quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Ademar Macedo (Mensagens Poética n. 489)


Uma Trova de Ademar

É dando que se recebe,
digo sempre aos meus irmãos:
quem não dá... logo percebe
que não tem nada nas mãos!...
–ADEMAR MACEDO/RN–

Uma Trova Nacional


Para a Família Macedo,
nobre gente potiguar,
fazer Poesia é brinquedo
de uma beleza sem par!
–AMILTON MACIEL/SP–

Uma Trova Potiguar


E a vida vai me orvalhando
sonhos bons da mocidade
que os anos foram deixando
no silêncio da saudade...
–REVOREDO NETTO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram


Meu coração, hoje em dia,
desfeito, cansado e mudo,
lembra uma feira vazia,
depois que venderam tudo!
–PE. CELSO DE CARVALHO/MG–

Uma Trova Premiada


2009 - Cambuci/RJ
Tema: POETA - Venc.


Eu creio na honestidade,
na justiça clara e reta,
no fim da desigualdade...
- Não sou louco... Eu sou poeta!
–OLYMPIO COUTINHO/MG–

Simplesmente Poesia

Estranha Loucura
–DOMITILLA BORGES BELTRAME/SP–


Que estranha loucura é esta
que faz de minha vida uma festa,
um mundo de cores,
canto de passarinho
e perfume de flores?

Que estranha loucura é esta
que me faz, tão consciente,
perder a razão e o juizo,
desejar o paraíso
a qualquer preço e de qualquer jeito?!

Que estranha loucura faz o meu peito
bater tão descompassadamente,
verter tanta ternura?!

É a paixão pela vida
que me torna atrevida,
descobrindo-me poeta,
fascinada pelo verso,
apaixonada pelo AMOR!

Estrofe do Dia

Tudo quanto na vida a gente cria
tem o santo mistério divinal,
porque vendo a poesia em todo canto,
e a beleza do reino universal;
acredito que Cristo foi poeta,
e escreveu a poesia mais completa
na lapela da aurora matinal.
–PROF. GARCIA/RN–

Soneto do Dia

Quarta-feira de Cinzas
–HENRIQUE MARQUES SAMYN/RJ–


E quando a Quarta-Feira enfim chegou
e em cinzas transformou toda a folia,
rasgou, despudorada, a fantasia
que tantos mascarados deslumbrou;

e quando a Quarta-Feira enfim chegou,
fingiu não ver o mais cinzento dia;
e, em meio à rua clara e tão vazia,
cantou marchinhas e canções de amor.

No corpo nu calou toda a tristeza:
deitou-se, doida de melancolia,
na cama de confetes da calçada.

Se fez na quarta-feira, uma Tigresa:
lançou-se, incontrolável, sobre o dia –
bebeu, sedenta e só, a madrugada.

Fonte:
Textos enviados pelo Autor

J. G. de Araújo Jorge (Poesia, De Longe)


Ana Amélia (Ana Amélia Queiroz Carneiro de Mendonça) é uma das mais ricas sensibilidades que conheço. Sua obra, de feição clássica, neo-romântica, a coloca entre os maiores nomes femininos de nossa poesia, ao lado de Gilka machado, Adalgisa Nery, Benedicta de Melo, Beatrix dos Reis Carvalho, Ilka Sanches, Seleneh de Medeiros, Maria José Giglio, e tantas outras. Seu soneto “Mau de Amor” tornou-se peça natológica. Incluí-o em minha antologia “Os mais belos sonetos que o amor inspirou”, volume I, dedicado à poesia brasileira.

Minha admiração por Ana Amélia vem de longe, de meus tempos de estudante secundarista do Pedro II. Ela era nossa “rainha dos estudantes”, e me lembro de que participou da festa que escolheu os “príncipes da poesia e da prosa” do velho colégio. Festa memorável a que compareceram muitos acadêmicos, e entre eles Coelho Neto e Alberto de Oliveira, então os “príncipes da prosa e poesia” brasileiras.

Mas, além de sua própria poesia, Ana Amélia é uma excelente tradutora. Talvez nenhum outro poeta tenha conseguido passar para o nosso idioma, com tanta facilidade, os versos de Shakespeare, mas de outros poetas ingleses e norte-americanos.

Nesta pequena nota quero destacar uma das traduções de Ana Amélia, em que sua capacidade de transferir para o nosso idioma, intactas, todas as belezas do original, acabou por nos oferecer uma obra-prima, de lirismo inigualável. Trata-se de sua tradução do soneto XIX da poetisa norte-americana Edna St. Vincent Millay, que, com outros trabalhos de Ana Amélia, figuram no volume III de “Os mais belos sonetos que o amor inspirou”. Não me poupo a alegria de oferecê-lo aos leitores.

SONETO XIX

Tu também morrerás, cinza adorada.
Essa beleza é certo que pereça,
essa mão, essa esplêndida cabeça,
esse corpo de argila iluminada.

Sob o gume da morte, ou sob a geada,
serás mais uma folha que estremeça
e com as outras te vás, verde e travessa,
depois morta, sem cor, desintegrada.

De nada o meu amor terá valido,
apesar deste amor, tu chegarás
ao fim do dia e tombarás vencido,

obscuro como a flor que cai, por mais
que tenhas sido belo, e tenhas sido
mais amado que todos os mortais.

Edna St. Vincent Millay


* * *

A maior sonetista contemporânea de Portugal desapareceu há apenas dois anos: Virgínia Victorino. Depois de Florbela Espanca, e ao lado de Maria Helena, forma a trindade das grandes vozes do lirismo português de nossos dias. É a poetisa de maior público em sua terra, e seus livros esgotam edições sucessivas. Perfeita na forma, simples e comunicativa na linguagem, despida de quaisquer artificialismo, a poesia de Virgínia Victorino é uma flechada no coração. Dos três livros que deixou: “Namorados”, “Apaixonadamente” e “Renúncia”, possuo os dois primeiros.

Quando selecionava sonetos portugueses para o volume II de “Os mais belos sonetos que o amor inspirou” vi-me em dificuldades diante da obra de Virgínia Victorino: Tinha vontade de incluir todos os seus trabalhos. Como Guilherme de Almeida, que foi nosso “príncipe dos poetas”, seus sonetos são pequenas jóias, inconfundíveis, singulares, e não se pode tentar escolher uns poucos sem se correr o risco de cometer injustiças. E, por isso mesmo, excepcionalmente, Virgínia Victorino figura na antologia com o maior número de trabalhos: onze sonetos.

Ao preparar estas notas, estou atendendo a uma leitora que me pediu para que citasse algumas poesias de poetisas estrangeiras, das que mais gosto, tal como fiz aqui com as poetisas brasileiras.

Eis, portanto, um soneto de Virgínia Victorino, talvez o de minha preferência:

MÁGOA

Eu que cheguei a ter essa alegria
de junto ao meu possuir teu coração,
eu que julgara eterna a duração
do voluptuoso amor que nos unia,

sou,- apagada a última ilusão,
morto o deslumbramento em que vivia,
- um cego que ao lembrar a luz do dia
sente mais negra ainda a escuridão.

Tu me deste a ventura mais perfeita,
perdi-a, e dei-te a chama insatisfeita
dessa imensa paixão com que te quis...

Hoje, o que sinto, inútil, revoltada,
não é mágoa de ser tão desgraçada,
é pena, de ter sido tão feliz.

Virgínia Victorino


Ela é cognominada Joana da América, pela projeção literária de seu nome em todo o continente, e até no Brasil.Nasceu na pequena vila de Melo, em Cerro Largo, no Uruguai, e tem hoje mais de 70 anos. Poetisa de grande expressão lírica, seus primeiros livros são de versos exaltados, sensoriais, apaixonados, em linguagem clássica e pura. Ultimamente sua poesia ganhou certa expressão mística e até religiosa. A panteísta, algo pagã, de “Cântaro fresco” e “Raiz salvage”, hoje pinta vitrais em “Estampas de la Bíblia”.

Minha velha e grande admiradora pela sua poesia levou-me a procurá-la em Montevidéu, quando, ainda estudante, participei de uma caravana, e fui a Buenos Aires e ao Chile. Infelizmente ela estava em visita à sua terra natal, e não a encontrei.

Ao selecionar os sonetos de poetas latino-americanos para o volume II de “Os mais belos sonetos que o amor inspirou”, apesar de contar com traduções de trabalhos seus, feitas por Murilo Araújo, Melo Nóbrega e Othon Costa, fiz questão de transladar para nosso idioma algumas de suas páginas. E, sem nenhum favor, um dos seus mais lindos sonetos é este:

A PROMESSA

...E todo o ouro do mundo parecia
diluído na tarde luminosa.
Apenas um crepúsculo de rosa
a alta copa das árvores tingia.

Súbito amor a minha mão unia
à tua mão morena, carinhosa.
Éramos Booz e Ruth, ante a formosa
terra que aos nossos olhos se estendia.

-- Me amarás? Perguntaste. Lenta e grave
veio-me aos lábios a promessa suave
da amante moabita, tão querida;

e foi como um “Amem!” que nesse instante
se ouviu, num toque de oração, vibrante
bater o sino da pequena ermida!


