terça-feira, 20 de novembro de 2012

Geraldo Majela Bernardino Silva (Funções da Mensagem Literária) Parte I


PARTE  I

1. Primeiras Considerações:

1.1 - Nesse estudo, teremos como objetivo final a determinação das funções da mensagem literária, com base na compreensão e interpretação de textos literários em verso e em prosa. De início, não examinaremos apenas textos literários, mas consideraremos aqueles que sejam veiculadores de mensagens nas mais variadas situações de comunicação linguística oral e escrita.

1.2 - Como vamos empregar constantemente o termo “função”, convém estabelecer o sentido dessa palavra. Para tanto, consideremos um objeto conhecido de todos - uma poltrona.Para quê serve uma poltrona colocada em uma sala-de-estar? A resposta a essa pergunta vai determinar a FUNÇÃO ou as funções da poltrona. Bem, a poltrona serve basicamente de apoio para sentar, ou “para sentar e recostar”. Mas essa mesma poltrona pode também servir como objeto decorativo para a sala. Temos então pelo menos duas funções para um mesmo objeto: “servir para sentar”, que é uma função utilitária, e “servir como objeto de decoração”, que é uma função estética. E uma não exclui a outra.

1.3 - Se pretendemos conhecer as funções da literatura, seria bom pensar primeiro nas funções da linguagem, pois, como você já deve saber, a literatura é um tipo de comunicação artística que se faz com palavras, ou seja, a mensagem literária se configura por meio da linguagem verbal.

1.4 - Assim como no exemplo da poltrona, observaremos mais de uma função (e não apenas duas, como no exemplo dado) para a linguagem. E essas funções serão definidas a partir dos diversos propósitos do emissor, nas várias situações de emprego da linguagem.

1.5 - Nunca é demais relembrar que o processo de comunicação pressupõe emissor, recebedor e mensagem. Quando se trata de comunicação lingüística, a mensagem se traduz por palavras estruturadas em frases. O emissor será o falante e recebedor o ouvinte, em situações de comunicação em língua oral. Utilizando-se a língua escrita, o emissor será “quem escreve” e o recebedor será será o leitor,“quem lê”. E em qualquer uma das situações de comunicação lingüística -oral ou escrita- é possível determinar as funções da linguagem como veremos a seguir.

1.6 - Ainda antes de iniciarmos a nomeação das funções, é de grande importância termos noção exata do que vem a ser LINGUAGEM DENOTATIVA OU REFERENCIAL e LINGUAGEM CONOTATIVA:

LINGUAGEM DENOTATIVA OU REFERENCIAL

- Caracteriza-se por enunciar juízos e raciocínios de maneira objetiva, sem manifestar o interesse ou emoção que possam acompanhá-los, nem denunciar ligação alguma com as circunstâncias.

- É a linguagem lógica, intelectiva, ideal para a exposição científica. Nada fica subentendido.

- O que importa é a clareza e a precisão, a exatidão das informações. Nada precisa ser repetido.

- As construções lingüísticas vigentes e uma entonação menos modulada bastam.

- Cada palavra é empregada com sua significação permanente e precisa, isto é, em sentido direto.

DENOTAÇÃO: - procura dar às palavras o sentido comum que todos compreendemos facilmente.

- é a orientação para um só significado, conhecido por todos.

Continua…

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 732)



Uma Trova de Ademar

Por ter uma fé suprema
não sofrerei agonia...
Se eu sinto uma dor extrema,
dou-lhe injeções de poesia!
–Ademar Macedo/RN–

Uma Trova Nacional  

Nesta vida a mocidade,
tal qual roseiras viçosas,
dá botões na flor da idade
antes de encher-se de rosas!
–Myrthes Mazza Masiero/SP–

Uma Trova Potiguar  

A lua cheia de agosto
é de uma beleza infinda...
nos olhos de um lindo rosto
é duas vezes mais linda.
–Djalma Mota/RN–

Uma Trova Premiada  

2012 - Cantagalo/RJ
Tema : ESPAÇO - 13º Lugar

Ventre Materno... o espaço
da semente em gestação,
onde Deus fez Seu regaço
em amor à Criação!

–Maria da C. Fagundes/PR–

...E Suas Trovas Ficaram  

Saudade, meu bem, existe
nessa distância sem fim!
- É tudo aquilo de triste
que te separa de mim...
–Aparício Fernandes/RN–


U m a P o e s i a  

Hoje eu digo nesta minha inquietude
“com carência de amor sobra virtude”
no reflexo da alma do meu ser;
e a esperança ao abismo das lamúrias,
faz chagar neste peito das injúrias
esse amor que reprime em não poder...
–Isaac Jordão/RN–

Soneto do Dia  

O BATISMO DO POETA.
–Gilson Faustino Maia/RJ–

O mar era revolto, a tempestade
parecia querer o fim de tudo...
Nuvens cinzentas lá de um céu sisudo,
despejava o seu pranto. Que maldade!

Dizia um lenço branco, da cidade:
-Será grande o sofrer, eu não me iludo!
Enquanto navegava, o barco, mudo,
diante da cruel fragilidade.

E gritava a razão, muito inquieta:
-Segure o leme, aguente coração,
é preciso alcançar a nova meta,

embora não pareça a solução!
Era o batismo do jovem poeta,
Timoneiro da triste embarcação.

domingo, 18 de novembro de 2012

Haicai 20 - Wagner Marques Lopes (MG)


João A. Carrascoza (O Segredo do Casco da Tartaruga)


Logo que aprendeu a ler, o menino começou a fazer descobertas. Um dia estava folheando um livro e se deparou com a palavra "réptil". Procurou no dicionário e se surpreendeu com o significado: animal que se arrasta. Cobras, por exemplo. Pensava que réptil tinha a ver com rapidez e era justamente o contrário. O pai riu de seu espanto e disse que as tartarugas também eram répteis. Aliás, uma lenda chinesa afirmava que Deus escrevera o segredo da vida no casco de uma tartaruga.

O menino gostou dessa escrita de Deus, que utilizou o casco da tartaruga como se fosse uma folha de papel. O pai lembrou que aprender a ler nos livros era só o começo. Com o tempo, o filho poderia ler no rosto de uma pessoa sua história inteirinha. E bastaria observar os olhos de um amigo para ver se neles brilhava a felicidade. Ou tocar as mãos de um homem do campo para conhecer seus sofrimentos. 

Mas o menino, curioso, queria mesmo era saber qual o segredo da vida. Por isso, começou a se interessar pela vida das tartarugas. Conheceu a tartaruga-de-couro, cujo casco parecia uma bola de capotão. A tartaruga-oliva, que lembrava o verde das azeitonas, e a tracajá, típica da Amazônia. Descobriu que a tartaruga-de-pente tinha esse nome porque de sua carapaça se faziam pentes, bolsas e aros para óculos. E aprendeu tudo sobre a tartaruga-cabeçuda, sobre a tartaruga-gigante, atração das Ilhas Galápagos, e sobre a Ridley, das praias da Costa Rica.

Quanto mais estudava, mais o menino se convencia de que realmente poderia descobrir a escrita de Deus naquelas criaturas que carregavam a casa nas costas. Elas tinham carapaças misteriosas, com desenhos estranhíssimos, círculos coloridos, arestas longitudinais. Algumas até pareciam pintura.

O menino foi crescendo e se tornou especialista em tartarugas. Sabia distinguir uma adolescente de uma adulta e conhecia como ninguém a desova das espécies marinhas no litoral. Mas também descobriu que, assim como procurava o segredo da vida no casco das tartarugas, outras pessoas buscavam a mesma coisa em lugares diferentes: no pulsar das estrelas, no canto dos pássaros, no silêncio dos olhares, no cheiro dos ventos, nas linhas das mãos, no fim do arco-íris. Tudo ao redor podia ser lido, sorriu ele, lembrando-se das palavras de seu pai. E só o tempo, como um professor que pega na mão do aluno, ensinava essa lição, enquanto as pessoas iam fazendo suas descobertas bem devagarzinho — como as tartarugas. Talvez estivesse aí o segredo. 

