terça-feira, 24 de abril de 2012

A. A. de Assis (Estados do Brasil em Trovas) Ceará

Bartolomeu Campos Queirós (Onde tem bruxa tem fada...)


Ela foi para o azul.

Fez nuvem com seu vestido, colou sua estrela perto das que lá brilhavam.

Seu chapéu, ela deu de presente para menino que por ali passeava... (só em sonho) E virou idéia.

Isso faz tantos anos!...

Um dia, Maria do Céu cansou de ser idéia.

Com as nuvens, costurou um vestido.

Pediu emprestados os sapatos de um anjo.

Arrancou sua estrela e colou na ponta de um pedaço de raio de Sol.

Com retalhos de papel de seda - resto de papagaio solto de linha - construiu seu chapéu.

E Maria, idéia no céu, virou fada!

Isso faz poucos dias...

Maria do Céu escorregou pelo brilho da Lua até a Terra.

Era um momento em que todos dormiam - até as ruas.

Ninguém, nem mesmo as folhas ou os ventos, viu a fada chegar.

Pela manhã, Maria do Céu acordou com o Sol. Saiu só e cedo para saber em que cidade estava. Percorreu ruas e praças entre o povo.

Maria confundia a todos.

Uns diziam:

é bailarina
é artista de circo que anda em arame
é moça de novela
é visita de outras terras.

Outros teimavam que ela era resto de Carnaval garota-propaganda cigana que tira a sorte.

"O mundo mudou", pensou Maria, idéia vinda do céu. "Nem mesmo os meninos conhecem as fadas e seus poderes."

Maria do Céu, agora fada sem trabalho na Terra, passeando pelas calçadas, pensava em coisas simples de fazer:

sorvete de sonho
algodão-doce de nuvem
sapo virar príncipe
vestido com finos fios de ouro e prata
carruagem de abóbora
bicicleta para passeios aéreos
jardins com flores e falas.

Mas Maria do Céu, que tudo podia, nada fazia. É que as fadas só realizam encantamentos quando pedimos. E ninguém pedia coisa alguma...

Maria era uma fada que olhava e gostava de saber das coisas. Assim, escutando, ela descobriu que outros mágicos tinham invadido a Terra e faziam coisas incríveis:

bicicleta com trote de cavalo
chicletes com vitaminas do super-homem
refrigerantes com sabor de vitória
televisão com poeira de guerra
petróleo com gosto de sangue
míssil mais feroz que a ambição.

Eles diziam onde as pessoas deveriam guardar seu dinheiro. Então o dinheiro crescia, crescia, crescia e ficava tão forte que os homens podiam comprar tudo: casa, carro, viagem, roupa, voto, poder, glória "sem entrada e sem mais nada".

A fada do céu sentiu que não tinha tamanhos poderes. Seus encantamentos só eram coisas de alegrar coração...

Maria, fada na Terra, adormeceu pensando em retornar ao azul e ser novamente idéia. Ela estava segura de que na Terra não havia mais lugar para fada especializada em produzir alegrias.

Os mágicos - prometendo o céu na Terra - davam tantas tarefas aos homens que eles não tinham tempo para saber que faltava tempo para a alegria nascer.

Maria do Céu, triste como o poente, amanheceu pronta para partir no último raio de Sol, ao entardecer.

Mas justo nesse dia ela encontrou um amigo. Menino que lhe pediu para aprender a ler e escrever sem ir à escola. Coisa muito fácil para uma fada vinda do azul.

Com um gesto breve e leve, Maria encostou uma ponta da estrela na cabeça do menino.

A alegria do menino foi tão grande que aprendeu ainda geografia, história, astronomia e política.

Maria do Céu não partiu no pôr-da-noite. "Ficarei mais um dia", pensou ela, "para usar mais a minha vara de condão."

Acordou pela manhã, feliz como aluno em recreio, e saiu só, sem rumo, rua adiante. E ao primeiro menino ofereceu os seus poderes.

- Não - disse o menino. - Quero aprender a ler e a escrever na escola. Ontem - continuou ele - um colega aprendeu sozinho e foi levado pelos doutores para tratamento em hospital. Eles disseram que ele sabia mais do que devia. Não sei o que farão com ele! Talvez tome injeção de esquecimento. Com isso, eu fiquei com medo de saber.

O coração da fada disparou e só à noite conseguiu organizar esta idéia:

- Menino só pode saber das coisas que já foram testadas pelos adultos. Na Terra não se pode aprender nada pelo coração. Ah!, os mágicos! - exclamou Maria.

Maria não gostou de seu pensamento. Ela tinha certeza de que todos podemos saber muitas coisas só olhando o mundo. E menino aprende muito mais. Menino tem olhos novos e coração descansado.

Naquela noite, o silêncio não deixou Maria dormir. Com o pensamento livre, ela pensou o mundo secretamente. Pensou e viu que só se pode ser fada na Terra. Ser idéia no céu não adianta nada. É como ser homem sem corpo na Terra.

O silêncio de Maria pensou ainda sobre os mágicos que moravam na Terra. Eles só fabricavam magias convenientes para eles. E, para facilitar a produção, eles enchiam o coração dos meninos de esperanças. Quando uma esperança começava a morrer, eles fabricavam uma nova.

A esperança passou a ser uma certa doçura que sossegava a todos.

Assim, Maria do Céu resolveu morar na Terra e se fazer fada definitivamente.

Maria, sabendo agora das manhas dos mágicos, tinha no rosto um riso quase de raiva.

Desceu para a praça, lugar onde o povo parava para pensar a esperança, vendo nas vitrines desejos de todas as cores, reuniu em roda os meninos e disse:

- Sou fada. Vivi antigamente na Terra, fazendo virar verdade todos os sonhos dos homens. Teci cobertores com cantos de passarinho, para menino dormir um sono de floresta. Construí cidade de doce. Eram ruas cobertas de chocolates e casa de amor-em-pedaços. Dos chuveiros caíam fios-de-ovos ou eram cheias de mel as piscinas. Viajei com amigos para o fundo do mar, escutando canto de sereias ou montando em cavalo-marinho. Dei poderes aos sapateiros para costurarem botas-de-sete-léguas para menino correr o mundo. Casei príncipes e princesas em casas de anões ou em palácios reais. Um dia, saí da Terra para um repouso. Hoje voltei e posso atender a qualquer pedido. Peçam!

Mas menino algum abriu a boca.

Eles estavam misturados - assustados e encantados com os poderes da fada Maria do Céu.

De repente, um gritou:

- Quanto custa, quanto?

- Nada - respondeu a fada.

- De graça? - perguntou outro.

- Sim, falou a fada. - Eu trabalho pelo prazer de trabalhar. Enquanto trabalho e vocês ficam contentes vou aumentando a minha alegria. Alegria ninguém seqüestra. Eu durmo tranqüila e sem guarda para vigiar a minha casa. Alegria só aumenta e nem precisa depositar. Ela rende juros no coração.

Os meninos estavam gostando da fada, mas não sabiam o que pedir. Viviam tão acostumados a ter só esperança que a idéia de ter uma coisa de verdade fazia o coração ficar aflito.

Mas a fada não desanimava. Ela sabia que menino tem tanto desejo adormecido!

E continuava:

- Peçam viagens ao centro das sementes para ver a árvore antes de nascer. Peçam ruas cobertas de música para o caminho ser canção. Ou, quem sabe, livros com folhas brancas para os olhos inventarem as histórias! Peçam passarinho ensinado que dorme na palma da mão... Peçam luz de luar com gosto de suspiro para que se tenha sonho doce...

Enquanto falava, a fada lia paisagens nos olhos dos meninos.

De repente, uma voz de menina murmurou com medo:

- Eu quero uma cama para dormir. Sem cama não posso pedir sonhos.

Os meninos calaram...

A fada, assustada, olhou no coração da menina e viu a esperança balançando.

Com gesto preciso, fez surgir, no centro da praça, uma cama de madeira polida e mais um colchão de algodão macio.

- É sua - disse a fada.

A menina, olhando de longe e com medo daquela verdade, respondeu:

- Não quero mais. Não tenho casa para guardar a cama.

A fada, sem vacilar, continuou seu trabalho, fazendo nascer, no meio da praça, uma casa, com janelas para os quatro cantos do mundo! E, dentro da casa, a cama.

A alegria engoliu os meninos, que dançavam roda em volta da casa, olhavam pelas janelas, subiam no telhado, fingiam sono sobre a cama.

"A alegria é também uma maneira de menino organizar o coração", pensou a fada.

No meio da brincadeira que os meninos viviam, na praça, foram aparecendo magicamente o banqueiro o industrial o economista o arquiteto o deputado o professor o padre o delegado.

Sem reparar na alegria dos meninos, o prefeito discursou:

- Senhores, a praça foi feita para o povo pensar a esperança. Não posso deixar esta casa plantada no meio dela. Como representante legítimo do povo, mandarei destruí-la.

O banqueiro perguntou ao industrial:

- Como a casa foi construída, se ninguém me pediu dinheiro emprestado?

O industrial respondeu:

- Seu material de construção não foi comprado na minha indústria. É contrabando.

O economista disse:

- Não fui consultado sobre os preços da construção.

O político discursou:

- Minha gente, eu não usei minhas Medidas Provisórias.

O arquiteto contou que não recebeu nenhuma encomenda do projeto e o professor lamentou a falta de cultura do povo.

O padre apenas rezou:

- Santo Deus!

E o delegado, que tudo ouviu, apenas ordenou aos soldados:

- Prendam imediatamente a pessoa que desobedeceu à lei.

O grito do delegado fez a tristeza visitar a cara dos meninos. Então Maria, fada presa na Terra, falou com os olhos um segredo no pensamento de cada um deles.

Eles entenderam tão bem que o sorriso tomou conta do corpo inteiro deles, menos do ódio dos soldados. Mas a fada olhou para todos, na praça, de maneira tão desarmada que desarmou até os guardas.

Ela partiu rua acima, carregando um coração muito livre mais um policial de cada lado.

Maria, deixada numa cela com janela quadriculada, passou em revista o mundo. Um pensamento quadrado entrou pelas grades:

"O mundo pertence agora aos mágicos e só eles pensam poder modificá-lo."

A fada compreendeu por que era importante, para os mágicos, os meninos terem esperança. A esperança é uma coisa que sempre espera e nada faz.

Enquanto Maria pensava, os meninos dormiam e sonhavam verdades que só eles e a fada podem sonhar. Nem o barulho das máquinas derrubando a casa da praça incomodava o sono.

