai Dé!”. Surdo ao seu apelo o homem vocifera: “Tu pensa que pode me enrolar?! Quem te deu esse vidro de perfume, vagabunda?!”. Chocada, tentando se levantar, a garota procura se defender: “Ninguém! Achei aqui no lixo…”. Em resposta, o homem chuta-a brutal e repetidamente. O vidrinho de perfume espatifa-se além. Antes que possa recompor o corpo contorcido pela dor, o homem agiganta-se sobre a menina indefesa e a violenta. Satisfeito, cambaleando, apossa-se do saco contendo o produto da colheita noturna da garota e sai à procura de algum boteco ainda aberto àquelas horas…
Sobre os refugos da cidade, uma vida se esvai lentamente, ceifada pela selvajaria (in)humana.
O caminhão coletor de lixo, nesta madrugada, recolhera mais que sacos, caixas e engradados?
Fonte:
Academia de Letras de Maringá. III Concurso Literário Cidade de Maringá – Modalidade Crônica – Troféu Luiz Lourenço. Disponível no site da Academia de Letras de Maringá.
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