sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) 7. Rufina

Esquisita vaga de saudade! Ontem, anteontem, nada vi no bonde: nada vi senão Rufina, a moça que salvei de um desastre iminente.

A princípio, entrei a duvidar se ficara preso ao feitiço da sua pessoa, que tinia de vida e
mocidade, se lhe guardara afeição apenas pelo fato de a ter socorrido. -Há no fundo de nossa alma um veiozinho de sentimento que fica agradecido aos que nos devem serviço. E quando quem deve o serviço é uma bonita mocetona, temos evidentemente uma complicação a mais.

Ser útil a alguém no perigo ou na penúria, é o melhor caminho para vir a querer-lhe bem: fica-nos pertencendo um pouco, já que nos custou alguma coisa. Andam errados os moralistas filantropos quando pregam a necessidade de amar ao próximo como condição e preparação para o ajudar e suportar. O primeiro passo é ajudá-lo e suportá-lo: o amor vem depois.

Mas isto não tem nada que ver com o amor-amor, amor-desejo, o amor-folia; e a perturbação que Rufina deixou em mim veio muito menos do susto de que a livrei do que do filtro luminoso que a furto se lhe escorreu de entre as pálpebras semicerradas.

..................................... un long rayon d'étoile!

Ah! Rufína, meteoro rutilante perpassaste pelo céu caliginoso de minha vida! Estarás a estas horas olvidada de mim. Nem por um momento esvoaçará tua cabecinha pequenina e redonda a idéia de que deixaste um farpão enroscado na carne de um pobre funcionário; de que esta pobre alma, jogada de cá para lá sobre os trilhos imutáveis, está a ver-te sempre no mesmo banco, ao lado do mesmo ancião de rosto severo e pausada voz, como um avezita ao lado de um rinoceronte. -Perdoa-me, se é teu pai, ou teu avô, ou padrinho; mas não podias ter companheiro que melhor fizesse realçar a tua brevidade graciosa e arrogante de galinha garnisé.

Não te verei mais, Rufina?

Fonte:
Domínio Público

Soares de Passos (Desengano)

Vejo-a ainda! ressurge a meus olhos
Como em tempos ditosos surgia,
E, qual anjo de casta poesia,
Desce às vezes num sonho d'amor;
Vejo-a ainda nos céus e na terra,
Nos encantos e risos da aurora,
E, se o dia nas ondas descora,
Das estrelas no meigo fulgor.

Era a luz que brilhava em minha alma,
Era o astro que em sombras luzira,
Era o fogo sagrado que a lira
Às doçuras d'amor acordou...
Tudo c findo; debalde nas trevas
Busco ainda seu facho luzente:
Foi apenas um astro cadente,
Meteoro fugaz que passou.

Pobre seio que ardente pulsaste
Embalado por falsas venturas,
O fanal que na terra procuras
Sobre a terra jamais acharás.
Não há seio que entenda no mundo
Esse ardor de teus vagos anelos;
Não há luz que em seus raios mais belos
Não te esconda uma sombra falaz.

Que te resta? um futuro vazio
D'ilustres que nutriu a esperança,
E um passado de triste lembrança
Como é triste a verdade sem véu...
Olvidar! olvidar! que ao presente,
Ai! só cabe o repouso do olvido.
Olvidar! e que em gelo sumido
Seja o fogo que em chamas ardeu!

Sonho belo, que esta alma iludiste,
Chama ardente nos céus ateada,
Voa, voa à celeste morada!
Lá nasceste, do mundo não és.
E tu, lira de lânguidas cordas,
Que de amor suspiraste em desleixo,
Vai, oh, vai! em silêncio te deixo...
Vai, oh, vai para sempre talvez!

Fonte:
Poesias de Soares de Passos. 1858 (1ª ed. em 1856). http://groups.google.com/group/digitalsource

Teatro de Ontem e de Hoje (O Cão Siamês)

Peça de Antônio Bivar lançada em 1969, na esteira do sucesso aberto por Cordélia Brasil, traz uma marcante interpretação de Yolanda Cardoso, que divide a cena com Antonio Fagundes, sob a direção de Emílio Di Biasi. A encenação é materialmente modesta, mas iluminada pelos intérpretes. Espetáculo cult, faz breve temporada e tem pouco público.

A peça é centrada na figura de Alzira, uma explosiva outsider, crítica, bem informada, desbocada e irreverente, que atende a Ernesto, vendedor de enciclopédias que bate à sua porta. O rapaz, casado e com filhos pequenos, revela-se uma pessoa sem sonhos, conformado com sua vida modesta e sem perspectivas. O encontro entre figuras tão díspares produz um conflito: o anarquismo de Alzira triunfa, massacrando a racionalidade de Ernesto. Para Emílio Di Biasi, "Alzira é uma heroína marginal, já que ela faz a apologia de tudo o que vai contra os princípios do que se convencionou chamar sociedade. A sociedade absurda de Ernesto contra o absurdo mundo de Alzira. [...] Ela se recusa a qualquer tipo de sentimentalismo pessoal e leva seu subconsciente violento até as últimas conseqüências".1

Em 1970, o diretor Antônio Abujamra monta o texto no Rio de Janeiro, retrabalhado e aumentado por Bivar, com a mesma atriz e com Marcelo Picchi vivendo Ernesto. A encenação alcança grande sucesso e repercussão, rebatizada como Alzira Power, retorna posteriormente para São Paulo, onde faz longa carreira.

A encenação carioca desperta vivo entusiasmo na crítica especializada, como anota Henrique Oscar no seu comentário: "O espetáculo de Abujamra está todo apoiado numa hábil direção de atores. Neste sentido, o rendimento obtido com Yolanda Cardoso é muito grande. Ela assume o papel com uma garra impressionante. Outro que se sai muito bem é o ator paulista Marcelo Picchi, em seu segundo desempenho profissional. Num papel que pede muito menos do intérprete do que sua parceira, ele tem um trabalho perfeitamente realizado, inclusive nos momentos mais perigosos que o texto lhe exige".2

Antônio Bivar completa em seu livro detalhes peculiares sobre a montagem de Abujamra: "Tirando o Hair, onde todos ficavam nus, Alzira era novidade também por, além de ser uma peça que falava fundo às mulheres - como nenhuma peça brasileira até então (a personagem-título era uma libertária desvairada) - tinha, como sobremesa, a exibição demorada e ritualística de um rapaz pelado. Não estava no texto, era coisa da direção picárdica de Antonio Abujamra".3

Yolanda Cardoso recebe, com este desempenho, todos os prêmios como melhor atriz do ano, tanto no Rio de Janeiro quanto em São Paulo.

Notas

1. ALZIRA POWER OU O CÃO SIAMÊS DE ALZIRA PÔ... LÔCA. Direção e texto Emílio Di Biasi. São Paulo, 1969. 1 folder. Programa do espetáculo, apresentado no Teatro Ruth Escobar em agosto de 1969.

2. OSCAR, Henrique. Diário de Notícias. Rio de Janeiro, jul. 1970.

3. BIVAR, Antonio. Longe Daqui Aqui Mesmo. São Paulo, Best Seller, 1995, p. 17.


Fonte:
Enciclopédia Itaú Cultural

Danglei de Castro Pereira (Sousândrade: tradição e modernidade) Parte III

2.2 Sousândrade: um romântico

 Inscrito cronologicamente dentro do movimento romântico, Sousândrade não escapou plenamente desse ideário. Na concepção de Williams (1976, p. 75), “Sousândrade foi um poeta romântico, modelado e desenvolvido pelo romantismo nacional e internacional”. Se pensarmos Sousândrade pelo prisma romântico, podemos perceber em sua obra a marca de sua época. A constante aproximação do cenário exótico da “pátria” ao jardim do Éden, ponto de pureza natural presente no livro do Gêneses, leva a uma idealização tipicamente romântica, pois o território nacional é comparado a um elemento de absoluta pureza. Tal postura implica um nacionalismo latente, pois o elemento natural, visto como ponto de afirmação da individualidade, passa a ser adorado enquanto índice de brasilidade.

O Eden alli vai n’aquella errante

Ilhinha verde – portos venturosos

            Cantando á tona d’água, os tão mimosos
            Simplices corações, o amado, o amante.
Incantados lá vão, ás grandes zonas
            D’ um outro mundo, a amar, a ouvir cantando:
            Oh, ninguem sabe o incanto do Amazonas
            Ao sol, ao luar, as aguas deslumbrando!

Esta é a região das bellas aves,
            Da borboleta azul, dos reluzentes
            Tavões de oiro, e das cantilenas suaves
            Das tardes de verão mornas e olentes;
A região formosa dos amores
            Da araçaranea flor, por quem doudeia,
            Fulge ao sol o rubi dos beija-flores,
            E ao luar perfumado a ema vagueia.

(O Guesa. Canto II, p. 21)[iii]

Neste fragmento, temos uma visão idílica do espaço natural. Os elementos naturais como “borboleta azul”, “araçaranea em flor”, “beija-flores”, “ema” são aproximados a tons amenos da natureza como o entardecer, tendo ao fundo uma “cantilena”. Essa postura indica a visão do espaço natural como pólo de paz para o eu-poético. A sinestesia “luar perfumado” poderia ser citada como confirmação dessa visão idílica auferida à natureza. As riquezas “oiro” e “rubi” são derivadas de elementos naturais como o raio e os beija-flores. Tal indicação remete a uma riqueza imanente ao traço natural. Podemos falar, então, em uma supervalorização do espaço natural que, via de regra, vem envolto em um olhar deslumbrado e, portanto, nacionalista e idealizador.

No entanto, a racionalização da tradição romântica deve ser reconhecida como ponto de distinção da obra sousandradina dentro das manifestações “corriqueiras” de nosso Romantismo. Sua linguagem transborda os limites conservadores do cânone romântico consagrado no Brasil e, por isso, não seria compreendida dentro desse movimento. O próprio Sousândrade (apud WILLIAMS, 1976, p. 14) afirma: “Ouvi dizer já por duas vezes que ‘O Guesa Errante’ será lido cinqüenta anos depois; entristeci – decepção de quem escreve cinqüenta anos antes”.

Essa singularidade não leva, como já salientamos, a uma ruptura com o ideário romântico, mas sim a uma nova perspectiva em relação à heterogeneidade do movimento. Fazendo uma distinção dentro do Romantismo, Paz (1984) salienta que esse movimento apresenta duas vertentes: uma que valoriza a emotividade como elemento máximo, levando a uma espécie de supervalorização do impulso primário, revelando, assim, uma profunda impulsividade e eloqüência; e uma segunda vertente, na qual a postura emotiva aparece permeada por uma certa racionalidade que busca condensar o veio impulsivo da primeira vertente.

