segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Machado de Assis (Fuga do Hospício e Outras Crônicas)


O livro Fuga do Hospício e Outras Crônicas é uma antologia com alguns textos publicados por Machado de Assis.

Divide-se em três partes, cada uma contendo dez crônicas com temática que se relacionam exatamente com o título de cada parte. São elas:

PARTE I – ALMA HUMANA

A primeira parte da seleção de crônicas ressalta bem as peculiaridades do íntimo humano, o pensamento, a postura e as atitudes do ser humano nas mais variadas circunstâncias, ressaltando a loucura, a ganância, a hipocrisia, o abandono, o canibalismo e muitas outras atitudes de cunho negativo que podem ser produzidas pela alma humana.

Fuga do hospício

Publicada em 31 de maio de 1896. O autor narra uma fuga de loucos que ocorreu num hospício carioca e discorre sobre seu temor em dirigir a palavra às pessoas na rua da tal fuga, afinal, qualquer uma delas pode ser um dos loucos que fugiram do hospício, como nos revela este trecho:

De ora avante, quando alguém vier dizer-me as coisas mais simples do mundo, ainda que me não arranque os botões, fico incerto se é pessoa que se governa, ou se apenas está num daqueles intervalos lúcidos, que permitem ligar as pontas da demência às da razão. Não posso deixar de desconfiar de todos.

Machado defende que todos podem ser loucos, afinal, naqueles dias “o juízo passou a ser uma probabilidade, uma eventualidade, uma hipótese”. Justifica tal afirmativa ao descrever os fatos que ocorreram durante a semana, como se os mesmos fossem fruto da loucura que compõe tais dias:

De resto, toda esta semana foi de sangue, – ou por política, ou por desastre, ou por desforço pessoal. O acaso luta com o homem para fazer sangrar a gente pacata e temente a Deus. No caso de Santa Teresa, o cocheiro evadiu-se e começou o inquérito. Como os feridos não pedem indenização à companhia, tudo irá pelo melhor no melhor dos mundos possíveis. No caso de Copacabana, deu-se a mesma fuga, com a diferença que o autor do crime não é cocheiro; mas a fuga não é privilégio de oficio, e, demais, o criminoso já está preso. Em Manhuaçu continua a chover sangue, tanto que marchou para lá um batalhão daqui. O comendador ferreira Barbosa, (a esta hora assassinado) em carta que escreveu ao diretor da Gazeta e foi ontem publicada, conta minuciosamente o estado daquelas paragens. Os combates têm sido medonhos. Chegou a haver barricadas (...)

O autor encerra o texto apontando a música como uma solução à demência, à loucura de seus dias:

Enxuguemos a alma. Ouçamos, em vez de gemidos, notas de música. (...) se consideramos (...) a necessidade que há de arrancar a alma ao tumulto vulgar para a região serena e divina (...).

Um pouco de astronomia

Publicada em 23 de dezembro de 1894, versa sobre o ocorrido durante a semana. Num primeiro momento, o autor narra um jantar realizado pelos ministros da Suécia e Noruega junto a oficiais da marinha e os cônsules da Holanda e Dinamarca.

Num segundo momento, através de uma pergunta feita por seu criado, o autor discorre sobre política e encerra seu texto falando sobre a descoberta de um novo planeta entre Marte e Mercúrio, relacionado à descoberta do astro com um terremoto ocorrido na Itália.

(...) um astrônomo diria sobre este novo planeta coisas importantes. Que direi eu? Nada ou algum absurdo. Buscaria achar alguma relação entre os planetas que aparecerem e as cidades que ameaçam desaparecer com terremotos (...)
Andará a terra com dores de parto, e alguma coisa vai sair dela, que ninguém espera nem sonha? Tudo é possível! Quem sabe se o planeta novo não foi o filho que ela deu à luz por ocasião dos terremotos italianos?

Por fim, num teor reflexivo, conjectura se a ganância das grandes nações fará que estas, depois de dominarem o continente africano por completo, não decidirão partir para a conquista dos outros planetas. Mais uma vez, narrando os fatos da semana, constrói uma crítica. Seu alvo agora é a ganância das grandes nações que exploram a África, as quais acabam por digladiar ideológica ou belicamente por necessidade de impor sua economia e ideologia às nações daquele continente.

Abolição e liberdade

Publicada em 19 de maio de 1888, um homem reúne seus amigos para um jantar e anuncia que, mesmo sem a escravidão ser abolida, dar alforria ao seu escravo Pancrácio. Tamanho ato de humanidade é elogiado por todos os seus companheiros. O homem permite que o negro continue morando em sua casa e trabalhando em troca de um salário. No entanto, mesmo alforriado, o negro apanha constantemente do patrão, o qual almeja um cargo na política:

Pancrácio aceitou tudo; aceitou até um peteleco que lhe dei no dia seguinte, por não me escovar bem as botas; efeitos da liberdade. Mas eu expliquei-lhe o peteleco, sendo um impulso natural, não podia anular o direito civil adquirido por um direito que lhe dei. Ele continuava livre, eu de mau humor; eram dois estados naturais, quase divinos.
Tudo compreendeu o meu bom Pancrácio; daí para cá, tenho-lhe despedido alguns pontapés, um ou outro puxão de orelhas, e chamo-lhe besta quando lhe chamo filho do diabo; coisas todas que ele recebe humildemente, e (Deus me perdoe!) creio que até alegre.

O autor busca, através deste irônico caso em particular, demonstrar sua opinião acerca da escravidão e, sobretudo, criticar a postura hipócrita daqueles que buscam, através de demonstrações públicas de um falso caráter, angariar a simpatia e admiração da sociedade, quando, em seus íntimos, continuam a ser pessoas mesquinhas e pobres de espírito.

Bondes elétricos

Publicada em 16 de outubro de 1892, num bonde, o narrador nota que, enquanto o cocheiro e o condutor cochilam, os dois burros que puxam o veículo conversam. Ambos falam um ao outro sobre a tristeza e a amargura de serem burros e o destino que lhes é reservado, afinal, quando não servirem mais para puxar bondes serão enviados para puxar carroças. Depois quando não servirem mais para tal serviço, serão abandonados nas ruas, onde morrerão e serão levados por uma carroça, puxada por outro burro, o qual possuirá o mesmo destino. O diálogo entre os dois animais e o assunto sobre o qual falam é uma espécie de metáfora sobre velhice, esquecimento e abandono e, por fim, a morte. O autor busca traçar uma crítica à modernidade que suplanta os antigos moldes de trabalho, pois os bondes elétricos começavam a surgir pelas ruas do Rio de Janeiro, substituindo os burros que antes faziam tal tarefa.

Carnívoros e vegetarianos

Publicada em de março de 1893, uma greve de açougueiros corta o abastecimento de carne para a cidade. O autor, vegetariano por escolha própria, revela as vantagens da dieta composta apenas por vegetais. Aponta as diferenças entre a carne repleta de vícios) e os vegetais (repletos de virtude). Mudando um pouco de assunto, encerra o texto criticando o pensamento de que a instrução pública de sua época devesse ensinar a língua italiana para as crianças e jovens, tendo em
vista o grande número de imigrantes italianos no Brasil. O objetivo central do texto é, partindo de assunto da greve dos açougueiros (assunto em alta na semana em questão), criticar as propostas entabuladas nas discussões entre os senhores Capelli e Maia Lacerda sobre lecionar, na instrução pública brasileira, o idioma italiano. O autor usa de seu sutil sarcasmo ao construir o texto, concluindo em tom de sugestão:

Outro ponto alegre do discurso é o que trata da necessidade de ensinar a língua italiana, fundando-se em que a colônia italiana aqui é numerosa e crescente, e espalha-se por todo o interior. Parece que a conclusão devia ser o contrário; não ensinar italiano a povo, antes ensinar nossa língua aos italianos. Mas, posto que isso não tenha nada a ver com o vegetarianismo, desde que faz com que o povo possa ouvir as óperas sem libreto na mão, é um progresso.

Poder relativo

Publicada em 20 de abril de 1885, nela o autor justifica seu posicionamento acerca de ter seu nome citado nas listas de sugestão para o Ministério e defende sua vontade em ingressar na política. Mesmo falando sobre si mesmo, machado ironiza:

Creia o leitor só a presença do nome na lista me faria muito bem. Faz-se sempre bom juízo de um homem lembrado, em papéis públicos, para ocupar um lugar nos conselhos da coroa, e a influência da gente cresce.

Crônica que deixa de lado o ato de narra ou comentar os acontecimentos da semana, o autor concentra-se apenas em falar sobre seus desejos de ingressar na vida política.

Antropofagia

Publicada em 1 de setembro de 1895, a crônica discorre sobre as notícias de enforcamento de um professor de inglês que devorou algumas crianças em Guiné. Como de costume, o autor utiliza-se da ironia ao cogitar que talvez, o professor, ao devorar as crianças, estivesse apenas tentando explicar de modo prático o que era a antropofagia. A seguir, faz apontamentos sobre casos semelhantes de canibalismo ocorridos no Brasil. A crônica parte de tal fato para, num tom sutil criticar o academicismo e a intelectualidade, como vemos no trecho:

Demais, pode ser que o professor quisesse explicar aos ouvintes o que era canibalismo, cientificamente falando. Pegou um pequeno e comeu-o. os ouvintes, sem saber onde ficava a diferença entre canibalismo científico e o vulgar, pediram explicações; o professor comeu outro pequeno. Não sendo provável que os espíritos da Guiné tenham a compreensão fácil de um Aristóteles, continuaram a não entender, e o professor continuou a devorar meninos. É o que em pedagogia se chama ‘lição das coisas’.
Se fosse assim, deveríamos antes lastimar o sacrifício que fez tal homem, comendo o semelhante, para o fim de ensinar e civilizar gentes incultas.

Uma fábula persa

Publicada em 11 de agosto de 1878. O autor traça uma comparação entre o partido republicano e uma lenda persa, em que um jovem decide plantar limas para vender. Como as mesmas não se desenvolvem, ele passa a culpar o sol ao invés do solo, do adubo ou de sua própria inexperiência como lavrador. O sol foi assim escolhido por ser a razão mais visível, que lhe servil ao desabafo e que pudesse gritar e esbravejar seu ódio mesmo que não fosse culpado. O jovem arranca as ervas do solo e fica sem ofício. O autor conclui, numa relação mais do que direta ao Partido Republicano, afirmando que o mesmo deve conhecer toda a política social antes de entrar na vida política do país, para que num problema causado por sua própria incapacidade, um inocente não seja acusado injustamente.

Devaneio de um rei

Publicada em 11 de março de 1894. Partindo da história da colonização da ilha de Trindade, o autor defende que, se fosse rei, o preferiria ser sem súditos. Viver em uma ilha apenas com sua rainha e seu cozinheiro. O texto é uma crítica aos bajuladores dos poderosos, afinal, se ele desejava ser rei sem súditos era apenas para livrar-se tanto de petições e burocracia quanto de bajuladores, como fica evidenciado nas palavras do autor. Tratar-se, portanto, de uma forte crítica à conduta humana, sobretudo, quando levamos em conta o assédio bajulatório característico de pessoas que buscam um reconhecimento social através de “amizades” com homens públicos, para obterem respaldo e, quem sabe, posição pública favorável:

Quando nascesse uma espinha na cara, não haveria uma corte inteira para me dizer que era uma flor, uma açucena, que todas as pessoas bem constituídas usavam por enfeite; (...) Se eu perdesse um pé, não teria o prazer de ver coxear os meus vassalos.

A forma irônica e picante com que o narrador se pronuncia nessa passagem demonstra sua habilidade em detectar e expor as falhas e os interesses humanos, que se apresentam como seres fracos e venais, não escolhendo postura ética ou moral para que possam ascender-se a alcançarem reconhecimento perante a sociedade.