No outro dia, os meninos acordaram mais donos do segredo. Saíram cedo para os seus deveres, evitando passar pela praça. Não era mais preciso pensar a esperança nem ver a casa destruída.

Maria foi levada para a sala de interrogatório. Assentou-se diante do delegado e ouviu a seguinte sentença:

- Fada não é nome nem sobrenome. Entrou na cidade sem passaporte, sem carteira de identidade, sem carteira profissional, sem título de eleitor, sem cartão de crédito e CPF. Não tem endereço de residência nem CEP e diz ter como profissão realizar desejos. Não é filiada a nenhum sindicato e ensinou menino a ler e escrever sem técnica de professor. Construiu casa sem empréstimo, avalista e projeto, em lugar proibido. Falou mal da esperança. Contou segredo no coração dos meninos. Sorriu no momento da prisão, desrespeitando as autoridades. Com certeza não foi informada de que vivemos em uma democracia. Por tudo, Maria do Céu é culpada e permanecerá presa até que se prove o contrário.

A fada não entendeu nada. Era a primeira vez que escutava um adulto. Apenas pensou: "São mágicos e ainda falam uma outra língua".

Maria, idéia condenada, usou, naquela noite, os seus poderes de fada. Virou vagalume. Passou pelas grades e sobrevoou a cidade. Visitou cada menino e entrou em seu sonho. Viu que todos sonhavam com cidades onde a fantasia era possível e necessária. Cidades onde as fadas moravam sem causar medo. Lugares onde a esperança não durava mais que meio-dia. Cidades sem mágicos e magias, mas cheias de encantamentos.

O sonho dos meninos alegrou a fada-madrinha, que naquela madrugada partiu para outra parte do mundo. Se exilou, talvez, em outras terras.

O certo é que Maria do Céu passou pela Terra em forma de fada e vestida de anjo, mas só alguns viram. Passou breve, deixando com os meninos uma idéia que trouxe do azul. Chegou como um arco-íris, sem aviso.

Desde a manhã do dia seguinte até hoje, todos da cidade procuram a fada. Alguns acreditam que ela trocou de nome, vestiu-se com outros panos e vive na cidade. Outros afirmam que ela virou professora e ensina às crianças como se defender dos mágicos.

Mas as crianças, que sabem do segredo, reparam na procura dos adultos e sorriem. Quando alguém, impaciente e ameaçado com o desaparecimento da fada, pergunta a um menino qual é o segredo que ela soprou, ele responde:

- Amanhã eu falo. Amanhã eu falo.

Eu penso que Maria do Céu poderá voltar a qualquer momento, sem aviso, e que só os mais atentos a verão. Mas os meninos não confirmam a minha idéia.

Fonte:
Historinhas pescadas : antologia de contistas brasileiros / [coordenação editorial Maristela Petrili de Almeida Leite, Pascoal Soto].- São Paulo : Moderna, 2001. – (Literatura em minha casa ; v. 2)

J. G. de Araújo Jorge (Montanhas de Friburgo)


I
Gosto destas montanhas verdes, revestidas
com o tapete felpudo das matas fechadas,
estampadas no roxo e amarelo, estampadas
de acácias e quaresmas, em buquês, floridas.

Gosto destas montanhas azuis, musicadas
pelas águas que rolam frias, esquecidas,
sussurrando cantigas infantis, perdidas
por entre os tinhorões e as sombras das ramadas.

Montanhas que parecem grandes ametistas
ou ondas gigantescas de um estranho oceano
espumantes e mais puro... e mais perto dos céus!

II
Diante destas montanhas, fiel, eu me prosterno,
sacerdote que sou da "Ordem da Natureza",
deslumbrado e submisso ante tanta beleza
na humildade do efêmero aos pés do que é eterno.

Diante delas me sinto insignificante e pequeno
como o córrego humilde a sangrar nas encostas
e a minha alma, impregnada de poeira e veneno
leve e pura se ajoelha, a rezar, de mãos postas.

São meu altar de fé, de amor, de sonho e paz,
modelando no espaço órgãos e castiçais
nos seus gestos de pedra e nas altas arestas

e sobre elas, o céu azul, descomunal,
é a cúpula sem fim de imensa catedral
onde Deus pontifica em luz e canta em festas!

Fonte:
J. G. de Araujo Jorge."Canto à Friburgo", 1961.

Esopo (Fábula 2: A Gralha e os Pavões)


Era uma gralha muito orgulhosa e vaidosa que, como estava descontente com a vida, apanhou umas penas de pavão que tinham caído no chão. Espetou-as no meio das suas próprias penas e foi ter com os pavões. Mas em breve as penas começaram a cair, e os pavões atacaram-na com os seus bicos aguçados.

Muito triste, a gralha procurou as suas antigas companheiras, desejosa de tornar a viver com elas. Mas as outras gralhas, lembrando-se do modo como ela se comportara, ignoraram-na.

"Amiga", disseram-lhe, "podias ter ficado conosco e estar contente, mas preferiste trocar-nos por uma companhia mais brilhante. Nessa altura não precisaste de nós, agora somos nós que não precisamos de ti."

Moral da história

Nós roubamo-nos uns aos outros de muitas formas e por muitas razões, mas o orgulho e a ignorância só tornam as pessoas ridículas.

Fonte:
Fábulas de Esopo. Coleção Recontar. Ed. Escala, 2004.

segunda-feira, 23 de abril de 2012

A. A. de Assis (Estados do Brasil em Trovas) Brasília

Esopo (Fábula 1: O galo e a jóia)


Um galo novo, junto dumas galinhas, esgravetava o chão perto duma quinta, quando desenterrou um diamante. É claro que sabia o que aquilo era, porque brilhava á luz do sol. Olhou duvidoso para a bela pedra, pôs a cabeça á banda e disse:

"És mesmo bonita! Se aqui estivesse um joalheiro para te ver, ficaria muito feliz, mas para mim, não vales nada. Na verdade preferia um grão de cevada a todas as jóias deste mundo!"

Moral da história

Quem sabe o que realmente quer encontrará sempre satisfação. Sábio é aquele que prefere as coisas necessárias aos enfeites cintilantes, que só servem o orgulho e a vaidade.

Fonte:
Fábulas de Esopo. Coleção Recontar. Ed. Escala, 2004.

Esopo e suas Fábulas


Pensa-se que o presumível autor destas fábulas, Esopo, viveu entre 620 a.C. e 560 a.C., mas não há a certeza quanto ao local onde nasceu. Não se sabe se veio da Trácia, da Frígia, da Etiópia, de Samos, Atenas ou Sárdis, mas dizem antigos autores que ele era escravo de um cidadão chamado Idamon, em Samos, na atual Grécia.

Segundo Heródoto, que escreveu cerca de duzentos anos mais tarde, Esopo teve morte violenta, tendo sido lançado num precípicio pelo povo de Delfos. Desconhece-se contudo a ofensa que teria praticado. Um autor diz que foi o sarcasmo mordaz das fábulas, outro conta que ele se apropriou de dinheiros que o rei Creso, da Lídia, lhe confiara; diz ainda outra versão que Esopo roubou uma taça de prata.

Esopo foi indubitavelmente, libertado pelo seu senhor, Idamon, porque veio a viver na corte do rei Creso, onde conheceu o grande estadista e sábio ateniense Sólon. Pisístrato, governador de Atenas, era parente de Sólon, e Esopo visitou a sua corte, na qual conseguiu convencer os cidadãos a permitirem que o seu governador conservasse o trono. Fê-lo contando-lhe a fábula "As rãs que queriam ter um rei" (fábula 16), e tão grande era a eloquência de Esopo que Pisístrato conseguiu manter-se como ditador.

Alguns escritores negam a existência de Esopo, e a verdade é que possuímos poucos pormenores da sua vida e do seu trabalho. Até o seu aspecto físico é discutível. Segundo um monge de Constantinopla, Máximo Planudes, que escreveu no século XIV, Esopo era um anão feio e disforme, e é assim que a famosa estátua de mármore da Villa Albani, em Roma, o representa. Mas Plutarco, escrevendo cerca de mil e trezentos anos antes, não nos diz nada acerca do seu aspecto físico. Consta que os Atenienses erigiram uma magnífica estátua em honra de Esopo.

Atualmente considera-se que, embora Esopo tivesse existido, ele não foi o autor das famosas fábulas que lhe são atribuídas. Eram-lhe familiares, mas não escreveu nenhuma, limitando-se a contar as histórias aos outros.

Na Grécia as fábulas eram populares, como em todo o mundo antigo. Foram-no, certamente, centenas de anos antes do tempo de Esopo.

De fato veio a provar-se que muitas das fábulas são muito antigas. "O leão e o rato" (fábula 13), por exemplo, foi encontrada num antigo papiro egípcio com milhares de anos e a fábula "O rato do campo e o rato da cidade" (fábula 9) encontra-se nas Sátiras de Horácio.

Certos estudiosos crêem que todas as fábulas são de origem indiana, árabe ou persa e que Esopo se limitava a espalhar as fábulas que ouvira contar ou que conhecia há muito tempo. Nenhuma das fábulas foi descoberta em grego original e só passadas algumas centenas de anos foram compiladas. Demétrio de Falerno publicou um conjunto de fábulas nos finais do século IV a.C., que veio a perder-se.

Se houvéssemos de atribuir a autoria das fábulas a alguém, seria talvez a Bábrio, que viveu durante o século III d.C., na Síria, que então fazia parte do Império Romano. Bábrio escreveu em Grego, mas a sua obra só foi conhecida através de citações de outros escritores até 1842. Nesse ano descobriram-se num convento no monte Atos fragmentos de papiros contendo mais de duzentas fábulas, a maior parte das quais, certamente, da sua autoria. Mais tarde, descobriram-se outras seis num manuscrito existente no Vaticano.

Cerca de cem fábulas também foram escritas em latim por um escravo macedonico chamado Fedro, trazido para Roma no tempo de Augusto, o primeiro imperador romano. Ao chegar a Roma, Fedro foi libertado pelo imperador, mas não usou a sua liberdade com sabedoria. Numa fábula ridicularizou o grande soldado romano Sejano e foi condenado á prisão. Também cometeu erros nas suas narrativas. Por exemplo, na fábula "O cão e a sombra" (fábula 6), o original contava que o cão via o seu reflexo ao passar numa ponte; Fedro fê-lo ver o seu reflexo enquanto 'nadava na água.