Segundo o crítico, foi a primeira vertente que determinou a formulação canônica consagrada no movimento romântico brasileiro. Na segunda vertente, mais racional, figurariam nomes como Nerval, Nodier, Hölderlin, poetas que souberam redefinir o veio consagrado e, por esse motivo, ficaram longo tempo à margem da valorização literária. É a essa vertente racional que aproximamos o procedimento poético sousandradino. Haroldo de Campos (1976, p. 18) toca nessa questão ao afirmar que “nosso Romantismo poético – [...] é um Romantismo defasado e epigonal, extremamente dependente dos modelos europeus, [...] principalmente, dos paradigmas ‘extrínsecos’ (a oratória hugoana, o intimismo soluçante de Musset, a religiosidade lacrimatória de Lamartine)”.

Em oposição a essa corrente epigonal, o crítico salienta a existência de um Romantismo “crítico”, baseado na apropriação crítica dos valores emotivos predominantes no Romantismo canônico.

Diante do exposto, poderíamos dizer que a obra sousandradina não pode ser entendida completamente sem levar-se em conta que o poeta distanciou-se da linha predominante em nosso Romantismo. A interposição do “externo” ao “interno” revela a consciência da diferença entre a cultura do conquistador e a cultura indígena; em outras palavras, o poeta soube manipular a tradição para atingir uma toada distinta da de seus contemporâneos e, com isso, vislumbrar uma individualidade mais próxima do elemento nativo.

continua…

Fonte:
Revista Linguagem em (Dis)curso, volume 4, número 2, jan./jun. 2004

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia III)

CANSA SENTIR QUANDO SE PENSA

Cansa sentir quando se pensa.
No ar da noite a madrugar
Há uma solidão imensa
Que tem por corpo o frio do ar.

Neste momento insone e triste
Em que não sei quem hei de ser,
Pesa-me o informe real que existe
Na noite antes de amanhecer.

Tudo isto me parece tudo.
E é uma noite a ter um fim
Um negro astral silêncio surdo
E não poder viver assim.

(Tudo isto me parece tudo.
Mas noite, frio, negror sem fim,
Mundo mudo, silêncio mudo -
Ah, nada é isto, nada é assim!)

CERCA DE GRANDES MUROS QUEM TE SONHAS

Conselho


Cerca de grandes muros quem te sonhas.
Depois, onde é visível o jardim
Através do portão de grade dada,
Põe quantas flores são as mais risonhas,
Para que te conheçam só assim.
Onde ninguém o vir não ponhas nada.

Faze canteiros como os que outros têm,
Onde os olhares possam entrever
O teu jardim com lho vais mostrar.
Mas onde és teu, e nunca o vê ninguém,
Deixa as flores que vêm do chão crescer
E deixa as ervas naturais medrar.

Faze de ti um duplo ser guardado;
E que ninguém, que veja e fite, possa
Saber mais que um jardim de quem tu és -
Um jardim ostensivo e reservado,
Por trás do qual a flor nativa roça
A erva tão pobre que nem tu a vês...

CESSA O TEU CANTO!
Cessa o teu canto!
Cessa, que, enquanto
O ouvi, ouvia
Uma outra voz
Com que vindo
Nos interstícios
Do brando encanto
Com que o teu canto
Vinha até nós.

Ouvi-te e ouvi-a
No mesmo tempo
E diferentes
Juntas cantar.
E a melodia
Que não havia.
Se agora a lembro,
Faz-me chorar.

CHOVE. É DIA DE NATAL

Chove. É dia de Natal.
Lá para o Norte é melhor:
Há a neve que faz mal,
E o frio que ainda é pior.

E toda a gente é contente
Porque é dia de o ficar.
Chove no Natal presente.
Antes isso que nevar.

Pois apesar de ser esse
O Natal da convenção,
Quando o corpo me arrefece
Tenho o frio e Natal não.

Deixo sentir a quem quadra
E o Natal a quem o fez,
Pois se escrevo ainda outra quadra
Fico gelado dos pés.

CHOVE. HÁ SILÊNCIO, PORQUE A MESMA CHUVA

Chove. Há silêncio, porque a mesma chuva
Não faz ruído senão com sossego.
Chove. O céu dorme. Quando a alma é viúva
Do que não sabe, o sentimento é cego.
Chove. Meu ser (quem sou) renego...

Tão calma é a chuva que se solta no ar
(Nem parece de nuvens) que parece
Que não é chuva, mas um sussurrar
Que de si mesmo, ao sussurrar, se esquece.
Chove. Nada apetece...

Não paira vento, não há céu que eu sinta.
Chove longínqua e indistintamente,
Como uma coisa certa que nos minta,
Como um grande desejo que nos mente.
Chove. Nada em mim sente...

CHOVE ? NENHUMA CHUVA CAI...

Chove ? Nenhuma chuva cai...
Então onde é que eu sinto um dia
Em que ruído da chuva atrai
A minha inútil agonia ?

Onde é que chove, que eu o ouço ?
Onde é que é triste, ó claro céu ?
Eu quero sorrir-te, e não posso,
Ó céu azul, chamar-te meu...

E o escuro ruído da chuva
É constante em meu pensamento.
Meu ser é a invisível curva
Traçada pelo som do vento...

E eis que ante o sol e o azul do dia,
Como se a hora me estorvasse,
Eu sofro... E a luz e a sua alegria
Cai aos meus pés como um disfarce.

Ah, na minha alma sempre chove.
Há sempre escuro dentro de mim.
Se escuro, alguém dentro de mim ouve
A chuva, como a voz de um fim...

Os céus da tua face, e os derradeiros
Tons do poente segredam nas arcadas...

No claustro seqüestrando a lucidez
Um espasmo apagado em ódio à ânsia
Põe dias de ilhas vistas do convés

No meu cansaço perdido entre os gelos,
E a cor do outono é um funeral de apelos
Pela estrada da minha dissonância...

COMEÇA A IR SER DIA

Começa a ir ser dia,
O céu negro começa,
Numa menor negrura
Da sua noite escura,
A Ter uma cor fria
Onde a negrura cessa.

Um negro azul-cinzento
Emerge vagamente
De onde o oriente dorme
Seu tardo sono informe,
E há um frio sem vento
Que se ouve e mal se sente.

Mas eu, o mal-dormido,
Não sinto noite ou frio,
Nem sinto vir o dia
Da solidão vazia.
Só sinto o indefinido
Do coração vazio.

Em vão o dia chega
Quem não dorme, a quem
Não tem que ter razão
Dentro do coração,
Que quando vive nega
E quando ama não tem.

Em vão, em vão, e o céu
Azula-se de verde
Acinzentadamente.
Que é isto que a minha alma sente ?
Nem isto, não, nem eu,
Na noite que se perde.

COMO A NOITE É LONGA !

Como a noite é longa !
Toda a noite é assim...
Senta-te, ama, perto
Do leito onde esperto.
Vem p'r'ao pé de mim...

Amei tanta coisa...
Hoje nada existe.
Aqui ao pé da cama
Canta-me, minha ama,
Uma canção triste.

Era uma princesa
Que amou... Já não sei...
Como estou esquecido !
Canta-me ao ouvido
E adormecerei...

Que é feito de tudo ?
Que fiz eu de mim?
Deixa-me dormir,

Dormir a sorrir
E seja isto o fim.

Fonte:
Fernando Pessoa. Cancioneiro.
Imagem formatada com sobreposição de figuras modificadas com imagens obtidas na internet, sem identificação do autor.

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) 6. O Homem que Fuma

Vou deixar o hábito de ler no bonde, hábito estúpido. Ver o homem viver é mais interessante doque ler as histórias do que ele faz e pensa, (ou pensa que pensa.) É certo que no bonde, geralmente, salvo numerosas exceções, vai quieto e sorumbático. Mas onde quer que esteja, e como quer que esteja respira humanidade. E os seus gestos e momos mais fugitivos são debuxos descosidos do grande jogo de cena que faz a dramaticidade da história.

"Todo ser humano é para mim um templo, e eu gostaria mais de distinguir os traços originais, as leves pinceladas que aí se encontram, do que de ver o famoso quadro da Transfiguração de Rafael." Esta opinião de Sterne em sua Viagem Sentimental, é justamente a minha. Honra a Sterne. -Só divirjo dele em que não gosto apenas dos traços originais, mas de todos. Aliás, no fundo, cada homem é sempre uma síntese original, um composto único, um exemplar sem parelha. A nossa visão grosseira ou a nossa necessidade e sede de catalogação é que nos obriga a converter as semelhanças em identidades e as analogias em semelhanças, a criar espécies e gêneros para ver o indivíduo, única realidade tangível, único depósito real de humanidade vivente e vibrante.

Viajei ao lado de um homem que, pela casca, devia ser negociante de secos e molhados. Era, de fato. Cheirava a suor, tinha os dedos grossos e encardidos, trazia um casaco de casimira cinzenta semeado de respingos, coscorões e tintas de varias cores. Contudo, carregava relógio com uma grossa cadeia de ouro, guardava na pupila a chispa da independência e, enfim, tinha esse ar de cavaleiro garbosamente escarranchado em cavalgadura mansa, tão próprio dos homens classificados e prósperos.

Mascava um toco de charuto, soltando baforadas na cara dos vizinhos, entre os quais havia senhoras de várias idades, formatos e cores. Não lhe ocorria sequer a idéia de que pudesse incomodar. Isso me irritou, e figurei-me logo esse mesmo homem, em mangas de camisa, por trás do balcão a desfazer-se em mesuras com os habítués do parati e em gatimonhas gentis com as cozinheiras.

Portanto, um abjeto ganhador de níqueis? um tipo que se faz calculadamente macio e untuoso quando lhe convém, altaneiro e maroto quando não depende? Não será bem isso. Para ele, ser paciente e obsequioso com a freguesia é uma forma de virtude. Disto se ufana. Ensina essa virtude ao caixeirinho, ensina-a aos filhos, e está candidamente plantado na convicção de que o Bem é uma coisa que logo se reflete na gaveta.

No bonde, o Sr. Joaquim já não é um negociante, é um passageiro. Aí, já não sente os limites que de ordinário lhe circunscrevem a personalidade, pungindo-lhe a carne; dá liberdade ao corpo; reveste, como uma roupa larga, os gestos e modos comuns do passageiro.

A este não lhe incumbem senão três coisas: pagar a passagem, não fumar nos três primeiros bancos, e só ocupar o lugar de uma pessoa -o que não é difícil, a menos que tenha um volume incapaz de redução à unidade, na aritmética dos bondes. De resto, todos iguais perante o condutor e o motorneiro. Todos podem, ser brutos, dentro das regras, bastante amplas, que presidem a vaga polícia dos carros. -O Sr. Joaquim está igualmente compenetrado deste princípio, que da mesma forma já se lhe incorporou à maquinalidade dos reflexos.