Fonte:
Revista Nova Escola

Arthur Nestrovski (As Três Educações de João Cabral de Melo Neto)


 “Só duas coisas”, dizia ele, conseguiram levá-lo a um poema: “o Pernambuco” e “a Andaluzia”. Sertão e Sevilha são os dois pólos entre os quais vem se estender o arco dessa poesia, vista em retrospecto pelo próprio poeta pernambucano, ex-cônsul brasileiro na Espanha. Sertão e Sevilha tem outro sentido, ali: um sentido que só se aprende com João Cabral, e que é hoje patrimônio da nossa cultura.

 Educação pela pedra, escola das facas: talvez só um escritor nascido e criado num ambiente de português tão rico, como Pernambuco, pudesse se disciplinar para chegar a tamanha magreza da língua. A “elocução horizontal de seus versos” não permite enlevo e desbragamento; nem mesmo a retórica de seu mestre e colega Drummond parece suficientemente “pedra” para as pedras no meio do caminho e por todos os lados da poesia de Cabral.

 À sua voz “inenfática, impessoal”, corresponde uma “lição de moral”, ou “resistência fria”, que pôde se traduzir em resistência enfática nos anos em que isso se impôs. A preocupação social na sua poesia nem sempre está explícita, mas nunca fica longe das “fábulas” de “um arquiteto” diurno e solar, votado ao “ar luz razão certa” – seja nas formas (o que é quase um mandamento dessa geração), seja (o que é mais difícil e mais raro) nos sentidos da literatura.

 O ar e a luz da Espanha, parentes distantes do agreste, fazem brotar nessa poesia outra vivacidade. A associação entre Sevilha e algo que o próprio Cabral chama “existência fêmea” é constante. Não seria preciso escrever estudos sobre uma “bailadora andaluza” para descobrir, em versos, essa energia nova da percepção. Mas a coincidência da vida espanhola da imaginação com a Espanha em si transporta Cabral para uma outra metade da sua poesia. São poucos os que vêm nela um repertório comparável ao primeiro; mas que leitor não habita, hoje, dentro de si, esse outro país que foi João Cabral quem nos mostrou?

 Foi lá, também, que ele pôde enfrentar, de frente, uma terceira educação: depois da pedra e das facas, e depois de Andaluzia, a educação pela (ou para) a morte. Volta aos Agrestes, depois, mas volta com olho viajado. Volta “às mesmas coisas e loisas”, num mesmo “não-verso de oito sílabas”, que “apaga o verso e não soa”. Como em Elisabeth Bishop, ou Paul Valéry, poetas que ele admirava, sua linguagem mais madura “não agranda e nem diminui”. É uma lente que filtra o essencial, “que todos vemos mas não vemos / até o chegar a falar dele”.

 Juntamente com Drummond, Cabral foi, por consenso, o maior poeta da língua brasileira contemporânea. Mas fora do âmbito da nossa literatura sua poesia não é bem conhecida, a despeito de prêmios e traduções. E mesmo para nós não é tão clara a dimensão que atingirá, vista como um todo, agora que se pode falar de Obras Completas. Sua dicção foi muito imitada, e as imitações tendem a perturbar a leitura do original. Mas não se disputa a força de dezenas e dezenas desses poemas; e o cânone do “melhor” Cabral ainda pode se alargar, à medida que formos aprendendo a ler sua poesia.

 A presença de Cabral na cultura brasileira era discreta nos gestos, mas tinha a autoridade modesta de sua grandeza, que ninguém contesta. Sua poesia há muito já se deu para as recriações da leitura e do comentário, que não vão acabar nunca. Sempre respeitoso, o poeta manteve distância de polêmicas, e preferiu a solidão de sua própria literatura. 

 Saiu sem alarde e sem choro, fiel à pedra e às facas, e ao sol a pino de Sevilha. A terceira educação já se anunciava há mais de cinqüenta anos, e pode servir de epígrafe para sua vida e sua obra: “Saio de meu poema / como quem lava as mãos”.

Fonte:
Folha de S.Paulo 10/10/1999

Olivaldo Junior (Quando eu volto para casa)


Então, quando eu volto para casa,
lembro o quanto te amo
e preciso amar.

E arrumo um jeito
de escrever mais um verso,
pra ver se no peito
eu inauguro outro universo.

Versos curtos, brancos...
Lábios mudos, francos...
Certos lutos, pranto,
que ninguém é santo
nesse altar pagão.

Pra quem amo tanto,
minha forma de estrela
desfaz-se em canto.

Então, quando eu volto, paro as asas,
lembro o quanto te amo
e preciso andar.

Fonte:
Colaboração do autor
Imagem = http://pastorailmashofar.blogspot.com/

Teatro de Ontem e de Hoje (Botequim)


O texto de Gianfrancesco Guarnieri, encenado em 1973, é tanto uma metáfora sobre a situação política do país como também uma imagem do próprio teatro, encurralado pela repressão da ditadura militar. É uma das produções representativas do teatro de resistência.

A peça se passa dentro de um velho botequim, que simboliza a oposição às mudanças impostas pelo desenvolvimento econômico, onde um grupo heterogêneo de freqüentadores fica preso durante uma noite de tempestade. Apesar do recurso à metáfora e à reviravolta no enredo, que faz com que, em dado momento, se instaure a festa em lugar do desespero, é a análise social o que efetivamente marca o texto, que faz de cada personagem a expressão crítica de um determinado comportamento diante da situação adversa. O cenário realista de Arlindo Rodrigues reproduz os elementos e as características dos estabelecimentos antigos, a sonoplastia ambienta a situação com um constante som de chuva, a direção de Antônio Pedro Borges se concentra sobre os comportamentos e as ações das personagens. 

Roberto de Cleto, no jornal Última Hora, assim resume as qualidades do espetáculo: 

"Um cenário de Arlindo Rodrigues muito bonito, que reconstitui com perfeição velhos botequins do Rio, hoje quase inexistentes. Uma interpretação absolutamente sensacional de Oswaldo Louzada, de uma verdade tão grande que às vezes a gente tem a impressão que frases que ele está dizendo não são absolutamente de Guarnieri, mas dele mesmo, tal a sinceridade com que soam. Uma garra e uma verdade também muito grandes de Marlene".[1]

Aldomar Conrado, no Diário de Notícias, ressaltando a direção seca e direta, comenta o desempenho dos atores em cada personagem: 

"Na condução dos atores, Antônio Pedro revela-se excepcionalmente seguro. Não existe um ator sequer a quem fazer restrições. Evidente que alguns se sobressaem pela própria oportunidade que os personagens lhes oferecem, mas o nível geral é de rara qualidade. Marlene (em que sempre admiramos a cantora e sempre duvidamos do talento de atriz) explode no Botequim com uma força, uma garra, que lhe garantem, de antemão, uma nova carreira cheia de sucesso. Isolda Cresta estava precisando, há muito tempo, da oportunidade que Olga lhe oferece. E a atriz cria um personagem pungente, rico em sutilezas, certamente o melhor momento de sua carreira [...]. Louzadinha - Oswaldo Louzada, vivendo um Carrapato com profunda humanidade. Ivan Candido, com extrema correção, num personagem totalmente impossível: o operário. Thaia Perez e Eduardo Tornaghi interpretam com uma sinceridade comovente os dois jovens estudantes, que no final da peça são considerados 'contaminados' pelas autoridades sanitárias. Alvim Barbosa e Toninho Vasconcelos como os Encapados pareceram-nos à vontade demais. Para André Valli, um destaque especial. O Túlio criado por André terminou me acompanhando até agora. Eu não consigo esquecer aquele ar pungente de quem é leitor da seção Cartas do Leitor, de quem nunca prevaricou, de quem sempre grita estrangulado. Um personagem, enfim, que termina sendo um pouco o protótipo de todos nós, na nossa impossibilidade de gritar mais alto. E que André Valli realiza com muita segurança".[2]

Numa época em que o realismo foi banido do palco como estilo preferencial de denúncia e reflexão política, Guarnieri consegue se manter no fio da navalha: escapa à censura e transmite sua mensagem ao público por meio de uma metáfora mais humana do que didática. Em depoimento ao Serviço Nacional de Teatro - SNT, ele define Botequim e Um Grito Parado no Ar como um "teatro de ocasião", explicando: 

"um teatro que eu não faria se não fossem as contingências. Que não corresponde, exatamente, ao que eu, como artista, estaria fazendo. Agora, como artista, eu também verifico minha realidade, e sei até quando, até onde e como a gente pode dizer e fazer as coisas".[3] 

Notas

1. CLETO, Roberto de. Botequim. Última Hora, Rio de Janeiro, 07 mai. 1973.
2. CONRADO, Aldomar. Botequim (o espetáculo). Diário de Notícias, Rio de Janeiro, sem data.
3. ALMEIDA, Abílio Pereira de et al. Depoimentos V, Rio de Janeiro: SNT, 1981 apud FARIA, João Roberto. O teatro na estante: estudos sobre dramaturgia brasileira e estrangeira. 1998. p. 167.