Tanto Fedro como Bábrio inspiraram-se largamente nas histórias Jataka da literatura budista, originais da Índia durante o século IV a.C. ou mesmo antes. Estas e outras fábulas sânscritas tinham-se espalhado da Índia á China, ao Tibete, á Pérsia e à Arábia, tendo chegado á Grécia em tempos remotos e incertos.

Na Idade Média existiam três coletâneas das chamadas "Fábulas de Esopo"; uma compilada pelo monge Máximo Planudes no século XIV, outra publicada em Heidelberga em 1610 e um manuscrito descoberto em Florença, datando provavelmente do século XIII. A coletânea grega de Máximo Planudes foi publicada em Milão em 1840, com uma tradução latina de um estudioso italiano chamado Ranuzio.

Atualmente, as fábulas de Esopo podem ser lidas em mais de duzentas e cinquenta línguas.

Fonte:
Fábulas de Esopo. Coleção Recontar. Ed. Escala, 2004.

domingo, 22 de abril de 2012

A. A. de Assis (Estados do Brasil em Trovas) Bahia

Benedetto Caetani (Livro de Sonetos)


Benedetto Caetani, é o nome literário de Renato Sakate, de Botucatu/SP

O Cego Oriente

Distante paisagem, meu cego oriente
procuro teu ar nos cortantes lábios,
vendo meu soldo a favor de teus gládios
e busco meu abrigo ao sabor do vento.

Tira-me deste inconseqüente páreo,
tira-me deste previsto acidente!
Luto contra a rendição decadente
e a indução que enche meu cálice diário.

Mas perduro entre as grades deste templo
nas dores inúteis de meu salário,
nas obras miseráveis que sustento

para fugir deste parco cenário
onde reina o servo-mor do dinheiro,
onde vem do amor um mal necessário.

O Bem, o Mal e o Impasse

Suave paisagem de meus sonhos lindos
em ti selei o meu destino ideal
em ti sonhei ser verdadeiro o irreal
e assim guardei o que era lindo em mim.

Ah! Infortúnio que me tem por leal
sob o seu manto encerrei meus vestígios
sob o seu mando vesti-me em silício
e assim paguei, porque não quis ser mau.

Mas quando o céu estiver sob a terra
e a minha ruína fundar teu palácio,
o meu suplício em ti será duas férias.

Porque não quis o que seria tão fácil,
temi teu suor e a nossa própria guerra...
Busquei a paz e encontrei só, impasse.

Soneto da Desventura

Ah, desventura que me traz ventura...
O olhar castanho, tal mercúrio em ouro,
é esta razão que se desnuda em louros
neste meu fel que turva a mente impura.

Ah, negro véu de meus instintos loucos!
Já sinto dores onde havia ternura,
pressinto viés onde prescindia a cura
E nada enxergo... E nada sei, nada ouço.

Parta de mim, flor inocente e bela!
Teu doce caule me deprime a tarde
e o teu perfume me desfoca a tela!

Mas sei tão bem que tudo vêm desta arte
que, numa vez, faz chover aquarelas
e noutras tantas me faz doer de enfarte.

Soneto da Esperança

Como amar-te, mulher que não existe?
Como seguir teus passos? Não há sombra...
És qual mar que se afoga, um cais sem onda
Um bramido funesto, um berço triste.

Como amar-te, donzela de meus sonhos?
Como saber o que achas? Sem palpites...
Sou qual vivaz bandeira sem limites
Um trôpego ladrão, um vão risonho.

Ademais, como sofro por manter-te
em sonhos meus, só meus! Sonhos idosos...
E como dói sofrer por não sofrer.

Vê que sou andarilho em trilhos novos
Vê que sou alambrado a ti, mulher...
Lê... Pois se num dia a vi, a perdi noutro.

O arredio e os ufanos

Detentor das sabedorias do mundo
tudo sabe, do seu universo o inverso
Quantas letras, se caberão em meu verso
(que também é cego e de resto é mudo).

No palácio do desconforto imerso
cheiro o cinza e vejo o cinzeiro imundo
nado em poças de água salobra, é absurdo
que as pessoas sintam mais prazer que adverso.

Mas voltando a falar do Pai celeste,
das antigas lendas do Oriente Médio,
me recordo em cada sorriso humano

quanto o Sol, que desponta quente ao leste,
nos remiu no colo paterno o assédio
que reclama e clama o arredio e os ufanos.

Quem o coração te move

Pavio que explode e implode. Explode... e implode...
Este amor frio aos teus olhos quase queima
Não! Não consigo negar o que teima
em me voltar e partir de trégua e ódio.

Sofro distante, demais quando um imã
se faz em nossas almas e, nessa ordem,
não posso tê-la... então que me discordem
que encerra a dama os ais tal como rima...

E as repetidas palavras se anulam
nesta semente que a si mesma come
e se alimenta aumentando a sua gula.

Mas até quando, se isto me consome
os teus olhares que hoje me desnudam...
Se não sou Quem o coração te move?!

Nos olhos que vêem dentro

Bem sinto que nas horas mais escuras
tão claro quanto o véu e os teus ideais
se nesta vida pálida são irreais
na túnica dos sonhos que me curas...

Unidas nossas almas não têm de ais
o tanto que em distância, em desventuras
nos forçam novamente à esta aventura:
amor nos teus e meus encontros diários.

Se Deus nos tornou gêmeos no momento
da vida, se as feridas desferidas
são breves, que infinito sentimento!

Ah! Te amo tanto adocicada vida
alegre sou nos olhos que vêem dentro
tão dentro que não há medo, se é vivida!

Nesta nau de palha

Eterno quis de algo que não mais terno
tal brilho lúcido ante a vil morada...
Ah que pensei, que imortal namorada!
Que nem Moraes ousaria de pôr termo.

Tanto que a amava fora demorada
a dança trêmula como se inverno
fosse o verão, o outono e as três primaveras
últimas; qual pastagem devorada.

Mas se de culpas levo meu cesto oco
também de amores a inspiração falha
e de tormentos o coração troco...

Ah se não fosse Aquele que me calha
se não fosse Este a me salvar, tampouco
valeria a chama nesta nau de palha.

Oferendas

A humanidade se mantém repleta
de meias verdades, de melancolias...
A frondosa árvore onde se colhia
hoje é matéria póstuma e incompleta!

Quantos Davids se tornaram Golias?
E quando os véus ocultaram mazelas?
Parte extinguiu-se à luz, funesta cela,
numa negra era tal como se lia...

E na pesada tarefa terrena
(onde o machado é a vil palavra viva)
sobrevivemos por entre estas sendas?

Mas vencer como, se a voz nunca é ouvida,
se o nosso sangue é usado em oferendas...
Se a nossa carne nos transforma em Midas?

Fonte:
http://www.sonetos.com.br/meulivro.php?a=18&x=23&y=5

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 543)

O nosso irmão Ademar comunica que terá que fazer um repouso após a cirurgia, afinal, ele merece, se até Deus descansou no 7. dia. Enquanto ele estiver convalescente, terão que "suportar" meus devaneios poéticos.
Que este guerreiro retorne com toda sua energia como sempre.
J.Feldman


Uma Trova de Ademar

Quem pôs o brilho e as cores
nesses olhos que são meus,
não foi nenhum dos doutores,
foi a santa mão de Deus!...
–ADEMAR MACEDO/RN–

Uma Trova Nacional


A tua volta eu aguardo
sem censuras, satisfeita,
como quem carrega o fardo
na fartura da colheita.
–DOMITILLA BORGES BELTRAME/SP–

Uma Trova Potiguar


Cada tropeço me ensina
que a vida é eterno sonhar.
Na vida nada termina,
muda de forma e lugar.
–PROF. GARCIA/RN–

Uma Trova Premiada


2011 - Nova Friburgo/RJ
Tema: RECADO - 3º Lugar


Em meu olhar recatado,
teu olhar viu, mas não leu,
a ternura de um recado
que o meu amor escreveu.
–MARINA BRUNA/SP–

...E Suas Trovas Ficaram


Gostaria que os teus olhos,
entrassem nos olhos meus,
- quero enfrentar os abrolhos,
com a “luz” dos olhos teus!
–FRANCISCO MACEDO/RN–

U m a P o e s i a


Poeta repouse bem
Após essa cirurgia
Para que retorne logo
A nos dá essa alegria,
De amanhecermos felizes
Nos lumes da poesia.
Que Deus com sua magia
Esteja segurando a mão
Guiando e orientando
Aquele cirurgião,
Pra que seja só sucesso
Essa sua operação.
Meu poeta, meu irmão,
Encare de fronte erguida,
Essas coisas fazem parte
Da trajetória da vida;
E pra que tudo dê certo
Estaremos na torcida.
–CARLOS AIRES/PE–

Soneto do Dia

Voltando a Casa
–PE. ANTÔNIO TOMÁS/CE–


Passei um mês, um mês inteiro, fora
do meu lar, sem ouvir meus passarinhos,
sem ver o louro bando de amiguinhos
que aí deixei! Cruel, longa demora!

Mas, afinal, eis-me de volta agora,
e na ânsia de ver os coitadinhos,
que suspiram talvez por meus carinhos,
fustigo o meu corcel, que o chão devora.

Avisto a casa além, dobro a tortura
que dela me separa... Oh! que ventura
eu sinto na alma ao ir-me aproximando!

Chego ao portal, puxo o ferrolho e entro,
e me recebem pela sala a dentro
crianças rindo e pássaros cantando.

Eva Furnari (Lolo Barnabé)


No tempo em que as pessoas moravam em cavernas, existiu um homem muito criativo e inteligente chamado Lolo Barnabé.

Aos vinte anos, Lolo casou-se com Brisa. Ela também era como ele, criativa e inteligente. Casaram-se por amor. Muito amor.

Depois da lua-de-mel, escolheram a melhor caverna da região para morar e, logo no primeiro ano de casamento, tiveram um filho, o Finfo Barnabé, também criativo e inteligente.

Todos os dias, Lolo saía para caçar e colher frutas.

À noite, sentavam-se todos em volta da fogueira, assavam a carne, cantavam canções e agradeciam a Deus pela beleza da vida.

Eram muito felizes.

Eram muito felizes... mas nem tanto.

A caverna era úmida.

Por essa razão, Lolo e Brisa acharam melhor construir uma casa no alto do morro.

Teriam mais conforto e poderiam viver melhor.

Lolo, que era muito habilidoso, fez uma casa linda, e a família, animada, mudou-se para lá. Brisa queria que a casa fosse amarela e Lolo, que amava a esposa e lhe fazia todas as vontades, pintou a casa de amarelo.