Ora, quem estiver isento de culpa, esse lhe atire a primeira pedra! Todos, nesta vida, cada um a seu modo, não fazem senão aquilo que faz o Sr. Joaquim. Todos, no fundo, vendeiros amabilíssimos com a freguesia, e passageiros que fumam nos bondes da vida muito à sua vontade.

Onde estão a originalidade do Sr. Joaquim? Eis o que não pude descobrir, mas tenho a certeza de que lá está, dentro dele, como uma pérola no ventre de um galo. Questão de tempo e de paciência. – Há criaturas difíceis de decifrar. São enigmas que a Vida compõe para os propor a Deus, o grande matador de todas as charadas.

Fonte:
Domínio Público

Marcelo Spalding (A Literatura Infanto-Juvenil Que Vem de Longe)

O livro sobre o qual escreverei hoje é um dos mais delicados, bonitos e profundos textos de literatura infanto-juvenil que já conheci. Por seus méritos literários e humanísticos (que talvez sejam os mais importantes), deveria figurar na lista de compra do MEC, entre os finalistas dos grandes prêmios, nas vitrines das livrarias. Não vai. Possivelmente (e isso é triste como o final da história) terá poucos e encantados leitores, alguns elogios como esse na internet, mas não conseguirá emergir da enxurrada de textos juvenis publicados.

 Comecemos, então, por aí. A menina que veio de longe (2012, 82 p.) é o livro de estreia da contadora de histórias Andréa Ilha, professora da rede municipal de Caxias do Sul e moradora de Farroupilha, RS. Num tempo em que livros e mais livros são escritos para vender e distrair, distrair e vender, com histórias repletas de aventura e divertimento, A menina que veio de longe é um livro que faz pensar. Não que as palavras sejam difíceis; os temas é que o são. Difíceis — e complexos — como a vida.

 Mas não é por isso que A menina que veio de longe não chegará aos tantos leitores que o amariam. E nem pela ausência de ilustrações internas, num mercado sedento por livros para serem vistos, não para serem lidos. O livro não vai ter o destaque merecido porque Andréa é uma escritora iniciante aqui no canto do Brasil; porque Andréa não faz salamaleques para a imprensa e não assina coluna em jornal; porque Andréa é professora municipal como tantas e trabalha muito; não é modelo, atriz, filha de famoso ou ex-BBB. E, talvez o mais decisivo, por tudo isso o livro foi lançado pela própria autora e não traz em sua capa um selo capaz de negociar com as livrarias, com o governo ou com os prêmios literários.

 Sim, leitores, infelizmente em muito prêmios escolhe-se o livro sem ir além das capas (o festejado Portugal Telecom posso dizer que é um deles). E o governo só faz as generosas compras para o MEC das editoras por ele cadastradas (que além de não serem muitas, concentram-se sobremaneira no eixo Rio-SP). Mas aquele que abrir a capa e buscar o texto de Andréa Ilha terá uma das maiores e melhores surpresas que se pode ter no mundo literário: descobrir uma grande história.

 A história começa fiel ao título, com a narradora saindo da cidade em que nasceu e vindo para Porto Alegre, cidade da família da mãe. A menina, sabe-se já pela capa, e é dito no começo, é mulata. Mas eis um dos primeiros méritos do livro: isso é uma informação, não o tema da história. A menina é mulata como poderia ser loira ou ruiva.

 A mudança de cidade, aos poucos, se revela apenas a ponta do iceberg, consequência de problemas maiores, não causa. E a trama vai se tornando bem mais complexa. Logo no começo, depois de chegarem em Porto Alegre, os pais da menina Dulce partem para tentar a vida no Canadá, deixando a menina com muita saudade e sob cuidados da avó. O incrível é que, aos poucos, percebemos que esses pais não são exatamente os pais dos livros infanto-juvenis, sempre tão íntegros e amorosos e perfeitos. Não, os pais aqui somem, não têm tempo, têm medo, fraquezas. Os pais não são heróis, tampouco vilões. São personagens complexos como os pais de fora dos livros. Vejamos esse trecho em que um amigo de Dulce fala sobre sua família:

 "— Sabe o que é, Dulce? — o Vítor saiu falando, com o rosto cada vez mais vermelho, e a voz um pouco trêmula — É que eu fui abandonado pela minha mãe. Quando eu e os meus irmãos, quando a gente era bem pequeno. A mãe conheceu um outro cara e foi embora com ele. Eu até me lembro de ter visto ela saindo com ele, indo embora no carro dele. Eu chorei muito, mas sempre fiquei esperando que ela ia voltar de novo. Mas ela não voltou. E ficamos só com o pai. Mas o pai trabalha tanto, tanto, que quase a gente não vê ele. É muito chato, e eu fico triste com isso, tem dias que eu chego até a ter saudade dele."

 É esse realismo sincero e sem melodramas que chama a atenção no livro. Não é o primeiro a fazer isso, claro, mas o faz com leveza, profundidade. A narradora menina é obrigada a lidar com sentimentos e problemas que passam longe de sua idade, mas perto demais de sua casa. E de tantas casas.

 Engana-se, porém, quem espera uma leitura pesada. Andréa cria na história um espaço lúdico, um mato fantástico e um ser em forma de cone que convivem sem dificuldades com a narrativa realista, dando um tom de suspense e ajudando sobremaneira nas cenas mais densas. Nesse aspecto lembra filmes como O Labirinto do Fauno ou O Jardim Secreto.

 Embora pareça paradoxal, o tom que predomina é de pureza. Tal pureza da narrativa é bem representada, por exemplo, na fala final de Vítor, o melhor amigo de Dulce, uma fala curta que talvez sintetize o grande sonho que todos nós tivemos um dia, e também nossos pais, avós, bisavós, de geração para geração:

 "- Nunca na minha vida eu vou precisar de outra pessoa. Eu tenho tu! Quando a gente fizer quatorze anos, eu vou te pedir em namoro pra vó. Ela vai deixar, e a gente vai namorar, e, depois, com dezoito ou dezenove, a gente vai casar. Mas a gente só vai ter filhos bem mais tarde, que é pra gente estudar, se curtir um montão, só os dois, e juntar dinheiro pra ter uma vida bem legal com as crianças. E, daí, a gente nunca, mas nunca mesmo, vai deixar os filhinhos da gente! A gente vai ficar junto com eles, sempre junto, até eles crescerem felizes de serem amados pelos pais bons que a gente vai ser!"

 As coisas, nós sabemos, às vezes não saem como o planejado. Mas o final do livro, para um leitor jovem, é reconfortante. E para um adulto, aparentemente previsível. Só aparentemente, porque esse não é o verdadeiro final, já é o epílogo, a coda de um final trágico, porém necessário. Realista.

 Nem é preciso dizer que eu quero muito estar errado, quero muito que o livro seja descoberto e distribuído para as tantas e tantas crianças que nao têm a família pefeita dos comerciais de TV. É possível que da mesma pena de Andréa saiam outros e outros livros e a obra consiga o merecido destaque nessa geleia geral que virou nossa literatura juvenil. Ou, quem sabe, que essa resenha caia nas mãos de um editor atento e ele pelo menos abra o livro, deixando-se cativar pela simplicidade do texto e emocionar-se pela profundidade da trama.

 O problema maior é que A menina que veio de longe é, sem duvidas, apenas um símbolo da quantidade de belas obras publicadas em todo o Brasil que nós sequer conhecemos, já que não são lucrativas para as livrarias (sempre tão sedentas por blockbusters estrangeiros). O que pode estar acontecendo é que temos muitos bons escritores, mas talvez estejam rareando os bons leitores.
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Sobre o Autor do Artigo
Marcelo Spalding é formado em jornalismo e mestre em Literatura Brasileira pela UFRGS, professor da Oficina de Criação Literária da Uniritter, editor do portal Artistas Gaúchos, autor dos livros 'As cinco pontas de uma estrela', 'Vencer em Ilhas Tortas', 'Crianças do Asfalto', 'A Cor do Outro' e 'Minicontos e Muito Menos', membro do grupo Casa Verde e colunista do Digestivo Cultural. Recebeu o Prêmio AGES Livro do Ano 2008 pelo livro 'Crianças do Asfalto', categoria Não-Ficção, e o Prêmio Açorianos de Literatura em 2008 pelo portal Artistas Gaúchos.

Fonte:
http://www.artistasgauchos.com.br/portal/?cid=707

Danglei de Castro Pereira (Sousândrade: tradição e modernidade) Parte II

2.1 O cânone romântico brasileiro

O cânone consagrado em nosso Romantismo, amplamente discutido por Edgar Cavalheiro (1959), figuraria como o resultado de uma exposição de valores nacionais influenciados esteticamente por um olhar europeu. Segundo Cavalheiro (op. cit.), poder-se-ia delimitar, dentro da complexidade do movimento, características comuns entre as manifestações de nosso Romantismo. Dentre as quais, as principais seriam: i) o abandono ao cânone clássico, o que implica antes de tudo na mudança da noção de belo artístico e a conseqüente negação da cultura greco-romana; ii) a valorização de temas e traços particulares de cada região e, por fim, iii) a valorização do traço subjetivo, pois a expressão romântica passaria a ser centrada na individualidade e não na obra em si.

Para Cavalheiro (op. cit.), a tendência romântica à valorização das peculiaridades inerentes a cada região assume a função de distinguir a corrente brasileira das influências externas. Essa distinção, conseguida através da interação entre a visão subjetiva e a realidade, fez com que o olhar subjetivo revelasse uma supervalorização do espaço brasileiro em uma atitude marcadamente emotiva. O poeta romântico brasileiro, assolado pelo furor nacionalista, cantou o território brasileiro como o melhor e o mais belo do mundo e, nesse processo, plasmou um olhar utópico que, em muitos casos, aproxima-se da impulsividade emotiva perceptível na vertente epigonal.

A esse respeito podemos lembrar Gonçalves Dias.[ii] Em “Canção do Exílio”, por exemplo, a valorização do natural e a afirmação patriótica, associadas a uma esperança no futuro, podem ser entendidas como constantes canônicas de nosso Romantismo. Em poemas como “O canto do Piaga” e “I-Juca-Pirama”, é possível identificar o elemento natural como a expressão do “genuinamente” brasileiro. Em “Leito de folhas verdes”, Gonçalves Dias sintetiza, na figura da mulher indígena, a pureza dos elementos naturais. “A flor que desabrocha ao romper d’alva” pode ser entendida como uma metáfora da própria nação brasileira à espera da plenitude do porvir.