Fonte:

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 731)


Uma Trova de Ademar  

Deus vendo que não tem fim
essa fé que me conduz,
deixou cair sobre mim
uma cascata de luz! 
–Ademar Macedo/RN– 

Uma Trova Nacional  

Comparo a um pano rasgado 
esse amor, ao qual me rendo. 
Quando parece acabado, 
um de nós... Faz um remendo! 
–Terezinha Brisolla/SP– 

Uma Trova Potiguar  

A noite cai machucada 
por tantas cenas de horror, 
que os olhos da madrugada 
abrem vermelhos de dor! 
–José Lucas de Barros/RN– 

Uma Trova Premiada  

2008   -   ATRN-Natal/RN 
Tema   -   IDADE   -   1º Lugar 

Estas rugas em meu rosto,
mais que vestígios da idade,
são trilhas do meu desgosto
onde passeia a saudade...
–Wanda de Paula Mourthé/MG– 

...E Suas Trovas Ficaram  

O sino é um ser sem razão 
que não tem razão de ser, 
quando para um coração 
ele começa a bater. 
–Hegel Pontes/MG– 

U m a P o e s i a  

Eu não sei se o passado hoje se importa
que o presente me faça tão feliz,
todos erros que na vida eu já fiz
no meu livro da vida é folha morta;
porque Deus para mim abriu a porta
da poesia, da verdade e do amor,
e mostrando que a vida tem valor,
deu-me o dom mais divino da poesia
pra eu poder fabricar no dia a dia
um remédio eficaz pra minha dor!... 
–Ademar Macedo/RN– 

Mário de Carvalho (Uma vida toda empatada...)


(Foi mantida a grafia original)

Pelas nove e meia da manhã, a carrinha Ford Transit, de pneus sonolentos em cima do empedrado, rés ao edifício da televisão já estava a dar desgostos. O espelho do lado do condutor não queria fixar-se. Lasso, balouçava numa indecisão frouxa, e, por mais tratos que o motorista lhe aplicasse, acabava-se numa horizontal idade teimosa. Além disso, um polícia, de viso enjoado, viera advertir que não queria a viatura em cima do passeio. Não lhe interessava saber se os transgressores trabalhavam prà televisão, prà banco, ou prà centro comercial. Da próxima vez que voltasse, autuava. E virou decididamente as costas à arenga de Lurdes Barbosa que chefiava a equipa. Apesar do porte argumentador, ela era destituída de competência para mandar em polícias. Provavelmente o homem reconhecera-a do ecrã. Reminiscências. A circunstância demonstrava que ser-se uma personagem pública nem sempre deixa a autoridade bem impressionada.

O que mais atenazava os ocupantes da carrinha era que passava das nove e quarenta, e o operador de som e a assistente ainda não tinham dado sinal. Nem acudiam ao telemóvel. Dois recados no atendedor de chamadas, um de mitigada censura, outro de protesto gritado, serviram apenas para marcar posição e dar conta da impaciência de quem esperava. O motorista, naquela manipulação do espelho descaído, ia rosnando que não tinha saúde para multas logo pela manhã.

Todos olhavam de rijo contra os vidros, na ânsia de que o casalinho chegasse, sabia-se lá donde, enquanto o motorista debatendo-se com o espelho estava já a levar aquilo a título muito pessoal. Praguejava que só lhe aconteciam era destas. A maquilhadora, com um risinho duvidoso, declarava-se «muito enervada». E a autora-produtora dizia que «isto estava mas era a começar mal. O Guedes que desse uma volta pelo quarteirão, não fosse o polícia mal-encarado aparecer outra vez. E se eles, em chegando, não vissem o carro? Que fizesse mas era o que lhe diziam, e deixasse a bodega do vidro cair de vez». Resposta: «Porcaria de material. Há equipas que andam para aí, de rabinho tremido, num monovolume novo. A mim, sempre a sucata. Para a próxima, recuso.»

A autora percebeu a alusão à insignificância do programa e, por interposta viatura, a ela própria, também. Mas conteve-se na resposta, não fosse provocar uma nega reivindicativa do outro, capaz de alegar que o carro não se encontrava em condições e de invocar o contrato colectivo.

Virada a chave de ignição, a carrinha atirou um rolo de gases negros e pôs-se a tremer, com umas estridências de lata, pouco subtis. Ao tremeção, o espelho lateral deu um pinote e desfeiteou o manejo paciente do motorista que alternara a carícia com a palmada, numa técnica secularmente conhecida. O operador de imagem quis desanuviar o ambiente: «Vamos lá, 'tá a começar o dia. Quer-se é energias positivas!

Mas a maquilhadora que espreitava, muito ansiosa, pelo vidro da retaguarda, alertou: «Lá vêm eles, lá vêm eles!» Depois, com a excitação, cerrou os punhos pequenitos junto à boca. Lurdes Barbosa, num rompante, afastou a porta corrediça. Calculou mal o esforço, e a porta deslizou num estrondo, ressaltou e teve de ser novamente empurrada, com entreajudas.

Vinham os dois, muito vagarosos, muito abraçadinhos, muito  enroscadinhos um no outro, muito vestidinhos de preto, de material a tiracolo, distraído e à desbanda. «Íamos já embora. Desta vez ficavam em terra!» «Ah, sim? E eras tu que fazias o som, não?»

Ele deixou passar primeiro a rapariga, aconchegou-a no banco do meio, com muita ternura, fez um gesto tranquilizador de mão horizontal, e trancou a porta. «Isto não volta a acontecer. Operadores de som é o que não falta por aí!» «Andar, andar», interrompeu o da imagem, com voz de grande enfado. «O dia está bonito. Positividade, pá! Prego no fundo, ó Guedes! »

E todos se calaram com o solavanco que a carrinha deu ao descer do passeio.

A equipa era a que se tinha conseguido arranjar. As negociações com a direcção de programas tinham dado em excesso do que interessava menos: o jovem casal, com funções híbridas de som, assistência e anotação e a maquilhadora, de todos conhecida familiarmente por D. Matilde, francamente impingida para não a verem sentada no estúdio, com a revista Maria na mão. Naquele ano havia maquilhadoras a mais, e D. Matilde era sossegada. Mostrava-se sempre disposta a participar num trabalho de exteriores, com a sua caixita de pó-de-arroz.

Ninguém dava nada por aquele programa, a não ser Lurdes Barbosa, a autora, que se batera por ele durante anos. Corria mesmo que, em dada altura, tinha chegado a dormir com as pessoas erradas. De cada vez que mudavam as chefias, lá estava ela a tentar que a recebessem, com a papelada na mão, porque sabia que outros exemplares, já entregues, haviam de andar perdidos pelos cantos da casa.