O tempo passou e eles estavam felizes... mas nem tanto.

Brisa não gostava de vestir aquela pele de animal. Sentia frio.

Então eles tiveram a idéia de fazer roupas mais adequadas. E, como ela também era muito habilidosa, inventou o vestido.

Ficou animada e, em seguida, inventou o sutiã, a calcinha, a cueca, a camisa, a calça, a bermuda e o pijama. E Lolo inventou sapatos que combinassem.

Todos ficaram felizes... mas nem tanto.

Brisa achou que faltava uma coisa e falou para Lolo:

- Amor, não podemos deixar nossas belas roupas pelo chão. Você não acha que poderíamos fazer assim uma espécie de móvel para guardar a roupa?

Lolo achou que era uma excelente idéia, tudo ia ficar mais limpo, e inventou o guarda-roupa. Como era muito habilidoso, fez um grande armário de cerejeira, cheio de gavetas, portas e puxadores cromados.

Finfo adorou, já tinha um lugar para se esconder quando brincasse de esconde-esconde com o pai.

Todos ficaram felizes... mas nem tanto.

Lolo tinha feito uma bagunça danada para construir o armário e Brisa ficou irritada.

Lolo, então, para acalmar a mulher, inventou a vassoura e achou que era melhor já fazer uma oficina longe de casa para não atrapalhar a felicidade do lar. E fez.

Todos ficaram felizes... mas nem tanto.

No lar havia problemas. Finfo acordava sempre com o pijama sujo depois de dormir no chão.

Brisa discutiu a questão com Lolo e eles acharam que podiam construir uma espécie de coisa assim, de madeira, com quatro pés, macia por cima. Ia ser muito mais confortável e a vida deles ia melhorar.

Lolo pensou bastante, trabalhou muito e inventou a cama. Como todos sabem, Lolo era caprichoso, e já inventou a cama com colchão, lençol, cobertor e travesseiro.

Brisa ficou encantada, principalmente com o travesseiro, que era a coisa mais macia do mundo.

Todos ficaram felizes... mas nem tanto.

Como eles almoçavam e jantavam em cima da coisa macia, a cama, estavam sujando muito os lençóis.

Lolo, então, inventou a mesa.

Todos ficaram felizes... mas nem tanto.

Acharam muito desconfortável comer em pé.

Lolo trabalhou bastante e inventou a cadeira. Muito confortável, muito confortável mesmo, bem melhor que comer em pé. Aproveitou para ficar sentado por mais de uma hora, pois ele estava cansado de tanto inventar e construir coisas, além de caçar e colher frutas, é claro.

Todos ficaram felizes... mas nem tanto.

Lolo e Brisa estavam achando que cozinhar na fogueira dava muito trabalho e eles não queriam trabalhar tanto. Se inventassem algo mais prático, teriam mais tempo para ficar juntos, se divertir e descansar. Inventaram, então, o fogão a gás.

Todos ficaram felizes... mas nem tanto.

Lavar a roupa lá no rio também era coisa dura. Brisa e Lolo queriam facilitar essa tarefa. Pensaram muito e inventaram a água encanada e o tanque. E, já que tinham inventado a água encanada, inventaram logo o banheiro para não ter que ir no mato, à noite, no frio.

Deu trabalho, Lolo já trabalhava oito horas por dia, inventando e construindo coisas e, apesar do cansaço, o resultado compensava.

O banheiro ficou maravilhoso.

Fizeram uma festa com o sabonete, o xampu, o condicionador, o creme hidratante, a esponja de banho, o talco, o papel higiênico, o perfume, o mercurocromo, o algodão, a gaze, o esparadrapo, o cotonete, etc.

Lolo adorou o creme, a lâmina de barbear, a loção pós-barba, o barbeador elétrico, o desodorante, etc.

Ficaram encantados com a escova de dentes, o creme dental, o protetor solar, o colírio, etc.

Divertiram-se muito com o pente, a escova, o grampo, o secador de cabelo, etc.

E enlouqueceram de alegria com o espelho.

Todos ficaram felizes... mas nem tanto.

Lolo tinha tanto trabalho e passava tantas horas por dia fora de casa, inventando coisas para dar conforto e facilitar a vida, que ficava estressado e com saudades do filho, que sempre estava dormindo quando ele chegava. Então Lolo inventou o telefone, para que eles pudessem se falar diversas vezes por dia.

Todos ficaram felizes... mas nem tanto.

Pelo telefone não dava para abraçar, nem beijar. Então tiveram a idéia de Brisa ajudá-lo na oficina, assim Lolo poderia chegar mais cedo do trabalho para abraçar e beijar o filho.

Todos ficaram felizes... mas nem tanto.

Brisa e Lolo, à noite, quando chegavam do trabalho, depois de abraçar e beijar o filho Finfo, ainda tinham que lavar a louça, a roupa, fazer o jantar, passar pano no chão e ficavam cansados, irritados, briguentos e enjoados de fazer todos os dias aquilo tudo. Naquele tempo ainda não tinham inventado a pizza “delivery”.

Acharam que a solução era facilitar as tarefas. Pensaram tanto que quase fritaram o cérebro quando inventaram, de uma só vez:

O liquidificador, a batedeira, a centrífuga, a cafeteira, o espremedor, a garrafa térmica, etc.

O microondas, a torradeira, a sanduicheira, etc.

A máquina de lavar roupa, o sabão em pó, o detergente, o amaciante, o alvejante, o desinfetante, etc.

A geladeira, o “freezer”, a despensa, etc.

A máquina de lavar louça, a secadora, o balde, o esfregão, a lata de lixo, etc.

O carpete, o aspirador de pó, o tira-manchas, etc. E, finalmente, inventaram o fim de semana, que ninguém é de ferro.

Todos ficaram felizes... mas nem tanto.

Sempre tinha algum aparelho que encrencava e isso era uma dor de cabeça danada.

Eles tinham que levar para a oficina para consertar e, como já estavam acostumados com o conforto, ficavam extremamente irritados e impacientes de fazer as coisas na mão. Coisinhas como lavar a louça, a roupa, bater ovos...

Além do mais, a família Barnabé, agora, era chique.

Lolo, Brisa e Finfo passaram a achar importante estarem sempre bonitos e elegantes. Não queriam mais andar de qualquer jeito, com a roupa amarrotada.

Não ficava bem.

Lolo inventou, então, o ferro de passar.

Todos ficaram felizes... mas nem tanto.

Dava um trabalho danado passar a roupa. E Brisa não tinha mais tempo, afinal ela trabalhava fora.

E Lolo, dessa vez, não se sabe por quê, não conseguiu inventar uma máquina de passar roupa. Deve ter dado um “tilt” nas idéias dele.

Mas é compreensível, porque, afinal, ele também era humano e às vezes falhava.

Lolo ficou muito deprimido e pensativo, mas a mulher foi compreensiva e arranjou uma solução: chamou sua prima para vir todos os dias passar a roupa.

Era uma ótima idéia, porque ela poderia fazer também as outras tarefas da casa. Assim Brisa teria tempo para inventar e fazer coisas na oficina.

A prima queria alguma recompensa por trabalhar na casa e então eles inventaram o dinheiro e deram para ela um salário. Como era pouquinho, chamaram de "salário mínimo".

Todos ficaram felizes... mas nem tanto.

Finfo ficava sozinho o dia inteiro sem a mãe nem o pai por perto. Sentia-se infeliz, não tinha com quem brincar, já que a prima de Brisa também só ficava cuidando da casa.

Então Lolo e Brisa inventaram a televisão, o sofá e o controle remoto.

Todos ficaram felizes... mas nem tanto.

Eles chegavam à noite tão cansados do trabalho e o Finfo querendo brincar e eles querendo descansar que acabavam brigando. Depois, também, cansados de brigar, sentavam-se todos na frente da televisão e ficavam hipnotizados e mudos como sacos de batata.

A família Barnabé sentia que aquilo não estava bom. Havia alguma coisa errada naquela história, mas era difícil, bem difícil, entender o que é que estava errado. A situação parecia um grande nó.

Lolo e Brisa pensaram logo em inventar mais alguma coisa, mas pela primeira vez não sabiam o que fazer. E, na verdade, pela primeira vez também perceberam que não era o caso de inventar mais nada.

Então eles foram para o quintal, acenderam uma fogueira e sentaram-se em volta dela, muito tristes, buscando uma saída.

Olhando para o fogo, entenderam que eles mesmos tinham criado aquela situação.

Era como uma armadilha.

Ficaram muito infelizes... mas nem tanto.

Lolo contou uma história e Finfo contou outra. Brisa entoou uma canção e lembrou-se de fazer algo que havia muito tempo não fazia: agradecer a Deus pela beleza da vida.

Finalmente entenderam que, se eles mesmos tinham feito aquela armadilha, eles mesmos poderiam desfazê-la.

Eles eram bem criativos e inteligentes.

Fonte:
Historinhas pescadas : antologia de contistas brasileiros / [coordenação editorial Maristela Petrili de Almeida Leite, Pascoal Soto].- São Paulo : Moderna, 2001. – (Literatura em minha casa ; v. 2)

J. G. de Araújo Jorge (O Céu de Friburgo)


Olho o céu de Friburgo sobre mim! Reparo
nos detalhes desta obra perfeita de Deus!
Na manhã de ouro e azul, o dia é belo e claro,
nem um lenço de nuvem branca, acena adeus...

Olho o céu... e a outros céus mentalmente comparo!
Não viram outro igual no mundo os olhos meus!
Parece que se curva e vem a nós, num raro
gesto, sem distinguir entre cristãos e ateus!

Hei-lo para o meu culto: catedral imensa
sobre as cristas das altas montanhas suspensa,
templo de sol, e estrelas para o amor e a fé...

E ao vê-lo perto assim... chego a ter a impressão
de que, se erguer o braço sou capaz de até
poder tocar o imenso azul com a própria mão!

Fonte:
J. G. de Araujo Jorge. Canto à Friburgo. 1961

Paulo Mendes Campos (Marido e mulher)


- Arnaldo, você é o fino: aqui em casa não tem uma gota d'água há cinco dias e você está uma pilha. Acho perfeitamente normal, meu bem, que você estej a nervoso. . Mas você está com raiva é de mim, você está agindo como se fosse eu a responsável pelo fato de não ter água no Rio de Janeiro.

- Teresa, vou ser franco com você: você é a responsável pelo fato de não ter água no Rio de Janeiro, tá bem?

- Não morei na piada.

- Não tem piada nenhuma. Estou falando português claro: você é a culpada pela falta d'água aqui em casa.