Essa postura nos leva a afirmar que existe, no cânone romântico brasileiro, uma tendência à pacificação do sujeito pelo traço natural. A expressão de sentidos positivos ligados a esse ambiente atenua o sofrimento do Eu em conflito com o mundo. A identificação entre o Eu e a natureza sintetiza a negação da realidade agressora, pois a pureza da natureza seria para o romântico um dos mecanismos utilizados para a efetivação do ímpeto transcendente. O artista tende a ver no espaço natural uma função catártica, pois procura, por meio da equiparação à pureza do espaço, resgatar sua plenitude perdida no contato com o mundo civilizado. O natural, visto por esse prisma, revela o desejo de purificação do Eu e, por esse motivo, passa a ser ponto de equilíbrio entre o homem e o mundo.

Dentro desse traço catártico, as imagens ligadas ao natural estão, quase sempre, em harmonia e remetem a uma paz interior. Reportemo-nos aos versos de “Quadras de minha vida”, de Gonçalves Dias: “De bela flor vicejante,/ E da voz imensa e forte/ Do verde bosque ondulante...”. Aqui, o elemento natural é visto como purificador do Eu romântico, que procura afirmar-se como parte integrante da harmonia natural. O tom ameno e singelo, percebido na adoção de imagens delicadas como o céu azul e límpido, o campo verdejante, a alvura das nuvens, o rio limpo que segue seu curso, a beleza das flores, a pureza da amada comparada à mãe e à irmã, entre outros, teriam a função de reafirmar a ligação do sujeito com o estado de pureza da natureza.

Alfredo Bosi (1993, p. 245) observa que a linguagem romântica tende a buscar a equiparação ao natural com o intuito purificador, uma vez que “a metáfora romântica mais simples é sempre a que se funda sobre alguma correlação entre paisagem e estado de alma”. Dessa forma, o apego ao natural representaria a busca por purificação do mundo corrompido que degrada o sujeito. Daí a predisposição romântica a se fixar na exposição do traço exótico e exuberante de nossa natureza tropical, pois quanto mais intocada a natureza, mais o sujeito se identificará com esse ambiente de pureza.

A religiosidade seria outro pólo explorado pelo sujeito como fonte de purificação para os desequilíbrios do mundo empírico. Em “Sobre o túmulo de um menino”, Gonçalves Dias mostra a imagem angelical da criança morta como forma de amenizar o sofrimento da perda: “O invólucro de um anjo aqui descansa/ [...] Como o’ferenda de amor ao Deus que o rege; / Não perguntes quem foi, não chores; passa”. Na temática romântica, o traço religioso, visto como fonte de esclarecimentos e explicações para a degradação do homem pela realidade, pode ser entendido como um prolongamento do elemento natural.

Dada à tendência romântica de idealização da realidade, o aflorar dessa tentativa de pacificação exprime-se por uma profunda emotividade. Nessa tentativa de transformar o mundo, a castidade, a pureza angelical, o homem e a mulher quase perfeitos serão valorizados e largamente utilizados pelos artistas românticos. Nos versos do poema “Rôla” de Gonçalves Dias: “Amo-te, quero-te, adoro-te/ Abraso-me quando em ti penso,” é notável como o sentimento amoroso figura como fonte de plenitude. Em “Se se morre de amor”, de Gonçalves Dias, o lirismo deixa transparecer essa atitude idealizada, devendo ser preservado em sua plenitude.

A pureza, então, passa a ser vista como fonte da plena realização do desejo transcendente e, uma vez profanada, gera a dilaceração da plenitude do Eu: “amá-la, sem ousar dizer que amamos,/ E temendo roçar os seus vestidos,/ Arder por afogá-la em mil abraços:/ Isso é amor, e desse amor se morre!” (Gonçalves Dias). A plenitude concretiza-se na impossibilidade, o sujeito idolatra a amada à distância; é como se a proximidade destruísse a idealização. Nos momentos em que o desejo de profanação materializa-se, o sujeito transfigura o “perfeito”, degradando a figura divinizada.

Essa possibilidade de degradação imanente ao espírito romântico, muitas vezes proporciona um amargor em relação à visão positiva do sujeito com o mundo (Eu pacificado pelo natural). Nesse caso, o pessimismo invade o espaço eufórico, levando à angústia e à melancolia. O universo natural, transfigurado em negatividade e sofrimento, passa a agressor, perpetuando o desequilíbrio do Eu. É o “mal du siècle”, momento em que o Eu torna-se irônico por assumir uma posição consciente face sua inquietação com o mundo.

Segundo Octavio Paz (1984), a ironia advém da constatação da dualidade do homem. É justamente a consciência dessa situação que proporciona a angústia e o pessimismo do Eu romântico. O sujeito inverte a apreciação positiva e se torna sarcástico, brincando com a impossibilidade de realização do equilíbrio. Tal postura romanesca é caracterizada por Bosi (1993, p. 248) como uma “inversão do liame tradicional”, pois o dia é relegado à noite, a beleza, ao grotesco; a vida, à morte; a pureza, à depravação; a perfeição, à imperfeição.

Essa postura negativa leva o Eu romântico a ver na morte o elemento de purificação do espírito, agora transfigurado em sofrimento e dor pela passagem inerte e vazia pela vida. Nessa fase de desespero e agonia, é comum a incorporação de elementos como a prostituta, o fluir inútil do tempo e das esperanças, a noite fantasmagórica, a fixação na lápide e no sepulcro, entre outros. É como se o poeta negasse sua vida atormentada para ver, na morte, o elemento de regresso ao equilíbrio perdido.

Em sua procura por transcendência, o artista romântico plasma um discurso extremamente inusitado, adotando uma linguagem “culta”, recheada de metáforas, sinestesias, paralelismos, hipérboles, entre outras figuras de linguagem. A preocupação formal em exprimir a emotividade produz um efeito paradoxal, pois, ao tentar ser genuinamente emotivo e atingir a “pureza expressiva”, o artista racionaliza esse impulso no momento de concretizá-lo em linguagem.

Tal procedimento produz uma espécie de aprisionamento do Eu pela linguagem. Musset (1835) expressa muito bem esse aprisionamento ao afirmar que as palavras atrapalham a plena expressão romântica. Não sendo suficiente para a expressão total do sujeito, a língua limita seu ímpeto primário e passa a ser explorada enquanto extrapolação expressiva.

Desse modo, o Romantismo representou uma reformulação da linguagem, pois, na tentativa de extrair dela seu significado mais profundo, o sujeito usou os recursos formais para atingir a perfeição expressiva. No dizer de Blanchot (1988, p. B-3), o movimento romântico buscou “o cerne da palavra para extrair dela a pureza expressiva”. Daí termos, nesse período, o chamado “barroquismo”, entendido, aqui, como trabalho estético com a palavra para atingir um plano expressivo mais próximo do desejado pelo espírito romântico.

Nesse sentido, o Romantismo brasileiro, marcado por uma profunda emotividade, plasmou no campo lingüístico uma atmosfera de valorização do elemento nacional como fator de individualização de nossa realidade. Foi o momento de afirmação de nossa identidade nacional, representando uma verdadeira revolução do ponto de vista expressivo. Como bem observa Manuel Bandeira (1963), o Romantismo foi o momento em que o Brasil expressou verdadeiramente sua cultura através da literatura.

Essa constante auto-afirmadora não impediu, no entanto, que nosso Romantismo sofresse interferências externas. É notável como artistas românticos europeus como Byron, Lamartine, Victor Hugo, Chateaubriand e tantos outros influenciaram nossos poetas. Esse perene “olhar para fora” determinou um caráter europeu imanente a nossa vertente canonizada, já que o Romantismo brasileiro tradicional ou conservador moldou a “cor local”, tendo como paradigma as influências externas.

Para Manuel Bandeira (1963, p. 66), “a poesia romântica enche o século, de 36 até os primeiros anos da década de 80, renovando-se através das gerações, não na forma – vocabulário, sintaxe, métrica – a que se manteve sensivelmente fiel, mas nos temas, no sentimento e no tom.”. Apresentando algumas tentativas de mapeamento da diversidade temática romântica, assim Bandeira divide o ideário:

Pondo-se de parte as pequenas diferenciações individuais, pode-se distribuir a evolução romântica em três momentos capitais: o inicial, em que à inspiração religiosa, base da poesia de Magalhães e Porto Alegre, reflexo da de Lamartine, acrescentou Gonçalves Dias a que buscava assunto na vida dos selvagens americanos; o segundo, representado pela escola paulista de Álvares de Azevedo e seus companheiros, onde predominou o sentimento pessimista, o tom desesperado ou cínico de Byron ou Musset; e finalmente o terceiro, o da chamada escola condoreira, de inspiração social, a exemplo de Hugo e Quinet. (BANDEIRA, 1963, p. 66)

Como podemos perceber, cada momento representou um posicionamento subjetivo em relação à realidade. O nacionalismo religioso, o pessimismo egocêntrico, o lirismo amoroso e os problemas sociais forneceram o cabedal temático ao nosso Romantismo que, permeado pelas interferências externas, formaria a diversidade de nossa arte romântica.

Ao tentar resumir rapidamente o cânone poético brasileiro consagrado no século XIX, Luiz Costa Lima (2001) assim se manifesta:

Suponho que me tivessem dado a tarefa de dizer em poucas palavras em que consistiria o cânone poético que, consagrado no século 19 brasileiro, se mantém até hoje. Proporia a fórmula seguinte: tematicamente, o poeta há de mostrar apreço pela moral e os bons costumes enquanto aclimata seus cenários à natureza tropical; estilisticamente, trovões de eloqüência estremecem uma superfície sentimental – embalante. Castro Alves (1847-1817) e Gonçalves Dias (1823- 1864) são seus paradigmas, seguidos a certa distância por Álvares de Azevedo, Fagundes Varela e o inefável Casimiro. (Folha de S. Paulo, 25/03/2001)

Nas palavras de Lima (op. cit.) é possível confirmar que o ideário romântico brasileiro foi marcado profundamente pelo que podemos chamar de uma “eloquência natural”. No entanto, essa visão conservadora, amplamente difundida pelos manuais de Literatura em nosso país, apresenta uma visão limitada de nossa diversidade romântica. O Romantismo brasileiro, a nosso ver, foi muito mais complexo e heterogêneo. Lobo (1986) comenta que:

[…] o estudo minucioso do emprego de fontes e temas predominantes no Romantismo talvez nos leve posteriormente a encontrar uma Gestalt de uma contra-ideologia existente no seio de escritores românticos marginais e esquecidos pela história da literatura romântica oficial. (LOBO, 1986, p. 24)

Concordando com Lobo, diremos que essa contra-ideologia pode ser encontrada não só em autores marginais, mas também nos chamados grandes autores do Romantismo brasileiro, o que proporcionaria uma revisão do ponto de vista conservador predominante na delimitação de nosso cânone romântico.