Fonte:
JG de Araujo Jorge. "No Mundo da Poesia " Edição do Autor -1969

Nilto Maciel (A Pálida Visitante)


Como qualquer leitor, dediquei alguns anos a ler um pouco das literaturas antigas, especialmente a grega e a latina. Conheci também parte da literatura egípcia: o Livro dos Mortos, os Contos do Harpista, as epopéias das Aventuras de Sinuhé e das Desventuras de Unamon, o conto mítico O náufrago, e outros. Antes disso, havia lido estudos como A Literatura no Egito Antigo, de Thorbjörn Ling. E aqui se inicia minha visita ao mistério da morte de cinco homens de diferentes latitudes. Talvez por um acaso tenha lido uma página da biografia de Ling. E então minha curiosidade se voltou exclusivamente para a vida (e a morte) do lingüista sueco, me fazendo esquecer os seus estudos. Vasculhei bibliotecas imensas em busca de outras biografias dele. Interessavam-me a morte de Ling e, especialmente, a doença que o matou. Como podia um europeu ter morrido de lepra no Egito?

Thorbjörn Ling me levou a Jacob Grillparzer, autor de uma História do Egito Antigo. Em um dos capítulos mais curiosos e interessantes narra pragas de insetos ocorridas no Egito Antigo. Uma dessas pragas de gafanhotos é narrada com refinada arte e com tantos detalhes que não tive como não voltar ao Êxodo: “Estendeu, pois, Moisés a sua vara sobre a terra do Egito, e o Senhor trouxe sobre a terra um vento oriental todo aquele dia e toda aquela noite; quando amanheceu, o vento oriental tinha trazido os gafanhotos. E subiram os gafanhotos por toda a terra do Egito, e pousaram sobre todo o seu território; eram mui numerosos; antes destes nunca houve tais gafanhotos, nem depois deles virão outros assim. Porque cobriram a superfície de toda a terra, de modo que a terra se escureceu; devoraram toda a erva da terra, e todo fruto das árvores, que deixara a chuva de pedras, e não restou nada de verde nas árvores, nem na erva do campo, em toda a terra do Egito”.

A narração de Jacob é muito mais rica, mais minuciosa do que a bíblica. Parece-nos ver as nuvens de insetos sobrevoando as plantações e o chão. Ouve-se o chiar medonho dos gafanhotos devorando tudo, num craque-craque incessante, como se se visse o desfolhamento contínuo das árvores. Sente-se o odor da seiva no momento de sua sucção pelos acrídios.

O livro de Jacob transcreve trechos de inúmeros clássicos, assim como de obras menos conhecidas. Uma destas é O Egito e os Hebreus, de Gustav Hus. Segundo o biblicista tcheco, o capítulo bíblico da praga dos gafanhotos se referia, originalmente, a um tipo de gafanhoto já desaparecido. Não seria apenas uma figura de retórica o trecho seguinte: “Antes destes nunca houve tais gafanhotos, nem depois deles virão outros assim”. Na verdade, tais gafanhotos teriam existido somente naquele tempo, naquela estação do ano, naqueles dias de praga, ou naquele dia e naquela noite terríveis. O nome dessa espécie teria constado de manuscritos hebraicos, gregos e latinos. Estaria mencionado em uma versão da Bíblia, tendo sido dela extirpada por volta do terceiro século da era cristã. Consoante Hus, os insetos teriam sido transmissores de uma doença, espécie de lepra, que teria acometido populações inteiras do Egito e de toda a região desde o Rio Nilo até a Assíria.

O latinista Juan Carnicer afirma desconhecer, em textos latinos, qualquer alusão ao gafanhoto de Gustav Hus. Faz referência aos primeiros documentos latinos do século VII a.C. e transcreve trechos de obras de diversos escritores romanos, como Lívio Andrônico, Névio, Plauto e Ênio. Dedica algumas linhas a Plínio e sua locusta, e ainda descreve a anatomia de animais como a lagosta-gafanhoto.

Denis Papineau publicou numa revista científica um estudo intitulado Origem e Evolução dos Gafanhotos. Apesar do título, o biólogo francês não se limita aos gafanhotos — refere-se também às lagostas, aos grilos e às esperanças. E lembra algumas doenças, como gafa, sarna e lepra. Porém não afunda na História e muito menos nas origens da palavra locusta.

Recentemente tive um sonho esquisito. Eu me encontrava no Egito, como turista. Já havia visitado a Esfinge, as pirâmides e outros templos da cultura egípcia. Acompanhava-me sempre um homem branco, louro, cinqüentão, robusto, alto, com quem eu conversava o tempo todo. Falávamos de faraós, dinastias, deuses. Ao despertar, tive a idéia de o homem do sonho ser Thorbjörn Ling, cuja fisionomia nunca tinha visto, por mais que a buscasse nas enciclopédias. Dias depois, porém, consegui um exemplar da edição sueca de seus ensaios dedicados à literatura no Egito Antigo. Numa das primeiras páginas está estampada uma fotografia de Ling. Não tenho dúvida de que retrata exatamente a fisionomia e o corpo do personagem do meu sonho. Há no livro também uma biografia dele: nasceu em 1833 e faleceu em 1893. Dedicou sua vida a estudos de literaturas asiáticas e africanas. Matou-o uma espécie de lepra, uma doença de pele, que o consumiu em poucos dias, quando visitava o Egito. Nem sequer conseguiu voltar à Europa. O corpo de Ling, inteiramente desfigurado, foi embalsamado e conduzido à sua terra natal.

Renovei correspondência com estudiosos da Literatura Egípcia antiga. Pietro Landini, professor de Literatura em Roma, me enviou uma longa carta. Eu o tinha conhecido em 1994, quando visitei a Universidade onde lecionava. Convidou-me a voltar à Itália. O resto do escrito é dedicado a Gustav Hus e sua obra: nascido em 1764, viveu quase sempre na miséria. Faleceu em 1824, quando de uma epidemia ocorrida em Praga. O professor dedica algumas linhas à importância do biblicista, ao seu livro citado no início deste comentário e a uma coletânea de lendas por ele publicada. Uma dessas lendas teria como enredo uma praga de gafanhotos. Talvez se tratasse da mesma narrativa estudada por Jacob. A curiosidade me levou a solicitar a Pietro um exemplar da coletânea. Ou, se isto lhe custasse muito trabalho, pelo menos uma cópia da lenda. No entanto, não obtive resposta. Pietro faleceu exatamente no dia em que me escreveu a carta.

Como Jacob Grillparzer conhecera a obra de Hus? Reli alguns capítulos de sua História, especialmente o das pragas de insetos ocorridas no Egito Antigo. Como da primeira vez, achei-o interessantíssimo, uma obra de arte literária. Li também uma pequena biografia do historiador alemão: primeiro filho de um casal de judeus, nasceu em 1821, em Bremen, e faleceu em 1881. De que morreu Jacob? De uma febre terrível, possivelmente causada por picadas de insetos. A informação é concisa e vaga. Que insetos teriam matado o historiador?

Dediquei-me, a seguir, a Juan Carnicer e os escritores latinos por ele estudados. Essas leituras me fizeram recordar o meu pobre latim e minha antiga paixão pelo Império Romano. No entanto, Carnicer não me saía da cabeça. Queria saber mais dele, de sua vida e sua morte. O ano de seu nascimento é 1907; o de seu falecimento, 1967. Matou-o uma indigestão. Havia jantado com amigos num restaurante de Barcelona. Segundo os seus amigos e o garçom que os serviu, o prato escolhido por Juan havia sido lagosta. Durante todo o jantar falaram de crustáceos, romanos e latim. Ao se despedirem, ele se queixou de muito sono. Encontraram-no morto, no dia seguinte, as mãos retorcidas, os dedos feito garras, e todo o seu sangue derramado no chão do quarto.

Restava-me Denis Papineau. Folheei revistas de biologia e enciclopédias. Não encontrei qualquer referência a ele. Procurei biólogos brasileiros. Nenhum deles conhecia o francês. Telefonei a um amigo parisiense, Charles Sautet, e falei-lhe de minhas buscas. Ele me prometeu descobrir o paradeiro de seu compatriota. Alguns dias depois, telefonou-me: iria mandar livros que me interessariam muito. Um desses livros é uma biografia de Denis: nascido em 1912, faleceu em 1972. Matou-o um câncer de pele.

Ontem regressei do Cairo. Trouxe livros e fotografias. E mais mistérios. Lembram-se do meu sonho, do homem com quem conversava o tempo todo? Pois lá o encontrei novamente. Apresentou-se a mim como Jacob. Falava alemão, tendo nascido em Praga. Não me falou de literatura nem de história nem da Bíblia. Disse-me ser professor de latim. Perguntei-lhe se conhecia Juan Carnicer. Ele sorriu: “Quem dii oderunt, paedagogum fecerunt”*. Indaguei se a praga dos gafanhotos ocorrida no Egito Antigo havia sido registrada por escritores romanos. Ele conduzia exemplar da revista onde Denis Papineau publicou o estudo sobre os gafanhotos. Fez-me doação dele. E se pôs a citar Horácio: “Pallida mors aequo pulsat pede pauperum tabernas regunque turres (...)”**. Depois olhou para mim com um olhar de eternidade, e prometeu: “Quando chegares à tua terra, eu te visitarei”. E desapareceu atrás de uma pirâmide.

Eu o espero.
–––––––
Notas:
(*) A quem os deuses odeiam, fazem-no professor.
(**) A pálida morte bate com pé igual nas barracas dos pobres e nos palácios dos reis (...)

Fonte:
Nilto Maciel. Pescoço de Girafa na Poeira: contos. Brasília: Secretaria de Cultura do Distrito Federal/Bárbara Bela Editora Gráfica, 1999.