Sobre a morte e o morrer

Publicada em 6 de setembro de 1896. Influenciado pela lembrança das mortes dos amigos Alfredo e Artur Gonçalves, o autor faz considerações sobre o envelhecer e o morrer. Versa sobre o número cada vez mais crescente de mortes que permeiam sua época:

Não me acuseis de teimar neste chão melancólico. O livro da semana foi o obituário, e não terás lido outra coisa, fora daqui, senão mortes e mais mortes.

Prossegue falando sobre os homens que matam uns aos outros e encerra discorrendo não sobre a morte impingida de um homem a outro, e sim à morte causada pela própria natureza:

E ainda não como aquele gênero de morte que nas mãos dos homens, nem dentro deles, o que a natureza reserva no seio da terra para distribuí-la por atacado. Lá se foi mais uma cidade do Japão, comida por um terremoto, com a gente que tinha.

Aqui podemos observar uma forte tendência do escritor: o questionamento existencial e a reflexão acerca do sentido da vida. Não podemos deixar de referir-nos ao fato de que o autor vivenciou as contradições do fim do século, deixando-se, portanto, impregnar-se de angústia e desilusão em relação à euforia materialista que tomou conta do mundo desde a segunda metade do século XIX. Não é de se estranhar que em várias narrativas do autor aparecem personagens que passam pela angústia do viver e que buscam no tempo, na solidão e na própria escrita literária uma forma de exorcização de suas certezas metafísicas.

PARTE II – MUNDO MODERNO

Nesta parte, encontram-se aquelas que versam sobre os aspectos da época e da sociedade em que o autor viveu: o transporte através dos bondes, a visita de personalidades importantes em sua época e fatos marcantes que ocorreram em tais dias, como um famoso caso de bigamia, um homem que deu à luz e outros ocorridos relevantes em seu tempo. O autor não deixa de se preocupar, como bom cronista, com a nova realidade por que passava o país. A urbanização, o cosmopolitismo gerado pelo capitalismo, o processo de desenvolvimento social e científico, tudo vai ser captado com a perspicácia e visão crítica desse escritor carioca, considerado pela crítica como “o implacável crítico da consciência humana” e o grande observador da sociedade de sua época.

Como comportar-se no bonde

Publicada em 4 de julho de 1883. O autor, de modo lúdico, constrói um conjunto de regras para todos que queiram usar os bondes como meio de locomoção. O texto se baseia em 10 artigos que definem como deve se portar desde os passageiros com resfriado, até aqueles que queiram ler jornal durante a viagem. Critica a sociedade e suas atitudes cotidianas. Partindo de algo simples como usar um bonde, o autor ironiza a própria sociedade e sua falta de respeito, educação e cortesia ao tratar a se mesma. É, como sabemos, a função do cronista, ou seja, captar um flagrante social e expor de forma analítica e crítica. É o escritor do dia-a-dia.

Visita de um anarquista

Publicada em 20 de outubro de 1895. Narra a viagem da anarquista Luísa Michel ao Brasil. Conta um incidente ocorrido entre ela e um grupo de locatários. Os capitalistas vão até a anarquista e pedem-lhe ajuda, expondo as amarguras financeiras que lhes são impostas por seus inquilinos. Ao ouvir tal relato, a anarquista vibra de emoção, julgando o anarquismo já consumado no Brasil. O texto ironiza a ignorância dos locatários ao demonstrarem sequer saber o que é anarquismo e, mesmo assim, o temerem. Critica também o fato de que, aos olhos da anarquista, o anarquismo já se consumou no país. Com tal postura, o autor nada mais quis do que atacar a falta de ordem que dominava a sociedade, o que, aos olhos de uma estrangeira era algo nunca antes visto. Ele relacionou a doutrina política com o significado pejorativo que o termo “anarquismo” adquiriu com o passar dos anos. O autor versa sobre a realidade política brasileira e a (des)organização pública de nosso país.

Um acontecimento inusitado

Publicada em 7 de julho de 1878. Crônica que analisa o caso de um quadragenário da cidade de Caravelas, na Bahia, que dera à luz a uma criança:

(...) sentiu uma dor agudíssima na região precordial, movimentos desordenados do coração, dispnéia, forte edemacia em todo o lado esquerdo. Entrou em uso de remédios, até que, com geral surpresa, trouxe a este vale de lágrimas uma criança, que não era exatamente uma criança, porque eram as tíbias, as omoplatas, as costelas, os fêmures, trechos soltos da criatura, que não chegou a viver.

Depois, de um modo bem humorado, mas com teores de ponderação, o autor concluiu:

E porque não suponho que ocaso de Caravelas deve ser o único, acontece que não posso ver agora nenhum amigo, opresso e pálido, sem supor que vai me cair nos braços e bradar (...) “sou mãe”. Esta palavra retine-me os ouvidos, e gela-me a alma... imaginem o que será de nós, se tivermos de dar à luz (...)

Aqui se percebe um caráter profético, bem pouco cultivado por autores da época. Não esqueçamos que o autor foi um dos maiores críticos da ciência, do positivismo, sobretudo.

Progresso

Publicada em 15 de março de 1877. Narra a inauguração do sistema de bondes em Santa Teresa, fazendo uma referência à modernidade e, a seguir, de modo bastante descontraído, afirma que os bondes farão bem a santa Teresa, que agora “vai ficar à moda”. Percebe-se que, por trás do aparecer ar de felicidade, existe uma forte crítica do narrador.

Espiritismo

Publicada em 5 de outubro de 1885. O autor narra uma incursão ida a um encontro espírita de um modo bastante inusitado: sua alma desprende-se de seu corpo e vai à reunião, mas, ao retornar, encontra seu corpo possuído pelo diabo o qual, depois de fazer insinuações sobre a doutrina espírita, devolve o corpo ao espírito.

O texto versa sobre o espiritismo, comparando-o a um medicamento novo, que promete curar as doenças de modo eficaz que todas as medicações antigas. A crônica pode ser vista, também, como uma crítica a todos aqueles que, ao manterem um primeiro contato com uma nova religião, aceitam – sem questionar – todas as suas doutrinas e ensinamentos, suplantando, com eles, suas antigas crenças. Não se pode deixar de observar, por outro lado, a obsessão e o interesse do autor pela metafísica. Afinal, em várias de suas narrativas esse tema salta aos olhos. Podemos citar narrativas como A cartomante, A igreja do Diabo, O enfermeiro, por exemplo.

Verbas públicas

Publicada em 1 de setembro de 1878. Crônica que fala sobre a atitude da Câmara Municipal de negar o fornecimento de jantar para o júri quando as sessões se prolongassem até tarde. O autor se mostra a favor do fato, complementando que isso desordenaria a mente dos jurados e encerra seu texto afirmando:

O que me admira é que só agora reclame o júri um bocado de pão. Pois nunca pediu o júri uma verbazinha para os seus pastéis? Só agora há processos longos e juízes famintos?
Tanto pior; se esperam tantos anos, podem esperam alguns mais.

O texto também pode ser visto como uma crítica ao comodismo da sociedade e sua necessidade de sempre receber algo em troca do serviço que esteja prestando, não importa qual seja ele.

Direitos dos burros

Publicada em 10 de junho de 1894. Ao sair em seu jardim, o autor encontra um burro. O animal dirige-lhe a palavra e pede que ele, como homem da imprensa, interceda por sua espécie tão injustiçada. A crônica critica a disparidade existente na aplicação de penas existente entre ricos e pobres. Os primeiros, não importa o que façam, safam-se da justiça mediante seus recursos financeiros, os outros, por mais insignificantes que sejam seus crimes, cumprem penas exageradas. Em outro momento, Machado de Assis aproveita para criticar as propostas de ensinar o inglês nas escolas públicas, afinal, para alguns professores de seu tempo, tal idioma possuía mais importância que o português.

O boi

Publicada em 1 de outubro de 1876. Fragmento de crônica que critica a opinião pública para representar. O autor usa a figura do boi para representar a pecuária criticada pela opinião pública, partindo de tal analogia, ele ressalta o papel do boi em tal embate, afirmando que ele nada tem a ver com tal debate, afinal, seu interesse nunca importa, sempre estando subordinado aos interesses do produtor, do intermediário e do consumidor.

Caso de bigamia

Publicada em 23 de setembro de 1894. Partindo de um suposto caso de bigamia que não pode ser comprovado perante a lei (já que existe um atestado de óbito para a primeira esposa do homem), o autor defende que o único meio de se chegar até a verdade é através do espiritismo. O texto critica o fato de que apenas levamos a sério, ignorando-as. Veja, por exemplo, o que acontece com o personagem “Camilo”, de A cartomante.

História de bichos

Publicada em 1 de julho de 1894. O texto narra outro dilúvio. O autor reuniu sete casais de cada animal e, pondo-os em uma arca, tentou conter as diferenças entre eles, no final, soltou uma pomba pela janela e ela não voltou, soube assim que o dilúvio havia acabado e liberou os animais que saíram juntos, alguns enroscados amigavelmente em outros e outros, por sua vez, oscilando entre vôos e saltos de felicidade. A crônica trata das diferenças entre aqueles que, à primeira vista, são semelhantes, dos desentendimentos surgidos pela superlotação e, sobretudo, da alegria daqueles que sobrevivem a acidentes e desastres, uma alegria que derruba todas as barreiras.

PARTE III - PALAVRAS E PENSAMENTOS

Nesta terceira e última parte do livro, encontram-se as crônicas de Machado de Assis que versam sobre o poder das palavras, do discurso, da escrita e, sobretudo, suas influências na sociedade. Existem também em algumas crônicas certas incursões metalingüísticas feitas pelo autor acerca do ofício do cronista e todos os fatores que compõem esse gênero textual.

Pergunta e resposta

Publicada em 5 de novembro de 1883. Sempre que sai na rua, algum curioso se acerca do autor e lhe indaga: “o que há de novo?”. Cansado de responder a tais perguntas, decide pôr um plano em prática; sempre que alguém lhe perguntar as novidades, ele conta um fato passado, como o terremoto de Lisboa e a morte de Gonçalves Dias. Os curiosos, como queriam saber de fatos novos e não passados, param de fazer tais perguntas ao autor. O texto é uma crítica explícita aos curiosos e mexeriqueiros da sociedade daquela época, pessoas curiosas que viam no autor – por ser um homem da imprensa – a oportunidade de se inteirarem nas últimas novidades e acontecimentos de seus dias. É também uma crítica ao descaso para com o passado, como se o que um dia aconteceu pouco valor tivesse hoje quando comparado com os mexericos da corte. Não se pode ignorar também o destaque que o autor dar às palavras, à influência que exercem no comportamento das pessoas.

Impostos

Publicada em 16 de maio de 1885. O autor encontra-se com os impostos inconstitucionais de Pernambuco. Os impostos estavam no Rio de Janeiro há quatro ou cinco meses e, tristes por terem sido expulsos da Câmara de Deputados, o autor os consola dizendo que o que os define como anticonstitucionais é apenas um adjetivo e se ele fosse escolhido o líder da nação aboliria o uso dos adjetivos e eles seriam apenas “impostos”. O poder das palavras é explorado pelo autor, afinal, sem adjetivos para qualificar as coisas, a linha que define se são boas ou más é apagada. Ele usa o caso dos impostos inconstitucionais para metaforicamente provar que, caso seja da vontade dos donos do poder, algo negativo pode ser visto com bons olhos por todos, através apenas, do uso de uma palavra adequada, que não pejorative o objeto.