Fonte:
Revista Linguagem em (Dis)curso, volume 4, número 2, jan./jun. 2004

Casimiro de Brito (Poesias Escolhidas)

A PAZ

Se eu te pedisse a paz, o que me darias
pequeno insecto da memória de quem sou
ninho e alimento? Se eu te pedisse a paz,
a pedra do silêncio cobrindo-me de pó,
a voz limpa dos frutos, oque me darias
respiração pausada de outro corpo
sob o meu corpo?

Perdoa-me ser tão só, e falar-te ainda
do meu exílio, Perdoa-me se não te peço
a paz.
apenas pergunto: - O que me darias
em troca se te pedisse? O Sol? A Sabedoria?
Um cavalo de olhos verdes? Um campo de batalha
para nele gravar o teu nome junto ao meu?
Ou apenas uma faca de fogo, intranqüila,
no centro do coração?

Nada te peço, nada. Visito, simplesmente,
o teu corpo de cinza. Falo de mim,
entrego-te o meu destino. E a morte vivo
Só de pergumtar-te: - O que me darias
se te pedisse a paz
e soubesses de como a quero construída
com as matérias vivas da liberdade?
===

LIVRO DAS QUEDAS

Se o mundo não tivesse palavras
a palavra do mar, com toda a sua paixão,
bastava. Não lhe falta
nada: nem o enigma nem
a obsessão. Entregue ao seu ofício
de grande hospitaleiro
o mar é um animal que se refaz
em cada momento.
O amor também. Um mar
de poucas palavras.

UM CORPO UM PAÍS

primeira biografia

 Frente ao mar
meu corpo ardente e nu de marinheiro pelo sangue.
Fervem-me nas veias
um milhão de ondas em repouso
Em meus olhos cativos e saudosos
— imagem da minha solidão imensa —
o abraço que me une a ti
                                      ó mar
deus pagão de olhar luminoso e belo!

 Recebe ó mar este afluente silencioso
que para ti corre
     e contigo se confunde:
o líquido cantão canto a quem me ligo
pelo drama de não ser só teu.

 PORTUGAL

(campo de concentração)

 Ocupado país ocupado e seco
  pelas unhas do sono
    e da usura
  pelo espinhento abandono
    da terra
pelas grades agressivas da Espanha
   e do mar
  sempre em volta

                           (a caminho da Europa)

 Transparente país despovoado
ao sol deitado

    Transparente país por fazer

    Entre paredes deixado
a apodrecer

LIBERDADE

 Como se de asas de tratasse
invoco teu nome liberdade.

 Procuro nos teus seios de lava
palavras nuas à beira da morte.

 Âncoras de sol,
frutos indistintos que prometam
um porto com a forma do corpo.

DA PEQUENA MORTE

 Alimento a tua pele silenciosa
enquanto renovas a paz do meu sangue
a morte o sismo a transparente crueldade
onde naufragamos agora

o pão e o sol e o canto inventamos

 A noite convoca o arco distendido
a ponte reconstruída dos corpos

Alimento com minha armas vagarosas
âncoras de sangue do mar libertas
a luz que nos unes até aos ossos até
ao núcleo em que terra e fogo desfazem
no corpo a pequena visitação da morte

 ESPAÇO CRUEL
 Neste espaço cruel
onde me perco onde encontro
neste espaço cruel onde o deserto
nos dá por companhia os próprios ossos
e a morte reflete a nudez de quem
no amor viajado contempla
de frente o sol

 Neste espaço cruel onde dos ossos somos deserto a própria companhia
e nos perdemos se nos
encontramos

 Neste espaço cruel
a morte nos domina e a morte
dominamos

DISSOLUÇÃO DO CORPO

Que mais tens para vender (estátua
De pequena estatura) além
Do pó? O que tens de comum com a morte
De teus irmãos? Viveste
Em caves sem lenha, bebeste
O vinho da ira, a neve
Do exílio — mas canta! Nem só pelo pão
Vive o homem; nem só de
Música. Também a posse mineral do silêncio
Te alimenta — a sombra venerável
Do sangue. Assim se destilam
Medo & cólera — bússolas esculpidas
Nas praias desertas
Do corpo. Ajustam-se
Os elementos cruciais
Da guerrilha; a explosão
Do sono; a vertigem colectiva desse fogo
Em oceanos de usura roubado, em ácidas matérias
 Silenciado— cinza pobre, arestas de cristal
Num corpo indissoluto. Armas
Sem lirismo
As tuas! Lâminas nuas
À beira da morte ah mas eu já não sei
Se vida ou morte existe — sílabas
Aguçadas no fermento quotidiano! Cantas —
Canto para limpar o tempo mínimo
Da estátua mais feminina, espátula
Sem repouso. Denuncias a memória
Dos tempos — desenvolves a fórmula
De onde se desprendem o júbilo, frutos luminosos e sal
Fresco
Por lacónicos materiais violentado. Águas
Sentadas
De povos, nações e línguas. Armas
Do vento as tuas — árida
Ariadna…

Fontes:
http://cantoepalavras.blogspot.com.br/2009/06/068-os-eternos-momentos-de-poetas-e.html
http://www.antoniomiranda.com.br/iberoamerica/portugal/casimiro_de_brito.html

Casímiro de Brito (1938)

Nasceu a 14 de janeiro de 1938, em Loulé (Algarve), Portugal.

Estudou em Londres "Westfield College".

Integrou, o Movimento "Poesia 61".

Foi, Presidente da "Associação Européia para a Promoção da Poesia".

Viajou para Bélgica, França, Espanha, Itália, Inglaterra, Canadá, África . . . divulgando a poesia e a leitura por ela.

Prémios como da "Imprensa Literária", "Associação Portuguesa de Escritores e da Secretaria de Estado e Cultura".

"Prémio Internacional de Poesia Versília (Viareggio). . .

Livros:
Ode & Ceia, 1955;
Prática da Escrita (ensaio), 1977;
Dom Quixote, 1985;
Imitação do Prazer (romance), 1980;
Labyrinthus, 1981;
Pátria Sensível (romance), 1983;
Contos da Morte Eufórica (ficção), 1984;
Duas Águas, um Rio, 1989;
Súbitamente o Silêncio, 1991 . . .

Fonte:
http://cantoepalavras.blogspot.com.br/2009/06/068-os-eternos-momentos-de-poetas-e.html

Betty Mindlin (O Céu Ameaça a Terra)

Meninos e meninas do povo ikolen-gavião, de Rondônia, sentam-se à noite ao redor da fogueira e olham o céu estrelado. Estão maravilhados, mas têm medo: um velho pajé acaba de contar como, antigamente, o céu quase esmagou a Terra. Era muito antes dos avós dos avós dos meninos, era no começo dos tempos. A humanidade esteve por um fio: podia ser o fim do mundo. Nessa época, o céu ficava muito longe da Terra, mal dava para ver o seu azul.

Um dia, ouviu-se trovejar, com estrondo ensurdecedor. O céu começou a tremer e, bem devagarinho, foi caindo, caindo. Homens, mulheres e crianças mal conseguiam ficar em pé e fugiam apavorados para debaixo das árvores ou para dentro de tocas. Só coqueiros e mamoeiros seguravam o céu, servindo de esteios, impedindo-o de colar-se à Terra. Talvez as pessoas, apesar do medo, estivessem experimentando tocar o céu com as mãos...

Nisso, um menino de 5 anos pegou algumas penas de nambu, mawir na língua tupi-mondé dos índios ikolens, e fez flechas. Crianças dos ikolens não podem comer essa espécie de nambu, senão, diz-se, ficam aleijadas. Era um nambu redondinho, como a abóbada celeste.

O céu era duríssimo, mas o menino esperto atirou suas flechas adornadas com plumas de mawir. Espanto e alívio! A cada flechada do garotinho, o céu subia um bom pedaço. Foram três, até o céu ficar como é hoje.

Em muitos outros povos indígenas, do Brasil e do mundo, há narrativas parecidas ou diferentes sobre o mesmo assunto. Fazem-nos pensar por que céu e Terra estão separados agora... O povo tupari, de Rondônia, por exemplo, conta que era a árvore do amendoim que segurava o céu. (Bem antigamente, dizem, o amendoim crescia em árvore, em vez de ser planta rasteira).

Antes do céu subir para bem longe, os ikolens podiam deixar a Terra e ir morar no alto. Iam sempre que ficavam aborrecidos com alguém, ou brigavam entre si, e subiam por uma escada de cipó. Gorá, o criador da humanidade, cansou de ver tanta gente indo embora e cortou o cipó, para a Terra não se esvaziar demais.

Fonte:
Revista Nova Escola: Contos

Lino Mendes (Pontos de Vista: Folclore, Cultura Tradicional)

Lino Mendes é de Montargil/Portugal
–––––––––––
Não obstante a UNESCO em 1989 ter definido o conceito de folclore, o respectivo entendimento não é o mesmo em todo o lado. Certo que cada país estará no direito de traçar as linhas do seu projecto cultural, mas torna-se necessário que se expliquem as coisas.

 Pessoalmente entendo que verdadeiramente identitário é o conceito que é regra no nosso país, onde como tradicional se devem entender os comportamentos, os usos, as vivências, os valores que qualquer grupo social, relevante culturalmente, utilizou durante o tempo suficiente para impor a marca local, independentemente da sua origem e natureza. Ora, e por exemplo, no Brasil, a tradicionalidade é entendida como uma continuidade através das gerações, onde os factos novos se inserem sem ruptura com o passado, e se constroem sobre esse passado. Mas o que me deixa confuso é  a afirmação de que para a elaboração da “Carta do Folclore Brasileiro” foram consideradas as Recomendações da UNESCO em 1989, quando os conceitos se enquadram e  Convenção de 2003.

É meu entendimento— atenção que não digo que é ou tem que ser assim, mas que é assim que eu o entendo, sendo bem vindas todas as achegas — que a CONVENÇÃO PARA A SALVAGUARDA DO PATRIMÓNIO CULTURAL IMATERIAL nada tem a ver com o Folclore ,que aliás a mesma UNESCO definiu em 1984. Tampouco define Património Imaterial, em que o folclore também  se integra ,fundamentalmente condiciona  as candidaturas ,pois nem todo o imaterial se pode candidatar, caso do folclore, pois logo na alínea 1 do Artº 2 da respectiva Convenção, é dito que para efeitos da mesma “o património cultural imaterial, transmitido de geração em geração, é permanentemente recriado pelas comunidades e grupos em função do seu meio, da sua interação com a natureza e a sua história, proporcionando-lhes um sentimento de identidade e de continuidade, contribuindo assim para promover o respeito pela diversidade cultural e a criatividade humana”

Ora, e a terminar por hoje, com estes meus pontos de vista, o que pretendo é a clarificação das coisas e não impor a “minha verdade”, pois para além de ser um aprendiz compulsivo, “aprender” é para mim um prazer. Como um grande amigo me dizia recentemente, ”embora sem subserviência o folclore precisa de humildade”

Fonte:
O Autor

Soares de Passos (Um Sonho)

Ah! si jamais le ciel j'était entre mes bras
un des songes vivants attachés à mes pas
LAMARTINE, Jocelyn.