Dora Dimolitsas (Poesias Avulsas)


A REVOLTA DOS DEUSES

Transbordo ópera na espreita
Explosão nuclear, começo e fim
Medos, tsunami, violação do estante

Abro as cortinas e entulhos se sobrepõem
Transformações profundas sísmicas
Medos ,lágrimas e espanto

Já é tarde demais
Os deuses já despem os véus

SANGRA O SANTO SUDÁRIO

a espada é o elo,
esbarra nas distorções,
fazem os abismos de Breton
no caracol do rebento
não há lamentos
Microcefalia, cólera, massas profanas
( os impúberes-psíquicos )
deixam expostos o brilho
dos olhos,
nos ossos do crânio sagrado

SÃO PAULO À NOITE

São Paulo de noite nas ruas
Parece nua com suas cores, suas luzes piscando
Todas no mesmo ritmo, como um grande coração.
As luzes parecem pulsação.
Nos bares a vida noturna embala
As caras que encaram no peito a noite.
Não tem jeito, a noite é linda e leve,
Leva-nos a muitas reflexões.
Aqui, acolá, uma pessoa passa cantando, falando, sorrindo.
Olhando pra longe bem ao longe,
A existência do que parece vazio,
Do que nos fala ao ouvido, baixinho.
Através do vento que bate no rosto
Cochichando palavras inexplicáveis.

A noite em São Paulo é mágica
Ando na Avenida Paulista
Preocupada, pensativa, mas feliz,
Bebendo a brisa que passa
Abraçando a noite que fala...
Pensando em Você, como está:
Pensa em nós, ou faz tudo
Para me afastar de suas lembranças?
Lamento dizer, mas você está impregnado
Em mim, assim como estou em você.
Somos ligados não sei por quê acordo
No Céu, mas sei que são laços eternos.
Por isso já aprendi a amá-lo
Na incerteza das suas lembranças, mesmo de longe,
Morrendo de ciúmes de quem está perto.

NOITE DE SOL

Na noite,
Lençóis macios testemunham imagens
Que em teu olhar pasmo se formam.

O corpo nu, inteira cobiça,
Um busto que faz as mãos tremer
Deixando transpirar.

Desejos no beijo, no abraço,
Bombolinar, sonhar entre os lençóis,
Amar, deixar o sol brilhar.

AMOR EM ECO

Havia astros refletindo
Com a luz do luar
Em sinfonia pronuncia
O nome do amor em eco.

O relógio marcando a hora
Do dia que logo vai clarear,
Mãos prontas para estrelas pegar
Num reflexo da luz
Que a noite está sempre mostrando.

Nas cantigas grito,
Em sinfonia pronuncio
O teu nome ao cantar o amor.

NOS BARES

Nos finais de semana os bares ficam lotados.
À noite, bandas de garotos
Iniciando uma carreira promissora,
Fazem suas demonstrações.

Muitas luzes piscando,
Muitas jovens adolescentes com seus ficantes.

A noitada está só começando,
Dança agarradinho, cochicho no ouvido
Dança sensual fazendo a garotada sonhar.

A sedução faz parte da noite, fala macia,
E dois jovens vão parar na cama.
Aos pais, a quase certeza do neto chegando.

POETAS EM SARAU

Da sacada do prédio ao lado
Vejo poetas em deliciosos saraus,
Muita gente circulando
Bebendo as palavras poéticas,
Vejo os rostos das pessoas
Que na noite deixam a alma falar
Transitando nos corredores.

Paro e me pergunto
A poesia é sonho ou é real?
Chego à conclusão:
Bem vivida a vida é poesia

A LINGUAGEM POÉTICA

Traz o envolvimento perceptivo,
Criativo e principalmente belo.
Capaz de abraçar nossa alma por inteiro.
Ilustra e da cores a nossa imaginação,
O poeta em sua capacidade de ver e comunicar
Constrói todo um universo
Faz viagens, permitindo que sua criação
Tenha vida própria e alma...
as imagens transitam entre um elo e outro.
E assim o Poeta se comunica, cumprindo
Seu compromisso social de levar beleza e cores
A todo espaço que pareça vazio..
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Dora Dimolitsas (Convite: Poemas à Flor da Pele)

Dora Dimolitsas


Nascida no Acre em Sena Madureira, criada em colégio de freiras.

Trabalhou e se preparou profissionalmente no 5º Batalhão de Engenharia e Construção em Porto Velho, Rondônia.

Atuando na área de Saúde, estando presente na construção da cidade de Vilhena ,indo para São Paulo em 69, prestando concurso para o governo federal ( hoje aposentada.)

Prestando serviço no Hospital Brigadeiro, em São Paulo, Laboratorista com vários cursos de especialização em hematologia ,bioquímica, hemoterapia, citologia e citoquimica, bacteriologia.

Também com curso de puericultura e educação sanitária, participou de varias atividades nacionais de vacinas contra a poliomielite, membro da CIPA, com estagio em Analises Clinicas na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de São Paulo. Trabalhou também no Hospital Ipiranga no período de epidemia de meningite, atuando ativamente na elaboração de exames para definição da meningite.

Tem diversos cursos de Poesia e Teatro cursados na Casa das Rosas, Espaço Haroldo de Campos.

Escritora,poetisa,atriz,escritora,produtora Cultural, e Jornalista.

Representante dos Projetos Culturais: Poemas a Flor da Pele, Proyecto Cultural /Sur/Paulista, com eventos dentro dos hospitais públicos, para pacientes, funcionários, e crianças leucêmicas, e hemofílicas.

Cônsul de Poetas Delmundo.

Colunista do Jornal o Rebate e o São José

Produtora de eventos no Centro Cultural de São Paulo e na Biblioteca Alceu Amoroso Lima pela Prefeitura.

É poeta Prata da Casa das Rosas

Membro da
Academia de Letras da Mantigueira
Academia de Letras Itapirense de Letras e Artes
Academia de Cabo Frio,
Academia de Arte de Cabo Frio-ArtPop
Academia Cabista de Letras, Artes ,
Academia de Letras de Niteroiense de Belas Artes, Letras e Ciencias,

Membro da Literarte com o Premio Literarte de Cultura de 2012
Guardiã do Cinquecentenário:
Premio da Academia Brasileira de Honrarias ao Merito
varias medalhas e Premios do Proyecto Cultural Sur
varios Premios da Companhia de Teatro Loucos do Taró, e CICESP

Autora das peças: Dama de Vermelho Por intenção, e Cortejo de Baco, além do Roteiro do filme: Os Druidas e o Segredo da Pedra da Luz (em parceria)

Auitora de dois livros Solos

- Coruja Mitologica
– Poesias e Fractais.

Mais 120 antologias, Entre elas:
- Destaques na Poesia em 2011
– de Raimundo Nonato, Delicatta,
– Poemas A Flor Da Pele,Varias Cronicas,
– Mais 20 Plaquetes

Fonte:
Rebra

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Hermoclydes S. Franco/RJ (Calendário: As Flores de Maringá) Janeiro/Fevereiro/Março

O poeta Hermoclydes, do Rio de Janeiro em homenagem a Maringá, fez um calendário denominado as Flores de Maringá, em Trovas.

Hoje posto Janeiro, Fevereiro e Março. Para ampliar e/ou mesmo imprimir, é só clicar sobre a imagem. Ao finalizar dezembro, colocarei o Calendário disponível aqui no site para download.






Esmeraldo Siqueira (Livro de Trovas e Poemas)


TROVAS

Amou o belo e a verdade
Sem crer no Céu nem no Inferno
Do mundo, em vez de saudade.
Sente agora alívio eterno.

Dão-se prêmios repetidos
a livros que valem nada,
de versos desenxabidos
ou prosa vazia e aguada

De amor os versos que fiz
dariam mais de um milheiro.
Toda mulher que me quis
foi por amor... ao dinheiro!

Larápios de mil padrões
há neste mundo, dispersos.
Até conheço ladrões
que roubam frases e versos...

Os asnos são divertidos,
asnos bípedes, é claro,
todos se julgam sabidos,
dotados de senso raro.

Retornado ao pó obscuro,
coração, urna de pranto,
quem saberá, no futuro,
que amaste e sofreste tanto?

Se eu respeitasse o jumento
mesmo o bravio e coiceiro,
adeus meu divertimento,
alegre humor galhofeiro…

POEMAS

CREDO PANTEÍSTA

Creio em ti, Natureza, que és meu culto.
Creio, sem ritos místicos e altares.
No resplendor pleorâmico dos mares,
Onde assoma a grandeza do teu vulto.

Creio na tua força, e pasmo, e exulto,
Vendo, através de lentos avatares,
A gradação das formas singulares,
Até à maravilha do homem culto.

Creio em tuas florestas, nos teus montes,
Na poesia dos rios e das fontes,
Na beleza da terra reflorida.

Creio nas lindas noites estreladas,
No refúgio das brancas alvoradas,
Na sinfonia universal da vida.

(Caminhos sonoros/1941)

OFERENDA À POESIA

Um trono eu te erguerei, um trono, escuta bem,
De esmero original,
Como, em tempo nenhum, na terra, houve ninguém
Que tivesse outro igual

A púrpura - será do meu sangue inda vivo,
Ardente e palpitante.
O ouro - da áurea prisão do meu verso cativo,
Aos teus pés suplicante

Às estrelas irei, na asa da inspiração,
De uma a uma escolhe-las,
Para cingir-te a fronte a reverberação
Das mais lindas estrelas

Que valerão do mundo efêmeras grandezas,
Ante o teu resplendor?
Vencerás imortal rainhas e princesas,
Pela glória do amor.
(Novos poemas/1955)

Fontes:
Colaboração da Profa. Dione de Souza/RN
http://www.geraldo2006.com/arte4.html#Esmeraldo%20Siqueira

Esmeraldo Siqueira (1908 – 1987)


Médico, professor, poeta, crítico literário potiguar, nasceu em 16 de agosto de 1908 e morreu em 20 de junho de 1987.