O cronista e a semana

Publicada em 16 de setembro de 1894. O autor é visitado por uma semana pobre e esta vem lhe dizer que, enquanto ela durou, seu único ocorrido foi o escorregão de um homem numa casca de banana. O autor põe-se a lembrar da visita que teve anteriormente de uma semana rica. Ela (a semana rica), sempre ruidosa e enfeitada, contou que enquanto ela durou, ocorreram tragédias da pior espécie. Depois ela se despede e sai de seu escritório, o autor pede ao seu criado que, se a semana rica voltar, diga-lhe que ele não se encontra. No começo do texto o autor afirma preferir as semanas pobres às ricas, afinal, o que marca o caráter de pobreza da primeira é exatamente a ausência de assuntos trágicos,quando na segunda,o que a torna rica é exatamente a ocorrência de tais fatos. Há, na abordagem de tal temática em uma crônica,um velado exercício de metalinguagem, já que o cronista necessita de fatos para construir seus textos, e geralmente os melhores fatos dessa espécie ocorrem nas “semanas ricas”. A posição de Machado é uma auto-ironia, pois, mesmo preferindo as semanas pobres, elas pouco material lhes dão para suas crônicas.

O nascimento da crônica

Publicada em 1 de novembro de 1877. O autor fala sobre a crônica e conjectura suas origens, depois narra sua ida ao cemitério num dia quente.Participa de um sepultamento e,entrando em seu carro e indo para casa,repara em alguns coveiros que cavam uma sepultura sob um sol a pino e indaga-se:

Se o sol nos fazia mal, que não fazia àqueles pobres diabos,durante todas as horas quentes do dia?

Há, como no texto anterior, outro exercício metalingüístico, afinal,ele começa seu texto discorrendo sobre como fazer uma crônica,o que dizer a princípio e que a direção seguir e,por fim,infere onde surgiu a crônica. No decorrer do texto fala sobre se queixar da situação em que se vive e afirma que, por mais que seja penoso afirmar, sempre existirão pessoas em situação pior que a nossa, como comprova ao narrar sua ida ao cemitério.

Conto-do-Vigário

Publicada em 31 de março de 1895. O autor fala sobre um homem que passa a perna em outro e cogita onde terá surgido o famoso conto-do-vigário. Faz uma relação entre o conto literário e o conto-do-vigário e afirma que não é o tamanho do segundo que faz a sua obra,e sim de que maneira ele é feito. Uma vez mais
o autor explora o poder das palavras,poder que faz esse um homem arrancar dinheiro de outro sem que esse perceba.

Reflexões de um burro

Publicada em 8 de abril de 1894. O autor vê um burro à beira da morte, deitado sobre os trilhos dos bondes, ao seu lado foi colocada água e capim, mas o animal ignora isso, pondo-se a pensar em sua condição de burro, sua vida, suas tristezas e alegrias e falar sobre sua vida, sobre tudo aquilo que fez ou sobre o que deixou de fazer. A contragosto – tamanha era a sabedoria daquele animal – o autor se afasta, indo trabalhar. No outro dia, ao passar pelo mesmo lugar, encontra o animal morto e já estado de decomposição. O enfoque principal de tal crônica é ressaltar o poder das palavras, da oralidade, do discurso e a beleza que se encerra na comunicação oral, quando o orador domina a palavra a tal ponto que chega a enternecer seu público. Ao mesmo tempo, o autor volta ao mesmo tema de comparar veladamente o animal (neste caso, o burro) ao ser humano, suplantado pelo poder do tempo, da vida que transcorre e o faz envelhecer, definhar e morrer.

Touradas

Publicada em 15 de março de 1877. Machado ironiza a decisão de se fazer uma tourada em caridade aos necessitados, afinal, para prestar uma boa ação ao povo, fazem uma má ação aos animais. Desse modo, critica uma vez mais aqueles que, através de causas nobres (neste caso ajuda aos pobres) buscam angariar a simpatia do povo e galgar, assim, os degraus da vida política. Mais uma vez o autor exercita a metalinguagem ao definir o cronista, ou seja, como “um historiador da quinzena”, alguém que vive de contar – sob o prisma que seja – os eventos ocorridos que marcaram a sociedade neste intervalo de tempo.

Analfabetismo

Publicada em 15 de agosto de 1876. O autor trata das diferenças existentes entre as palavras e os números, afirmando que enquanto as primeiras são mais maleáveis, suscetíveis à interpretações diferentes e a mal-entendidos, os segundos são mais práticos, diretos, impossíveis de ser interpretados de outra maneira que não seja a da lógica e do bom-senso.

Grito do Ipiranga

Publicada em 15 de setembro de 1876. Um amigo do autor lhe fala que o grito do Ipiranga, que marcou a independência do Brasil, como conhecemos não ocorreu do mesmo modo que se disse, foi, na verdade, um apanhado de fatos dispersos que o povo achou melhor resumir miticamente no famoso “grito”. O autor posiciona-se justificando ironicamente:

Minha opinião é que a lenda é melhor do que a história autentica. A lenda todo o fato da in dependência nacional, ao passo que a versão exata o reduz a uma coisa vaga e anônima.
Tenha paciência o meu ilustrado amigo. Eu prefiro o grito do Ipiranga; é mais sumário, mais bonito e mais genérico.

Mais uma vez, o cronista fala sobre as palavras e seu poder, no entanto, partindo agora sobre um enfoque entre a escrita e a oralidade, entre história transcrita em todas as suas minúcias para o papel e a versão oral que resume e, de modo generalizador, dá seus tons épicos ao ocorrido.

Neologismos

Publicada em 7 de março de 1889. Critica a tentativa do senhor Castro Lopes, famoso latinista brasileiro de sua época, em criar uma série de neologismos para substituir as palavras e as frases oriundas do idioma francês – tão comuns no vocabulário dos brasileiros letrados da época. Ironiza o uso de determinadas palavras e, por fim, encerra seu texto defendendo sarcasticamente que, por mais que não se queira aceitar, muitos destes termos e expressões francesas já foram assimilados pelo nosso vocabulário, como é o caso de palavras como “reclame” ou “croquete”.

A última crônica versa sobre o poder universalizante de algumas palavras, que rompem as fronteiras de sua nação de origem e adentram em outras nações, as quais possuem seu próprio idioma. Uma das críticas mais presentes em todo o texto é o fato de que o senhor Castro Lopes repudiava o uso apenas das expressões francesas, fazendo pouco caso sobre o uso de palavras como “xale”, de origem persa.

Fonte:
Prof. Édson Carlos (UFRN). Disponível em Passeiweb

Pedro Malasartes (Vida e Morte do Malasarte)


Dizem que Malasarte era o diabo. Pois não era e tanto não era que um dia, depois que Pedro Malazarte deu pousada a Jesus Cristo, este como sempre acompanhado de Pedro — São Pedro, o chaveiro — concedeu-lhe, em paga, o direito de fazer três pedidos.

— Quero — pediu prontamente Malasarte — que quem subir nessa figueira (apontou para uma figueira no quintal) não possa descer sem que eu mande.

— Concedido.

— Quero...

— Pede o reino do céu. — Aconselhou São Pedro.

— Quero — disse o outro sem fazer caso da interrupção — que quem entrar no meu surrão não possa sair sem minha ordem.

— Concedido.

— E quero...

— ... o reino do céu. — Insinuou São Pedro.

— Que reino do céu, o quê?! Deixe de ser bobo! Quero que ninguém possa por a mão no meu boné. Só eu.

— Concedido.

Somente depois que eles partiram lembrou-se que não tinha pedido nada.

— Não há de ser nada.

Chamou o diabo, pediu-lhe dinheiro e prometeu-lhe a alma, em troca.

— Daqui a dez anos pode vir me buscar.

Daí a dez anos, o diabo apareceu.

— Vou fazer o meu testamento. Você, se quiser, pode subir naquela figueira e ir comendo uns figos enquanto me espera.

O diabo assim fez e, quando quis descer da árvore, não pôde.

Esforçou-se, ameaçou, pediu, e, por fim. Pedto soltou-o com a condição de lhe deixar mestre satanás mais vinte anos de vida. Daí a vinte anos o diabo voltou. Pedro disse:

— Meu surrão está pronto. Quer me ajudar a amarrá-lo?

O diabo foi ajudar, mas quando estava bem perto, Pedro o empurrou para dentro. Por mais que esperneasse, não conseguiu sair. Então Pedro disse:

— Você pode ir embora, mas está desfeito o nosso trato. Nunca mais me ponha os pés aqui.

O diabo deu o fora. E Pedro acabou indo para o céu, por artes do bonezinho. Foi assim: Morreu. Apareceu no céu e São Pedro bateu-lhe com a porta na cara. "Você não quis pedir o reino do céu, agora aqui você não entra".

— Está bem — resignou-se Malasarte. — Então vou para o inferno.

Foi ao inferno e o diabo não o quis lá. Voltou ao céu e pediu a São Pedro que, já que não era possível entrar que o deixasse ficar sentado à porta. São Pedro encolheu os ombros.

— Se é só isso...

Pedro ficou. Não demorou muito aproveitou-se de uma distração do santo chaveiro e atirou o bonezinho para dentro. Acontece que ninguém podia pegar no bonezinho. E acontece também que quem entra no céu não pode mais sair — pormenor típico de várias histórias populares do tipo desta. E, assim, o Malasarte entrou para pegar o boné e ficou no paraíso.

Jandeilson Bezerra (Solidão Além do que Vejo)


Ficha Técnica
Autor: Jandeilson Bezerra
Editora: Editora Torre
Assunto: Poesia
Páginas: 71
Edição/ano de publicação: 1ª/2011


E se a solidão não fosse um sentimento negativo? E se ao invés dela ser apenas solidão, se transformasse em poesia? A solidão é uma chama adormecida, que pode ser apenas "solidão" ou pode ser “amor”, pode significar recolhimento ou exposição.

O ato de fechar os olhos e sentir a brisa do mar, um amor não correspondido ou um amor distante, pode representar a solidão chegando silenciosamente, sem que percebamos somos arrebatados por ela, essa solidão que pode ser amor ou esse amor que pode ser solidão. É assim o amor puramente solidão ou é a solidão amor?

"Queria falar bonito
tocar-te a alma e te levar a sonhar
fazer-te bailar em meus versos singelos
transportar-te ao meu universo de paixões"

Descubra nesses versos as infinitas possibilidades que o sentimento, estado de espírito, pode nos levar a mergulhar e mergulhando descubra seus próprios sentimentos,cative, sinta, viva esse momento.

Sobre o Autor Jandeilson Bezerra

Nasceu em 1984 na Paraíba, mora no Rio de Janeiro com sua família, dividindo seu tempo entre o trabalho, seu blog e os amigos. Participante das mais diversas antologias entre elas Uma viagem pra Pasárgada (2010), Os mais belos Poemas de Amor (2010). É membro da Sociedade Poetas del Mundo, Academia de Letras do Brasil, da APPERJ e do Circulo Monárquico do Rio de Janeiro unido-se àqueles que acreditam que o Brasil pode ser um país melhor. Editor do blog Elo das Letras (http://eloletras.blogspot.com) onde escreve semanalmente, dedica-se com especial afinco à sua coluna no site Rio&Cultura (www.rioecultura.com.br).

Vendas no site: http://www.facebook.com/solidaoalem

Ou na Loja da Editora Torre no link: http://www.livrariatorre.com.br/novidades/solid-o-alem-do-que-vejo.html

Maiores informações sobre o livro em: http://solidaoalem.wordpress.com

Fonte:
O Autor

Blandina Franco (Quem Soltou o Pum?)


artigo por Celso Sisto intitulado: Brincadeiras das Palavras

FRANCO, Blandina. Quem soltou o Pum? Ilustrações de José Carlos Lollo. São Paulo, Companhia das Letrinhas, 2010. 32p.

A língua portuguesa, nossa língua, é de uma grande riqueza! E por mais que as palavras tenham já um sentido conhecido e revelado, elas podem também carregar dentro delas, um sentido oculto e que vai se mostrando devagar...

Este livro trabalha em cima desta idéia: a possibilidade de muitos significados para uma mesma palavra! Neste caso aqui, a palavra é a palavra “PUM”.

Todo o livro é construído com o leitor sabendo, de cara, que Pum é o cachorro do menino que conta a história. E mesmo sabendo disso, o uso da palavra, as frases, as construções, brincam com a possibilidade do leitor “estar entendendo” o outro significado mais conhecido para a tal palavra, esse que diz respeito a gás e mau cheiro!