Inefável sentir, branda tristura
Oh! quero-te sozinho aqui gozar...
Eu te amo, tu não tens essa amargura
Que nos seios, a mão da desventura
Costuma derramar.
Eu te amo qual amara a melodia
De terna e melancólica canção,
Ou o raio que o sol no fim do dia
Como um beijo d'adeus, saudoso envia
À rosa da soidão...
Oh! sim, eu te amo, ó mística saudade
Vem, quero no teu seio reclinar
A minha fronte, aqui na soledade
Como o lírio a que falta a humidade...
Sim... quero aí chorar...
Quantas vezes meu espírito elevando
Ao céu em tuas asas de marfim,
Os anjos um por um me andas mostrando!
Oh! se desse gentil, celeste bando
Tivesse um junto a mim!...
Qual fonte que em deserto ressequido
Dá conforto ao exausto viajor,
Se houvesse sobre a terra um ente qu'rido
Que terno respondesse a meu gemido
Com meigo hino d'amor!..

Que vejo? as auras fendendo
Nívea pomba eis desce a mim,
Do céu à terra descendo!...
«um génio, um querubim,
Já desceu e a mim chegando,
E meu pranto contemplando,
Já me uniu ao coração...,
E dois seios se entenderam,
E dois corações bateram
Em uma só pulsação...

Virgem que à terra vieste
Lá do seio do Senhor,
Deixaste o coro celeste
Pra vir dar-me o teu amor?
Vens os prantos enxugar-me
Vens no teu sorriso dar-me
O que ainda não senti?
Vens do amor e da ternura
Receber essa flor pura
Que eu guardava para ti?

Vem; tu surges qual estrela
Que surge meiga no céu
Quando após uma procela,
Se mostra pura e sem véu;
Tu surges qual meiga aurora,
Qual ao Nauta que o implora
Surge seu berço natal;
Oh! quero pois adorar-te...
Quero só viver d'amar-te...
A vida sem ti que vale?

Sim, aqui junto ao teu seio
Tudo o mais quero esquecer...
Nada no mundo receio;
Junto a ti que hei-de temer?
Este amor puro e ardente
Só bem o conhece e sente
Quem vive do coração,..
Cá na terra não no entendem,
Só os anjos o compreendem,
Só tu tens esse condão.

Tu eras, anjo, tu eras
Quem ao mundo em vão pedi:
Oh! escuta, se souberas
Todo o pranto, que verti!...
Mas meu pranto que importava?
O coração que eu buscava
No mundo não no achei...
Era em vão que lho pedia
O que só em ti havia,
O que em ti só encontrei.

Mas nós somos tão felizes!
É tão doce este viver!...
Oh! essas falas que dizes,
Torna-as, torna-as a dizer;
Essas falas de ternura
D'inocência e de candura
Quero escutá-las sem fim...
Diz-me, virgem celeste:
Os anjos, donde vieste,
São inocentes assim?

Tu és inocente e pura
Como a cecém ao abrir
Quando a aurora na candura
Lhe vem um beijo imprimir...
Por uma manhã formosa.
Quando desabrocha a rosa,
Quando o prado rescender,
Hei-de ir em cada florinha,
Em cada tenra folhinha,
A tua inocência ler...

Mas, repara neste dia
Como é lindo o seu fulgor!
Tudo nele é alegria,
Tudo palpita d'amor...
Não vês tu a natureza
Revestida de beleza
Nosso amor a festejar?
Não vês como nos convida
A lançarmo-nos na vida,
A vivermos para amar?

Eis pois, tudo olvidemos
Vivendo juntos aqui:
Eia, nosso amor gozemos;
Sê minha, vivo pra ti...
Sim, és minha, as nossas vidas,
As nossas almas unidas,
Quem as pode separar?
Até no último suspiro,
Como um anjo em leve giro,
Hão-de ao céu juntas voar!...

Um sonho... sim, um sonho e... feliz que ele era
Porém cedo fugiu...
Ai! não sei que terror, que medo gera
Esta mudez que impera
Dês que ele se esvaiu...
Pra quem sonhou na terra um céu d'amores
É tão triste o acordar!
E, qual apaga o íris suas cores,
Qual se vêem desbotar numerosas flores
Ver o sonho expirar!...
Meu Deus! só vejo um ermo onde caminho
Sem protectora mão,
Qual triste o peregrino vê sozinho,
Longe do pátrio ninho,
Do deserto que pisa a solidão!

Fonte:
Poesias de Soares de Passos. 1858 (1ª ed. em 1856). http://groups.google.com/group/digitalsource

Santos Dumont (O Que Eu Vi, o Que Nós Veremos) Parte 6, final

Primeiro trataremos do Campo dos Afonsos. Há dois anos o Exército, creio que reconhecendo a pouca praticabilidade desse Campo, o abandonou........ O Aero Club ali instalou o seu Campo de Aviação. Convidado pela diretoria desse clube, há anos, para visitar e dar a minha opinião sobre o dito Campo, disse que o achava mais do que ruim: achava-o péssimo. Aconselhei que procurassem uma grande planície ou, melhor ainda seria, que o Club se ocupasse primeiro da aviação náutica, já que nos deu a natureza um aeródromo náutico único no mundo. O Aero Club não seguiu os meus conselhos.
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É grande a minha tristeza ao ler que o Governo vai de novo tomar posse desse terreno para ali instalar o campo central de aeronáutica!!! Os franceses tiveram a sorte de encontrar bons campos perto de Paris, porém, as vantagens de um campo ótimo são tão grandes que eles foram instalar os seus novos campos quase no extremo da França, em Pau, onde encontraram imensas "landes". Eu estou certo que, ao sul, nós devemos possuir planícies iguais às de Pau, onde se poderá trabalhar sem perigo, nem para o futuro aviador, nem para o aeroplano e onde o ensino será infinitamente mais rápido, graças a poder-se empregar "Pingouins" para o ensino dos principiantes.
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Um principiante, que se familiarize com um desses aparelhos, necessitará de poucas lições para voar. Nos Estados Unidos as escolas de aviação estão muito longe da capital; estão onde se encontram bons campos.

Quanto à Escola naval, eu creio que ela não está mal na Ilha das Enxadas.
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A minha opinião é, pois: para o Exército, a escolha de um vasto campo no sul do Brasil, ou mesmo o de Santa Cruz. Para a Marinha, creio que se deve escolher uma base, para os seus hidroaeroplanos, o mais perto possível da cidade do Rio, que é onde vivem os oficiais e alunos. Aproveito esta ocasião para fazer um apelo aos senhores dirigentes e representantes da Nação para que dêem asas ao Exército e à Marinha Nacional. Hoje, quando a aviação é reconhecida como uma das armas principais da guerra, quando cada nação européia possui dezenas de milhares de aparelhos, quando o Congresso Americano acaba de ordenar a construção de 22.000 destas máquinas e já está elaborando uma lei ordenando a construção de uma nova série, ainda maior; quando a Argentina e o Chile possuem uma esplêndida frota aérea de guerra, nós, aqui, não encaramos ainda esse problema com a tenção que ele merece!

Rio de Janeiro, 16 de novembro de 1917.
Santos-Dumont.

S. Exa. agradeceu-me e disse-me que, no futuro, se tivesse necessidade de meus conselhos, me preveniria.
* *

O parque de meus dirigíveis, que se achava em St. Cloud, media um décimo de quilômetro quadrado. Quando me lancei na aviação procurei um maior, que foi o de Bagatelle; tinha perto de um quilômetro quadrado. Logo após de meu vôo de 250 metros, vi que este campo era demasiado pequeno e fui instalar-me em Issy-les-Moulinaux, — mais de um quilômetro quadrado — porém, cercado de casas; vi os defeitos. Fui então para St. Cyr, campo militar de somente alguns quilômetros quadrados, porém, contíguo a grandes planícies.
* *

Vêem, portanto, que dou imensa importância a um campo de aviação; dele depende o êxito na formação de aviadores: sinto pois, que o Aero Club, do qual tenho a honra de ser Presidente Honorário, não tenha seguido os meus conselhos, de abandonar, há muitos anos, o Campo do Afonsos; sinto que ele não tenha se servido do hangar que construí na praia Vermelha, ao lado do mais lindo dos aeródromos — a Baía de Guanabara.

Sei que o Aero Club, vai, agora, abandonar os Afonsos.
* *

É tempo, talvez, de se instalar uma escola de verdade em um campo adequado. Não é difícil encontra-lo no Brasil. Nós possuímos, para isso, excelentes regiões, planas e extensas, favorecidas por ótimas condições atmosféricas. Antes de tudo, porém, é preciso romper com o nosso preconceito de medir por metros quadrados um campo de aviação e de procura-los nos arrabaldes das grandes cidades.

Em França diz-se que um campo tem tantas dezenas de quilômetros quadrados; em Inglaterra e Estados Unidos, fala-se em milhas quadradas; no Chile e Argentina, fala-se em léguas quadradas; aqui, neste imenso e privilegiado Brasil, fala-se em "metros quadrados". É preciso considerar, antes de tudo, que, mesmo na hipótese de um milhão de metros quadrados isto seria apenas um quilômetro quadrado, apenas 1/36 de uma légua quadrada! Um aeroplano moderno, que faça 200 quilômetros por hora, partindo do centro de um campo de tais dimensões, em menos de 9 segundos estaria fora do perímetro do aeródromo!

Fora do aeródromo, está em zona perigosa, principalmente para os principiantes.

Não falemos nas desvantagens de morarem os alunos longe dos campos. Eles precisam dormir próximo à escola, ainda que para isso seja necessário fazer instalações adequadas, porque a hora própria para lições é, reconhecidamente, ao clarear do dia.
* *

O nosso governo possui, a duas horas do Rio de Janeiro, o esplêndido e vasto campo de Santa Cruz, com perto de duas léguas quadradas, absolutamente planas.

 O terreno onde houver cupim ou outras irregularidades não servirá.

Margeando a linha da Central do Brasil, especialmente nas imediações de Mogi das Cruzes, avistam-se campos que me parecem bons.