"Expressão mais alta da nossa vida literária e científica", nas palavras de Veríssimo de Melo, Esmeraldo Homem de Siqueira nasceu em Vila Nova, hoje Pedro Velho (Rio Grande do Norte), filho do juiz Joaquim de Siqueira Cavalcanti e de dona Maria Joaquina de Siqueira Cavalcanti. Transferiu-se com seus pais para Natal em 1913, iniciando no mesmo ano seus estudos primários no Grupo Escolar Augusto Severo. Depois, estudou no colégio Santo Antônio e no Ateneu Norte-rio-grandense.

Em 1928, matriculou-se na Faculdade de Medicina do Recife onde colou grau na turma de 1933. Começou a exercer a profissão em Jardim do Seridó. De lá, nas horas vagas, escrevia e mandava para A República os seus "Intentos", série de artigos sobre literatura e filosofia. A partir de 1936, transferiu-se para Natal e passou a lecionar na Escola Normal a disciplina de História Natural. Em 1941, ingressa no quadro de professores do Ateneu Norte-rio-grandense ensinando Língua e Literatura Francesa. Para essa cadeira publicou "Letras de França" (1969), que é uma espécie de excursão didática erudita nas obras e nas vidas dos grandes autores franceses.

Intelectual polêmico e contestador, portador de uma vasta cultura científica e humanista, colaborou assiduamente nos jornais A República, Diário de Natal, Correio do Povo e Tribuna do Norte. Neste último, manteve uma coluna semanal sobre literatura e filosofia entre os anos de 1954 e 1955.

Era um homem de temperamento arredio, contrário às reverências aos poderosos e aos círculos de privilegiados, preferindo o trabalho intelectual solitário que exercia habitualmente à noite, encerrada a jornada diária pelos colégios onde ministrava aulas. Deixou dezenas de livros editados versando sobre temas da literatura clássica européia, sobretudo francesa, mas também sobre temas da cultura brasileira.

A maioria desses livros foi paga por ele próprio. Na poesia, deixou uma produção vasta e variada, lírica, satírica, romântica.

Descrevendo-o em artigo, assim se expressa seu filho Juliano Siqueira: "Esmeraldo escreveu seus poemas de acordo com seu credo literário: romântico, parnasiano, simbolista, moderno. Um humanista."

Em 1949 funda, com outros colegas, a Faculdade de Farmácia e Odontologia - primeira escola superior da Universidade Federal no Rio Grande do Norte - onde lecionou a cadeira de Botânica Farmaceutica. Foi também um dos fundadores da Faculdade de Filosofia à qual vinculou-se depois que essa instituição acadêmica foi incorporada à Universidade Federal.

Em 1957, fundada a Faculdade de Filosofia de Natal, passa a lecionar Língua e Literatura Francesa. Aposenta-se em 1958 na cadeira que ocupava na Faculdade de Farmácia. Suas aulas, cultas e descontraídas, ficaram famosas por atraírem grande número de alunos, inclusive vindos de outros cursos. Ingressou, a convite, na Academia Norte-rio-grandense de Letras, em 1949, ocupando a cadeira número 29, cujo patrono é Armando Seabra.

Obras:

Caminhos Sonoros (versos), Tipografia A. Lira, Natal, 1941;
Roteiro de uma Vida, editora Pongetti, Rio, 1968;
Música no Deserto, editora Pongetti, Rio, 1968;
Fauna Contemporânea - Sátiras, editora Pongetti, Rio, 1968;
Novos Poemas (versos), Departamento Estadual de Imprensa, Natal, 1950;
Taine e Renan (ensaios), editora Pongetti, Rio, 1968;
Sugestões da Vida e dos Livros (crítica literária) Imprensa Universitária, Natal, 1973;
Caminhos Sonoros (poesias) editora Pongetti, Rio 1941;
Poemas do Bem e do Mal (poesia), editora Pongetti, Rio, 1984;
Pretéritas (poemas) editora Pongetti, Rio, 1984;
Jorge Fernandes Desconhecido in "Revista da ANL", número 15, voluma 27, novembro de 1979/80.

Fonte:
Enciclopédia Nordeste

J. G. de Araújo Jorge (Os Últimos Reflexos de Uma Época)


A minha geração também poderia falar de uma belle époque. Nossa formação literária vinha de escritores que vivem ou participaram desse período. Julio Verne, Pierre Loti, Rostand, Zola, Heredia, Maupassant, Anatole France, Proust, cada um contriuiu com seu traço pessoal para aquela paisagem do espírito batizada com o nome vago de art nouveau.

Ainda agora leio nos jornais que Carlos Maul vai publicar um novo livro: O Rio da Bela Época. Ele próprio esclarece o título da obra:

“Era assim que na Europa, no princípio do século, se denominava o período entre 1898 e 1914, quando a humanidade parecia feliz e despreocupada, e não pressentia que a guerra a surpreenderia. O Brasil também pagou seu quinhão à calamidade, mas não tanto como os países devastados. Por isso, nossa “bela época” durou de 1900 a 1930.”

Eu prolongaria essa data por mais alguns anos. Minha geração ainda vislumbrou as suas últimas claridades. Em que pese as agitações políticas que refletiram posteriormente as lutas dos extremismos na Europa, vivíamos aqui, literariamente, como se fossemos uma longínqua província onde não tinham chegado as perturbações da metrópole.

Adolescentes, acordando para as letras, pertencemos ao tempo dos “cafés sentados”, os “cafés literários”, quando se tinha mais tempo para perder. Ainda se fará um dia a crônica dessa fugaz belle époque dos cafés do Rio de Janeiro. Primeiro, o velho Belas-Artes, na esquina da Avenida com a Rua Almirante Barroso. Lá nos reuníamos -a novíssima geração-, em longos “papos”, nos fins das tardes, a propósito de tudo.

Joaquim Ribeiro, que ampliou, no tempo, a inteligência e a obra do pai, João Ribeiro, Joaquim, talvez a maior cultura de nossa geração; Guilherme Figueiredo, então ainda e apenas o poeta de “um violino na sombra”; Edmundo Moniz, também poeta, engolfado sempre em estudos políticos e sociólogos; Odilo Costa Filho, recém-chegado do Norte; Henrique Carstens, poeta desaparecido; Augusto Rodrigues, que apenas começava seus desenhos, seus primeiros bonecos; Jair, figura exótica, com seus estranhos bigodes, extraordinário desenhista, autodidata, o penúltimo boêmio autentico que conheci (o último foi Antônio Maria, o pastor das madrugadas); Garibaldi, então pintando interiores do Mosteiro de São Bento, em fase mística, e que se perderia durante anos por Paris.

Lembro-me de uma tarde, ao chegar ao grupo que rodeava a mesa, repleta de xícaras vazias, transformadas em cinzeiros, Joaquim Ribeiro, antes que me sentasse, me apresentou a um novo companheiro:

- Araujo Jorge, este aqui é o Josué Montelo. Acaba de chegar do Maranhã Reverente, sacudindo ainda o pó das sandálias, Josué levantou-se, humilde e cordial:

- Araujo Jorge? J.G.? Admiro-o muito. Seu nome é muito conhecido em minha terra, não só pelos seus livros como pela colaboração no Correio da Manhã.

E enquanto me sentava a seu lado, foi logo retirando do bolso um trabalho:

- Gostaria de ouvir sua opinião.

Era um artigo sobre Celso Vieira. Um belo artigo, por sinal.
Disse-lhe minha impressão e me referi à sua letra, miúda, muito certa, que me lembrava a de Coelho Neto, que eu conhecia de vários manuscritos.

Alguns momentos depois, levantou-se e se despediu.

Quando Josué saiu, Joaquim voltou-se para nós da mesa, e com aquele espírito e senso de humor que o caracterizava, sem nenhuma maldade:

- O Josué trouxe quarenta artigos prontos, um sobre cada acadêmico. Vocês vão ver, enquanto nós vamos continuar aqui na “academia” do Belas-Artes, ele acaba na Academia.

O Café Belas-Artes foi realmente nossa “academia” durante alguns anos. Na esquina seguinte, frente para a antiga Galeria Cruzeiro, era o Café Nice, ponto de reunião de cantores, músicos, compositores da velha-guarda.

Eram dois mundos que não se misturavam. Quando instalaram a Caixa Econômica no local do Belas-Artes, levantamos vôo e fomos pousar na Cinelândia. Iniciava-se a fase do Café Amarelinho. O café existe até hoje, mas p erdeu definitivamente aquelas características de QG literário.

O mesmo grupo do Belas-Artes estava agora acrescido de outros elementos, alguns mais velhos, de outras gerações. Era comum, nas cadeiras de palhinha, na calçada, encontrarmos Murilo Araújo, Álvaro Moreira, Mário de Andrade, (quando de passagem pelo Rio), Raquel de Queirós, José Lins do Rego, Portinari, Graciliano Ramos, Jorge de Lima. Uma tarde fui apresentado a Julio Salusse, o poeta de Os Cisnes.

Jorge de Lima tinha consultório no mesmo edifício do café e era o médico dos escritores e artistas do Amarelinho. Hoje, depois de tantos anos, só lastimo não ter me aproximado do Jorge, participado mais de sua convivência. O grande poeta me pareceu sempre esquivo, silencioso, distante.

No mesmo edifício ficava também a redação de Dom Casmurro, o jornal literário de Brício de Abreu. Quem desejar escrever a história dessa época terá que consultar as coleções de Dom Casmurro. Lembro-me que, na ocasião, um nome novo se projetava ? Joel Silveira, que acabara também de chegar do Norte, e que à maneira de Sergio Porto, depois lírico e satírico, tirava do dia-a-dia da vida da cidade a substância de suas crônicas.