Ela, em tempos, apresentara uma programação infantil, às quatro da tarde, com concursos de desenho, actores vestidos de coelho e mágicos fraldiqueiros. Os colegas diziam que aquela voz áspera e uns modos bruscos de lidar com as crianças desfavoreciam a popularidade do programa. Os críticos alarmavam-se, semanalmente, com os erros de gramática e as silabadas. Ninguém dava confiança aos críticos por eles serem, consabidamente intelectuais despeitados, fracos nas prestações televisivas, maníacos dos pormenores. Mas o programa acabou por ser suspenso quando o Ministério da Educação deu discreta conta ao Ministério da Tutela de um abaixo-assinado de professores sobre uma matéria algo confusa relacionada com próclises, ênclises e utilização de pronomes. A coisa soube-se. Foi uma indignação. Os colegas, na ocasião, mostraram-se solidários e houve quem sugerisse acções colectivas. A sugestão caiu bem, tão bem que satisfez e esgotou o sentido de justiça de todos, e Lurdes Barbosa foi ficando por uns tempos naquele limbo a que se chama, com subtileza metafórica, «a prateleira» .

Mas era uma lutadora. Tinha tempo para pensar e pensava. Congeminou um «pacote», de programas, que incluía um concurso chamado A Lata, em que se previa um arauto que fosse anunciando números, até que um dos concorrentes o interrompesse, levantando o dedo. O concorrente que se aproximasse mais do número extraído duma tômbola ganhava o que os patrocinadores fornecessem, de preferência um automóvel, mesmo dos baratos. Toda a gente, nos bares da estação, lhe deu sugestões amigáveis de artistas a convidar, e ela chegou a convencer-se de que era autora do melhor concurso do mundo. «Regista-o, não te esqueças de registar o projecto.» «Ela não registou, confiou, afinal toda a gente sabia que A Lata era dela. A Lata foi para o ar uns meses depois, com produção duma empresa externa e aperfeiçoamentos de luxo. Houve desacato. Lurdes Barbosa atirou coisas a um magnata da produção, depois duma espera à porta de certa vivenda da Quinta da Marinha, fez escândalo pelos corredores da estação e deu pontapés na porta sempre cerrada da direcção de programas. Tinham-lhe roubado a ideia. Envolvidas no assunto, a SPA e uma advogada particular nada puderam fazer. Falta de testemunhas, carência de prova. Os profissionais que tão calorosamente haviam contribuído para o aperfeiçoamento d'A Lata, os que tinham propinado bons conselhos, vinham agora dizer que não sabiam de nada, que não se lembravam de nada. Lurdes foi-se abaixo, entrou em depressão, fez compras absurdas, meteu-se em despesas de psicoterapia, recorreu à baixa médica. Quem a curou foi um feiticeiro senegalês, muito anunciado nos jornais, que fazia rezas com missangas e aplicações de óleo de babuíno.

Os anos passaram, Lurdes regressou, superou a mágoa d'A Lata e aperfeiçoou entretanto uma pronúncia nas alada, própria dum sociolecto de ricaços festivos, que se pratica nos arredores de Lisboa. Tinha-lhe sobrado tempo para treinar. Mas não deixou de batalhar pelos seus projectos mais queridos, já antigos. Um chamava-se O Cantinho Predilecto e pretendia desvendar os recantos preferidos das personalidades famosas: o em que o gato pernoita, o em que o bibelô favorito está arrumado, o em que se dorme a sesta, o em que se esconde o cofre-forte. Outro, em que ela apostava menos, teve vários nomes: O Verso e o Reverso, O Verso e o Anverso, O Torto e o Direito, e acabou por se chamar definitivamente O Agradável e o Útil. A ideia era simples e duma originalidade flagrante, de novo muito elogiada pelos colegas, na cantina. Um profissional determinado tinha uma ocupação secundária: por exemplo, um pescador que também era arqueólogo, um advogado que coleccionava bichinhos-de-conta, ou um tratador de cães que desenhava vestidos. Palavras e imagens do convidado numa e noutra das actividades. Vinte e cinco minutos. Segundo canal. Tarde.

Não foi bem o condoerem-se dela nem o ficarem fascinados pela excelência do produto. Foi mais o procurarem preencher uma lacuna com um programa barato, nacional, instrutivo, a piscar o olho ao serviço público e a compatibilizar-se com a maneira de ser de Lurdes Barbosa. Chamaram-na para uma reunião. Ela caiu das nuvens e preparou-se para entrar de novo nas nuvens, suportando-se de papéis e mais papéis.

A discussão foi dura, prolongada e muito argumentiva, quer pela combatividade dos circunstantes quer pelo gosto das reuniões que eles tinham, porque lhes davam, a par duma ilusão de racionalidade prática, a sensação forte do exercício do poder. Ficou claro que o âmbito das entrevistas era apenas o universo das personalidades não mediáticas, já que o outro estava entregue a uma serigaita de formas agradáveis que calhava ser sobrinha dum administrador.

E mais claro ainda ficou que teria de aceitar a equipa disponível e não outra: quiseram lá saber dos nomes que ela levava em carteira. Riram-se-Ihe das ambições. Impuseram-lhe um operador com tendência para os planos esquinados, uma anotadora jovem que tinha feito duas missas, o marido dela que andava a estagiar no som e ainda a D. Matilde, maquilhadora, porque sempre convinha que os convidados não aparecessem com aquele ar azulado que desfeia os ecrãs e a senhora já tinha choramingado que andava muito desaproveitada. Realizador? Realizasse ela, que tinha experiência. Era só zoam para diante e zoam para trás... Quanto a produção, ela própria que tratasse da logística: ao fim e ao cabo, aquilo não havia de ser tão difícil assim. Uns telefonemas, e tal...

Foi tremenda e exaustivamente casuística a discussão destes aspectos, para não falar dos que diziam respeito a verbas. Mas o caso encerrou-se quando um dos adjuntos da direcção lhe disse, com um olhar fixo e uma melíflua e quase desalentada delicadeza: «Querida, minha Lurdes qúeriducha, ou sim ou sopas!» Eram horas do jantar.

O motorista, o Guedes, soube ela depois, já tinha estourado dois carros na estrada, era senhor de rancoroso feitio e delegado sindical, dos activos. E assim, lá iam, pelo Sul afora.

Iam para onde? Para uma terra perdida, no Alentejo profundo, chamada Vale do Alardo, a montante de Mértola, tem-te a roçar a raia. Não vinha no mapa, mas o Guedes garantia que com ele não havia enganos. Quem tem boca vai a Roma e quem tem motor, vai a Ulan-Bator.

E tomaram o caminho de Évora, pela Ponte Vasco da Gama. Aquela ponte, branca garça langorosa estendida de asas ao alto, ou nívea harpa repousada nas águas (a rapariga silenciosa fazia poemas mentais), deu conversação. Mesmo Lurdes Barbosa, que entendia que nestas coisas de obras públicas ficava bem ser-se crítica, não evitou um «escapa!» que suscitou concordâncias cúmplices. Mas o Guedes deixou passar a euforia e replicou: «Eu é que sei!»

Esperou que alguém lhe pedisse explicações, mas como o pedido tardava, adiantou por bel-prazer: «A ponte queria-se era ao lado da outra. Metade do trânsito pra cá, metade pra lá! Assim é que era!»

Lurdes Barbosa deu a modulação mais nasalada que podia ao desprezivo «acha?» que proferiu. Mas o motorista não era sensível às tonalidades de Cascais: «Eu é que sei! Ando nisto todos os dias...»

E a afirmação de ciência calou todas as bocas e desmobilizou todos os comentários. O Guedes, sempre que falava, virava a cara, deixava a estrada por conta do carro, e isso não encorajava as réplicas. Os dezassete quilómetros da ponte foram percorridos em silêncio. Até que, já com o castelo de Palmela à vista, retiniu miudamente um sonzinho. Apalparam-se telemóveis inocentes, mas o operador de imagem exibia ao alto um objecto que parecia vagamente um relógio de colete, dos que havia antes. Era o seu tamagoshi. «Ai, que giro, um ikebana», disse, enternecida, a D. Matilde.