O campo de remonta do exército, no Rio Grande do Sul, deve ser ideal.

Sinto-me perfeitamente à vontade para falar com esta franqueza aos meus patrícios, para quem a minha opinião, porém, parece menos valiosa que para os americanos do norte e chilenos. Sinto-me à vontade porque ela é inspirada pelo meu patriotismo, jamais posto em dúvida, e nunca pelo meu interesse. Nunca me seduziu uma posição oficial ou remunerada, pois pretendo levar a vida que até hoje levei, dedicando o meu tempo às minhas invenções.

Há vinte anos que vivo para a aeronáutica, nunca tive privilégios, fiz vôos sempre ao lado do meu atelier para, apenas, verificar uma invenção de que nunca procurei auferir benefícios.
* *

Penso que, sob todos os pontos de vista, é preferível trazer professores da Europa ou dos Estados Unidos, em vez de para lá enviar alunos.

Estou certo que os rapazes brasileiros que fossem ao estrangeiro aprender a arte da aviação, se fariam esplêndidos e corajosos aviadores. Entretanto, não nos esqueçamos de que nem todo aviador é bom professor. Para ensinar uma arte não é bastante conhecer-lhe a técnica, mas é preciso, também, saber ensina-la.

É possível que, dentre 4 ou 6 rapazes que forem estudar na Europa, se encontre um, bom professor; isto, porém não passa de uma probabilidade. Mais acertado e mais seguro, portanto, seria escolher, desde logo, alguns bons professores, entre os muitos que há na Europa e nos Estados Unidos, e contrata-los para ensinar a aviação aqui, em território nosso.
* *

Os aeroplanos devem ser encomendados às melhores casas européias ou americanas, cujos tipos já tenham sido consagrados pelas experiências na guerra.
* *

Resumindo, pois, penso que não teremos aviação de verdade, enquanto não possuirmos um grande campo, de léguas quadradas, ou mesmo um pequeno, de alguns quilômetros, rodeado, porém, de grandes planícies que, não obstante não pertençam à escola, ofereçam bom terreno para a descida do aparelho em caso de necessidade. Precisamos também de professores experimentados na arte de ensinar aviação e que morem, com os alunos, próximo à escola.
* *

Já me fizeram sentir que eu não voava mais e, entretanto, pretendo, ainda, dar conselhos. Não obstante, tenho-os dado com a máxima sinceridade e franqueza, certo de que aqueles que me ouvem se lembram de que eu não fui apenas aviador, mas que me foi necessário estudar, pensar, inventar, construir e só depois voar! Nos Estados Unidos, Wright, Curtiss, etc., foram aviadores precursores, já não voam há 10 anos e agora estão encarregados da organização e construção da aeronáutica. Em França, Bleriot, os Farman, os Morane, etc., foram aviadores precursores, não o são mais há muitos anos e também estão utilizados pelos seus governos para a construção e organização da navegação aérea. Clement, Delauney, Marquis de Dion, Renault, etc., foram todos "chauffeurs", porém, agora, são considerados os inventores do automobilismo e estão encarregados da sua construção e organização.

Estes senhores foram "chauffeurs" ou "aviadores", como eu também o fui. Não mais o sou, como também eles também não o são; mas, o dom de inventores, a aptidão de organizadores e de construtores e este conhecimento das necessidades da arte que eles inventaram e praticaram lhes ficou, e os seus governos os têm sabido aproveitar.
* *

O título de aviador que continuam a dar-me, sem que o mereça, há já dez anos — pois, a última vez que conduzi um aeroplano foi em 1908 — tem ainda, para mim, um outro lado desagradável, e é o de causar desapontamentos a amigos e admiradores nas cidades do interior por onde passo.

No primeiro dia, grande alegria; mas quando são prevenidos que não trouxe aeroplano e que não vou voar, há um grande desapontamento.

Cito um caso que se passou ultimamente. Chego a uma cidadezinha do interior e encontro um amigo e companheiro íntimo de colégio. Havia justos 30 anos que não nos víamos. Grande prazer dos dois por nos encontrarmos. Proponho passeios a pé ou a cavalo, durante os quais discorreríamos sobre os tempos antigos. O meu amigo opõe-se, pois já não está mais em idade de subir montanhas a pé, e mesmo já lhe é desagradável andar a cavalo! Nos nossos passeios, em "charrete", o meu amigo, que é muito espirituoso, fez-me rir contando anedotas da nossa infância; porém, a um momento dado, pára e diz: — Já rimos bastante; agora vamos falar sério: os habitantes da cidade e eu, estamos muito descontentes contigo; pois vens passar aqui alguns dias e não fazes um vôo! Que custa mandares um telegrama e fazer vir o teu "realejo"? Tocarias a manivela e nos mostrarias o que és capaz de fazer!

— Pois bem, caro amigo; você sente-se já cansado para fazer longos passeios a pé ou a cavalo; eu, que tenho a sua idade, com a diferença que levei a vida mais agitada que um homem pode levar, arrisquei-a centenas de vezes e via a morte de perto em várias ocasiões; pois bem, você acha que eu deva ainda praticar esse "sport", o mais difícil de todos e que exige nervos e sangue frio extraordinários?! Não! não é um "realejo", e é por termos nós, os que entramos na luta nos fins do século passado, reconhecido as dificuldades da aviação, a necessidade para o aviador de possuir esplêndidos nervos, desprezo completo e inconsciente pela vida, o que só se encontra na mocidade, e, também, este outro dom dos jovens: a ambição de glória e o entusiasmo, repito, foi por havermos reconhecido tudo isto e não nos encontrarmos mais nestas condições que deixamos de ser aviadores.

É, pois, uma grande homenagem que prestamos aos aviadores do presente.

O meu amigo, um pouco confuso, responde: — "A culpa não é nossa, tinham anunciado que o aviador Santos-Dumont estava na cidade..."
* *

Eu, para quem já passou o tempo de voar, quisera, entretanto, que a aviação fosse para os meus jovens patrícios um verdadeiro sport.

Meu mais intenso desejo é ver verdadeiras escolas de aviação no Brasil. Ver

o aeroplano — hoje poderosa arma de guerra, amanhã meio ótimo de transporte — percorrendo as nossas imensas regiões, povoando o nosso céu, para onde, primeiro, levantou os olhos o Padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão.

SANTOS=DUMONT

FIM

Fonte:
Universidade da Amazônia
NEAD – NÚCLEO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA
Belém – Pará
www.nead.unama.br

Paulo José Guarani Kaiowá Pajo (Convite para Lançamento do 8º Livro da AFL "Páginas Com Estrelas - Efemérides")

Sábado, 23 de fevereiro às 19:30 em Museu Municipal de Formiga

Fonte:

O Autor

Frederico Barbosa (Ciclos de Crítica, na Livraria Martins Fontes/SP)

Jardim Alheio, grupo de crítica literária apresenta:

FREDERICO BARBOSA
nos Ciclos de Crítica a partir do dia 11 de março, às 19h30
Livraria Martins Fontes - Av. Paulista, 509 (metrô Brigadeiro)

Dia 11 de março: Encontro e bate-papo com Frederico Barbosa, quando ele irá contar sobre sua obra, biografia, influências.

Dia 18 de março: Discussão sobre material pesquisado por nós sobre o autor, críticas publicadas sobre seu trabalho, e textos selecionados para serem lidos.

Dia 25 de março: Oficina de crítica, quando iremos discutir os textos de crítica de autoria dos participantes (que deverão ser enviados previamente, por e-mail).

Dia 1 de abril: Novamente teremos a presença do autor, para um diálogo sobre as críticas geradas no grupo, e para tirar dúvidas que possam surgir.

A entrada será franca, sendo necessária somente a inscrição, pelo e-mail:auditorio@martinsfontespaulista.com.br

Fonte:
http://concursos-literarios.blogspot.com
Imagem = http://www.janainabarroso.com.br

Programa Dramaturgias Urgentes (Concurso de Dramaturgia)

O programa Dramaturgias Urgentes segue realizando concurso de dramaturgia, encontros com pensadores e criadores teatrais, leituras dramáticas e mantendo um site que, além de funcionar como portal de inscrição dos textos, provoca debates com artigos exclusivos.

Segue a lista dos textos selecionados no quarto módulo do concurso de dramaturgia:

Ânima Selvagem –
Silvio dos Reis (Guaxupé/ MG)

Dificuldades nos relacionamentos sociais levam profissionais conceituados a formarem uma rede de proteção animal humanística. Como “sensíveis selvagens”, eles retiram córneas de malfeitores e oferecem visão a quem não enxergava. Carne de mortos desperdiçada em cemitérios e crematórios alimenta animais de rua e muda valores religiosos. É a violência do amor.

Mais um Texto sobre Violência às Vésperas do Próximo Filme do Tarantino –
Camila Damasceno (São Paulo/ SP)

Como escrever um texto sobre violência quando estamos vivendo em uma sociedade onde a violência está em todas as suas relações sociais? Quem são os autores? Quem são os personagens? Como nos comportamos nessa teia que nos envolve cotidianamente?

Por que o espanto? (Ou: É proibido atirar nas placas) –
José Carlos Aragão (Belo Horizonte/ MG)

Três excursionistas são levados por um guia para visitar um inusitado monumento em um lugar ermo. Durante o passeio discutem sobre a banalização da violência no nosso dia a dia.

Amargo Doce de Leite –
Rui Werneck de Capistrano (Curitiba/ PR)

Relações familiares inconclusas e estremecidas. Atrito entre menina-moça grávida e enteado que termina em tragédia. Convulsão social. Tragédia suburbana.

Assentado –
Elidia Novaes (São Paulo/ SP)

Ex-agente da ditadura militar muda-se para Cuiabá, fugindo de seu passado – mais afetivo do que político –, e passa a viver isolado. Convidado a aconselhar o MST na construção de uma ponte para um assentamento, demonstra interesse. Porém seu ódio aumenta a cada minuto até que um acontecimento traz tudo à tona.

Rebuliço –
José Augusto (São Paulo/ SP)

Uma inesperada situação dramática surge a partir de um evento do cotidiano urbano brasileiro, envolvendo meninos e homens de farda.

Para obter mais informações sobre o projeto, acesse:
https://www.facebook.com/DramaturgiasUrgentes

Fonte:
http://concursos-literarios.blogspot.com

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Thalma Tavares (Balada do Eterno Jovem)

"Começa a vida aos quarenta!"
- afirmam. Pois, se é verdade
(embora a idade não minta),
digo que são mais de trinta
os anos de minha idade.

Quero, então, ao ficar velho,
ser um velho sorridente
que enfrenta de alma atrevida
os atropelos que a vida
coloca na sua frente.