No Amarelinho, reuniam-se ao nosso grupo jovens músicos cheios de idealismo e de planos. Eleazar de Carvalho e José Siqueira são velhos amigos, com quem troquei muitas vezes idéias. Eu estivera na Alemanha, freqüentara a Filarmônica de Berlim, então sob a regência de Furtwaengler, fora a Bayreuth, assistira a Wagner em seu teatro, e muitas vezes lhes sugeri a criação de nossa Orquestra Sinfônica Brasileira, da qual Álvaro Ladeira, cronista de arte, outro amigo, foi secretário por muitos anos.

Falar do Amarelinho é recordar nomes e amigos, poetas, romancistas, jornalistas, pintores, compositores, caricaturistas, cuja convivência, nessa época, enriqueceu de lembranças minha memória: Armando Pacheco, eram dois, o pintor e o jornalista; os Condes, Mendes, Alvarus, Wilson W. Rodrigues, D’Almeida Victor, Cursino Rapôso, Paulo Mac-Dowell, Nélio Reis, Nélson Ferreira, alguns desaparecidos, como Osório Borba, Augusto de Almeida Filho, Amadeu Amaral Júnior, Martins Castelo. Era a minha geração. Não ficou marcada cronologicamente: de 35 ou de 40 -Mas teve seu tempo, foi bem um prolongamento do que se poderia chamar a belle époque.

Como poetas, apenas dois nos fixamos: eu e Vinicius de Morais. Os outros perderam-se na vida, e, distraídos da poesia, enveredaram por múltiplos atalhos. Que sejam felizes!

Fonte:
JG de Araujo Jorge. "No Mundo da Poesia " Edição do Autor -1969

Ademar Macedo (Carnaval em Trova e Soneto e Uma Setilha)


De sábado a terça-feira
cai na folia o país...
Diverte-se a pátria inteira,
sem medo de ser feliz!
–A. A. DE ASSIS/PR–

Quando encontrei desbotado
seu retrato de arlequim
no carnaval do passado,
senti saudade de mim!
–ALFREDO DE CASTRO/MG–

Ah! Esse amor eu queria...
Mas o destino, afinal,
pôs fim em nossa folia,
logo em pleno carnaval!
–CLENIR NEVES RIBEIRO/RJ–

Na loucura de três dias,
vai-se tentando afogar
as frustrações, nostalgias
que a vida deixa ficar...
–CONCEIÇÃO A. C. DE ASSIS/MG–

Nos quatro dias de momo
ante tanta bebedeira,
eu estarei, não sei como,
quando chegar quarta-feira!
–FRANCISCO JOSÉ PESSOA/CE–

Foliões encantadores,
fantasias colossais...
um mesclado de mil cores,
só nos nossos carnavais!
–GLÓRIA MARSON/SP–

Nos três dias de folia,
aquela atração fatal,
não passou da fantasia
de um amor de carnaval!
–GUILHERME MACHADO/RJ–

Os poetas foliões
vestiram as fantasias,
desfilaram nos cordões
declamando poesias.
–HELOISA CRESPO/RJ–

No carnaval da paixão
no quesito “nosso amor”
a nota da comissão
foi um “dez” e com louvor!
–LARISSA LORETTI/RJ–

Sem amor e sem carinho
no carnaval da ilusão,
vou pular frevo sozinho
no bloco da solidão.
–LUIZ GONZAGA ARRUDA/CE–

Na passarela dos sonhos,
num desfile de magia,
passam pierrôs tristonhos,
num carnaval sem folia...
–MARIA CARRIÇO/RN–

Carnaval!... Grande folia.
Vou mostrar o meu segredo,
vou rasgar a fantasia,
cantando meu samba-enredo.
–MIFORI/SP–

Carnaval exige estudo
para quem busca namoro:
escolha bem, pois nem tudo
que está reluzindo é ouro!!!
–MILTON SOUZA/RS–

Nos carnavais desta vida
muitos desfilam, risonhos,
uma versão colorida
dos seus malogrados sonhos.
–ZENAIDE MARÇAL/CE–

UMA SETILHA DE ADEMAR

Hoje eu faço do “repente”
minha grande alegoria;
nos versos de uma setilha
ponho a minha fantasia
para a festa ser completa;
pois carnaval de poeta
não pode faltar poesia.
–ADEMAR MACEDO/RN–

SONETOS:

Uma Vez Sambista... Sempre Sambista
DE: DARLY O. BARROS/SP
PARA: CARMEN OTTAIANO/SP


Se o sangue ferve e a pele se arrepia,
ao som da Escola, em novo samba-enredo,
sem mais rodeios, veste a fantasia
e a máscara, que é bom guardar segredo!

Esquece os males, entra na folia
que é tempo de alegria e de folguedo,
só não te atrases, nossa bateria
vai esquentar seus tamborins mais cedo!

Quero te ver de novo na Avenida,
suada, sorridente, enrouquecida,
rememorando antigos carnavais

e então, findo o desfile, em plena rua,
te ver sambando, ainda, à luz da lua,
com alma leve e um ar de quero mais!...

Poema da Apoteose
–ELISABETH SOUZA CRUZ/RJ–


Tem gente que se diz carnavalesca
pensando no vestir da fantasia...
Há gente com ideia gigantesca
de mascarar a dor numa folia...

Outras existem, de ilusão dantesca,
às margens de uma suposta euforia,
não indo além da gula romanesca
de saciar o sonho por um dia...

O Carnaval, não mais de antigamente,
anda mesclado de prazer urgente,
com gente que não tira os pés do chão!

Mas Carnaval não tem dia nem mês...
é aquele em que se perde a sensatez
na apoteose de uma inspiração!

Perdi Meu Carnaval
–AMILTON MACIEL MONTEIRO/SP–


Brinquei nos carnavais lindos de outrora,
Um tempo bom e muito diferente
De tudo o que se escuta e vê agora
No modo de folgar de tanta gente.

As graciosas marchas, feito a “Aurora”
E a “Jardineira”, mais que de repente
Sumiram da folia, foram embora,
Expulsas num barulho “ensurdecente”...

O romantismo todo que existia
No jogo de confete e serpentina,
Em busca do romance tão sonhado,

Suponho até que entrou em agonia...
Agora é a adrenalina o que domina...
Pra que xodó?... Tá tudo liberado!

Fonte:
Textos enviados pelo Autor

Clevane Pessoa (A Boneca de Pano)


O retalho de fino veludo preto, na banca das “Casas Regente”, tradicional loja de tecidos em “Juiz de Fora” , atraiu a moça. Pensou em cortá-lo em retângulos e neles aplicar flores de fita varicor, o que estava em voga naqueles anos sessenta. Gostava de trabalhos manuais e de criar peças para o seu enxoval. As claras mãos, muitos finas, destacaram-se no negro. O anel bonito, que terminava numa pérola encaixada em garras de ouro branco, faiscou. Presente de Pete, com quem namorava “firme”, como diziam então.

Acabou mandando embrulhar o retalho, pagou e, como sempre, foi à sorveteria da loja, onde os fregueses podiam servir-se gratuitamente de um delicioso sorvete, mais cremoso que o de qualquer outro lugar.

Professorinha recém-nomeada, foi dar aulas em um grupo escolar. Muito ocupada fazendo todo o material didático, já que as escolas estaduais da época possuíam-no muito pouco – confeccionava desde as cadernetas de notas mensais, feitas de cartolina dobradas e decoradas com seus caprichosos desenhos, às provas mimeografadas... Mapas, quadro de pregas para ensino de unidades, dezenas, centenas... Flanelógrafos, corpo humano, fauna e flora! Tudo feito em casa, na grande maioria, mais o plano dos testes... Nas datas comemorativas, dezenas de pequenos brindes e enfeites, alusivo: dia da páscoa, em abril, dia das mães em maio, dias de festas juninas, dia dos pais em agosto, dias da árvore e da entrada da primavera em setembro, dias das crianças e de N. Sra. Aparecida, padroeira do Brasil, em outubro, dia da bandeira em novembro e, em dezembro, as festas de fim de ano, com suas formaturas ou despedidas. Haja papel-cartão, papel-cetim, papel-de-seda, papel fantasia, papel kraft! Haja isopor, cola, aquarela e lápis cera e de cor! Os dedos, machucados de tanto usar tesoura, o rosto com pontos luminosos de brocal, purpurina, as unhas estragando-se.

Mas o prazer de lecionar, agradar à criançada, ver os resultados, mesclado à criatividade que recebera como dom, sobrepujava em muito aquela canseira toda.

Também ganhava presentes, em certas datas, mas, principalmente, no seu aniversário e no dia do professor. Alguns, feitos a capricho, pelas mães, como panos de prato, toalhinhas de crochê. Outros, terríveis, certos bibelôs de porcelana branca, com traços informes e riscos dourados. Alguns insuportáveis perfumes baratos, brincos de plástico vagabundo. Os simplórios ou baratos, como sabonetes. Bichinhos de pelúcia, bombons, cosméticos, principalmente se a mãe era uma “revendedora Avon”.

E broa com carinho, empadinhas sem azeitonas... De vez em quando, havia um pai dono de padaria, uma prendada tia, avó ou mãe confeiteira, doceira, costureira, florista... e, falando em flores, elas vinham aos montes, as de jardins e horta, as arrancadas pelo caminho ou roubadas de vizinhos...

Voltava para casa carregada com esses troféus do carinho que lhe dedicavam, feliz da vida. Uma vez, um aluno quis dar a ela algo inusitado:

- Um gato-coelho, fessora.

- Que é isso, Serginho?

- Um gato com rabo de coelho, todo branco, que pula como coelho.

A mãe dela adorava animais e, acompanhada do garoto, foi à casa dele após a aula. A mãe de Sérgio achou graça porque o animal – uma linda aberração – era a paixão da criança e da família.