Lurdes pensava que o objecto se chamava um tsunami, mas não quis contrariar ninguém. À ida, convinha ser-se sempre conciliadora. À volta, logo se veria. O operador continuava com a propaganda: «Dá sentido de responsabilidades. Olha agora está com fome. Carrega-se neste botãozinho, assim, assim, e fica alimentado.» D. Matilde: «Deviam distribuir aos drogados da Picheleira, a ver se eles se afeiçoavam a alguma coisa.» A D. Matilde morava no Alto do Pina e tinha sempre uma história de drogados para contar. Achava que, com a Picheleira, o País estava a perder-se. O rapaz do som abriu-se num grande bocejo e a jovem apertou-se mais contra ele. «Ainda outro dia...», começou a maquilhadora...

E só acabou quando o Guedes que tinha vindo a intercalar que eles deviam ser todos lançados ao rio (quilómetro quarenta), todos degolados (quilómetro oitenta e quatro) e todos enforcados nos candeeiros (quilómetro cento e sessenta) proclamou a sagrada hora do almoço. Ar feroz, canto da boca esbordinado, pronto a defender as suas prerrogativas de trabalhador com horário, sentiu-se, no íntimo, desapontado por ninguém protestar. Parou junto de um restaurante que ele lá quis.

Ao almoço, Lurdes Barbosa tentou logo dominar a conversação. Falou-se de «vidas anteriores». D. Matilde também era versada. Que tinha sido sacerdotiza, na velha Jerusalém. Valia mais que a autora, que se tinha ficado por aia na corte de D. Sebastião, e escrava de Cleópatra, uma das mordidas pela áspide nos figos. O casal, muito enjoado, não participou. Voltaram logo para a carrinha, com duas sandes de fiambre. Boa oportunidade para que a conversa sobre «vidas anteriores» acabasse e os três se dedicassem a comentar o que conheciam daquela vida. posterior.

O Guedes palitava os dentes com a unha do polegar. A operação dava-lhe visível prazer. Só interrompeu, de má vontade, quando Lurdes Barbosa, paga e facturada a conta, ordenou: «Vamos embora.»

O lavrador, de camisa de nylon roxa, colarinho às três pancadas e boné de xadrez a deslizar-lhe para o nariz, sombra funda nos olhos, já lá estava à espera, na praça, um bom bocado antes da hora. Veio caminhando para a carrinha, meio curvado, de mãos a bandear, e assegurou-se de que era o «pessoal da televisão». Manápulas apoiadas no tejadilho, a cara, magra e ossuda, de pele encarquilhada da calma, perscrutou, sem pressa, cada um dos recém-chegados. Lurdes Barbosa desatou a fazer perguntas, muito profissional: «Foi o senhor quem telefonou? É o senhor que faz versos?» Mas ele limitou-se a dizer: «Venham andando atrás de mim.» Desandou, lento, e foi meter-se numa camioneta empoeirada, onde estava já um fulano novo, arruivado, a assomar pela janela, muito esgrouviado, com uma maçã-de-adão bicuda, que não parava quieta... «O que é que você está aí pasmado? Arranque, vá!», ordenou Lurdes ao Guedes.

Foi um tormento de socalcos, covas, areias, águas vadeadas, vaiados subidos e descidos até chegarem ao monte, uma fieira de casas velhas, estiradas sobre um cabeço, entre brilhos de romãzeiras. O homem apeou-se e o companheiro também. Era ali.

Não houve grandes conversas. A equipa, derreada, saiu do carro e começou a tirar os aparelhos da bagageira. Lurdes Barbosa quis saber onde é que estava o senhor para o programa. O sol afligia. O moço que vinha com o homem da camisa roxa sorria, de boca torta, e produzia uns sons inarticulados. Era meio atrasado da cabeça. «Já que insiste, venha ver», disse o lavrador.

Dentro do monte, de chão de terra batida, um velho olhava para um televisor, ligado a uma bateria de automóvel por dois cabos. Deitou um olhar vago, à chegada dos estranhos, e continuou a ver o programa. Uma mocita, sentada no solo, com dois alguidares na frente, descascava ervilhas, e não quis saber dos visitantes. O lavrador curvou-se para o velho: «Mê pai, estão aqui os senhores da televisão.» O velho reagiu à voz, abriu uma boca desdentada e começou a chorar, numa lamúria baixa, muito lamentosa. As mãos tremiam-lhe. Babava-se. Lurdes puxou o lavrador para o lado, e quis saber se era aquele o velhote que ainda puxava o arado aos oitenta anos e fazia versos populares e barquinhos de cortiça. E o homem respondeu: «Pois isso era antigamente, mas não interessa.» «Não interessa?» «O que interessa é o que eu lhes vou mostrar.»

Lurdes Barbosa não estava acostumada àqueles tratos. Habitualmente, traziam vinho do Porto, bolinhos, e eram muito efusivos e respeitadores. Quis esclarecer as coisas. Ela vinha peloooarado, pelos versos e pelos barquinhos. Mas o lavrador não se prestava a grandes conversas: «Vamos lá andando...»

De novo serpearam atrás da camioneta, por montados bravios. O Guedes dizia que assim não se responsabilizava pela viatura e Lurdes sentia-se, no íntimo, arrependida de não ter esmiuçado devidamente o ponto da situação. A equipa ia descontente e moída dos rins. Outro monte. Cães a ladrar. Paragem. Imensos, quedos sobreirais retorcidos até ao infinito.

«Agora, aqui o amigo», disse o homem de roxo para o operador de imagem, «põe aí a máquina a funcionar, que eu quero isto tudo contado a preceito.» «o quê?» Lurdes Barbosa a protestar: «Eu peço imeeeeeensa desculpa, mas...» a ruivo que vinha na camioneta chegou-se preguiçosamente. Trazia uma caçadeira apoiada no braço direito. Na mão esquerda, as chaves da carrinha da televisão. o lavrador: «Aqui o mê Zé também tem uma máquina.» Apontou para a caçadeira. «Esta é a que faz marchar as outras todas. Entendido? Filme aí.» o homem fez um largo gesto circular, de mão em concha. «Filme lá!!!» a operador olhou para Lurdes Barbosa, mas recebeu apenas, num aperto de bíceps, um sinal que queria dizer «faz como ele diz». E apontou a câmara para o monte, para o galinheiro, para uma oliveira e, finalmente, fixou-se no homem de roxo, que pigarreou e proferiu, solene e magoado, para a objectiva: «Eu quero dar fé dum grande escândalo!» Repetiu «um grande escândalo», abanou tristemente a cabeça, suspirou, virou as costas e entrou nas casas. A equipa dispunha-se a ficar ali pasmada, no terreiro. Mas o moço ruivo levantou a espingarda e todos seguiram de roldão atrás do homem. Mesmo o Guedes, que não encontrou receptividade para a alegação de que estava ali só para conduzir e não tinha nada a ver com a matéria.

«Tem som? Está a sair bem?», perguntou o homem de roxo. Estavam dispostos em círculo, numa quadra escura, ao fundo dum corredor. Uns raios de Sol refulgiam numa telha de vidro e vinham dar forte no tampo duma arca enfarinhada. Cheirava a azedo. Havia potes em volta, garrafões, uma almotolia de lata e, a um canto, pendiam dos barrotes do tecto as canas duma queijeira. Em duas cadeiras de bunho sentavam-se uma moça assaz grávida e um rapaz moreno de olhos muito negros e muito assustados. Orectângulo da porta, há pouco desaferrolhado, era agora ocupado pelo ruivo Zé, que, meio alheado, balanceava lentamente a caçadeira, com os canos a bater ora num ombro ora noutro.
O operador virou-se para o homem da camisa roxa com um ar quase suplicante: «Ó senhor, veja lá em que é que nos está a meter.» «Não há azar», disse o lavrador e ordenou: «Luz!» Vinham prevenidos com um reflector e uma bateria. O clarão, forte, desfez as sombras e iluminou o aposento até aos recônditos mais ocultos. Impressionava menos, agora. Mas o rapaz quase deu um salto na cadeira, do susto.