Que o bom Deus não me permita
ser um velho rabugento.
Mas, se for dura a velhice,
que nenhuma rabugice
me apague o contentamento.

Quero ser aquele idoso
que tudo a Deus agradece,
que passa os dias cantando
e vai a dor espantando
no fervor de sua prece.

Quero servir, como agora,
ao meu Deus e à minha gente.
E ao puxar meu velho arado,
mesmo sedento e cansado,
que eu olhe só para a frente.

Quero sonhar pela estrada
feito um menino, sozinho,
e voltar quando anoiteça
sem que ninguém me aborreça
dizendo: - "É tarde, avozinho!"

Mas se eu chegar aos noventa
sem bengala, sem escolta,
sem que me façam de tolo,
quero uma vela em meu bolo
e muitos velhos em volta.

E dos noventa em diante,
quando se expire o meu prazo,
que minha suprema hora
tenha a alegria da aurora,
nunca a tristeza do ocaso.

Fonte:
Poema enviado por Vicente Liles de Araujo Pereira

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia II)

AQUI ONDE SE ESPERA
 
Aqui onde se espera
- Sossego, só sossego -
Isso que outrora era,

Aqui onde, dormindo,
-Sossego, só sossego-
Se sente a noite vindo,

E nada importaria
-Sossego, só sossego-
Que fosse antes o dia,

Aqui, aqui estarei
-Sossego, só sossego -
Como no exílio um rei,

Gozando da ventura
- Sossego, só sossego -
De não ter a amargura

De reinar, mas guardando
- Sossego, só sossego -
O nome venerando...

Que mais quer quem descansa
- Sossego, só sossego -
Da dor e da esperança,

Que ter a negação
- Sossego, só sossego -
De todo o coração ?

AS HORAS PELA ALAMEDA
As horas pela alameda
Arrastam vestes de seda,

Vestes de seda sonhada
Pela alameda alongada

Sob o azular do luar...
E ouve-se no ar a expirar -

A expirar mas nunca expira -
Uma flauta que delira,

Que é mais a idéia de ouvi-la
Que ouvi-la quase tranqüila

Pelo ar a ondear e a ir...
Silêncio a tremeluzir...

AS MINHAS ANSIEDADES

As minhas ansiedades caem
Por uma escada abaixo.
Os meus desejos balouçam-se
Em meio de um jardim vertical.

Na Múmia a posição é absolutamente exata.

Música longínqua,
Música excessivamente longínqua,
Para que a Vida passe
E colher esqueça aos gestos.

ASSIM, SEM NADA FEITO E O POR FAZER

Assim, sem nada feito e o por fazer
Mal pensado, ou sonhado sem pensar,
Vejo os meus dias nulos decorrer,
E o cansaço de nada me aumentar.

Perdura, sim, como uma mocidade
Que a si mesma se sobrevive, a esperança,
Mas a mesma esperança o tédio invade,
E a mesma falsa mocidade cansa.

Tênue passar das horas sem proveito,
Leve correr dos dias sem ação,
Como a quem com saúde jaz no leito
Ou quem sempre se atrasa sem razão.

Vadio sem andar, meu ser inerte
Contempla-me, que esqueço de querer,
E a tarde exterior seu tédio verte
Sobre quem nada fez e nada quere.

Inútil vida, posta a um canto e ida
Sem que alguém nela fosse, nau sem mar,
Obra solentemente por ser lida,
Ah, deixem-se sonhar sem esperar!

AS TUAS MÃOS TERMINAM EM SEGREDO
As tuas mãos terminam em segredo.
Os teus olhos são negros e macios
Cristo na cruz os teus seios (?) esguios
E o teu perfil princesas no degredo...

Entre buxos e ao pé de bancos frios
Nas entrevistas alamedas, quedo
O vendo põe o seu arrastado medo
Saudoso o longes velas de navios.

Mas quando o mar subir na praia e for
Arrasar os castelos que na areia
As crianças deixaram, meu amor,

Será o haver cais num mar distante...
Pobre do rei pai das princesas feias
No seu castelo à rosa do Levante !

ÀS VEZES ENTRE A TORMENTA
Às vezes entre a tormenta,
quando já umedeceu,
raia uma nesga no céu,
com que a alma se alimenta.

E às vezes entre o torpor
que não é tormenta da alma,
raia uma espécie de calma
que não conhece o langor.

E, quer num quer noutro caso,
como o mal feito está feito,
restam os versos que deito,
vinho no copo do acaso.

Porque verdadeiramente
sentir é tão complicado
que só andando enganado
é que se crê que se sente.

Sofremos? Os versos pecam.
Mentimos? Os versos falham.
E tudo é chuvas que orvalham
folhas caídas que secam.

ATRAVESSA ESTA PAISAGEM O MEU SONHO

Atravessa esta paisagem o meu sonho dum porto infinito
E a cor das flores é transparente de as velas de grandes navios
Que largam do cais arrastando nas águas por sombra
Os vultos ao sol daquelas árvores antigas...

O porto que sonho é sombrio e pálido
E esta paisagem é cheia de sol deste lado...
Mas no meu espírito o sol deste dia é porto sombrio
E os navios que saem do porto são estas árvores ao sol...

Liberto em duplo, abandonei-me da paisagem abaixo...
O vulto do cais é a estrada nítida e calma
Que se levanta e se ergue como um muro,
E os navios passam por dentro dos troncos das árvores
Com uma horizontalidade vertical,
E deixam cair amarras na água pelas folhas uma a uma dentro...

Não sei quem me sonho...
Súbito toda a água do mar do porto é transparente
E vejo no fundo, como uma estampa enorme que lá estivesse
desdobrada,
Esta paisagem toda, renque de árvore, estrada a arder em aquele
porto,
E a sombra duma nau mais antiga que o porto que passa
Entre o meu sonho do porto e o meu ver esta paisagem
E chega ao pé de mim, e entra por mim dentro,
E passa para o outro lado da minha alma...

(?) AZUL OU VERDE OU ROXO

Azul, ou verde, ou roxo quando o sol
O doura falsamente de vermelho,
O mar é áspero (?), casual (?) ou mol(e),
É uma vez abismo e outra espelho.
Evoco porque sinto velho
O que em mim quereria mais que o mar
Já que nada ali há por desvendar.

Os grandes capitães e os marinheiros
Com que fizeram a navegação,
Jazem longínquos, lúgubres parceiros
Do nosso esquecimento e ingratidão.
Só o mar às vezes, quando são
Grandes as ondas e é deveras mar
Parece incertamente recordar.

Mas sonho... O mar é água, é água nua,
Serva do obscuro ímpeto distante
Que, como a poesia, vem da lua
Que uma vez o abate outra o levanta.
Mas, por mais que descante
Sobre a ignorância natural do mar,
Pressinto-o, vasante, a murmurar.

Quem sabe o que é a alma ? Quem conhece
Que alma há nas coisas que parecem mortas.
Quanto em terra ou em nada nunca esquece.
Quem sabe se no espaço vácuo há portas?
O sonho que me exortas
A meditar assim a voz do mar,
Ensina-me a saber-te meditar.

Capitães, contramestres - todos nautas
Da descoberta infiel de cada dia
Acaso vos chamou de igonotas flautas
A vaga e impossível melodia.
Acaso o vosso ouvido ouvia
Qualquer coisa do mar sem ser o mar
Sereias só de ouvir e não de achar?

Quem atrás de intérminos oceanos
Vos chamou à distância ou quem
Sabe que há nos corações humanos
Não só uma ânsia natural de bem
Mas, mais vaga, mais sutil também
Uma coisa que quer o som do mar
E o estar longe de tudo e não parar.

Se assim é e se vós e o mar imenso
Sois qualquer coisa, vós por o sentir
E o mar por o ser, disto que penso;
Se no fundo ignorado do existir
Há mais alma que a que pode vir
À tona vã de nós, como à do mar
Fazei-me livre, enfim , de o ignorar.

Dai-me uma alma transposta de argonauta,
Fazei que eu tenha, como o capitão
Ou o contramestre, ouvidos para a flauta
Que chama ao longe o nosso coração,
Fazei-me ouvir , como a um perdão,
Numa reminiscência de ensinar,
O antigo português que fala o mar!

BALADAS DE UMA OUTRA TERRA

Baladas de uma outra terra, aliadas
Às saudades das fadas, amadas por gnomos idos,
Retinem lívidas ainda aos ouvidos
Dos luares das altas noites aladas...
Pelos canais barcas erradas
Segredam-se rumos descridos...

E tresloucadas ou casadas com o som das baladas,
As fadas são belas e as estrelas
São delas... Ei-las alheadas...

E são fumos os rumos das barcas sonhadas,
Nos canais fatais iguais de erradas,
As barcas parcas das fadas,
Das fadas aladas e hiemais
E caladas...

Toadas afastadas, irreais, de baladas...
Ais...

BATE A LUZ NO CIMO...

Bate a luz no cimo
Da montanha, vê...
Sem querer eu cismo
Mas não sei em quê....

Não sei que perdi
Ou que não achei...
Vida que vivi,
Que mal eu a amei !...

Hoje quero tanto
Que o não posso ter,
De manhã há o pranto
E ao anoitecer...

Tomara eu ter jeito
Para ser feliz...
Como o mundo é estreito,
E o pouco que eu quis !

Vai morrendo a luz
No alto da montanha...
Como um rio a flux
A minha alma banha,

Mas não me acarinha,
Não me acalma nada...
Pobre criancinha
Perdida na estrada !...

BRILHA UMA VOZ NA NOUTE...
Brilha uma voz na noute
De dentro de Fora ouvi-a...
Ó Universo, eu sou-te...
Oh, o horror da alegria
Deste pavor, do archote
Se apagar, que me guia!

Cinzas de idéia e de nome
Em mim, e a voz:Ó mundo,
Sermente em ti eu sou-me...
Mero eco demim, me inundo
De ondas de negro lume
Em que pra Deus me afundo.

CANÇÃO

Silfos ou gnomos tocam?...
Roçam nos pinheirais
Sombras e bafos leves
De ritmos musicais.

Ondulam como em voltas
De estradas não sei onde
Ou como alguém que entre árvores
Ora se mostra ou esconde.

Forma longínqua e incerta
Do que eu nunca terei...
Mal oiço e quase choro.
Por que choro não sei.

Tão tênue melodia
Que mal sei se ela existe
Ou se é só o crepúsculo,
Os pinhais e eu estar triste.

Mas cessa, como uma brisa
Esquece a forma aos seus ais;
E agora não há mais música
Do que a dos pinheirais.

Fonte:
Fernando Pessoa. Cancioneiro.
Imagem formatada com sobreposição de figuras modificadas com imagens obtidas na internet, sem identificação do autor.