- Olha, Eva, ele gosta muito mesmo da senhora, porque em casa é muito ciumento do bichinho.

Sérgio, nos dias de início das aulas, chorava tanto, que, literalmente, ficava com a camisa do uniforme encharcada. Chorava pelos olhos, pelo nariz, pela boca. Às vezes, pela bexiga. Eva fora tão carinhosa, que o conquistara “para sempre”.

- Fessora, eu amo você para sempre!

- Que bom, Serginho, eu também, mas agora, vá para o recreio merendar e brincar...

Se deixasse, ele ficaria olhando-a, sem ir ao pátio com os coleguinhas...

Ele chegou com um sorriso de melancia no rosto moreno, olhos cheios de estrelinha:

- Olha tia, meu gato-coelho!

Ou então, um coelho-gato. O menino tinha razão. Um mistério de cruzamento. Deixou-o contentíssimo, aliviado, quando declinou do presente, com uma desculpa.

- Ah, Serginho, não vou poder levá-lo, porque na minha casa temos dois cachorros e ele vai correr perigo...

Num feriado, arrumando seus guardados, encontrou o retalho, já retalhado, em cinco retângulos menores. Teve a idéia de fazer uma boneca e foi costurando, com ponto caseado miúdo, braços, pernas, tronco.

Braços e pernas, após enrolar cada tecido sobre si mesmo, como rocambole, os primeiros mais apertados para ficarem mais finos e não precisarem de enchimento. Já as pernas, tronco e rosto, receberam espuma de nylon por dentro.

A cabecinha fez com um pedaço de cetim preto. Olhos de botões, boca e nariz bordados, cabelos de lã preta em mil trancinhas, vestido xadrez vermelho “vichy”, avental marinho.

Fez por fazer, talvez para os filhos que tivesse, uma garotinha ou garotinho – afinal, estavam descobrindo que os meninos também podem gostar de brincar de pais. Mas, pronta a Maria Pretinha, pensou nos “filhos diários e resolveu levar a boneca para a escola.

A Maria ficou na bolsa enorme do tipo que as professoras usam para caber toda a tralha didática. De repente, Lu e Marcos saíram aos tapas, sem ouví-la quando pediu que parassem com a encrenca. Aí, lembrou-se da boneca e tirou-a, expondo-a aos olhos curiosos da criançada, que dela se aproximou. Quando os briguentos perceberam que não tinham platéia, também se chegaram. Aí, quase sem mover a boca, como fazem os ventríloquos, mas deixando o som formar-se naturalmente, admoestou Lu e Marcos e então começou a incrível história de amor, empatia imediata, entre os pequenos e Maria Pretinha.

A partir daí, tudo que queria, pedia através da boneca. Num dia em que esqueceu de colocá-la na bolsa, deixando-a pendurada no varal, para tomar um solzinho, foi uma decepção geral. Aninha, de sobrenome alemão e incríveis olhos azuis, passou todo a tarde a olhar para o lugar, sobre a escrivaninha, onde Maria Pretinha ficava sentada, costas apoiadas em livros. Eva notou que, após as perguntas iniciais, o resto da turma, compreendendo sua explicação de que ontem chovera dentro da grande bolsa de palha e, se não secasse, a boneca iria mofar, aquietou-se, participando das atividades do dia. Aninha, não: ora suspirava, ora enchia os belos olhinhos de lágrimas, olhando de vez em quando para o lugar sem bonequinha.

Após a aula final, a garotinha a esperou:

- “Fessora”, amanhã a senhora jura que traz a Maria Pretinha?

- Claro, Aninha! Quando eu chegar em casa, vou contar a ela que você sentiu sua falta...

- Eu fiquei morrendo de saudades dela...

- “Vivendo de saudade”, pensou Eva, fazendo um carinho nos cachos cor-de-mel e preparando-se para ir embora: não podia perder o ônibus, pois Pete saía do trabalho e corria para esperá-la no ponto final, de onde iam caminhando de mãos dadas, lentamente, ele falando de uma tal CLT, ser ou não optante da lei e ela contando dos aluninhos do pré-primário.

No fim do ano, quando as aulas iam encerrar-se, ela sabia que não ia voltar porque, casando-se, ia mudar de cidade. Fez uma festinha para sua classe, entregou a “Aninha Cachinhos de Ouro”, como chamava a sensível menina, um pacote embrulhado em papel fantasia. Havia levado um presentinho para cada um dos alunos, deixando-a por último. Aí, abraçando-a, disse-lhe ao ouvido:

- Só abra quando chegar em casa, porque seu presente é especial, eu não tinha para todo mundo.

Aninha entendeu, surpresa, mas com medo de acreditar, correu para casa e no caminho rasgou um pedaço do embrulho... Acertara: os pés de Maria Pretinha apareceram fazendo seu coração bater mais forte.

Eva, parece que adivinhou ao lhe dar o presente; só teve dois filhos, homens, que, ensinados pelo avô, tinham horror a bonecas, “coisa de menina, mãe”... Mas Eva nunca esqueceu Aninha, nem esta a sua Maria Preta…

Fonte:
Jornal de Poesia

Ademar Macedo (Mensagens Poética n. 488)

Uma Trova de Ademar   Uma Trova Potiguar Eu construo o meu presente e alguns atos do passado, trazendo o “trigo semente” , deixando o joio queimado!... –TARCISIO JOSÉ FERNANDES/RN– ...E Suas Trovas Ficaram A missão será cumprida quer tu acertes ou falhes Deus traça as linhas da vida e o destino, os seus detalhes... –ADALBERTO DUTRA RESENDE/PR– Uma Trova Premiada 2009 - Cantagalo/RJ Tema: SERTÃO - 2º Lugar Quando a chuva da bonança jorra prata pelo chão, as lágrimas de esperança brilham no olhar do sertão. –ADILSON MAIA/RJ– Simplesmente Poesia Namorada –EFIGÊNIA COUTINHO/SC– Queria ser sua namorada Não tenho como não ser Já sou muito mais que isso Sou certa de me perder Sem perder um só cuidado Não sei o que me espera Perco-me pelo que quero Nem me acabo de perder Porque mais me perder espero! Estrofe do Dia Olho a tela do tempo e me torturo vejo o filme do meu inconsciente, meu passado maior que o meu presente meu presente menor que o meu futuro; se a velhice é doença eu não me curo, que os três males que atacam um ancião: são carência, desprezo e solidão, e é difícil escapar dessa trindade; se eu pudesse comprava a mocidade nem que fosse pagando a prestação. –GERALDO AMÂNCIO/CE– Soneto do Dia Lembranças –ALMIRA GUARACY REBÊLO/MG– Lembranças memoráveis do passado, que se perderam pela vida afora, voltam todas, em bando alvoroçado, a confortar-me, nesta extrema hora. A infância, brincadeiras no sobrado, algazarra de pássaros na aurora, minha mãe ao piano; eu, a seu lado, dormindo ao som da música que aflora. Fogão de lenha, a carne no braseiro, desvario de frutas no terreiro, cirandinha de roda na calçada... Do amor primeiro, o mágico esplendor e, no final, o derradeiro amor, que trouxe o sol da vida à minha estrada. Fonte: Textos enviados pelo Autor

Ialmar Pio Schneider (A Primavera...)


Dentre as estações do ano, principalmente aqui no sul, onde são mais definidas, é a que traz amenidades, prenunciando o próximo verão de sol ou de chuva, mas também de águas salgadas e areia, aos que se dirigem às praias, tão convidativas nos meses de dezembro, janeiro, fevereiro e março. Nesse período, os que têm condições de fazê-lo, vão ao litoral, nem que seja por quinze dias, a fim de refazer-se um pouco da estafa adquirida no dia-a-dia.
Outrossim, representa também a quadra da vida, quando se está na adolescência, tão decantada pelos poetas, tais como Casimiro de Abreu e Pe. Antônio Tomás que nos deixou o soneto inesquecível:

“CONTRASTES” –

“Quando partimos, no verdor dos anos,
da vida pela estrada florescente,
as esperanças vão conosco à frente
e vão ficando atrás os desenganos.

Rindo e cantando, céleres e ufanos,
vamos marchando descuidosamente...
Eis que chega a velhice de repente,
desfazendo ilusões, matando enganos.

Então nós enxergamos claramente
como a existência é rápida e falaz,
e vemos que sucede exatamente

o contrário dos tempos de rapaz:
- os desenganos vão conosco à frente,
e as esperanças vão ficando atrás.”

Isto me leva a meditar num passado recente, porque a vida é efêmera, e não faz muito navegava nessa fase, percorrida sem grandes lances aventureiros. Conservo ainda enraizados aqueles devaneios que me assaltavam o pensamento na juventude pacata e laboriosa. Sempre lutando por dias melhores, desde a infância, consegui algum progresso relativo, o que me leva a acreditar no estudo e no trabalho. E muitas vezes me surpreendo ao deparar com acontecimentos já presenciados outrora, que pareciam sepultados na tumba do tempo, mas que surgem avivados qual uma brasa encoberta pelas cinzas. São as reminiscências que nos fazem, enfim, reviver alguns momentos mais representativos ao longo de nossa caminhada pelo mundo. Aos treze anos de idade, quando praticava datilografia, cujo ensino me era ministrado por uma freira, numa sala da escola em que concluía o curso primário, há mais de quarenta anos, havia um piano no qual algumas meninas aprendiam a tocar. De uma delas recordo bem; as outras me parecem névoas que se dissiparam. Embora minha paixão pela música, meu dever era a datilografia e não o piano. Hoje só me resta dizer: “Parece que foi ontem !” São os desígnios da existência...
____________________________
Poeta e cronista
Publicado em 29 de setembro de 1999 - no Diário de Canoas.