- Essa, não!

- Mas é claro que você é a culpada: toda mulher é culpada quando falta água em casa.

- Essa é a maior!

- Pois fique sabendo dum princípio banal: a mulher é a responsável pelas coisas que acontecem dentro de casa. Ela é a secretária administrativa, a gerente do lar!

- Mas o caso é que a água não acontece dentro de casa: a água vem lá de fora dentro dum cano. tá?

- Teresa: quando um marido chega e as torneiras estão secas, a culpa é exclusivamente da mulher. Você não tenha sobre isso a menor dúvida.

- Mas isso é uma injustiça que clama aos céus: o que que eu posso fazer?

- Não sei: o problema é seu.

- Você hoje está muito engraçadinho.

- Escute, minha filha: a humanidade é dividida em homens e mulheres, é ou não é? Tanto numa tribo do Araguaia como no Rio, os homens cuidam dumas tantas coisas, as mulheres de outras. Na civilização cristã, a mulher toma conta da casa, o homem em geral trabalha fora. Estou certo ou errado? Logo…

- Mas espera ai…

- Logo, as mulheres são as responsáveis pela falta d'água.

- Francamente, você como sociólogo não fazia nem para o café. Que culpa tenho eu, a pobre Teresa, pelo fato dos prefeitos do Rio terem politicado o tempo todo?

- Que culpa? Uma parte da culpa, claro.

- Que parte?

- A parte que afeta a vida de casa. Os homens têm a outra parte. Morou? Falta d'água: culpa das mulheres; bagunça dos transportes: culpa dos homens.

- Estou começando a entender seu ponto de vista.

- Não é ponto de vista nenhum: é um fato trivial.

- Só não admito que as mulheres sejam culpadas pela falta d'água. Eu não entendo de água! Como é que eu, tomando conta de casa o dia inteiro, vou saber se o Governo fez ou não fez a adutora do Sandu?

- Do Guandu... Já disse que o problema é seu. Por que você não saiu em praça pública, não protestou, não botou fogo na Prefeitura ou no prefeito? O que você devia ter feito eu não sei.

- Venha cá: não seria mais lógico que os homens ficassem encarregados dessa parte do abastecimento d'água? O que eu não me conformo é com a água…

- Seria se os homens é que ficassem em casa. Aliás, nisso você tem inteira razão: sempre achei que os homens deviam tomar conta de casa e que as mulheres deveriam sair para trabalhar. Perfeito.

- Eu não estou dizendo isto…

- Mas eu estou. Não estou brincando, não. A mulher tem muito mais capacidade de trabalhar do que o homem. Sempre admirei a ordem e a eficiência com que trabalham. Mulher exatamente só não tem vocação é para tomar conta de casa. São umas caóticas totais. Você vê um homem no escritório ou na repartição: trabalha chateado, reclamando, esquece as coisas, confunde tudo. E vê a mulher: mulher trabalha de bom humor! Agora, voce quer ver um homem feliz: manda, por exemplo, ele organizar um almoço. Como é que ele faz tudo direitinho, muito satisfeito, não se esquece de nada, sai tudo uma beleza! Olhe aqui: um homem dentro duma cozinha é a imagem da felicidade! Mas a mulher vai para a cozinha como se fosse para o inferno.

- Você está ficando biruta.

- Biruta é a minha querida sogra. Estou dizendo uma coisa simples, uma coisa que a gente pode ver a toda hora. Primeiro: mulher se realiza no emprego; o homem uiva para ganhar a vida. Segundo: o homem é um frustrado porque gosta e tem jeito para cuidar de casa; mulher não sabe cuidar de casa, mulher detesta cuidar de casa! Isso ninguém me tira da cabeça.

- Pois para mim esta sua idéia é novidade.

- Novidade ou não, é a pura verdade. Você já olhou bem a cara dum homem quando ele lá um dia resolve encerar a casa? É uma cara de absoluta plenitude. E como os homens enceram bem! Agora, você reparou na cara duma mulher que vai trocar uma lâmpada? É a cara da vítima! A cara do casamento fracassado! Ela distorce a lâmpada queimada como se estivesse na cadeira elétrica!

- Ah, não, meu filho, isso é porque mulher tem medo de choque.

- Pois é: medo de choque... Mulher tem medo de choque mesmo com a eletricidade desligada... Não, minha filha, as coisas estão erradas, mas um ponto é indiscutível: o homem é um animal doméstico e a mulher é um animal social; o homem gostaria de organizar a casa e a mulher gostaria de organizar as coisas públicas; trabalho em casa devia ser para os homens; trabalho fora, para as mulheres. É claro.

- Queria ver você lavando as fraldas do Antônio Henrique…

- Lavaria, por que não? Lavar fralda é uma coisa chata para qualquer sexo, é um ônus... Mas isso não tem nada a ver com a história.

- Eu ficaria convencida se você fosse lá dentro e me preparasse uma laranjada bem geladinha, com pouco açúcar.

- Com o maior prazer!

Fonte:
Para gostar de ler. Vol. 3. SP: Ed. Ática, 1978.

Visconde de Taunay (Inocência)


ENREDO DE INOCÊNCIA

O acaso no meio do caminho


Cirino não tinha um destino certo quando enveredou pela estrada que ligava a vila de Santana do Parnaíba aos campos de Camapuã, sul da província de Mato Grosso, fronteira de Goiás, Minas Geris e São Paulo. Sua única certeza é que devia seguir “curando maleitas e feridas brabas”(p.22)2, em lugares esquecidos, no sertão. Era igualmente levado pelo desejo de conhecer terras novas, lugares perdidos nos mais diversos pontos do interior da província. Por isso, não hesitou em acompanhar o falante Sr.

Pereira, que, seguindo o mesmo caminho, voltava para casa depois da frustrada tentativa de conseguir remédio para a filha doente. O encontro casual com Cirino lhe trouxe não apenas um parceiro de prosa, mas também o remédio que procurava.

Apesar da gravidade da doença, o Sr. Pereira demorou-se em conduzir o médico até o quarto da filha. Hospitaleiro, ofereceu a Cirino comida farta e pouso. Depois, com muita hesitação, dirigiu-se ao médico em sinal de alerta:

- Sr. Cirino, eu cá sou homem muito bom de gênio, muito amigo de todos, muito acomodado e que tenho o coração perto da boca, como vosmecê deve ter visto...

- Por certo, concordou o outro.

- Pois bem, mas... tenho um grande defeito; sou muito desconfiado. Vai o doutor entrar no interior da minha casa e... deve portar-se como... (p.35)

Martinho dos Santos Pereira vivIa só, com a filha, no mais calado sertão. Guardava a jovem dos olhos dos viajantes, pois já havia dado sua palavra que Inocência seria mulher do tropeiro Manecão, que viajava negociando gado e cuidado dos papéis para o casamento. Era grande a responsabilidade de Pereira, já que, no seu entender, as mulheres eram frágeis, inconstantes e incapazes de seguir leis da razão. Para ele, todos os homens representavam um grande risco à sua doce e bela Nocência. Seus cuidados faziam-se ainda maiores porque Inocência era dotada de beleza incomum. Por isso, Pereira dividia com Tico, um anão mudo, a tarefa de guardar a filha. Orgulhava-se o homúnculo de ser “uma espécie de cachorro de Nocência” (p.41).

Contudo, quando Cirino entra no quarto escuro para examinar Inocência e, com a ajuda de uma vela, vê a moça, fica profundamente desconcertado. Mesmo doente, a jovem demonstrava uma beleza impressionante.

Na mesma noite da chegada de Cirino, um naturalista alemão, Meyer, e seu camarada, pedem abrigo na fazenda de Pereira. O entomologista trazia uma coleção de insetos e muitas cartas de recomendação. Entre elas, uma, assinada por Francisco dos Santos Pereira, irmão esquecido do Sr. Pereira. Esse feliz acaso foi suficiente para o bom matuto perder a cabeça de alegria e se colocar totalmente à disposição do alemão. “Esta carta vale, para mim, mais que uma letra do Imperador que governa o Brasil” (p.59), diz, emocionado, o matuto. Como prova de sua satisfação, promete apresentar-lhe a filha Inocência assim que ela se recupere.

Os remédios de Cirino logo trazem a saúde de volta ao corpo de Inocência e, com ela, os traços vitais de sua beleza.

Um dia, após o almoço na casa de Pereira, Inocência é apresentada a Meyer. Diferentemente de Cirino, Meyer não consegue se controlar e faz muitos elogios a Inocência. Enquanto o alemão fala, enrolando a língua, Pereira e Cirino não conseguem disfarçar o mal-estar causado pelo discurso de Meyer. Um momento patético, que abala a todos.

Tornou-se Pereira pálido [...]; Inocência enrubesceu quem nem uma romã; Cirino sentiu um movimento impetuoso, misturado de estranheza e desespero, e, lá da sua pele de tamanduá-bandeira, ergueu-se meio apavorado o anão. (p.65)

Sem poder voltar atrás com sua palavra, Pereira enfiou na cabeça que Meyer queria se aproveitar de Inocência. Passa a vigiar e a controlar os mínimos gestos e palavras de Meyer, deixando a filha aos cuidados de Tico e do doutor.

Doutor enfeitiçado sem remédio para seu mal

Cirino percebe rapidamente que, à medida que cura Inocência, torna-se ele enfermo, acometido pelo mal grave e incurável da paixão. Resolve retomar seu caminho, mas o bom Pereira protesta. É que, quanto mais Pereira suspeitava de Meyer, mais confiava em Cirino. Em nenhum momento percebe que o doutor está perdidamente apaixonado por sua filha, embora o ache meio abatido às vezes. Para evitar que Cirino vá embora, Pereira arranja-lhe muitos doentes. Quanto mais Cirino cura os males alheios, mais se conscientiza de seu triste destino. Pereira jamais voltará atrás com a palavra dada a Manecão e, para isso, gasta todo o seu tempo embrenhado na mata com o naturalista, que vai aumentando, a cada dia, sua coleção de espécies raras de insetos.

Num desses dias, como fosse sair muito cedo com Meyer e Juca para a mata, Pereira encarrega Cirino de medicar Inocência na hora certa. O doutor passa a manhã contando todos os segundo até a hora de poder ver a moça.

Enquanto Tico vai chamar a criada para preparar café, Cirino conversa apaixonadamente com Inocência. Ainda que não se declare abertamente, dá mostras mais que evidentes de seu sentimento. Inocência demonstra igualmente um certo envolvimento. Depois disso, torna-se cada vez mais difícil para Cirino encontrar-se com ela.