Com essa idéia duvidosa rondando a cabeça do leitor, abundam as brincadeiras do tipo: soltar o Pum; o Pum faz barulho e atrapalha a conversa dos adultos; a hora certa pra soltar o Pum; soltar o Pum na chuva, etc. Isso sem falar na quase inevitável tentativa de colocar a culpa no outro. De preferência, no irmão mais novo, que ainda não sabe falar!

Com isso, o livro torna-se absolutamente divertido, leve de ser lido e saboreado! Sim, porque um texto pode ser saboreado, dito em voz alta, com prazer e encanto! Livro bem “provado” é aquele que depois de terminado deixa no leitor a vontade de ler mais do mesmo autor; ler diversas vezes o mesmo livro; ler outros livros no mesmo estilo, ler para outras pessoas curtirem o que a gente curtiu. Esse é o verdadeiro prêmio da leitura. Essa é a leitura gostosa.

Neste livro, contribuem para o sabor, a narrativa cheia de ações e a simplicidade das ilustrações. Com um desenho feito a nanquim em fundo de página amarelada, com um ou outro detalhe destacado em branco, sobressai ainda mais a cor alaranjada-com-manchas-ocre do divertido cachorro PUM. Os personagens são caricatos e engraçados (como a síndica do prédio, o vizinho brabo, a tia Clotilde) e dão um toque de história em quadrinhos. O texto é bem distribuído, e a surpresa está garantida em cada virada de página.

A combinação entre texto e imagem é das mais felizes, principalmente porque criança e seu bicho de estimação, em mãos talentosas, sempre rendem boas obras!

Fonte:
http://www.artistasgauchos.com.br/

Guerra Junqueiro (A Rapariguinha e os Fósforos)


Que frio! a neve caía, e a noite aproximava-se; era o último de Dezembro, véspera de Ano-Bom. No meio deste frio e desta escuridão passou na rua uma desgraçada pequerrucha, com a cabeça descoberta e os pés descalços. É verdade que trazia sapatos ao sair de casa, mas tinham-lhe servido pouco tempo: eram uns grandes sapatos, que sua mãe usara já, tão grandes, que a pequenita perdeu-os ao atravessar a rua a correr, entre duas carruagens. Um dos sapatos perdeu-o realmente; o outro fugiu-lhe com ele um garotito, com a intenção de o transformar num berço para o seu primeiro filho.

A pequenita marchava com os pezinhos nus, arroxeados do frio; tinha no seu velho avental uma grande quantidade de fósforos e levava na mão um maço deles.

Não lhe correra o dia bem; não houvera compradores, e por isso não apurara cinco réis.

Pobre pequerrucha! que frio e que fome! Os flocos de neve caíam-lhe nos longos cabelos loiros, adoravelmente anelados em volta do pescoço; mas pensava ela porventura nos seus cabelos anelados?

As luzes brilhavam nas janelas, e sentia-se na rua o cheiro dos manjares; era a véspera do dia de Ano-Bom: eis no que ela pensava.

Deixou-se cair a um canto, entre dois muros. O frio enregelava-a cada vez mais; não se atrevia, porém, a regressar a casa: o pai bater-lhe-ia por não vender os seus fósforos. Além disso, em casa fazia tanto frio como na rua. Moravam debaixo de um telheiro que o vento atravessava, apesar de o terem calafetado com palha e farrapos. As mãozinhas, já quase que as não sentia. Ai! como um fosforozinho aceso lhe faria bem! Se tirasse do maço apenas um, um único, e acendendo-o aquecesse os dedos enregelados! Tirou um: «ritche»! como estourou! como ardeu! Uma chama tépida e clara, como uma pequena lamparina. Que linda luz! Parecia-lhe estar sentada diante de um enorme fogão, cujo lume ardia magnífico, que era um regalo!

A pequena ia já a estender os pezitos para se aquecer também, quando a chama se apagou repentinamente; ficou-lhe na mão uma pontinha de fósforo consumido.

Acendeu outro fósforo, que ardeu, que brilhou, e o muro onde bateu a sua chama tornou-se transparente como vidro. Olhando através desse muro, a pequerrucha viu uma sala com uma mesa coberta com uma toalha alvíssima, deslumbrante de finas porcelanas, e sobre a qual uma galinha assada, com recheio de ameixas e de batatas, fumegava, exalando um perfume delicioso. Oh surpresa! oh felicidade! De repente a galinha saltou do prato, e caiu no chão ao pé da pequerrucha, com o garfo e a faca espetada no lombo. Nisto apagou-se o fósforo, e viu apenas diante de si a parede fria e tenebrosa.

Acendeu terceiro fósforo, e achou-se logo sentada debaixo de uma árvore do Natal maravilhosa; era ainda mais rica e maior do que outra que vira o ano passado através dos cristais de um armazém suntuoso.

Nos ramos verdes brilhavam centenas de balões acesos, e as estampas coloridas, como as que há às portas das lojas, pareciam sorrir-lhe. Quando ia agarrá-las com as duas mãos, apagou-se o fósforo; todos os balões da árvore do Natal começaram a subir, a subir, e viu então que se enganara, porque eram estrelas. Caiu uma delas deixando no céu um longo rasto de fogo.

– É alguém que está a morrer, disse a pequerrucha; porque a sua avó, que lhe queria tanto, mas que já morrera, dissera-lhe muitas vezes: «Quando cai uma estrela, sobe para Deus uma alma».

Acendeu ainda outro fósforo; deitou uma grande luz, no meio da qual lhe apareceu a avó, de pé, com um ar radioso e suavíssimo.

– Minha avó, exclamou a pequenita, leva-me contigo. Eu sei que te vais embora quando se apagar o fósforo. Desaparecerás como a panela de ferro, a galinha assada, e a bela árvore do Natal.

Acendeu o resto do maço, porque não queria que sua avó lhe fugisse, e os fósforos espalharam um clarão mais vivo que a luz do dia. Nunca sua avó tinha sido tão formosa. Pôs ao colo a pequerruchinha, e ambas alegres, no meio deste deslumbramento, voaram tão alto, tão alto, que ela já não tinha nem frio, nem fome, nem agonias; haviam chegado ao Paraíso.

Mas quando rompeu a fria madrugada, encontraram a pequerrucha, entre os dois muros, ao canto, com as faces incendiadas, o sorriso nos lábios.., morta, morta de frio, na última noite do ano. O dia de Ano-Bom veio alumiar o pequenino cadáver, sentado ali com os seus fósforos, a que faltava um maço, que tinha ardido quase inteiramente. – Quis aquecer-se, disse um homem que passou. E ninguém soube nunca as lindas coisas que ela tinha visto, e no meio de que esplendor tinha entrado com a sua velha

Fonte:
Guerra Junqueiro. Contos para a infância.

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) O Pó de Pirlimpimpim - VI – O pintão


Tomaram a carruagem e foram. Pouco antes das muralhas do castelo havia um desfiladeiro por entre montanhas de pedra onde a carruagem parou de súbito. O senhor de Munchausen espichou a cabeça para ver o que era.

— Uma enorme pedra rolou da montanha e trancou a passagem — disse o cocheiro.

— Que bucha! — exclamou o barão apeando-se para estudar o caso. — Pedra nada! — gritou logo depois. — Isto é apenas um ovo do pássaro Roca, rolando de um ninho lá em cima. Bem desconfiado andava eu de que o ninho do monstro era aqui nesta montanha...

Todos correram para ver e foi um abrir de bocas que não tinha fim. Nem por brincadeira haviam sonhado um ovo daquele tamanho, maior do que duas pipas postas uma em cima da outra. A casca era tão dura que apesar do ovo ter rolado do alto da montanha, batendo em quanta pedra havia, não se quebrara. Trincara de leve, só...

— Que pena tia Nastácia não estar aqui! — lamentou dona Benta. — Havia de gostar de ver um ovo deste tamanho... E agora? Precisavam passar, fosse como fosse. Rolar o Ovo era impossível, por estar entalado entre rochas. O único meio seria despedaçá-lo. Assim resolveu o barão, e mandou que o cocheiro fosse correndo ao castelo buscar uma picareta.

— Uma, não! Duas! Ou três! — gritou depois que o cocheiro partiu.

— Quatro! — berrou Emília. Eu também quero quebrar ovo.

O cocheiro trouxe cinco. Cada qual pegou na sua, e malhou na casca do Ovo com quanta força tinha. De repente o barão gritou:

— Fujam, que vai escorrer clara e gema de virar tudo em omelete...

Todos fugiram para os barrancos, inclusive a pobre dona Benta, que teve de ser içada pelos meninos.

— Viver mais de sessenta anos para acabar trepando em barrancos de medo de virar omelete! Isso nunca foi vida... — lamentava-se a boa vovó.

Inútil a debandada. O ovo partira-se sem derramar clara nem gema nenhuma, pela simples razão de não ter nada disso dentro. O que havia lá dentro era um formidável pinto, que botou a cabeça de fora, a piar uns pios agudíssimos, de se ouvirem a dez léguas dali. O barão ficou apreensivo. Aqueles piados eram capazes de chegar aos ouvidos do pássaro Roca, que não devia andar muito longe — e se a gigantesca ave os pilhasse a mexer com o seu ovo, certo que os devoraria a todos, como se fossem minhocas.

— Cordas! — gritou ele aflito. — Corram ao castelo e tragam quantas cordas puderem...

Pedrinho e o cocheiro voaram ao castelo atrás de cordas, voltando minutos depois com quantas havia.

— Temos que amarrar o bico deste horrendo pinto sem perda de um instante, se não o Roca surge por aí e nos devora.

Não foi nada fácil. O pintão defendia-se como um tigre. Só mesmo a força hercúlea do senhor de Munchausen, ajudado pelo cocheiro, por Pedrinho, pela menina, por Emília e até por dona Benta, poderia amarrar o bico do pinto Roca — e ainda assim tiveram de lutar muito tempo. Afinal, amordaçaram-no.

— Conheceu, papudo? — gritou Emília de longe, quando viu o serviço feito.

De nada, porém, valeu tanto esforço. O pássaro Roca tinha ouvido os pios do filhote e vinha pelos ares como um ciclone de penas.

— Fujamos! — gritou o senhor de Munchausen ao avistá-lo, e botou-se...

Foi uma debandada geral. Voaram todos atrás do barão, como veados. Até a pobre dona Benta teve de esquecer os sessenta anos, o reumatismo e a pontada, para só pensar na fuga. Arregaçou a saia, botou a dentadura no bolso e virou veado também. Chegou ao castelo mais morta que viva, pondo a alma pela boca.

— Benza-me Deus! — dizia ela. — Isto nunca foi vida...

O barão e o menino subiram incontinenti à torre para espiar o pássaro Roca por uma luneta. Viram-no pairar sobre o desfiladeiro e descer como flecha sobre o ovo. Ao dar com o filhote já nascido, sentiu grande alegria. Não desconfiou nem sequer daquele bico amarrado, certo de que o pinto nascera assim...
––––––––––––––
Continua… O Pó de Pirlimpimpim – VII – Melhor que o pó

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

domingo, 12 de fevereiro de 2012

J. G. de Araújo Jorge (Eternos Românticos)


Eis os verbetes da palavra romântico, no dicionário: “Diz-se dos escritores e artistas que, no começo do Século XIX, abandonaram as regras de composição e estilo dos autores clássicos. Caracterizam-se pela predominância da sensibilidade e da imaginação sobre a razão, pelo individualismo, pelo lirismo”.

De onde se conclui que, quase todos os artistas, quaisquer que sejam os tempos e as escolas, são ou foram românticos. Costumo afirmar, por isso, que o romantismo, não é apenas uma escola literária, mas um estado de espírito. Românticos foram, através dos tempos, e muito antes do Século XIX, as mais altas expressões das letras e das artes.