Mais uma vez, Lurdes quis arguir. Que aquilo era um programa para o canal dois, que tratava só de ofícios e de hobbies, 'tá á perceber?, que aquele assunto tanto se lhes dava, que os tinham apanhado à má fila, bem vê, com um telefonema falso sobre um velhote que, enfim, se o rapaz estava numa de disparar a caçadeira, pronto, fazia-se o jeito, mas... E a equipa prontificou-se a fazer o jeito. Nem apreciaram muito que Lurdes se pusesse a protestar porque convinha era manter a calma, a caçadeira distraída, porque o mau momento havia de passar. O operador de imagem mostrou-se prestimoso, muito obediente, a maquilhadora avançou, com os seus pés, o jovem do som aprestou os aparelhos e a assistente fez estalar uma claquete junto da cara do homem de roxo, que desconfiou mas deixou andar. «Agora apanhe-me aqui a mim!»

Aquilo, prosseguiu o lavrador, era uma grande escandaleira e ele queria que todo o país (as portuguesas e os portugueses) soubesse que aquele moço que ali estava (desvio da câmara para devido enquadramento, registo da voz em off) lhe havia emprenhado a filha (close da filha) e que quando ele, pai surpreso e desgostoso, o tinha chamado a contas para reparar o feito pelo casamento, o descarado lhe pedira uma avença de 300 contos por mês. Que tinha depois reduzido a 250 contos. Se isto era justo e decente. Se não era, que fosse ali registado para aparecer no telejornal e o país todo ficar a saber! Até para que outros pais ficassem prevenidos. «Já está?» O operador de câmara levantou o polegar esquerdo e pôs a máquina em repouso.

O homem de roxo admoestou o rapaz: «Estás a ver? A vergonha em que tu caíste? Toda a gente vai conhecer as tuas trombas e fica a saber que querias receber um ordenado para toda a vida, por uma prenhez...» A rapariga mexeu-se, reagiu, mas o pai foi imperativo, com um gesto de mão alçada muito alto, quase a rasar a telha-vã. «Tu, caluda, hem?» «Sôr Fradinho, vossemecê não tem razão, e eu vou explicar tudo. Isto é dever de todos os sogros ajudarem os genros e sempre foi assim... O senhor entendeu mal o que eu estava a dizer. Agora, fechar-me aqui é que não está certo.»

«Ah, entendi mal? Então ligue lá essa gaita outra vez.»O lavrador sentou-se num bidão amolgado que arrastou com grande ruído para o pé da filha e do outro e ali começou uma arenga. Desta vez a rapariga interveio para dizer que era maior e vacinada e que ela é que sabia da vida dela. Pelo canto do olho, o lavrador ia confirmando se a luz vermelha da câmara estava acesa. À porta, o matulão da espingarda bocejava. Por não ter nada que fazer, o Guedes motorista, a título rigorosamente excepcional, deu uma ajuda, segurou no tripé do reflector. E nunca mais havia maneira de acabarem a discussão. «Que era um ordenado.» «Que não era.» Lurdes, num rompante, sentou-se na cadeira ao lado da rapariga e resolveu pôr ordem naquilo. «Com licença! Eu modero isto.»

O lavrador e os outros deram-lhe espaço, o lavrador tirou o boné que pôs sobre os joelhos. A toda a largura da testa mostrou um vinco vermelho que se continuava pela nuca num fino rego de cabelos empastados. A maquilhadora distribuiu pinceladas por aquelas caras. «Silêncio!» «Claquete!» «Câmara!» «Acção!» «Estamos num monte alentejano, a poucos quilómetros de Vale do Alardo. Alguma coisa se passou que fez perder a cabeça ao senhor... Desculpe???» «Hilário Fradinho!» «... ao senhor Hilário Fradinho. À minha esquerda encontram-se... Comecemos pelo senhor Hilário Fradinho. Senhor Hilário Fradinho, conte lá...»

Três horas depois, desviava a Ford Transit para a estrada de Montemor e iam todos amuados, a caminho do lanche. Tinham transportado o rapaz do monte até à vila, e o lavrador não se opusera. Também parecia mais conciliado com a filha. O homem ficara tão contente por desabafar em frente das câmaras e convencido de que tinha ganho a discussão com o problemático genro, que já estava por tudo. Ofereceu vinho, ofereceu queijo e chouriços. Queria mostrar-lhes a propriedade, a adega, as vacas. Queria retê-los, num acesso possessivo de hospitalidade. Um castigo. Foi preciso que Lurdes lhe garantisse que tinham de partir depressa para chegarem a tempo de passar o debate no telejornal das oito.

O rapaz era pouco falador. Sentou-se ao lado do casalinho e veio durante todo o percurso a rosnar, de si para si: «Uma vida inteira empatada, ora o cabrão do velho, hã?» Pediu que o deixassem no largo da vila e ala!

Mal ele saiu desataram todos a falar ao mesmo tempo. O jovem casalinho de preto queria fazer queixa à guarda. Sequestro, e tal. D. Matilde não se fartava de dizer o medo que tinha apanhado. O Guedes entendia que o moço tinha razão. Se o queria para genro que lhe pagasse, que os tempos não estão para abébias. O operador de imagem declarou com pena que o seu tamagoshi tinha morrido. Pusera-se a vibrar durante a filmagem, mas ele não tinha querido fazer gestos que pudessem ser mal interpretados pelo da espingarda, que parecia não ser lá muito certo... E Lurdes proclamou o seu enfado. Que não se ia fazer queixa, de forma nenhuma, porque ela não estava para passar a vida a caminho de um tribunal qualquer perdido no Alentejo. Que se estava nas tintas para o tsunami do outro. Que lamentava, sim, era o dia perdido, sem trabalho feito. Que não queria saber das opiniões do Guedes para nada. E que se calassem e a deixassem em paz, porque a responsável pelo programa que ia aparecer em Lisboa de braços a abanar era ela.

Na esplanada de Montemor, o desconforto das almas mantinha-se. Eram seis da tarde. Lurdes perguntou ao empregado se não conhecia alguém que fosse ao mesmo tempo um profissional, sei lá, e tivesse outra actividade interessante. O homem ficou desconfiado. À primeira deve ter pensado que estava a lidar com os das Finanças, ou fiscais de qualquer coisa. Mas Lurdes, paciente, explicou-lhe que eram da televisão, que estavam a fazer um programa... «Bom, o meu tio, que é barbeiro, ensinou um melro a falar... Um melro, assim pequenino, que canta a Aurora.»

Lurdes e o operador de imagem entreolharam-se num relance. Tínhamos homem. O programa estava salvo. «Achas que ainda há luz?» «Dá-se-lhe com o foco.» «Toca a ir buscar os equipamentos, depressa.» «o que é que se faz às imagens do monte?» «Rebobina-se e grava-se por cima.»

Andor! Nem deram gorjeta ao homem.

Fonte:
Mário de Carvalho. Contos Vagabundos. Lisboa: Editorial Caminho, 2000.

José de Alencar (Ao Correr da Pena) 24 de dezembro: A Véspera do Natal


Estamos na véspera do Natal.

À meia-noite começa esta festa campestre, a mais linda e a mais graciosa da religião cristã. Vítor Hugo confessa que não há nada tão poético como esta legenda das Mil e Uma Noites escrita no Evangelho.

Com efeito, tudo é encantador nesta solenidade da igreja, nesses símbolos que comemoram a poética tradição do nascimento de um menino sobre a palha de uma manjedoura. A missa do galo à meia noite, os presepes de Belém, as cantigas singelas que dizem a história desse nascimento humilde e obscuro, tudo isto desperta no espírito uma idéia ao mesmo tempo risonha e grave.

Não é porém, na cidade que se pode gozar deste idílio suave da nossa religião. Censurem-me embora de um lirismo exagerado; mas afinal de contas hão de confessar comigo que no meio do prosaísmo clássico da cidade, entre essas ruas enlameadas, de envolta com o rumor das seges e das carroças, a festa perde todo o seu encanto, todo esse misterioso recolhimento que inspira a legenda bíblica.