Apesar do cerco fechado em que vive a moça, Cirino, tomado pelo desespero, bate a sua janela numa noite de luar e dá voz a sua paixão. Conversam os dois quase num sussurro e, sem muito esforço, descobre que é amado por Inocência. A paixão já não é mais segredo para eles.

O perigo está muito perto

A ira de Pereira atinge o grau máximo no dia em que Meyer, vasculhando a mata perto de seu roçado, cai em grande euforia ao descobrir uma borboleta de uma espécie totalmente desconhecida. Pulando “como um cabrito” (p.103), anuncia que dará o nome de Inocência a seu achado. Pereira recebe a notícia como uma grande ofensa: “Vejam só... o nome de Nocência numa bicharada!... Até parece mangação...” (p.104).

Depois do grande achado, Meyer, exultante e vitorioso, decide partir, deixando Pereira duvidoso quanto ao excesso de suas desconfianças:

- [...] Quem sabe se tudo que eu parafusei não foi abusão cá da cachola? [...] Hoje estou convencido que o tal alamão era bom e sincero... Olhou para a menina... achou-a bonitinha... e disse aquele despotismo de asneiras sem ver a mal... Em pessoa que não guarda o que pensa, é que os outros se podem fiar... Às vezes o perigo vem donde nunca se esperou... (p.111-2).

E a vida de Pereira retoma seu curso.

Sem nenhuma esperança, Inocência e Cirno se encontram mais uma vez às escondidas. No laranjal, numa noite de luar, pensam numa solução para suas vidas. Cirino propõe-lhe fuga. Inocência recusa com medo de tornar uma mulher perdida, amaldiçoada pelo pai. Diante do pranto de Cirino, Inocência lembra de seu padrinho Antônio Cesário. Seu pai lhe devia dinheiro e respeitava sua vontade; se Cirino conseguisse convencê-lo a falar com Pereira, talvez eles estivessem salvos. Enquanto se abraçavam felizes e esperançosos, ouvem um assobio seguido de uma gargalhada. Cirino pega Inocência nos braços e a leva para casa. Ao voltar ao laranjal, sente algo cair sobre seus pés, pensa ser assombração. Aterrorizado, ouve um tiro disparado por ordem de Pereira, que vistoriava o pomar junto com um escravo. Cirino corre de volta para seu alojamento, aonde consegue chegar antes de Pereira. Finge não saber de nada. Nesse mesmo dia, parte em busca da ajuda de Antônio Cesário.

Manecão retorna com os documentos prontos para o casamento. Inocência se assusta quando o encontra. Enfrenta o pai e noivo, desafia a palavra que tinha força de lei.

- Eu?... Casar com o senhor?! Antes uma boa morte!... Não quero... não quero... Nunca... Nunca...

Manecão bambaleou.

Pereira quis pôr-se de pé, mas por instantes não pôde.

- Está doida, balbuciou, está doida.

E segurando-se à mesa, ergueu-se terrível

- Então, você não quer? Perguntou com os queixos a bater de raiva.

- Não, disse a moça com desespero, quero antes...

Não pode terminar. (p.138)

Com a ajuda de Tico, que tudo sabia, o grande equívoco de Pereira é desfeito. Fulminado, mas não liquidado. Pereira autoriza Manecão a lavar a honra de sua casa. O tropeiro parte imediatamente.

Desfecho

Cirino, por sua vez, encontra Cesário e, com muita dificuldade, expõe a ele sua situação. Cesário, desconfiado, lhe faz muitas perguntas e, por fim, pede-lhe que faça um juramento. Cirino aceita imediatamente, e Cesário, impressionado com o caráter e os sentimentos nobres do moço, que jurara sem saber o quê, promete-lhe pensar durante oito dias. Se resolvesse ajudá-los, apareceria até o final desse período; caso contrário, valeria o juramento: Cirino deveria desaparecer de suas terras e da vida de Inocência.

No último dia do prazo combinado, Cirino espera ansiosamente ver Cesário quando depara com Manecão. Este lhe dirige algumas palavras desaforadas e, em seguida, pega sua arma e atira impiedosamente no rival. Cesário aparece. Cirino ainda tem tempo de perdoar seu algoz e de agradecer Cesário. Morre murmurando o nome de Inocência.

O destino de Inocência é revelado no último momento da história, quando Meyer apresenta sua coleção com a espécie rara de borboleta à sociedade científica de seu país. Enquanto o naturalista alemão fala euforicamente da jovem que dera o nome a seu achado, o narrador comenta ironicamente que, havia dois anos, Inocência não existia mais.

Crônica de costumes

Uma das características marcantes do regionalismo é a valorização dos costumes típicos do mundo rural, bem como das particularidades do meio natural. O tempo e o lugar são decisivos para a definição dos acontecimentos.

Dentre os costumes regionais típicos, apresentados no romance de Taunay, podemos destacar:

hospitalidade: o sertanejo tem sempre um espaço reservado para os viajantes que pedem pousada. Há também farta oferta de comida, incluindo-se os frutos da região.

privacidade: os viajantes jamais se aproximam da casa do proprietário, nem penetram em seu interior.

preservação da honra: existe uma preocupação em garantir a harmonia entre as ações e as normas do código social, sobretudo com relação à família.

casamento como acordo entre famílias: apesar disso e embora não haja namoro, o casamento é o único meio de a filha se libertar da tirania do pai.

analfabetismo: leitura como um mal, sobretudo para a mulher.

exercício da vingança individual: as pessoas acham que podem fazer justiça com as próprias mãos.

curiosidade: nas cidades, todos participam da vida de cada um.

crendice: as crenças se revelam sobretudo no que se refere às doenças.

juramentos: a impossibilidade de reversão das regras sociais levam as pessoas a jurar por tudo, tendo cada um seu santo protetor.

Em Inocência, a crônica de costumes focaliza não apenas os hábitos e costumes da família, mas também os costumes decorrentes do modo de exploração da terra e dos produtos naturais e, finalmente, os hábitos políticos da nação. Nesse contexto é que a figura do viajante é importante, inclusive como elemento do mundo romanesco apresentado no limite entre documentário e ficção. É através de dois viajantes, Girino e Meyer, colocados pelo acaso no caminho do Sr. Pereira, que se dá a conhecer a família que vivia escondida no sertão.

Esquema fabular das aventuras amorosas

Casamento como resultado de jogo de interesses:

Inocência estava prometida a Manecão.

Constituição do triângulo amoroso:

Aparece Cirino

Amor impossível:

Morte como salvação

Cirino é assassinado por Manecão e Inocência definha-se, morre de amor, a exemplo de Teresa, personagem de Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco.

Ao se construir a partir desse esquema da fabulação amorosa, o romance Inocência cria um vínculo com os clássicos universais. Contudo, a necessidade de publicar o romance em folhetins, ou seja, em capítulos separados nos jornais diários, obrigou o autor a utilizar uma técnica narrativa extremamente moderna para a época. O desenvolvimento dessa técnica de composição trouxe algumas modificações ao gênero romanesco.

Foco narrativo

O ponto de vista externo define o narrador de Inocência como um narrador onisciente, que é tendência dominante na narrativa romanesca do século XIX. É o modelo clássico, que confere plenos poderes a uma só focalização: tudo é apresentado a partir de um único ponto, com onisciência e onipresença. Esse é, sem dúvida, um modelo narrativo que atende às necessidades do romance regionalista, que focaliza a vida, os costumes, os valores sociais a partir de um único ponto de vista.

Personagens

PEREIRA, O FANÁTICO INGÊNUO


Pereira é o personagem principal, o fio condutor da história, ou melhor, a história é narrada a partir do ponto de vista que ele representa. E o que representa Pereira?

Em primeiro lugar, o patriarca, o pater familias, que dispõe de plenos poderes em sua terra e em sua casa, fazendo valer suas leis e direitos. Em segundo lugar, o sertanejo totalmente comprometido com os valores da sociedade agrária de origem colonial imposta pelos portugueses. Nesse sentido, ele é apenas uma peça desse mecanismo maior. Finalmente,

Pereira é representante de nossa cultura oral. Sem contato com o mundo da escrita, a expressão cultural do sertanejo oscila entre o rigor dos valores e a ingenuidade de quem se formou com aquilo que lhe chegou pelos olhos, pelos ouvidos e pela boca. Pereira fala através de frases feitas e proverbiais — o grande legado da cultura preservado e transmitido oralmente por séculos. Essa é sua sabedoria.

Como os valores da sociedade patriarcal não correspondem necessariamente aos valores da cultura oral, percebe-se nitidamente que o sertanejo fica em desvantagem. Sua ingenuidade, naturalidade e franqueza fazem dele um bruto e um ser atrasado. Sua postura autoritária é a de um bárbaro. Custe o que custar precisa fazer valer o sistema de valores da sociedade patriarcal.

Todavia, a autoridade não se associa muito bem à austeridade na pele de Pereira. Por isso, o exagero em sua perseguição ao alemão, na proteção à filha em nome da honra e da palavra empenhada, faz com que Pereira apresente traços já bem delineados de um fanatismo selvagem, que levou sertanejos do Nordeste ao cangaço e a lutas sangrentas. Pereira reproduz a imagem de um fanatismo ainda romântico, porque atua em nome de interesses individuais.

Como os demais personagens românticos, o comportamento de Pereira se movimenta em torno de um único traço, e isso acaba definindo os tipos estereotipados de personagens que não mudam ao longo da história, as chamadas personagens planas.

INOCÊNCIA

Inocência é filha dos sertões(capítulo XIX), como ela própria se define, mas todos, até seu pai, vêem nela feições de moça da cidade. Para o pai, ela é uma menina, apesar dos 18 anos, bonita, arisca, carinhosa, feiticeira, esquisita. Criada sem mãe, relacionava-se muito bem com as graúnas e os bichos da fazenda. Quando criança, pediu ao pai para aprender a ler.

Inocência é uma sertaneja, mas não aquela sertaneja envolvida com o mundo produtivo da vida rural: não é camponesa, nem pastora, nem doméstica. É apenas uma sertaneja romântica, bela, frágil, doente.

Atravessa a narrativa consumida por duas chamas: a da maleita e a da paixão (Moraes, 1971, p. 96). Aí reside grande parte do mistério que envolve essa personagem, que não é apenas a heroína romântica apaixonada. Inocência é mais uma metáfora calada do que uma personagem: dentro dela se escondem aspectos fundamentais das idéias do romance.