Aqui mesmo, em crônica anterior, falamos sobre o tema. O homem hoje parece que se envergonha de ser romântico, ou de ser tido como tal. Como se isto fosse um atestado de doença ou de fraqueza.

Continuaremos, no entanto, românticos, graças a Deus. Há alguns anos, alguém escrevendo sobre minha poesia disse que eu era o “último romântico de nossas letras”. Puro engano. O mundo continua, e seguirá povoado por essa espécie imortal para que a arte sobreviva.

Poderíamos parafrasear a expressão euclidiana, e dizer que “o romântico é antes de tudo um forte”. E por quê? Justamente porque fortes são os que têm a capacidade de sentir. E o romântico é o emotivo, o sentimental, o que expõe o coração. Só ele enriquece a vida com as perspectivas infinitas do sentimento e da fantasia. Os frios, os indiferentes, os “materialistas” num sentido puramente social, são os fracos, os temerosos, e, são, portanto, os que não vivem plenamente.

Os românticos são os que enfunam as velas do sonho e se atiram a todas as correntes. Certamente que sofrem. Mas para eles, vida e sofrimento são palavras que se equivalem, que se identificam. Sabem que o temor ao sofrimento só poderá levar a escapadas e enclausuramentos. São os que não têm medo, portanto, os que se aventuram. Os estóicos. Os que captam a vida em todas as direções, embora feridos, angustiados. Os que não se envergonham de chorar. Coisa engraçada é afirmar-se que o mundo de hoje é um mundo de homens de ferro, duros, insensíveis. Como se isto fosse vantagem, ou, que é mais importante, verdade. Se ontem, as armaduras de ferro dos cavaleiros medievais escondiam corações inflamados de ternura florais, de anseios cavalheirescos, hoje, as pesadas roupas dos astronautas protegem igualmente corações cheios de amor e poesia.

Todos nós lemos as declarações dos astronautas ao voltarem do espaço sideral. Eram falas de poetas, deslumbrados com o espetáculo novo de um universo imprevisto. Um deles, o primeiro, declarou de sua cápsula: o mundo é azul!

Que eles são, mesmo, os poetas do espaço. Hoje, eu diria que até a ciência é romântica: ainda à procura da lua dos poetas e dos namorados.

Os jogadores de futebol, que representam homens de um esporte viril, após as grandes vitórias, ou as fragosas derrotas, desmandam-se a chorar, como bebês. E que de estranho há nisso? São, e continuam sendo apenas homens, como os de todas as épocas, quando inflamados ou aterrados pelas emoções violentas. Choram políticos, choram generais, choram artistas. Na televisão, assistimos todos os dias ao espetáculo dos que desgovernam pelo coração, e são por isso sublimes ou heróicos.

Falsa, inteiramente ilusória, a afirmativa apresentada e superficial, de que deixamos de ser românticos.

Sim, o mundo gira, o mundo se transforma, mas o homem continua o mesmo: Macbeth, Otelo, Romeu ou D. Quixote. O coração continua a ser aquele ponto inevitável sobre o qual se apóia uma das pontas do compasso para traçar as figurações e planos.

E as gerações novas?

Os moços do iê-iê-iê, até na aparência são românticos. Restauram as formas de trajar, os exageros requintados de outras épocas. Quando os vemos, nos lembramos dos poetas do fim do século, de cabelos longos, roupas enfeitadas. Sua música, aparentemente “avançada”, trouxe apenas novidades rítmicas, mas o fundo melódico e as letras traem o eterno romantismo. E aí está o “slogan” dos “hippies”: “The Flower’s power”. Uma geração que faz da flor o seu símbolo, o seu estandarte, a sua mensagem de paz e amor, não é uma geração romântica? As desesperadas tentativas de fuga à realidade pelos entorpecentes, pelo LSD, não se assemelham aquela geração de Byron e Musset, dos cansados da vida aos 20 anos, e que tentavam uma última escalada pelo álcool, “fazendo-se” tuberculosos?

Que fale quem quiser. Posso, melhor que ninguém, dar meu testemunho. Desfraldei minha poesia há cerca de trinta anos, e ela aí está como bandeira no topo do mastro. Sabotada ou não, o povo faz ciranda com ela nas ruas. Dizer-se que não há leitores para a poesia é simples mentira. Não só eu vendo meus livros. Augusto dos Anjos, Raul de Leoni, Guilherme de Almeida, Cassiano Ricardo, Vinícius de Morais e tantos outros poetas esgotam edições. E são todos, cada um a seu modo, poetas românticos. Citaria centenas de cartas de meus leitores, e eu disse leitores, não apenas leitoras, que provam a ressonância da poesia, que me agradecem os versos, como alguém com fome agradeceria um pedaço de pão, ou um pouco de água, se tivesse sêde.

O dicionário completa o verbete: ser romântico é ser “devaneador, poético, apaixonado”. Então, somos todos nós. “Quem não for capaz de sonhar, de encontrar belezas, de amar”, “só passou pela vida, não viveu”, como diria o velho Otaviano Rosa.

Dentro do homem mais seco, e empedernido, do espírito mais cético e pragmático, do filosofo mais materialista, há um cérebro e um coração, para pensar e para sentir. E naqueles momentos de coração que salvam a nossa vida, somos todos românticos. O operário que bota tijolo em cima de tijolo, o dia todo, à noite vira poeta diante do mar, em companhia da namorada; a mocinha do balcão que vendeu qualquer coisa, ou o do escritório que bateu faturas, vai depois copiar poesias em seu caderno; o cronista engraçado que se compraz em ridicularizar boleros, vai cantar tangos na boate, depois da terceira dose de uísque; o motorista, que transporta cargas pelos caminhos, faz poesia e humor nos pára-choques do seu caminhão.

Por muitas razões, usamos máscara trezentos e sessenta dias, e só as tiramos às vezes, no carnaval. Há homens que se envergonham de ter coração, o que é grave; procuram esconde-lo, o que é tolo; tentem nega-lo, o que é absurdo. Salvam-se alguns poetas (façam versos ou não) que têm coragem de permanecer poetas, num mundo que pretende negar a poesia, e que tanto precisa dela. Alguns poetas, que, corajosamente não usam máscaras, continuam falando de amor, como os velhos cristãos ou como... os “hippies”...

Fonte:
JG de Araujo Jorge. "No Mundo da Poesia " Edição do Autor -1969

Fernando Sabino (Deixa o Alfredo Falar )


A ARTE brasileira da conversa não é de fácil aprendizado. Como toda arte, exige antes de mais nada uma verdadeira vocação. E essa vocação se aprimora ao longo do caminho que vai da inocência à experiência. Como em toda arte.

Para princípio de conversa, distinga-se: quando falo em conversa, não estou me referindo à lábia, à astúcia, à solércia do brasileiro no passar a bicaria e vender o seu peixe. Falo precisamente no bate-papo, erigido numa das mais requintadas instituições nacionais.

Mas por que arte brasileira? Os outros povos acaso não batem papo? A própria expressão, brasileiríssima, corresponde em inglês exatamente ao verbo “to chat”, na acepção que lhe dá o dicionário: “to converse in an easy or gossipy manner; talk familiarly.” Até os ingleses, meu Deus, os ingleses têm também o seu papo: um deles, na mesa do bar, olha para fora e diz que vai chover; meia hora depois outro diz que não vai chover; meia hora depois o terceiro se retira dizendo que não gosta de discussão. A falta de graça desta velha anedota não está em ser velha, mas na finalidade útil que fez michar o papo. Este não deve ter finalidade alguma, senão a de matar o tempo da melhor maneira possível. É coisa de latino em geral e de brasileiro em particular: fazer da conversa não um meio, mas um fim em si mesmo. Se não me engano, essa é a distância que separa a ciência da arte.

No papo bem batido, a discussão não passa de uma motivação, sem intuito de convencer ninguém, nem de provar que se tem razão. Os que nela se envolvem devem estar sempre prontos a reconhecer, no íntimo, que poderiam muito bem passar a defender o ponto-de-vista oposto, desde que os que o defendem fizessem o mesmo. Os temas devem ser de uma apaixonante gratuidade, a ponto de permitir que, no desenrolar da conversa, de súbito ninguém mais saiba o que se está discutindo. Mesmo nas eternas discussões sobre mulher, religião ou futebol, para que se constituam em bate-papo, longas digressões hão de ser admitidas, desde que pertinentes.

Esta última observação, aliás, é pertinente ela própria, já que falei em futebol, quando se trata de papo acalorado como o que batiam aqueles dois amigos, parados numa esquina, violando o silêncio da rua adormecida:

— Se o último jogo do Campeonato fosse do Botafogo contra o Fluminense...

— Ora, Alfredo, pra cima de mim! Ia ser de goleada.

— Você não me deixou terminar, Dagoberto. Eu queria dizer que o Botafogo...

— Que Botafogo que nada! Com o Vasco diziam a mesma coisa...

— Dagoberto, você não me deixa falar!

— ... e no entanto ele acabou entrando bem. Essa não, Alfredo.

— Não estou falando no Vasco. Eu disse que o Botafogo...

— E no ano passado, que foi que o Botafogo fez? Me diga só o que ele fez.

— Você não me deixa falar, Dagoberto.

— Desde o princípio todo mundo sabia que o Fluminense...

— Você não me deixa falar!

A essa altura abriu-se uma janela no edifício da esquina e surgiu um indivíduo estremunhado:

— Ô Dagoberto! Deixa o Alfredo falar!

A boa conversa implica sempre em deixar o Alfredo falar. Além disso a discussão, ainda que gratuita, pode exaurir o papo diante de uma impossível opção, como a de saber qual é o melhor, Tolstoi ou Dostoievski, Corcel ou Opala, Caetano ou Chico. A menos que ocorra ao discutidor o recurso daquele outro, hábil em conduzir o papo, que teve de se calar quando, no melhor de sua argumentação sobre energia atômica, soube que estava discutindo com um professor de física nuclear:

— Você é presidencialista ou parlamentarista? — perguntou então.

— Presidencialista.

— Pois eu sou parlamentarista.

E recomeçaram a discutir.

Mais ardente praticante do que estes, só mesmo o que um dia se intrometeu na nossa roda, interrompendo animadíssima conversa:

— Posso dar minha opinião?

Todos se calaram para ouvi-lo. E ele, muito sério:

— Qual é o assunto?

Mas percebo que me perdi em discussões, polêmicas, argumentos e desaguisados, afastando-me do verdadeiro espírito que deve presidir o culto dessa arte. De preferência, que ela seja praticada apenas a dois — como diz o mineiro, mais de dois é comício. E entre estes dois, bom será que reine amável concordância, para que, alternada-mente ouvindo e falando, possam ambos conjugar o delicioso verbo discretear.

De minha parte, possa eu encerrar a conversa rendendo minha homenagem a um amigo: àquele que, no consenso geral dos que com ele privam, veio dar a esta arte o melhor do seu talento criador.

Ao longo de minha vida tive a ventura de conviver com excelentes papos, de Jayme Ovalle a Sérgio Porto, de Milton Campos a Mário de Andrade, para só falar nos mortos mais queridos. Não sendo privilégio de gente ilustre, tenho encontrado grandes praticantes entre marceneiros, pescadores, garçons e choferes de táxi.

Mas nenhum como este, cuja despedida à porta de sua casa se prolonga de meia-noite às quatro, deixando-nos a impressão de haver decorrido apenas meia hora; capaz de reter-nos a noite inteira num café em pé, conversando sobre o que seja, do último boato político à imortalidade da alma. Jânio Quadros, quando Presidente, chegou a mandar chamá-lo a Brasília — queria-o como seu assessor:

— Soube que você gosta de bater papo. Venha fazê-lo aqui.

— Fá-lo-ia, Presidente — que língua, a nossa! — se tivesse competência. Mas não passo de um especialista em idéias gerais.

— Eu também! — exclamou o Presidente, batendo no peito. Depois, olhos brilhantes, apontou um mapa na parede: — E este Brasil inteiro entregue a nós dois! Já pensou?