Cecília Meireles (Viagem e Vaga Música)


Com o livro Viagem, de 1938, Cecília Meireles encontra seu estilo definitivo. O verso melódico sustenta os motivos fundadores de sua poética – sonho, solidão, mar, canção, melancolia, nuvens, céu, morte...

Obra que consagra a autora, além da interpretação de uma trajetória espiritual, Viagem apresenta poemas que refletem sobre o fazer poético, em indagações ainda encontradas em livros posteriores.

A obra Viagem, juntamente com Vaga Música, inscrevem-se no panorama do Modernismo brasileiro e assinalam sua singularidade primordial. São poemas marcados pela engrandecimento dos elementos mais simples da existência, os quais adquirem significação simbólica.

A obra, pela capacidade lírica inovadora, retrata uma permanente viagem interior; intimista e introspectiva, sugerindo num tom leve e delicado, temas de solidão, melancolia, fuga pelo sonho, o vazio do existir, saudades e sofrimento. Essas características percorrerão toda sua obra lírica.

Poetisa da fugacidade, da precariedade, da provisoriedade, Cecília Meireles, desde Viagem, marca essa noção capital de fluidez em vários dos elementos da natureza que surgem ao longo de sua poesia, dentro de um fluxo mais amplo que é o do próprio canto.

Utilizando-se de jogos de palavras, metáforas, sinestesias, dentre outras figuras de linguagem, o eu-lírico investiga o processo de criação literária. Tal questão é tematizada em várias poesias, como se verifica no poema MOTIVO:

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
- não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
- mais nada.


Viagem é composto por doze poemas, que podem ser interpretados como doze etapas de uma trajetória espiritual, onde vida e poesia se confundem, da mesma maneira que a poeta e a natureza. Formalmente, convivem lado a lado versos de sete e oito sílabas e versos livres.

VIAGEM

Fez tanto luar que eu pensei em teus olhos antigos
e nas tuas antigas palavras.
O vento trouxe de longe tantos lugares em que estivemos
que tornei a viver contigo enquanto o vento passava.

Houve uma noite que cintilou sobre o teu rosto
e modelou tua voz entre as algas.
Eu moro, desde então, nas pedras frias que o céu protege
e estudo apenas o ar e as águas.

Coitado de quem pôs sua esperança
nas praias fora do mundo...
- Os ares fogem, viram-se as água,
mesmo as pedras, com o tempo, mudam.


Há em Viagem, em Vaga Música (1942), as claridades clássicas, as melhores sutilezas do gongorismo, a nitidez dos metros e dos consoantes parnasianos, os esfumados de sintaxe e as toantes dos simbolistas, as aproximações inesperadas dos super-realistas. Tudo bem assimilado e fundido numa técnica pessoal, segura de si e do que quer dizer. Vaga música marcou definitivamente o clímax de sua carreira como escritora. A obra mostra sua poesia contínua que avança para uma virtuosidade implacável, com uma preocupação crescente com a imagem do mar, sugerindo a fluidez plástica e a adaptação de sua personalidade interna.

Uma das formas poéticas mais utilizadas em Vaga música é a da canção, o que vem indicado, à maneira antiga, já nos títulos: "Pequena canção da onda", "Canção da menina antiga", "Canção excêntrica", "Canção quase inquieta", "Canção do caminho", "Canções do mundo acabado", "Canção quase melancólica", "Canção de alta noite", "Canção mínima", entre muitas outras semelhantes.

Essa forma é na verdade largamente usada em toda a obra de Cecília Meireles, não constituindo uma peculiaridade apenas desse livro.

Note o poema seguinte extraído de Vaga música:

PEQUENA CANÇÃO

Pássaro da lua,
que queres cantar,
nessa terra tua,
sem flor e sem mar?

Nem osso de ouvido
Pela terra tua.
Teu canto é perdido,
pássaro da lua...

Pássaro da lua,
por que estás aqui?
Nem a canção tua
precisa de ti!


No poema escolhido, algumas características da canção aparecem nitidamente: a forte atuação do som e do ritmo, a impregnação da realidade exterior pela emoção, o apagamento dos fatos, a indeterminação quanto ao tempo e ao espaço. Essas características se ligam intimamente. Assim, a musicalidade mais enfatizada na canção indica a fusão entre o eu e o mundo exterior. A alma invade o mundo objetivo, que aparece apenas como um reflexo daquela. Isso leva a um apagamento dos contornos da vida exterior e, conseqüentemente, a frases mais brandas, mais musicais, pois, mais do que definir um acontecimento, busca-se criar uma atmosfera emocional, para o que a música contribui fortemente. Esse relaxamento dos contornos implica também o relaxamento das noções de tempo e espaço, elementos sempre difíceis de precisar numa canção, que parece no mais das vezes se desenvolver no sem-tempo e no sem-espaço. É o sem-tempo e o sem-espaço da vida interior.

Fonte:
Passeiweb

Efigênia Coutinho/SC (Imortalidade)


Nutrindo suspeitas que turvam a mente
Exibes essa fúria que cevas corroendo
Por essas atitudes que tens assumido...
Por que?Triste de mim! Por que não te risco?

Na santa redenção, almejo dia e hora
Nesta parte do Universo que desmaia.
Oh! que venha minha redenção declinar,
Opressão desumana que me devora!...

Acorde Cristal; que, ao frio e mudo,
Contra vontade, os sonhos ocultando.
Onde encontrar socorro para o Amor!?
Numa ardente estação de fino clamor.

Solta-te dos grilhões para benevolência,
Ao longo do tempo a gemer clemência
Rompendo Futurecendo, vossa Imortalidade,
Aos sons prazenteiros da doce liberdade!...

Fonte:
Poema enviado pela autora

Lygia Fagundes Telles (O Encontro)


Em redor, o vasto campo. Mergulhado em névoa branda, o verde era pálido e opaco. Contra o céu, erguiam-se os negros penhascos tão retos que pareciam recortados a faca. Espetado na ponta da pedra mais alta, o sol espiava através de uma nuvem.

"Onde, meu Deus?! - perguntava a mim mesma - Onde vi esta mesma paisagem, numa tarde assim igual?"

Era a primeira vez que eu pisava naquele lugar. Nas minhas andanças pelas redondezas, jamais fora além do vale. Mas nesse dia, sem nenhum cansaço, transpus a colina e cheguei ao campo. Que calma! E que desolação. Tudo aquilo - disso estava bem certa - era completamente inédito para mim. Mas por que então o quadro se identificava, em todas as minúcias, a uma imagem semelhante lá nas profundezas de minha memória? Voltei-me para o bosque que se estendia à minha direita. Esse bosque eu também já conhecera com sua folhagem cor de brasa dentro de uma névoa dourada. “Já vi tudo isto, já vi... Mas onde? E quando?”

Fui andando em direção aos penhascos. Atravessei o campo. E cheguei à boca do abismo cavado entre as pedras.

Um vapor denso subia, como um hálito daquela garganta de cujo fundo insondável, vinha um remotíssimo som de água corrente. Àquele som eu também conhecia. Fechei os olhos. “Mas se nunca estive aqui! Sonhei, foi isso? Percorri em sonho estes lugares e agora os encontro, palpáveis, reais? Por uma dessas extraordinárias coincidências teria eu antecipado aquele passeio enquanto dormia?”

Sacudi a cabeça, não, a lembrança - tão antiga quanto viva - escapava da inconsistência de um simples sonho. Ainda uma vez fixei o olhar no campo enevoado, nos penhascos enxutos. A tarde estava silenciosa e quieta. Contudo, por detrás daquele silêncio, no fundo daquela quietude eu sentia qualquer coisa de sinistro. Voltei-me para o sol que sangrava como um olho empapando de vermelho a nuvenzinha que o cobria. Invadiu-me a obscura sensação de estar próxima de um perigo. Mas que perigo era esse e em que consistia?

Dirigi-me ao bosque. E se fugisse? Seria fácil fugir, não? Meu coração se apertou, inquieto. Fácil, sem dúvida, mas eu prosseguia implacável como se não restasse mesmo outra coisa a fazer senão avançar. “Vá-se embora depressa, depressa!” - a razão ordenava enquanto uma parte do meu ser, mergulhada numa espécie de encantamento, se recusava a voltar.

Uma luz dourada filtrava-se por entre a folhagem do bosque que parecia petrificado. Não havia a menor brisa soprando por entre as folhas enrijecidas, numa tensão de expectativa.

“A expectativa está só em mim” - pensei, triturando entre os dedos uma folha avermelhada. Veio-me então a certeza absoluta de já ter feito várias vezes esse gesto enquanto pisava naquele -mesmo chão que arfava sob os meus sapatos. Enveredei por entre as árvores. - “E nunca estive aqui, nunca estive aqui” - fui repetindo a aspirar o cheiro frio da terra. Encostei-me a um tronco e por entre uma nesga da folhagem vislumbrei o céu pálido. Era como se o visse pela última vez.

“A cilada” - pensei diante de uma teia que brilhava suspensa entre dois galhos. No centro, a aranha. Aproximei-me: era uma aranha ruiva e atenta, à espera. Sacudi violentamente o galho e desfiz a teia que pendeu em farrapos. Olhei em redor, assombrada. E a teia para a qual eu caminhava, quem? quem iria desfaze-la? Lembrei-me do sol, lúcido como a aranha. Então enfurnei as mãos nos bolsos, endureci os maxilares e segui pela vereda.