É no campo, no silêncio das horas mortas, quando as auras apenas suspiram entre as folhas das árvores, quando a natureza respira o hálito perfumado das flores, que o coração estremece docemente, ouvindo ao longe o tanger alegre de um sinozinho de  aldeia, que vem quebrar a calada da noite.

Daí a pouco, luz das estrelas, no meio dessa sombra mal esclarecida, distinguem-se os ranchos de moças, que se encaminham para a igrejinha rindo, gracejando, cochichando, bisbilhotando, como um bando de passarinhos a chilrear em tarde de outono.

A porta da capelinha está aberta de par em par; e a luz avermelhada dos círios, os vapores perfumados do incenso, os sons plangentes do órgão, o murmúrio das preces recitadas à meia voz, enchem todo o corpo do templo. De vez em quando um rumor do campo, o esvoaçar de alguma andorinha despertada de sobressalto pela claridade, vêm interromper alegremente a calma e placidez da festa.

Se quereis tomar o meu conselho, minha amável leitora, não ide à missa do galo nas igrejas da cidade.. Escolhei algumas capelinhas dos arrabaldes, a beira do mar, como a São Cristóvão, cercada de árvores, como a do Engenho Velho, ou colocada  nalguma eminência, como a igrejinha de Nossa Senhora da Glória, tão linda com as suas arcadas e o seu vasto terraço.

Ouvi a vossa missa devotamente, isto é, olhando apenas uma meia dúzia de vezes para os lados, e estou certo que voltareis com a alma cheia das mais suaves e mais risonhas inspirações. Sentireis que o culto da religião, quando verdadeiro e sincero, é uma fonte rica de emoções doces, e não traz os dissabores deste outro culto do amor, no qual vós sois algumas vezes o anjo, e muitas a serpente do paraíso.

Bem entendido, se vos dou este conselho, é persuadido que não aspirais aos foros da alta fashion, porque neste caso deveis ficar na cidade e ir ouvir missa nalguma igreja bem quente e bem abafada, para pilhardes uma boa constipação na saída.

A diretoria do Teatro Lírico, que tem o bom gosto de conservar o teatro aberto neste tempo, não devia deixar de dar algum espetáculo na noite de hoje, a fim de vos preparar por um banho russiano, para a visita das estufas nas igrejas.

É pena que não se lembrassem de repetir o Roberto do Diabo que acaba justamente às 2 horas, tempo em que cantam os galos. 

Tudo neste mundo depende das ocasiões, disse-me um dilettante que vós conheceis: - Se a diretoria tivesse sabido aproveitar a noite de hoje, o Roberto do Diabo estaria apenas no purgatório donde naturalmente o conseguiria tirar algum artigo hieroglífico, maçônico ou brâmine, escrito unicamente para os espíritos sublimes. Então não se veria na dura necessidade de conservar o teatro aberto, recordando atrasados e obrigando os acionistas e os assinantes a pagarem as diabruras, não do Roberto, mas de algum São Bartholomeu que não conhecemos.

Eu não concordo com esta opinião. Julguei a princípio que convinha interromper-se os espetáculos por um mês, ao menos, porém hoje estou convencido que o teatro presta uma tão grande utilidade a esta corte, que a polícia devia intervir para que houvesse representação todas as noites. Se duvidam, vou enumerar-lhes as enormes vantagens econômicas, higiênicas, políticas e morais que resultam do teatro.

Em primeiro lugar, cura constipações pelo sistema homeopático, alivia o reumatismo dos velhos, e dá às mocinhas do tom uma cor baça e amarela, do melhor efeito, a qual os poetas têm convencionado chamar – a palidez romântica. No fim de uma semana ou quinze dias, uma bela menina, viva e rosada, começa a definhar; desmaiam-lhes as cores, os olhos tornam-se febricitantes, o corpo toma um ar de lânguida morbidez.

Para o médico, homem positivo, isto é o sintoma funesto de alguma consunção; mas o poeta, espírito elevado, que tem a pretensão de viver de ar como os camaleões, extasia-se em face desse rosto macerado pelas vigílias satisfeito por achar uma ocasião de aplicar a sublime comparação do pálido lírio languidamente reclinado sobre a haste delicada.

No fim de contas, o médico faz um diagnóstico importante; o poeta escreve algumas centenas de versos no estilo de Byron, ou do Alfredo de Musset. O boticário avia receitas sobre receitas; e o tipógrafo tira duas edições do volume de poesias. Faz-se uma consulta de médicos, enquanto os folhetins e as revistas críticas dissecam e fazem a autópsia dos versos novamente dados à luz. Trava-se a discussão, e no momento justo em que os médicos enchem de cáusticos e cataplasmas a heroína do romance, o país atônito reconhece que surgiu alfim o seu Petrarca, seu Dante, o seu Tasso.

Eis aí, o Teatro Provisório concorrendo para o desenvolvimento literário, e fazendo aprofundar o estudo da medicina. Isto, porém, não é tudo. A diretoria, que empreendeu a regeneração da nossa ópera lírica, visa também a outros resultados mais reais e positivos.

A Charton é a cantora predileta do público, é o rouxinol das belas noites pintadas por Bragaldi, é a rosa perfumada em cujo cálice bubul fez o seu ninho  gracioso, e onde se reclina soltando nos ares as ricas melodias de suas notas. Pois bem, a Chaarton continuará a representar pelo verão, sem ter nem sequer um mês de descanso; bubul cantará todo o estio como uma cigarra importuna; a flor se fanará exposta ao tempo, sem sombra e sem abrigo.

Um belo dia a Charton ficará com a voz cansada como a Zecchini; e este público caprichoso e exigente ficará ensinado, e aceitará aí qualquer comprimária que lhe queiram impingir na qualidade de cantora de cartelo.

Então, como a guerra do Oriente e a exposição de Paris não permitirão novos engajamentos na Europa, a empresa, livre de reclamações exageradas, poderá fazer importantes economias, contratando nesta corte algumas cantoras de modinhas para coristas, e promovendo por antiguidade as coristas e comprimárias e as primas-donas: teremos neste caso espetáculos baratos, a pataca e a quinhentos réis. O público tomará o seu banho de vapor pela quinta parte do que paga hoje.

Pouco tempo depois que a diretoria tiver obtido este grande resultado, o público se convencerá que se a música (do teatro lírico), como disse alguém, é o mais suportável dos barulhos, o teatro é o mais insuportável dos suadores.

Os espetáculos, pois, serão abandonados, o dilettante começará a ser uma espécie de mastodonte anti-robertiano, objeto do estudo dos arqueólogos e antiquários, e o barracão terá um destino muito semelhante ao que tem hoje, e ficará sendo uma dependência do Museu.  

Não se pode, portanto, deixar de tributar todos os elogios a quem empreendeu e trata de executar com tanta habilidade a útil empresa de desacreditar a era italiana e de nos fazer aborrecer o teatro lírico. Todo o público desta corte deve auxiliar este projeto, por todas as razões, até mesmo porque é de melhor gosto, e mais elegante, nestas noites de calma ir suar no Provisório, do que tomar fresco no Passeio Público.

No teatro olha-se para um camarote, procura-se uma feição mimosa e acetinada, umas faces que são de suave cor-de-rosa, um colo alvo de jaspe, e tem-se o desprazer de ver um rosto  açodado, vermelho, mudando de cores, um seio arfando dificilmente sem aquelas doces palpitações que lhe dão tanta graça e tanta sedução; vê-se enfim um belo quadro, uma tela amarrotada cheia de dobras.

Ao contrário, no Passeio Público o quadro realça com a luz do gás, que, ao longe, entre as árvores, semelha um pouco a claridade da luz; todas as noites, mas especialmente nos domingos, a concorrência é numerosíssima. Às nove horas a multidão se retira, o passeio torna-se mais agradável, e começa-se a encontrar-se de espaço a espaço uma ou outra família conhecida, das que freqüentam ordinariamente os nossos salões.