Tinha razão, o Presidente. E tê-lo-ia (!) levado na conversa, se as intenções presidenciais fossem apenas as de conversar. Porque se trata do rei da conversa, o Pelé do bate-papo, reconhecidamente o mais primoroso cultor desta arte sutil. Já tive mesmo a cautela, apontando-o desde já à posteridade, de compor para ele um epitáfio:

“Aqui jaz Otto Lara Resende,
Mineiro vivo, mancebo guapo.
Deixa saudades, isso se entende:
Passou cem anos batendo papo.”

Fonte:
Bar do Escritor

Ney Gastal entrevista Mário Quintana (“Incomoda quando ninguém se preocupa comigo”)


Entrevista realizada por Ney Gastal para o Caderno de Sábado, do Correio do Povo

Podem achar engraçado, mas não vale rir. Em minha coleção de recortes, esta entrevista com Mário Quintana ficou sem data. Talvez haja explicações: o poeta sentava de frente para mim, na antiga redação do Correio. Eu o via todo dia, aguentava suas caretas, ranzinice, mau humor. Aquela imagem de santo barroco que ele cultivava, com a ajuda de todo o pessoal da redação, não era assim, uma verdade. Mas, também, ele tinha lá seus motivos para ser ranzinza. Ninguém, em toda a redação, era tão atazanado por chatos quanto ele.

Certa manhã, jamais vou esquecer, entrou apressado na redação, veio até minha mesa, me empurrou pedindo licença e foi avisando: "Diz que não estou". E enfiou-se debaixo da mesa de aço. Logo atrás, surgiu redação adentro um dos maiores poetas e chatos que este país já teve. Quintana até era seu amigo e admirador de sua poesia, mas, como a maioria, não aguentava sua chatice pessoal e sempre que podia dava um jeito de sumir. Nem que fosse escorregando para baixo da mesa. Era assim, uma figura tão próxima e íntima (quem já teve um grande poeta escondido debaixo da mesa?) que esqueci de datar sua entrevista. Mas prometo pesquisar, descobrir e - assim que puder - colar aqui o devido registro. Por enquanto, basta dizer que foi publicada no "Caderno de Sábado" do "Correio do Povo", relativo ao 70º aniversário do poeta. (Ney Gastal)

Entrevistar o poeta é como um duelo daqueles de filme antigo, em branco e preto, onde o bandido acaba inapelavelmente encurralado. Entrevistar o poeta é como um duelo, onde ele é o mocinho e nós, sem chance, o bandido. Raros são seus momentos de calma. Na semana de seu aniversário sempre há alguém querendo arrancar dele uma ou outra palavra. Por vezes apenas recusa; outras, lança um olhar desolado em torno, dá de ombros e sujeita-se; outras, ainda, levanta-se e traz o potencial entrevistador até o armário atrás de minha mesa, onde está colocada uma cópia da "Declaração Universal dos Direitos do Homem", e aponta o Artigo XII. Apenas isto, e poucos são os que continuam a insistir. Diz o artigo: "Ninguém será sujeito a interferência na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência nem a ataques a sua honra ou reputação. Todo homem tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques". Sinto, poeta, mas era preciso que o 'Caderno de Sábado" tivesse uma entrevista. E, afinal, alguém que é nada mais, nada menos, que a identidade secreta do Anjo Malaquias, deve ter um pouco de paciência, não?

MQ: O Anjo Malaquias é uma figura mitológica que criei como símbolo da frustração. Portanto, não se trata do seu autor.

A esta altura da vida, continuas teimando que te deixem em paz, que deixem de lado tua pessoa em função de tua obra. Mas por de trás desta modéstia deve haver uma grande vaidade por tudo que já foi feito. Não é?

MQ: Não se trata de modéstia. É que eu sou muito orgulhoso para ter vaidades, tão próprias dos satisfeitos. Um poeta, mesmo, nunca é um auto-satisfeito.

- Dizem que "os verdadeiros poetas não lêem outros poetas; os verdadeiros poetas lêem os pequenos anúncios dos jornais". Tu, além disto, vives muito tempo dentro da redação do jornal. Ajuda a poetar?

MQ: Tudo ajuda poetar, tudo atrapalha poetar. Mas, nos momentos de criação, onde quer que se esteja, as injunções de ambiente desaparecem na alegria da criação. Poesia é alegria, porque, por mais infeliz que esteja acaso o poeta, se ele consegue expressar isso com toda a felicidade – cadê tristeza?

- Escreveram que terias dito que "Porto Alegre era uma pequena cidade grande; hoje é uma grande cidade pequena". Foi isso? Pelo que ela era é que nunca saíste daqui?

MQ: O que eu disse, ou pretendia dizer, era que Porto Alegre era uma grande cidade pequena e hoje é uma pequena cidade grande. Será que bolei as trocas sem querer? Ou.serão permutáveis os termos da proposição? Mas até as cidades do interior se estão padronizando: lanchonetes, etc. onde estão aqueles antigos cafés e bares espaçados como um salão de dança?

- Como vive o poeta dentro da estrutura desumanizada que é este nosso planeta?

MQ: Há uma infinidade de gente que julga desumanizado o meio em que vive. Mas convém não esquecer que todos os grandes movimentos começaram com pequenas minorias.

- E a Academia Brasileira de Letras, aceitarias participar dela?

MQ: A Academia não convida. A gente é que tem de candidatar-se, solicitar votos pessoalmente, arranjar pistolões. Há gente que não dá para isso. Eu também não.

- O poeta simples é assunto para críticas complexas. Como vês a crítica e como encaras os críticos?

MQ: Gosto da crítica interpretativa. Só não gosto da que condena um poeta pelo que ele não é.

- A tua poesia tem sido efetivamente compreendida pela crítica?

MQ: Augusto Meyer, Carlos Dante de Morais, Fausto Cunha, Guilhermino César e alguns outros não oficialmente críticos antes de tudo "sentiram" a minha poesia e por isso mesmo a compreenderam.

- Quais os poetas que influíram na tua formação? Há entre eles algum gaúcho?

MQ: Primeiro o "Tico-Tico", depois Antônio Nobre, que foi meu companheiro de infância. Ah, e Camões, o velho bruxo!

- Tuas leituras de moço abrangeram a poesia inglesa ou toda tua formação foi através de francesa?

MQ: Apenas através da língua francesa: vim da "Belle Époque"...

- A pergunta clássica: como conceituas tu mesmo a tua poesia?

MQ: Uma poesia profundamente emotiva. Daí, a ter ela atravessado três gerações.

- Voltando um pouco atrás: conta um pouco de tua vivência aqui na redução do "Correio".

MQ: A minha vivência no "Correio" é ótima para a minha saúde espiritual, devido ao bem com que me tratam..

- Pergunta sugerida por um diretor teatral: és um poeta solteiro ou um poeta sem mulher?

MQ: Agora, aos setenta, sou um solteiro viúvo.

- Do cinema de todas as semanas, o que mais te marcou? Há muito e há pouco tempo.

MQ: Há muito tempo "O Cidadão Kane". Recentemente, "Um Estranho no Ninho" e "Cabaret".

- Do cinema para a televisão. É que seguido estás olhando para o aparelho aqui da redação. Gostas ou é porque ele está tão perto de tua mesa?

MQ: Aquelas figuram que se movem na TV causam o efeito sedativo de quando a gente olha a dança das chamas na lareira. Sedativo, desde que não se preste atenção ao que dizem.

- Recebes melhor estudantes que vêm te entrevistar do que jornalistas. Por que a discriminação?

MQ: Os estudantes e as estudantes me fazem voltar à idade deles. Tenho o dom de sempre me achar com a mesma idade das criaturas com quem estou falando. Se há alguma discriminação, deve ser esse o inconsciente motivo.

- O "Caderno H" é composto de frases sobre vários assuntos. Que tal uma frase sobre o "Caderno H"?

MQ: Hummm... Uma coisa inominável?

- Falam de tua solidão, muita gente diz preocupar-se com ela. Mas não me parece que o poeta seja um ser só. Talvez os outros projetem nele suas próprias solidões. Não é?

MQ: O único problema da solidão é saber como preservá-la. Não poder estar só é o que acontece a um indivíduo (?) do rebanho. Tens razão ao dizer que um poeta não te parece um ser só. Tive amigos, sim. Morreram. É difícil estabelecer novas amizades porque uma amizade se baseia em velhas recordações comuns.

- No futuro os estudiosos da literatura brasileira vão esbarrar num muro de silêncio, ao estudarem Mário Quintana. Por que não falas sobre ti, sobre teu passado. Por que este recato tão grande com tuas recordações ?

MQ: A minha biografia está implícita nos meus poemas. Toda confissão não transfigurada pela arte é uma falta de linha, uma presunção. O que é que os outros tem a ver com isso?

- Três poetas da nova geração e do teu agrado?

MQ: Daqui dos pagos ? Ayala, Duclós, Nejar, Trevisan, em ordem alfabética.

- Pretendes repetir Goethe e ser um velho prolífero ou achas que há um momento para silenciar?

MQ: Às vezes tenho momentos de "Lama, lama, sabáctani" e penso que a lagoa secou e só ficou o jacaré. Mas de repente me dá uma coisa, um treco, e sai um poema, uma observação. Isto me alegra por causa de meus leitores, dos meus fregueses de Caderno.

- Projetos?

MQ: Viver.

- Ressentimentos?

MQ: São passageiros.

- Por que respostas tão curtas?

MQ: O laconismo é a essência do estilo.

- Além de dar e suportar entrevistas, o que mais te incomoda?

MQ: É quando ninguém se preocupa comigo.

Fonte:
http://www.artistasgauchos.com.br/

Ademar Macedo (Mensagens Poética n. 479)

Uma Trova de Ademar

Uma Trova Nacional

Anunciou a partida,
dizendo: ”É melhor assim!”,
e saiu de minha vida,
levando o melhor de mim...
–DARLY O. BARROS/SP–

Uma Trova Potiguar


Quem só vive de beleza,
quem se exalta, se admira,
se esquece que a natureza,
tanto ela dá como tira.
–FABIANO WANDERLEY/RN–

...E Suas Trovas Ficaram


Por esse amor insensato
eu sei que o céu me condena,
mas a escolha do meu ato
eu troco por qualquer pena.
–ALONSO ROCHA/PA–

Uma Trova Premiada


1999 - Cachoeiras de Macacu/RJ
Tema: JORNAL - 3º Lugar


É minha vida um jornal
de anúncio mal redigido
que expõe no editorial
tudo que eu tenho escondido...
–MARIA NASCIMENTO/RJ–

Simplesmente Poesia

O Que Tu És Para Mim
–WELTON MELO/PE–


Sou tão feliz por estar contigo,
és meu abrigo, meu porto seguro,
és meu descanso quando estou cansado;
és meu passado, presente e futuro.

És na partida a dor da saudade,
és liberdade quando estou detido,
tu és o sopro que me deu a vida;
és a saída quando estou perdido.

Tu és precisa numa precisão,
és a razão por que mudei tanto,
tu és o manto que cobriu Maria;
és calmaria que acalmou meu pranto.

Tu és o tudo quando estou sem nada,
és alvorada pra o amanhecer,
tu és a barra do final da tarde
e Deus me livre de perder você!

Estrofe do Dia

O poeta é o portador
das grandes magoas da vida,
seu peito é uma ferida
que nunca se acaba a dor.
Sofre por causa de amor,
menosprezo e fingimento,
desgosto no casamento
e ingratidão de colega;
Todo poeta carrega
um fardo de sentimento!
–JOSÉ ZILMAR/PB–

Soneto do Dia

Toque de Silêncio
–DIVENEI BOSELI/SP–


Foi breve. Começou ao toque da alvorada,
quando este coração, herói de outra trincheira,
marchando de emoção entrou para a fileira
e logo improvisou a frágil barricada.