Durante grande parte da narrativa, Inocência é apenas discurso de outro: o que sabemos dela é aquilo que o seu pai nos conta.

CIRINO, O HERÓICO BOM RAPAZ

Cirino é moço da cidade que, antes de se aventurar a percorrer o sertão curando doenças, enfrentou o desafio de transformar suas experiências Farmacêuticas em conhecimento médico. Daí sua disposição em desbravar lugares distantes e perdidos no sertão.

Quando a ação se inicia, conta aproximadamente 25 anos e apresenta-se distintamente: traja-se bem, tem ar circunspecto e decidido. Cirino herdara do pai a facilidade no manejo das ervas e das drogas curativas. Curioso mais que estudioso, enveredara pelo sertão munido de mezinhas e de um livro de medicina, sem, contudo, ter licença para medicar. Graças ao amor que dedicava à profissão, era uma pessoa de nobre caráter.

MEYER, O CIENTISTA BURLESCO

O viajante alemão é uma figura que excede os personagens românticos, criando um contraste com eles. Meyer é um personagem funcional: sua função é criar circunstâncias de ação para outros personagens. Criou a grande armadilha para Pereira, deixando livre o espaço para a atuação de Cirino; criou também condições para que surgisse um outro sentido para Inocência. É em tomo de sua figura que podemos interpretar a grande metáfora do romance, como situaremos mais adiante.

Desde o início, Meyer exprime um comportamento diferenciado. Enquanto o camarada, um homem vulgar, não poupava energia para açoitar o animal que resistia a seguir pelo caminho que trilhavam, Meyer fala calmamente:

— Juque, disse ele de repente com acento fortemente gutural e que denunciava a origem teu-tônica, se porretada chove assim no seu lombo, vóce gosta? (p. 44)

A capacidade de compreensão do cientista se sobrepõe às ações desmedidas do camarada. Levanta hipóteses sobre a conduta do animal. Através de um sinal na estrada, um ramo quebrado, descobre um outro caminho que o leva, junto com seu camarada às terras de Pereira. E era de um lugar para passar a noite que precisavam naquele momento. E conclui ironicamente:

— Eu não disse a vóce, replicou o cavaleiro com voz até certo ponto triunfante. Asno tem razão: para diante há alguma coisa. (p. 44)

Meyer representa um outro olhar sobre a paisagem, diferente até do olhar do doutor Cirino. Para ele a natureza e seus elementos são objeto de conhecimento, guardam os segredos que desafiam sua mente inquieta.

TICO, O ANTAGONISTA GROTESCO

Como cão de guarda de Inocência, Tico investe-se de um poder inacreditável: tudo sabe, tudo vê e é capaz de estar nos mais variados lugares numa fração de segundos. Tico é um olho onipresente e onisciente, mas nada pode dizer.

Quando Cirino vai medicar Inocência ao meio-dia, ele resiste a abrir-lhe a porta; só o faz porque Inocência manda. Mesmo assim, através de gestos grosseiros, manda o doutor permanecer fora da casa enquanto ele vai chamar a cozinheira para fazer café. Desde o início revela-se antagonista de Cirino.

Na primeira noite em que os namorados se encontram no pomar, seu idílio amoroso é interrompido:

Soou [...] um assobio prolongado, agudíssimo, e uma pedra, arremessada por mão misteriosa e com muita força, sibilou nos ares e veio bater na parede com surda pancada, passando rente à cabeça de Girino. (p. 98)

Ainda que os namorados pensassem ser assombração, somente um indivíduo podia ser autor dessa façanha: ninguém mais do que Tico. Embora não tivesse voz, era capaz de produzir ruídos assustadores.

Não é só a condição de ser cidadão que é negada a Tico, mas também sua condição humana. Por ser anão e mudo, portanto, um ser que jamais poderia chegar à possibilidade de disputar Inocência, Pereira confiou-lhe cegamente a guarda da filha. Para Pereira, Tico era apenas um bicho de estimação, sem masculinidade. Tico é um ser desprezível e sua imagem lembra o Quasímodo de Victor Hugo (1802-1885).

MANECÃO, O VILÃO AUSENTE

É muito curioso que o homem a quem Pereira promete sua filha querida em casamento seja o grande ausente da história. Sabemos que ele viajara para negociar gado e para providenciar os documentos do casamento. Nada mais.

Durante a história é impossível fazer qualquer tipo de avaliação sobre sua pessoa que já não esteja carregada pela visão dos outros personagens. Ao mesmo tempo é estranho que uma pessoa sem nenhuma referência, imagem ou personalidade tenha poder de decisão sobre a vida de Inocência e de Cirino. A própria Inocência não tem nada a dizer sobre o homem com quem vai dividir o resto de seus dias.

Manecão é, sem dúvida, um personagem que tem um único papel na narrativa: a ele foi reservada a tarefa de fazer valer a honra da palavra empenhada. Exatamente por estar distante dos episódios, pôde fazer justiça com suas próprias mãos, matando impiedosamente Cirino. Como Pereira, um homem generoso, bem-humorado e de bom coração, poderia cumprir uma missão tão cruel? Afinal, apesar de toda sua aparência autoritária, Pereira é um homem cativante, que conquista simpatias. O contrário de Manecão, que, mesmo ausente, consegue ser antipático. Visto por essa ótica, Manecão é o vilão da história, age em nome próprio e cuida tão-somente de seus interesses. Manecão é, assim, a mais “visível” representação dos valores que dominam na história: os valores invisíveis que decidem sobre a vida das pessoas. Ele não aparece na história, mas aquilo que ele representa não se ausenta um instante sequer.

O sertão de Mato Grosso como cenário de intimidade

O ESPAÇO DA AVENTURA

No romance regionalista, falar do espaço é tratar de tudo que entra para a definição do próprio gênero. A começar pelos personagens, que vivem de tal modo ligados à terra, que muitas vezes suas ações são orientadas pelos elementos naturais, pois nesse tipo de romance há uma interação entre o homem e seu espaço vivencial. No romance regionalista, o espaço natural — campos, estradas, pomares, florestas, bosques, cachoeiras, rios, lagos — é a mais precisa expressão do locus amoenus da tradição clássica, o lugar ideal, harmonioso, pacífico, onde vive o homem natural, puro, sem o mínimo contato com o mundo urbano. Esse “lugar» é o cenário da intimidade dos personagens; tudo o que nele ocorre permanece no âmbito do mais recôndito mundo privado. É como se a vida pública não existisse. O espaço imenso, grandioso e ameno do sertão é o único lugar capaz de abrigar os grandes conflitos do homem.

O leitor de Inocência é introduzido nesse espaço privilegiado desde o primeiro capítulo, sintetizado de modo notável pela epígrafe do escritor francês JeanJacques Rousseau (1712-1778), cujas obras tiveram importância decisiva para o Romantismo, sobretudo no que se refere ao mundo do idílio e da natureza de modo geral. A epígrafe que introduz o capítulo 1 do romance diz o seguinte:

Então com passo tranqüilo metia-me eu por algum recanto da floresta algum lugar deserto, onde nada me indicasse a mão do homem, me denunciasse a servidão e o domínio; asilo em que pudesse crer ter primeiro entrado, onde nenhum importuno viesse interpor-se entre mim e a natureza.

J.-J. Rousseau — O encanto da solidão. (p. 11)

TEMPO CONVENCIONAL E TEMPO HISTÓRICO

Existem duas datas que definem a duração do conjunto de episódios que constituem a narrativa de Inocência o dia 15 de julho de 1860 e o dia 18 de agosto de 1863. O primeiro é o dia do encontro de Cirino com Pereira; o segundo, o dia em que Meyer apresenta à comunidade científica alemã — a Sociedade Geral Entomológica — seu grande achado em terras brasileiras. Após anunciar o noticiário do evento no jornal local, O Tempo (Die Zeit), o narrador nos informa:

Exatamente nesse dia fazia dois anos que o seu gentil corpo fora entregue à terra, no imenso sertão de Sant’Ana do Paranaíba, para aí dormir o sono da eternidade. (p. 148)

Tais referências temporais são os termos da equação para que possamos chegar à noção do tempo e da duração dos acontecimentos narrados; presume-se, portanto, que tais fatos tenham ocorrido entre os anos de 1860 e 1861. Os dois anos que se seguiram constituem um espaço vazio. Entendemos que tal foi o tempo necessário para Meyer vencer a distância que separava seu país das terras brasileiras. Mas é esse tempo “morto” que nos surpreende no final da história e nos leva a refletir sobre os temas centrais da narrativa. É preciso uma reflexão mais aprofundada sobre ele.

ELEMENTOS TEMÁTICOS

Se tivéssemos de encerrar o romance num único módulo temático, fundamental para a definição de conjunto, o tema da aventura seria o grande privilegiado. Em nome da aventura se consagrou o próprio Romantismo. Seguindo a tradição das clássicas histórias de jovens apaixonados, o esquema de motivos e de representação temporal segue a mesma fórmula: encontro inesperado, conflitos familiares, final trágico.

Para que essa estrutura garanta a aventura como a grande unidade temática, há que se considerar os temas que gravitam em torno dela como elementos fundamentais. Dentre eles destacamos:

ACASO

Tudo no romance acontece por acaso, como vimos anteriormente, sobretudo os encontros. Por acaso Pereira se encontra com Cirino; Meyer encontra o obstáculo na estrada; Cirino encontra Inocência; Pereira recebe carta do irmão; Meyer encontra a espécie rara.

A série dos acasos, no romance romântico, insere os acontecimentos dentro de uma outra lógica, que tem a ver com o destino. Graças ao acaso os destinos mudam bruscamente, causando os maiores problemas dentro das vidas estruturadas para perpetuar a tradição. Como força de desestabiização, de questionamento e de riscos, o acaso se constitui num impulso no sentido de colocar os direitos do coração como base para se falar dos demais direitos do homem.

AMOR IMPOSSÍVEL

Sendo as paixões humanas guiadas pelas leis do acaso e não da vontade, o amor que desperta as emoções dos jovens nunca corresponde à vontade dos pais, tornando-se um amor impossível, típica manifestação do amor cortês medieval.

Inicialmente, é importante considerar o amor impossível como um acontecimento inesperado e, por isso mesmo, um agente de desequilíbrio das situações. Enquanto perdura a situação conflituosa, o amor impossível exprime uma situação de impasse que se traduz através da constituição dos triângulos amorosos: o amor não encontra seu par. Daí o desencontro. No romance de Taunay, temos vários triângulos amorosos, dependendo dos elementos que o constituem. Os elementos mudam segundo o ponto de vista em questão:

1. do ponto de vista dos namorados: Inocência, Cirino e Manecão

2. do ponto de vista de Pereira e do ponto de vista de Cirino: Inocência, Meyer, Manecão.