Não nos enganamos, pois, quando dizíamos há tempo que a iluminação a gás concorreria muito para a concorrência do Passeio, e daria ao público desta corte um ponto agradável de reunião. Resta, porém, que se trate de outros  melhoramentos, como de reparar ao menos as grades da rua principal, de ceder-se aos dois pavilhões do terraço para neles se estabelecerem cafés decentes que possam servir às famílias, e de fazer-se com que haja música aos domingos, das oito até às dez horas.

Faça-se isto, faça-se alguma coisa mais que or conveniente; e todas as noites em que houver espetáculo lírico, durante a força do verão, eu terei o prazer de ver os mais entusiásticos dilettanti sentados nos bancos de pedra do círculo que forma a rua principal do Passeio, vendo, como eu, passarem os grupos das lindas passeadoras, enquanto apenas um ou outro melomaníaco, com os cabelos pregados na testa, contemplará heroicamente o holocausto lírico da voz da Charton, do Bouché e do Gentile, condenados à rouquidão para assegurar o futuro da ópera italiana, que ficara comprometida nesta corte, se não se cantar nos meses de dezembro e janeiro.

O natal, o teatro, o passeio me iam fazendo esquecer das questões sérias que este ano se guardaram para o tempo das festas, justamente para não deixarem nem um dia de férias ao jornalista. O livro do Sr. De Angelis sobre o Amazonas e ultima,mente o decreto do governo sobre as sociedades comanditárias vieram agitar a imprensa da corte, e fazê-la sair da rotina editorial. Sobre a primeira questão deveis ter lido não só a obra do Sr. P. de Angelis, como os artigos que publicou nesta folha um nosso patrício, conhecido pelo seu talento. Quanto à segunda, esperai mais alguns dias, e vereis sob que aspecto importante ela vai apresentar-se; não vos falo mais largamente a respeito, porque deveis saber que os advogados estão de férias, mais felizes nisso do que os folhetinistas, que não as têm.

Finalmente vou  dar-vos uma boa nova. Como a festa é tempo de muita indigestão, podeis contar já com mais trinta e dois médicos, que no dia 18 deste mês receberam o seu grau na Academia Militar, em presença de SS. MM. e de um brilhante e numeroso concurso de pessoas gradas desta corte. O digno diretor da escola recitou um belo discurso e um dos doutorandos, designado pelos seus colegas, agradeceu em nome deles o grau que acabavam de receber, fazendo nesta ocasião acertadas considerações sobre o estudo da anatomia e da fisiologia.

Terminando a sua carreira, vão dar agora o primeiro passo no mundo, e trabalhar para um futuro que a esperança, companheira inseparável da mocidade, lhes aponta tão risonho e tão feliz. Deus os fade bem por interesse seu e da humanidade; e possam um dia, repassando na memória esta primeira página de sua vida, sentirem essas doces recordações do homem feliz que se revive no seu passado. 

Fonte:
José de Alencar. Ao Correr da Pena. SP: Martins Fontes, 2004.

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 730)


Uma Trova de Ademar  

Trabalho só é bacana 
se tiver, por sua vez: 
uma folga por semana 
e férias de mês em mês! 
–Ademar Macedo/RN– 

Uma Trova Nacional  

"A onça entrou no terreiro
e sua mulher tá lá!"...
Responde o peão, matreiro:
"deixa onça se daná!"... 
–Alba Christina C. Netto/SP– 

Uma Trova Potiguar  

Uma nasce pra titia, 
outra varre os assoalhos; 
mulher feia e ventania 
só servem pra quebra galhos... 
–Fabiano Wanderlei/RN– 

Uma Trova Premiada  

1997   -   Ribeirão Preto/SP 
Tema   -   BICHO   -   14º Lugar 

Fim de semana eu capricho,
trabalho muito e não minto:
Meu salário vem do "bicho",
sempre do primeiro ao quinto...
–Antônio Colavite Filho/SP– 

...E Suas Trovas Ficaram  

Na avareza em que vivia 
não tentava nem loteca; 
pois, sua mão não abria 
nem para jogar peteca! 
–Florestan Japiassú Maia/RJ– 

U m a P o e s i a  

Sou um matuto assumido
digo “pruquê” e “prumode”,
minha calça é pega bode,
meu linguajar é sortido,
adoro milho cozido 

ninguém queira se atrever;
digo “bassoura” e “barrer”,
traz o ponche esse menino;
quanto mais sou nordestino
mais sinto orgulho de ser! 
–Hélio Crisanto/RN– 

Soneto do Dia  

A MISSA DO COMPADRE. 
–Edmar Japiassú Maia/RJ– 

Ia vivendo meio aposentado, 
celibatário que era por vontade, 
por ter sofrido, em plena mocidade, 
uma desilusão de amor frustrado... 

Porém, um dia, foi comunicado 
da morte do compadre na cidade, 
e este fato lhe trouxe, na verdade, 
a esperança deixada no passado... 

O infausto passamento deu-lhe o ensejo 
de sentir despertado um só desejo, 
que trazia no peito adormecido... 

E foi durante a missa do compadre, 
que, amparando em seus braços a comadre, 
baixinho, agradeceu ao falecido!

Jornais e Revistas no Brasil (A Nação)


Período disponível: 1872 a 1876 

Local: Rio de Janeiro, RJ 

Continuação de: 
Jornal da Tarde

Houve vários jornais no Rio de Janeiro com o título A Nação. O primeiro deles, a julgar pelas informações contidas na História da imprensa, de Nélson Werneck Sodré, foi fundado por Antônio Ferreira Viana e Andrade Figueira e tinha tendências republicanas.

 Este A Nação, que começou a circular em 3 de julho de 1872, veio a substituir um certo Jornal da Tarde, que havia sido fundado dois anos antes por Angelo Thomaz do Amaral e Eduardo Augusto de Oliveira. O proprietário era João Juvêncio Ferreira de Aguiar, que inicialmente apresentou sua publicação como um “jornal politico, commercial e litterario”, logo depois, em 29 de novembro de 1872, como “folha politica, commercial e litteraria”, a partir de 3 de julho de1873, como “jornal politico e commercial” e, a partir de 15 de novembro de 1875, como “jornal politico, commercial e litterario”.

 Circulava diariamente, exceto aos domingos. Foi lançado com quatro páginas divididas em seções de temas e títulos variados, como “A Nação”, “Folhetim da Nação”, “Gazetilha”, “Exterior”, “Rio de janeiro”, “Publicações a Pedidos” (cobrava-se do interessado em publicar algo 120 réis a linha), “Declarações”, “Commercio”, “Avisos Marítimos” e “Anúncios” (80 réis a linha). Outras seções foram criadas com o passar do tempo, como, por exemplo, a “Echo dos Jornaes” (a partir do número 176, de 1873), que apresentava um resumo das notícias publicadas em outros periódicos.

 A assinatura de A Nação podia ser anual (12$000 para a Corte, 16$000 para outras províncias), semestral (6$000 e 8$000, respectivamente) ou trimestral (3$000 e 4$000). O exemplar avulso custava 40 réis. O segundo número traz o aviso de que o jornal não seria vendido pelas ruas, mas em agências localizadas em diversos pontos da cidade.

 Impresso em formato standard na Typografia Americana, situada na rua do Ouvidor nº 19, tinha como redatores, entre outros, o político João Juvêncio de Aguiar, o escritor Cirilo Eloi Pessoa de Barros, o ministro José Maria da Silva Paranhos, visconde do Rio Branco, e o político abolicionista Francisco Leopoldino de Gusmão Lobo.

 A Biblioteca Nacional dispõe de 153 edições de A Nação referentes a 1872, 277 de 1873, 286 de 1874, 282 de 1875 e 77 edições de 1876 – todas disponíveis na Hemeroteca Digital Brasileira.

Fonte:
http://hemerotecadigital.bn.br/artigos/nação