Foi lindo. Aconteceu da mística maneira
bem própria da paixão: manteve mascarada
a efêmera ilusão que envolve o tudo e o nada
e nem sequer doeu ver baixas na bandeira...

Foi tudo. Anoiteceu. Na última peleja,
derrota o antigo herói quem não o mereceu
e exibe o coração, sem honras, na bandeja...

Foi triste. Terminou... No peito que era meu,
aos toques do clarim, silente, não lateja:
sepulto no silêncio, o coração morreu!

Fonte:
Textos enviados pelo Autor

Maurem Kayna (Quem Tem Medo dos Ebooks?)


Medo talvez nem seja o termo, mas achei o título, embora meio chavão, adequado para se refletir sobre este novo elemento no mercado literário brasileiro. O adjetivo mais preciso talvez seja alheamento, apatia inicial.

Durante as férias, envolvida com este projeto coletivo, resolvi perguntar para alguns amigos, parentes e (des)conhecidos com quem troco idéias ou informações (através de grupos de discussão) sobre suas percepções quanto aos livros eletrônicos. Sendo otimista, creio que 30% dos perguntados respondeu. Se considerarmos o percentual geral de retornos isso seria normal e até uma boa amostra de certa população, mas tenhamos em conta que grande parte do público perguntado é gente com razoável ligação ao tema (listas de discussões sobre literatura, ebooks, sites de literatura e amigos que leem bastante – mas somente em meio impresso). Mas vamos adiante.

Muitas matérias tem transitado na web sobre o sucesso dos ebooks no mercado americano e sobre a reserva com que as editoras brasileiras tem tratado o tema (acanhamento seria mais preciso?). Algumas ainda perdem tempo (minha opinião) na discussão sobre a extinção dos livros físicos, mas a tônica geral passa pela interrogação sobre os porquês do estágio letárgico em que o ebook se encontra por enquanto. Quando ele chegará aos consumidores de forma massiva? Ou seria mais adequado perguntar quando os consumidores o quererão com maior apetite?

Vejamos o cenário entre os amigos, parentes e pessoas com interesses comuns aos meus que responderam meu pequeno questionário: a imensa maioria (73%), e isso já era esperado, não possui dispositivos de leitura (ainda são caros no Brasil, isso é inegável), e muitos também não possui smartphones (45%). Isso explica, em parte, o fato de que 58% desses meus amigos e conhecidos nunca comprou (ou sequer baixou gratuitamente) algum ebook. Digo que explica porque é a primeira razão apontada para “justificar” o não uso dos ebooks, mas não é a única, vejam:

32% alegaram não ter comprado ebooks por não possuir um dispositivo de leitura e considerar muito desconfortável a leitura de uma obra literária no computador;

26% disseram que a oferta de títulos é baixa e os que estão disponíveis não atraíram sua atenção (essa é uma resposta válida mesmo para quem já comprou, aliás…);

16% assumem total desinteresse por livros eletrônicos (não aceitação de outro formato além do impresso);

Além destas, outras razões como as dificuldades para entender / manejar os diferentes formatos de arquivo / programas necessários para leitura; o preço elevado dos ebooks no Brasil; desinteresse pela tecnologia e insatisfação com a qualidade dos ebooks também foram citadas como outras razões para não comprar ebooks.

Agora vejamos o que pensa a minoria que já comprou ebooks (42% – o que não deve ser tomado como uma estatística animadora, pois a amostragem é direcionada a um público potencialmente envolvido com os tais) ou fez downloads de títulos gratuitos. Mesmo aqui, nem tudo são flores e as principais queixas são:

a dificuldade de instalar / manejar programas para leitura (50%);

a dificuldade para entender / manejar os diferentes formatos de arquivo utilizados (21%);

dificuldades na transferência dos arquivos para os dipositivos de leitura (7%); e

outras razões, como as limitações impostas pelo uso de DRM e o desconforto da leitura no computador (totalizando 7%).

Este breve levantamento não tem nenhuma preocupação acadêmica nem compromisso com metodologias de amostragem, foi apenas um pretexto para engrenar uma reflexão sobre quais poderiam ser as possibilidades de contribuir para uma mudança no atual cenário. E isso considerando como discussão superada a “competição’ entre livros físicos e eletrônicos, mas vendo os ebooks com uma ferramenta nova e muito útil para fazer a literatura mais acessível a um número maior de pessoas. Mas há muitos entraves para que isso ocorra. Realmente não é agradável ler no computador, e com o preço dos e-readers, temos aí um estímulo a menos. E mesmo para quem está disposto à experimentar o ebook sem ter um e-reader, outro ponto importantíssimo, ao menos para aquele segmento de leitores que prefere distância dos Best Sellers e está mais interessada em literatura com letras maiúsculas, é que realmente a oferta em língua portuguesa ainda deixa muito a desejar (embora tenha melhorado significativamente nos últimos 12 meses). Por outro lado, para os “leitores-avestruz” (não é uma crítica, apenas uma figura de linguagem, sim!?) há uma grande disponibilidade de versões gratuitas (muitas piratas, é verdade!)e uma enxurrada de textos curtos (e muitos são realmente bons) espalhados em zilhões de blogs e similares. Por que, então, comprar um ebook? Essa pergunta um colega de uma lista de discussão jogou como provocação para que refletíssemos e não alimentássemos expectativas excessivas com nosso projeto. E é um argumento corretíssimo.

Esperança zero, então? Não, nem otimismo irracional, tampouco o desespero. Melhor analisar a situação sob o ponto de vista do tempo necessário para que se colham resultados em qualquer intento. Alguém aí já deve ter ouvido falar do livro Outliers, não? Eu não li ainda, mas concordo completamente com o argumento. Sucesso por mero acaso e rapidamente é mito. Por isso, incito quem tenha interesse ou vontade de ver ebooks decolando no Brasil a partilhar certas práticas:

Experimente! Mesmo que não queria comprar ebooks, procure amostras grátis ou publicações gratuitas;

Partilhe! Leu algo que te agradou? Comente, divulgue o link do autor / editora. Não gostou?? Faça o mesmo (com respeito, claro).

Resista menos! Não pense no ebook como um concorrente do insubstituível livro de papel, com cheiro, tato e história, mas como uma facilidade de acesso ao que realmente interessa: o texto!

Fonte:
http://www.artistasgauchos.com.br/

Efigênia Couitinho (Namorada)


Fonte:
Texto e imagem enviados pela autora. Montagem por José Feldman.

A. A. de Assis (A Província do Guairá: Um pouco da história do antes de Maringá) Parte 6


AS MINAS DE PARANAGUÁ

-A pé?...

-Os Torales viajaram a cavalo até Cananeia, no litoral, dali prosseguindo de barco rumo a Paranaguá. As minas de ouro da costa paranaense não eram lá essas coisas. Havia mais lenda do que metal precioso. De qualquer forma, Bartolomeu conseguiu acumular considerável fortuna e entrou na história como um dos principais fundadores de Paranaguá, ao lado de Gabriel de Lara, Heliodoro Ébano, Pedro de Sousa Pereira e outros. Morreu em 1668, aos 71 anos, deixando a família em boa situação.

-Os herdeiros continuaram na mineração?

-Bartolomeu tinha uma filha, que se casou com um paulista e foi para São Vicente levando consigo a mãe viúva; e três filhos homens, que pouco tempo depois migraram para Minas Gerais, atraídos pelo ouro que começava a ser descoberto por lá. O filho adotivo Francisco, o Catu, então com 46 anos, recebeu parte da herança e preferiu subir a serra para tornar-se criador de gado nos campos de Curitiba.

-Já existia Curitiba?

-Estava começando a formar-se a povoação, no local onde está hoje a Praça Tiradentes. Os mineradores do litoral, desiludidos do sonho do ouro fácil, foram mudando de atividade. Muitos deles se deslocaram para Minas Gerais, outros tantos buscaram o planalto. Subiam de canoa, pelos rios, até Morretes, e continuavam a pé utilizando trilhas abertas pelos índios. O roteiro era mais ou menos o que mais tarde viria a ser a Estrada da Graciosa. Em poucos anos Curitiba já rivalizava em importância com Paranaguá e havia intenso comércio
entre os dois núcleos: os curitibanos forneciam bois, cavalos, trigo e erva-mate; do litoral vinham mercadorias estrangeiras: tecidos, bebidas, vinagre, azeite.

-O embrião da comunidade paranaense.

-Correto. A serra do Mar, que antes era um muro entre o litoral e o planalto, passou a ser uma ponte. Catu estabeleceu-se duas léguas ao norte do núcleo pioneiro de Curitiba, numa grande casa de madeira construída em meio a solenes pinheirais.

-Pinheiro, dá-me uma pinha; pinha, dá-me um pinhão...

-Os botânicos chamam o nosso pinheiro de araucaria brasiliensis. É diferente do pinheiro europeu. O da Europa é cônico, tipo árvore de Natal. O nosso lembra uma grande taça. Cresce em linha reta, chegando em média a 30 metros de altura. Alguns atingem 50 metros. Naquele tempo, a araucária era uma árvore nativa, aparecendo em grupos, sem que ninguém plantasse. Descobriu-se depois que o plantio era obra da gralha-azul, pássaro muito bonito que passou a ser um dos símbolos do Paraná. A gralha tem no pinhão o seu alimento favorito. Tira a casca, come a polpa e, previdente como a formiga, enterra boa quantidade de pinhões para serem consumidos na entressafra. Não conseguindo comer todas as sementes escondidas, estas produzem novos pinheirais. Infelizmente, a imprudência dos homens vai pouco a pouco acabando com as nossas preciosas araucárias.

-Catu?...

-Criando gado, cultivando erva-mate e comercializando seus produtos no povoado, Catu viu nascer e desenvolver-se a futura capital paranaense, onde morreu aos 73 anos, em 1695, dois anos após a elevação do arraial de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais de Curitiba à categoria de vila.

-E acaba aí a história do nosso Catu...

-A história de um homem não acaba: desemboca, tal como um rio, na história dos seus descendentes... Catu deixou nove filhos, um dos quais, Henrique Américo Torales, saiu de Curitiba em 1705, aos 18 anos de idade, disposto a estabelecer-se num ponto qualquer ao longo do “Caminho das Tropas”, no comércio de mulas. O caminho atravessava os Campos Gerais, passava por Itararé e continuava até Sorocaba e São Paulo. Vender mulas era ótimo negócio nessa época. Em Minas havia necessidade de muitos desses animais para o transporte do ouro, e os mineradores vinham buscá-los na famosa “Feira de Mulas” de Sorocaba, abastecida pelos criadores do Sul.
Nesse enredo entrou o esperto Henrique Américo.

OS CAMPOS GERAIS

-Esse “Caminho das Tropas” fez história...

-A atual rodovia Ponta Grossa-Itararé foi traçada justamente nos rastros dos antigos tropeiros. Mas voltemos a Henrique: ele saiu de casa com a modesta herança deixada pelo pai, cavalgou pelos campos, permaneceu alguns dias em Vila Velha, no meio daquelas rochas cheias de mistérios, alcançou adiante as margens do rio Pitangui, gostou do lugar, parou ali. Comprou um pequeno sítio e, enquanto construía o rancho, hospedou-se numa pousada de jesuítas: um barracão onde os padres reuniam índios para o catecismo e acolhiam viajantes. Nessa hospedaria ele ouviu dos jesuítas muitas histórias, inclusive sobre as antigas reduções do Guairá. Ao revelar que era filho de um índio nascido numa daquelas reduções, seu prestígio subiu. Os religiosos passaram a tratá-lo com especial carinho, a ponto de convidá-lo a residir com eles. Henrique preferiu morar no rancho, mas com o compromisso de fazer as refeições na casa dos padres.

-Moleza...