Amor diante da razão social e, conseqüentemente, permanência do statu quo. É uma questão de honra: o pai prefere ver sua filha morta a ter seu nome desonrado. Que nome?... O importante é que a morte garante a pureza, do nome e da filha.

Para Inocência, a morte é a única saída para o impasse a que sua vida foi encaminhada. É a única forma de escapar do compromisso assumido e de não se casar com Manecão; e seria também a única forma de não cair em desgraça se atendesse ao pedido de fuga de Cirino. A morte de Inocência é uma daquelas mortes românticas provocadas pelo acaso. Morte de amor: Inocência livrou-se da febre da maleita, mas não escapou da febre da paixão.

A morte de Cirino é fruto de uma vingança, por isso ele se torna um herói. Morre honestamente, enfrentando seu rival. Ambas são mortes românticas, morte que ataca jovens apaixonados. É a única forma de conservar o encantamento da paixão.

A CIÉNCIA E A PAIXÃO

O grande tema do Romantismo é o confronto entre sentimento e razão. No romance de Taunay, tal problemática foi explorada de modo particular.

De um lado, temos a paixão, que vence a razão de um médico curandeiro. O herói romanesco, diferentemente dos heróis do nosso Romantismo, não é um jovem improdutivo, que pode se entregar as vinte e quatro horas de seu dia às vivências da paixão. O Dr. Cirino amarga seus sentimentos em meio a seus doentes, o que não deixa de ser uma forma de respirar no mesmo lugar onde mora sua amada.

De outro, temos o encantamento do naturalista diante das belezas de Inocência. Ele pode não ter se apaixonado pela moça, mas certamente se encantou com sua beleza a ponto de consagrar seu sentimento num nome científico. De acordo com o ponto de vista narrativo isso significa que

[...] também os sábios possuem coração tangível e podem, por vezes, usar da ciência como meio de demonstrar impressões sentimentais de que muitos não os julgam suscetíveis. (p. 148)

Tal é a sentença de honra ao mérito que foi dedicada a Meyer pelo jornal de sua cidade. O que nos leva a pensar que todo o trabalho de Pereira fora em vão e que Meyer foi, de fato, o único vitorioso. Ele foi o único capaz de consagrar a paixão num evento científico, colocando-se acima dos valores autoritários de Pereira. Nesse caso, o estrangeiro, homem da cidade, soube dar a volta por cima. Foi a vitória da inteligência. Dela estava muito distante o conhecimento prático do doutor, que só entendia das moléstias do sertão.

É preciso considerar também que a ciência, apesar de vitoriosa, está a serviço da paixão. Graças à medicina popular de Cirino, Inocência se salva da moléstia; graças à ciência de Meyer, ela vive eternamente numa outra esfera de existência.

Em vez de oposição, a ciência e a paixão traduzem uma só manifestação: o entusiasmo de Meyer pelas coisas naturais. Borboleta e Inocência são dois lados de um mesmo fenômeno para o cientista. Meyer, que fora ridicularizado por Pereira, confirma para nós a máxima: ri melhor quem ri no fim.

A MULHER COMO CAMPO DE BATALHA

Se levarmos em conta os vários fragmentos em que os personagens e também o narrador exprimem suas idéias a respeito da condição feminina, diríamos que os confrontos de todos esses juízos formam um verdadeiro campo de batalha. Em nome da proteção da tão falada condição feminina, Inocência é praticamente escravizada. Mas essa mesma condição leva os homens a perder a cabeça. Pereira como pai, Cimo como jovem apaixonado, Tico como protetor, Meyer como viajante admirador de espécies raras e excêntricas.

A mulher passa de ser sublime, inocente, guardado numa redoma de vidro, a ser desprezível, ameaçador, inocente, gerador da duplicidade de nomeação da personagem. No final, a duplicidade permanece: como ser inocente, Inocência foi consagrada pela ciência, entrou gloriosa para a alta eternidade; como ser nocivo, foi castigada, queimada pela febre.

A morte de Inocência acaba fazendo valer a superioridade da honra, dos valores, e a inferioridade do amor e das paixões. O par amoroso é liquidado, e a honra de Pereira e de Manecão estão salvas.

Porém, pensando na morte de Inocência, que não nos parece ter sido provocada por nenhuma causa externa, somos levados a pensar em termos simbólicos. Quer dizer, a morte de Inocência pode ser pensada como eliminação da figura feminina submissa, escrava. Nesse contexto, ganha sentido sua resistência de corça: ela disse que não se casaria com Manecão e, de fato, não se casou, o que não deixa de ser uma vitória.

Olhando por esse viés, mudamos sensivelmente o modo de ver Inocência. Se até agora ela era “uma sonâmbula”, um fantoche sem vontade própria, podemos agora vê-la como um ser superior. Se, inicialmente, ela dividia com Cirino o primeiro plano da narrativa, em que o médico parecia ser seu suporte, ao fazer valer sua vontade e não se deixar abater nem por Manecão nem por Pereira, ela se impõe como a verdadeira heroína e personagem principal de toda a trama. A todos ela enfrenta sem a ajuda de Cirino.

A luta que se desencadeou em torno desse tema teve como objeto o corpo; no corpo reside a honra. Com o fim do corpo, deixa de existir o valor e tudo o que nele está implicado. O que resta, então? A liberdade, sem dúvida alguma; visto que em nome dela se fazem muitas batalhas. O que não deixa de ser uma grande ironia.

Fonte:
Irene A. Machado. Roteiro de Leitura: Inocência, de Visconde de Taunay, Editora Ática. Disponível em Resumos de Livros

sábado, 21 de abril de 2012

A. A. de Assis (Estados do Brasil em Trovas) Amazonas

Ubiratan Lustosa (Livro de Trovas)

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Quando eu a vejo sorrindo
fico contente porque
foi esse sorriso lindo
que me fez amar você.

Saudade é flor venenosa
que tem perfume no espinho;
acaricia zelosa
pra nos matar de mansinho.

Aonde vou vai comigo
tua imagem me seguindo
a me lembrar que onde sigo
teu amor também vai indo.

Amor com amor se paga,
diz o refrão a ensinar,
mas tem gente que se gaba
de dever e não pagar.

Enfrente a vida sorrindo,
e sem ter medo de grito;
não ouça leão rugindo
quando é berro de cabrito.

Bonaparte, previdente,
dizia em sábias propostas:
“Prefiro um leão de frente
do que vento pelas costas”.

Aplauso não me faz falta,
a boa amizade sim;
vai-se a glória da ribalta,
a amizade fica em mim.

Peço a Deus Onipotente:
- Meus amigos abençoa!
Só posso viver contente
ao ver todos numa boa.

Passa o tempo e nas andanças
a gente segue também;
do tempo ficam lembranças,
da gente o que fez de bem.

De vez em quando me invade
uma ideia que tonteia:
é sair pela cidade
dando tapa em gente feia.

É ditado popular:
“A ocasião faz o ladrão”.
Você resolveu provar
e roubou meu coração.

Quando a noite vai chegando
em minha casa já espero
só pra ver passar gritando
um bando de quero-quero.

Cuidado você que ensaia
seu par de botas achar:
amor que nasce na praia
na areia vai desmanchar.

É coisa da mocidade
cometer um desatino;
depois, na adversidade,
bota a culpa no destino.

Perante Deus, acredito
no que por santo foi dito:
“Faz muito aquele que faz
o pouco de que é capaz”.

Quisera que meu presente
de Natal fosse a mudança:
deter o que vem pra frente
e voltar a ser criança.

Ano Novo, vida nova,
diz o dito popular.
A esperança se renova
e a gente volta a sonhar.

Existe tanta ternura
nas festas de fim de ano,
que a gente, com alma pura,
esquece até o desengano.

Já fui caçador, fui caça,
fui peixe, fui pescador.
Fiz o que dizem “não faça”
só pra sentir o sabor.

Subi morros por pirraça,
rolei ladeiras de dor,
do perigo achando graça
mergulhei no mar do amor.

O amor mudou minha sina
de teimoso valentão;
a meiguice feminina
me escravizou na paixão.

Esse é destino do macho
que numa saia faz ninho:
o mandão vira capacho,
o tigre vira gatinho.

Fonte:
Vânia Ennes

Ubiratan Lustosa (1929)


artigo por Vânia M. S. Ennes

Ubiratan Lustosa nasceu em Curitiba, em 1929. Formado em direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Ubiratan Lustosa, admirável radialista, poeta, trovador, escritor, letrista, contista e historiador é um dos nomes mais destacados da história do rádio curitibano, paranaense e brasileiro e autor de vários livros.

Cativante e comunicativo, desde menino desejava ser locutor e assim iniciou muito cedo sua gloriosa carreira, nos alto falantes dos circos, parques de diversão, quermesses de igreja, festas juninas e campanhas políticas.

De extraordinária capacidade profissional, muito cedo Ubiratan Lustosa tornou-se diretor das Rádios Marumbi e Rádio Clube Paranaense – B 2, então a mais importante e possante emissora do Estado.

Através de sua voz sonora de locutor e dotado de um cérebro privilegiado Ubiratan transmitia credibilidade, confiança e respeito aos milhares de ouvintes.

Um predestinado! Grande incentivador da cultura escrita e falada e um dos fundadores da União Brasileira de Trovadores - UBT Seção de Curitiba!

Por tão marcante personalidade e pela forma serena e educada de agir, Ubiratan vem conquistando uma legião de amigos ao longo da brilhante carreira, através da sua simpatia e alto astral!

Site do Ubiratan Lustosa: http: ww.ulustosa.com/historiaradiomais,info.locutores.htm

Fonte:
Texto enviado por Vânia Ennes

Ialmar Pio Schneider (Soneto a Tiradentes - In Memoriam)


Nós estamos em pleno mês de abril,
quando reverenciamos com sapiência,
nosso Mártir maior da Independência,
o heróico Tiradentes varonil...

E demonstrando um forte amor febril,
não temeu entregar sua existência,
com denodo cabal e paciência,
querendo a liberdade do Brasil...

Há de permanecer sua memória,
com respeito de todas as nações,
porque jamais se apagará da História...

Exemplo de coragem inaudita,
representa às futuras gerações,
a imagem que será sempre bendita...

Fonte:
Soneto enviado pelo autor