“Agora vou encontrar uma pedra fendida ao meio.” E cheguei a rir, entretida com aquele estranho jogo de reconhecimento: lá estava a grande pedra golpeada, com tufos de erva brotando na raiz da fenda. “Se for agora por este lado, vou encontrar um regato.” Apressei-me. O regato estava seco mas os pedregulhos limosos indicavam que provavelmente na próxima primavera a água voltaria a correr por ali.

Apanhei um pedregulho. Não, não estava sonhando. Nem podia ter sonhado, mas em que sonho podia caber uma paisagem tão minuciosa? Restava ainda uma hipótese: e se eu estivesse sendo sonhada? Perambulava pelo sonho de alguém, mais real do que se estivesse vivendo. Por que não? Daí o fato estranhíssimo de reconhecer todos os segredos do bosque, segredos que eram apenas do conhecimento da pessoa que me captara em seu sonho. “Faço parte de um sonho alheio” - disse e espetei um espinho no dedo. Gracejava mas a verdade é que crescia minha inquietação: “se for prisioneira de um sonho, agora escapo.” Uma gota de sangue escorreu pela minha mão, a dor tão real quanto a paisagem.

Um pássaro cruzou meu caminho num vôo tumultuado. O grito que soltou foi tão dolorido que cheguei a vacilar num desfalecimento, e se fugisse? E se fugisse? Voltei-me para o caminho percorrido, labirinto sem - esperança. “Agora é tarde!” - murmurei e minha voz avivou em mim um último impulso de fuga. “Por que tarde?”

A folha que resvalou pela minha cabeça era a seca advertência que colhi no ar e fechei na mão, que eu não buscasse esclarecer o mistério, que não pedisse explicações para o absurdo daquela tarde tão inocente na sua aparência. Tinha apenas que aceitar o inexplicável até que o nó se desatasse, na hora exata.
Enveredei por entre dois carvalhos. Ia de cabeça baixa, o coração pesado mas as passadas eram enérgicas, impelida por uma energia que não sabia de onde vinha. “Agora vou encontrar uma fonte. Sentada ao lado, está uma moça.”

Ao lado da fonte, estava a moça vestida com um estranho traje de amazona. Tinha no rosto muito branco uma expressão tão ansiosa que era evidente estar à espera de alguém. Ao ouvir meus passos, animou-se para cair em seguida no maior desalento.

Aproximei-me. Ela lançou-me um olhar desinteressado e cruzou as mãos no, regaço.

- Pensei que fosse outra pessoa, estou esperando uma pessoa...

Sentei-me numa pedra verde de musgo, olhando em silêncio seu traje completamente antiquado: vestia uma jaqueta de veludo preto e uma extravagante saia rodada que lhe chegava até a ponta das botinhas de amarrar. Emergindo da gola alta da jaqueta destacava-se a gravata de renda branca, presa com um broche de ouro em forma de bandolim. Atirado no chão, aos seus pés, o chapéu de veludo com uma pluma vermelha.

Fixei-me naquela fisionomia devastada. “Já vi esta moça, mas onde foi? E quando?...” Dirigi-me a ela sem o menor constrangimento, como se a conhecesse há muitos anos.

- Você mora aqui perto?

- Em Valburgo - respondeu sem levantar a cabeça.

Mergulhara tão profundamente nos próprios pensamentos, que parecia desligada de tudo, aceitando minha presença sem nenhuma surpresa, não notando sequer o disparatado contraste de nossas roupas. Devia ter chorado. E agora ali estava numa patética exaustão, as mãos abandonadas no regaço, alguns anéis de cabelo caindo pelo rosto. Nunca criatura alguma me pareceu tão desesperada, tão tranqüilamente desesperada, se é que cabia tranqüilidade no desespero. Perdera toda a esperança e decidira resignar-se. Mas sentia-se a fragilidade naquela resignação.

- Valburgo, Valburgo... - fiquei repetindo. O nome não me era desconhecido. E não me lembrava de nenhum lugar com esse nome em toda aquela região.

- Fica logo depois do vale. Não conhece Valburgo?

- Conheço - respondi prontamente. Tinha agora a certeza de que esse lugar não existia mais.

Com um gesto indiferente, ela tentou prender o cabelo que desabava do penteado alto. Afrouxou ansiosamente o laço da gravata, como se lhe faltasse o ar. O bandolim de ouro pendeu, repuxando a renda. “Esse broche... Mas já não vi esse mesmo broche nessa mesma gravata?!”

- Eu esperava uma pessoa - disse com esforço, voltando o olhar dolorido para o cavalo preso a um tronco.
- Gustavo?

Esse nome escapou-me com tamanha espontaneidade que me assustei, era como se estivesse sempre em minha boca, aguardando aquele instante para ser dito.

- Gustavo - repetiu ela e sua voz era um eco. Gustavo.

Encarei-a. Mas por que ele não tinha vindo? “E nem virá, nunca mais. Nunca mais.”

Fixei obstinadamente o olhar naquela desconcertante personagem de um antiquíssimo álbum de retratos. Álbum que eu já folheara muitas vezes, muitas. Pressentia agora um drama com cenas entremeadas de discussões tão violentas, lágrimas. A cena esboçou-se esfamadamente nas minhas raízes, cena que culminou naquela noite das vozes. exasperadas. De homens. De inimigos. Alguém fechou as janelas da pequena sala frouxamente iluminada por um candelabro. Procurei distinguir o que diziam quando através da vidraça embaçada vi delinear-se a figura de um velho magro, de sobrecasaca preta, batendo furiosamente a mão espalmada na mesa enquanto parecia dirigir-se a uma máscara de cera que flutuava na penumbra.

Moveu-se a máscara entrando na zona de luz. Gustavo! Era Gustavo. A mão do velho continuou batendo na mesa e eu não podia me despregar dessa mão tão familiar com suas veias azuis se enroscando umas nas outras numa rede de fúria. Nos punhos de renda de sua camisa destacavam-se com uma nitidez atrozos rubis de suas abotoaduras. Um dos homens avançou. Foi Gustavo? Ou o velho? A garrucha avançou também e a cena explodiu em, meio de um clarão. Antes do negrume total vi por último as -abotoaduras brilhando irregulares como gotas de sangue.

Senti o coração confranger-se de espanto, “quem foi que atirou, quem foi?!” Apertei os nós dos dedos contra os olhos. -Era quase insuportável a violência com que o sangue me golpeava as fontes.

- Você devia voltar para casa.
- Que casa? - perguntou ela abrindo as mãos.

Olhei para suas mãos. Subi o olhar até seu rosto e fiquei sem saber o que dizer: era parecidíssima com alguém que eu conhecia tanto.

- Por que não vai procurá-lo? - lembrei-me de perguntar. Mas não esperei resposta. A verdade é que ela também suspeitava de que estava tudo acabado.

Escurecia. Uma névoa roxa - e que eu não sabia se vinha do céu ou do chão - parecia envolvê-la numa aura. Achei-a impregnada da mesma falsa calmaria da paisagem.

-Vou-me embora - disse apanhando o chapéu.

Sua voz chegou-me aos ouvidos bastante próxima. Mas singularmente longínqua. Levantei-me. Nesse instante, soprou um vento gelado com tamanha força que me vi enrolada numa verdadeira nuvem de folhas secas e poeira. A ramaria vergou num descabelamento desatinado. Verguei também tapando a cara com as mãos. Quando consegui abrir os olhos ela já estava montada. O mesmo vento que despertara o bosque, com igual violência arrancou-a daquela apatia: palpitava em cima do cavalo tão elétrico quanto as folhas vermelhas rodopiando em redor. Espicaçado, o animal batia com os cascos nos pedregulhos, desgrenhado, indócil. Quis retê-la..

- Há ainda uma coisa!

Ela então voltou-se para mim. A pluma vermelha de seu chapéu debatia-se como uma labareda em meio da ventania. Seus olhos eram agora dois furos na face de um tom acinzentado de pedra.

- Há ainda uma coisa - repeti agarrando as rédeas do cavalo. Ela arrancou as rédeas das minhas mãos e chicoteou o cavalo. Recuei. Aquela chicotada atingiu em cheio o mistério. Desatou-se o nó na explosão da tempestade. Meus cabelos se eriçaram. Era comigo que ela se parecia! Aquele rosto era o meu.
- Eu fui você - balbuciei. - Num outro tempo eu fui você! - quis gritar e minha voz saiu despedaçada. Tão simples tudo, por que só agora entendi?... O bosque, a aranha, o bandolim de ouro pendendo da gravata, a pluma do chapéu, aquela pluma que minhas mãos tantas vezes alisaram... E Gustavo? Estremeci. Gustavo! A saleta esfumaçada, se fez nítida. Lembrei-me do que tinha acontecido. E do que ia acontecer.
- Não! - gritei, puxando de novo as rédeas. Um raio chicoteou o bosque com a mesma força com que ela chicoteou o cavalo. Ele empinou, imenso, negro, os olhos saltados, arrancando-se das minhas mãos. Estatelada, vi-o fugir por entre as árvores.

Fui atrás. O vento me cegava. Espinhos me esfrangalhavam a roupa. Mas eu corria, corria alucinadamente na tentativa de impedir o que já sabia inevitável. Guiava-me a pluma vermelha que ora desaparecia, ora ressurgia por entre as árvores, flamejante na escuridão. Por duas vezes senti o cavalo tão próximo que poderia tocá-lo se estendesse a mão. Depois o galope foi se apagando até ficar apenas o uivo do vento.
Assim que atingi o campo, desabei de joelhos. Um relâmpago estourou e por um segundo, por um brevíssimo segundo, consegui vislumbar ao longe a pluma debatendo-se ainda. Então gritei, gritei com todas as forças que me restavam. E tapei os ouvidos para não ouvir o eco de meu grito misturar-se ao ruído pedregoso de cavalo e cavaleira se despencando no abismo.