-A pousada, aos poucos, tornou-se ponto de reunião de toda a vizinhança: fazendeiros, tropeiros, comerciantes, índios. Foi numa dessas reuniões que surgiu a ideia de formar-se o povoado que veio a ser Ponta Grossa. O mais interessante foi a maneira como escolheram o local: soltaram um pombo, combinando que onde ele pousasse seria construída a futura vila. O pombo pousou no alto da colina. E na colina Ponta Grossa nasceu.

-Isso é uma lenda, ou foi de fato assim?...

-Pelo que me consta, a história do pombo é real. Pois bem: Henrique montou seu negócio de mulas, logo se casou, ganhou dinheiro suficiente para comprar outras terras e tornar-se próspero fazendeiro. Morreu em 1772, com 85 anos de idade. Morreu de alegria!

-Com assim?...

-Uma de suas netas, Jurema, de 16 anos, talvez por influência do sangue indígena que carregava, fugira de casa para viver com uma tribo nos campos de Guarapuava. Ocorre que naquele ano de 1772 houve uma tremenda batalha entre tropas curitibanas comandadas pelo coronel Afonso Botelho e os nativos da região. A missão de Botelho era afastar dali os índios para erguer fortificações com o objetivo de impedir que os espanhóis, anteriormente enxotados pelos bandeirantes, reconquistassem a área.

-A menina estava lá?...

-Chegou a Ponta Grossa a notícia de que os índios haviam vencido bravamente a batalha de Guarapuava. Jurema, tendo entrado na briga ao lado dos guerreiros nativos, teria morrido com um tiro no coração. Dois meses depois, entretanto, ela reapareceu em Ponta Grossa, sã e salva, acompanhada por um jovem índio com quem se casara. O tal tiro, em verdade, causara nela apenas leve ferimento.

-Ainda bem...

-Mas o velho Henrique, ao ver a neta esbanjando saúde, foi tomado de tão forte emoção, que teve um infarto.

-O coração explodiu de alegria!

-Com o desaparecimento de Henrique, os negócios da família ficaram sob o comando do filho mais moço, Arnaldo Júlio Torales, pai de Jurema. Os quatro mais velhos viviam em Paranaguá, trabalhando com exportação e importação.

-Jurema ficou com o pai?

-Não quis ficar. Voltou para a tribo com o marido índio. A última notícia que a família teve dela foi por uma carta datada de 1819, dando conta de que Guarapuava, já então definitivamente conquistada pelos brancos, ganhara o título de freguesia. Na mesma carta, dizia que a partir de Guarapuava prosseguia a expansão rumo oeste, na direção de Foz do Iguaçu; e rumo sudoeste, passando por União da Vitória, alcançando Palmas e penetrando no antigo território das Missões do rio Uruguai. Tenho cá comigo o palpite de que a nossa “indiazinha” Jurema acabou se mandando para o Paraguai.

-Retornemos a Ponta Grossa...

-Arnaldo Júlio viveu até 1791, deixando como sucessor o filho Luís Pedro, que, como a irmã Jurema, era rebelde, brigão, mas dotado de forte espírito cívico. Da “dinastia” dos Torales, foi o que teve mais intensa atuação política. Em 1821, aderiu à célebre “Conjura Separatista”, que detonou a campanha pela emancipação do Paraná. Em 1822, organizou uma cavalgada que marchou até o Rio de Janeiro festejando a proclamação da independência do Brasil. Em 1823, foi um dos maiores batalhadores pela promoção de Ponta Grossa à categoria de freguesia. Em 1853, já velhinho, viveu a maior emoção de sua vida: a conquista definitiva da emancipação do Paraná.
–––––––––––-
continua…

O e-book pode ser feito o download no blog do Assis http://aadeassis.blogspot.com

Fonte:
A. A. de Assis (A Província do Guairá: Um pouco da história do antes de Maringá). e-book. 2011.

Sylvie Neeman (Sábado na Livraria)


artigo por Celso Sisto para o site www.artistasgauchos.com.br

NEEMAN, Sylvie. Sábado na livraria.
Ilustrações de Olivier Tallec.
Tradução de Cássia Silveira.
São Paulo, Cosac Naify, 2010. 32p.


Sempre se pode celebrar a vida com um livro. Com uma boa história. Para presentear a memória, para apaziguar os medos, para refazer a linha do nosso horizonte pessoal.

Pois este livro trata do amor aos livros. Um homem, freqüentador assíduo de uma livraria, é visto pelos olhos de uma menina. Ela acompanha suas ações, porque sempre está na livraria no mesmo dia em que ele está: aos sábados. Ele lê sempre o mesmo livro, sentado em uma poltrona, enquanto ela lê histórias em quadrinhos. O livro dele é pesado, o dela é divertido. O dele é grande, o dela acaba logo. Ele se emociona, ela repara. Até que um dia ele some. A menina se pergunta se ele estaria doente. O Natal se aproxima. Três dias antes, ele aparece novamente na livraria, e quando vai procurar o tal livro nas prateleiras, não o encontra. Estava certo de que ele finalmente havia sido vendido, sabia que esse dia chegaria, e prepara-se para voltar para casa, meio pesaroso, quando é surpreendido pela dona da livraria, com um pacote dourado.

A história é narrada pela menina, que presta atenção em tudo o que o velho faz na lojaa. Ela vai comparando-se a ele, a partir de suas atitudes, seus gostos, suas preferências, suas reações. O olho, como instrumento privilegiado da observação, vai costurando a história, fazendo de sua dona uma grande observadora da vida ao redor e de si mesma. O livro que cada um deles lê é um guardado de afetos: com o lugar (a livraria), com a leitura, com os leitores que se reconhecem na paixão do outro. E embutido nessa relação, estão as ideias de tempo, de constituição do leitor, de funções da leitura. Tudo de forma sutil, é claro.

O texto, bem distribuído nas páginas, é simples, direto, curto, e com lacunas que servem para reforçar um certo clima de mistério, de preservação das intimidades. Mas, também funciona como uma lente, e na medida em que vai se aproximando dos “retratados”, vai revelando, maiores detalhes.

As imagens do livro são grandes, de páginas duplas e com pinceladas fortes, com grande massa de tinta e cenas preparadas para provocar impressões! Predominam os azuis e os amarelos. O azul escuro reforça o tom invernal. O amarelo dá uma dimensão afetiva, uma humanidade para os personagens da história. O ilustrador não esconde os traços de grafite, o que confere ao livro uma atmosfera de intimidade, de participação em um segredo, coerente com o clima de aconchego suscitado por cada página.

A pergunta que fica ecoando por trás das observações da menina que olha o velho enquanto lê, poderia servir para todo e qualquer leitor: quem prazer se pode tirar disso? E vem ainda associada à sensibilidade decorrente do período natalino.

A autora nasceu na Suíça e estreou na literatura infantil com esse sensível livro. O ilustrador é francês e já fez mais de cinqüenta livros infantis. A sutileza da dupla, ao contar uma história tão recheada de emoções conduz o leitor do início ao fim. Não seria essa uma história de fins?
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Celso Sisto
Celso Sisto é escritor, ilustrador, contador de histórias do grupo Morandubetá (RJ), ator, arte-educador, especialista em literatura infantil e juvenil, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Mestre em Literatura Brasileira, pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Doutor em Teoria da Literatura, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e crítico literário de várias colunas dedicadas à literatura infantil e juvenil, na mídia impressa e on line. www.celsosisto.com/


Fonte:
http://www.artistasgauchos.com.br/

Guerra Junqueiro (Os Cinco Sonhos)


Andando um dia Carlos Magno à caça com uma comitiva numerosa, perseguiu um veado, que dava tais saltos, e corria por tal forma que, apesar da ligeireza do seu cavalo, o rei perdeu-lhe completamente a pista. Foi então que viu que estava só, tendo a sua corte ficado muito para trás e, sentindo-se fatigado, entrou ao cair da noite numa choupana solitária no meio da floresta. Em roda da lareira estavam deitados quatro ladrões. Os salteadores levantaram-se logo, como despertados pelo barulho da entrada do viajante; cada um deles tinha tido um sonho, que lhe quiseram logo contar.

O primeiro que tomou a palavra exprimiu-se desta maneira:

– No meu sonho, tirava eu o capacete de ouro à pessoa que acabava de entrar aqui, e punha-o na minha cabeça.

– Eu, disse o outro, sonhei que vestia a sua couraça.

– E eu, disse o terceiro, que estava pondo o seu manto.

– E eu, disse o último ladrão, para lhe fazer favor, passava em roda do meu pescoço aquela pesada cadeia de ouro, da qual está pendurada a sua trompa de caça.

–Vejo bem, disse o imperador, que têm tenção de me roubar tudo, e mesmo a vida. Reconheço que estou em poder de vocês, e que toda e qualquer resistência seria inútil. Não lhes peço senão uma coisa, é que me deixem tocar pela última vez na minha trompa de caça.

Os salteadores responderam que consentiam, visto que o último pedido de um moribundo devia ser respeitado.

Carlos Magno levou à boca a sua magnífica trompa de marfim, e tirou dela sons tão fortes e sonoros, que em menos de alguns minutos todos os seus companheiros de caça e a sua comitiva estavam ao pé dele.

– Agora, disse o imperador, dirigindo-se aos salteadores, agora também eu devo contar o sonho que tive. Sonhei que vocês todos iam ser enforcados diante deste casebre.

E o sonho realizou-se imediatamente.

Fonte:
Guerra Junqueiro. Contos para a infância.

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) O Pó de Pirlimpimpim - V – Fim do Visconde de Sabugosa


— E o Visconde com a canastrinha? — lembrou Emília. — Estavam os “dois” amarrados à crina do burro, mas não vejo nem um nem outro.

Sumira-se o Visconde, ninguém sabia como. Devorado pelo pássaro Roca? Afogado naquele mar imenso? Impossível apurar.

Emília ficou aborrecidíssima, não tanto pelo Visconde, apesar de serem muito camaradas, mas pela canastrinha que com ele se perdera. Só se consolou quando dona Benta lhe prometeu outra ainda mais bonita.

Súbito, Narizinho, que se afastara do grupo para juntar caramujos da praia, gritou:

— Corram! Achei o Visconde!...

Todos correram para lá, e de fato viram o pobre Visconde semi enterrado na areia, morto, completamente morto!... Tinha-se afogado, e fora trazido pelas ondas. Pobre Visconde! Sem cartola, de língua de fora, olhos cheios de areia, corpo metade comido pelos peixes... Todos se comoveram profundamente, sobretudo ao verem que não largara a canastrinha. Fiel como um cão, cumpridor da palavra como um verdadeiro nobre, perdera a vida, mas não perdera a carga que lhe fora confiada!... Até o senhor de Munchausen se comoveu.

Descobriu-se, cruzou os braços e ficou de mão no queixo a contemplar aquele triste fim. Emília, porém, demonstrou mais uma vez que não tinha coração. Em vez de derramar uma lágrima, ou dizer umas palavras tristes, a diabinha limitou-se a abrir a canastra – para ver se o Visconde não havia furtado alguma coisa!... Depois teve uma idéia muito prática. “Depenou” o cadáver, isto é, arrancou-lhe as pernas e os braços roídos pelos peixes e guardou o tronco na canastrinha, dizendo:

— Tia Nastácia é uma danada. Com este toco, aposto que faz um Visconde novinho e muito mais bonito.

Por fingimento, ou porque realmente sentisse a morte do Visconde, o barão declarou que iria tomar luto no chapéu por três meses, visto que eles, barões e Viscondes, são parentes entre si — parentes em nobreza. Esse ato do senhor de Munchausen muito sensibilizou dona Benta, a qual cochichou ao ouvido de Narizinho:

— Bem se diz que santo de casa não faz milagres! Nunca demos grande importância ao Visconde e, no entanto, veja, até luto por ele o senhor de Munchausen vai botar...

Nisto ouviram tropel de cavalos. Era a caleça do barão que vinha chegando para levar dona Benta ao castelo.
––––––––––––––
Continua… O Pó de Pirlimpimpim – VI – O pintão

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa