domingo, 24 de março de 2013

Homero (Batracomiomáquia – A Guerra entre Rãs e Ratos)


Ao iniciar, rogo ao coro de Helicon que assista a minha alma para entoar o canto que recém registrei nas tábuas sobre meu joelho - uma luta imensa, obra marcial plena de bélico tumulto -, desejando que chegue aos ouvidos de todos os mortais como os ratos se distinguiram ao atacar as rãs, imitando as proezas dos gigantes filhos da terra. Tal como entre os homens se conta, seu princípio aconteceu da seguinte maneira: Sedento, depois de se livrar de uma doninha, um rato submergia sua ávida barba ali perto, num lago, e se reconciliava na água doce como mel, quando viu uma rã tagarela, que no lago tinha suas delícias, e que assim lhe falou:

Inchabochechas: - Quem és tu, forasteiro? De onde chegastes nestas ribeiras? Quem te engendrou? Dize-me tudo honestamente, e que não perceba eu que mentes. Se te considerar digno de ser meu amigo, levar-te-ei a minha casa e te darei muitos e bons presentes de hospitalidade. Eu sou lnchabochechas e, no lago me honram como perpétuo guerreiro das rãs; meu pai Lodoso me criou e deu-me à luz Rainha-das-Águas, que com ele se juntara amorosamente às margens do Erídano. Observo que também és formoso e forte, mais ainda do que os demais; e deves ser rei e valoroso combatente nas batalhas. Mas, ande, revele-me já tua linhagem!

Roubamigalha: - Por que me perguntas por minha linhagem? Conhecida é e a de todos os homens e deuses, e até das aves que no céu voam. Eu me chamo Roubamigalha, sou filho do magnânimo Róipão e tenho por mãe Lambedentes, filha do rei Róipresunto. Mas... Como poderás conseguir que eu seja teu amigo, se minha natureza é completamente diversa da tua? Para ti, a vida está na água, mas eu costumo roer o quanto os homens possuem; não se me oculta o pão enfeitado que se guarda no redondo cesto; nem a grande torta recheada de gergelim; nem a talhada de presunto; nem o fígado dentro de sua branca túnica; nem o fresco queijo, de doce leite fabricado; nem os ricos doces, que até aos imortais apetecem; nem coisa alguma das que preparam os cozinheiros para os festins dos mortais, espargindo condimentos de toda sorte aos borbotões.

Jamais fugi da horrível gritaria insana das batalhas, mas sempre me encaminho para o tumulto e imediatamente me junto aos combatentes mais avançados. O homem com seu grande corpo é coisa que não me assusta, pois, imiscuído-me na cama em que repousa, mordo-lhe a ponta do dedo e até o pego pelo calcanhar, sem que sinta ele qualquer dor nem o desampare o doce sono enquanto eu o mordo. Dois são os inimigos a quem, em grande forma, eu temo sobre tudo o mais na terra: o gavião e a doninha, que terríveis pesares me causam; e também o lutuoso cepo onde se oculta a traidora morte. Mais temo porém a doninha, que é fortíssima e, ao me esconder numa toca, na própria toca vai ela me procurar. Não como rábanos, nem couves, nem abóboras; nem me alimentos de verdes acelgas nem aipo; que estes são vossos manjares próprios dos que habitam a lagoa.

lnchabochechas, sorrindo, respondeu:

Inchabochechas: - Ó, forasteiro, das coisas do ventre muito te envaideces; também nós, as rãs, temos muitas coisas admiráveis de se ver, tanto no lago como em terra firme, pois Zeus Cronion nos deu um duplo modo de viver, e tanto podemos saltar na terra como mergulhar na água, habitando moradas que de ambos elementos participam. Se desejares comprová-lo, mui fácil te há de ser: monta nas minhas costas, agarra-te a mim para não escorregares e chegarás tranqüilo ao meu palácio.

Assim falou - e deu as costas a ele. O rato, subindo de um salto ao lugar indicado, prendeu as mãos no pescoço macio. E a princípio regozijava-se contemplando os hortos vizinhos e deleitando-se com o nado de Inchabochechas; mas assim que se sentiu molhado pelas ondas cor de púrpura, brotaram-lhe copiosas lágrimas e, tardiamente arrependido, lamentava-se e arrancava os cabelos, apertando com suas patas o ventre da rã, com o coração aos pulos com o insólito da aventura, ansiando em voltar à terra firme; enquanto isso, um glacial terror fazia-o gemer. Estendeu então a cauda sobre a água, movendo-a como um remo; e, enquanto pedia às divindades que o ajudassem a chegar no chão firme, as ondas cor-de-púrpura iam banhando-o. Gritou finalmente - e estas foram as últimas palavras que sua boca proferiu:

Roubamigalha: - Com toda a certeza não foi assim que sobre seus ombros levou a amorosa carga o touro que, através das ondas, conduziu à Creta a ninfa Europa - como, nadando, a mim transporta sobre os seus esta rã que mal ergue seu amarelo corpo por entre a branca espuma.

De repente apareceu uma hidra com o pescoço sobre a água. Que amargo espetáculo para os dois! Ao vê-la, submergiu lnchabochecha sem lembrar da qualidade do companheiro que, abandonado, ia morrer. Foi-se portanto a rã ao fundo do lago e assim evitou a negra morte. O rato, quando a rã o soltou, caiu de costas na água; e apertava as patinhas; e, em sua agonia, soltava guinchos agudíssimos. Muitas vezes submergiu ele na água, muitas outras conseguiu flutuar, aos coices; não conseguiu no entanto escapar ao seu destino. O pêlo molhado aumentava seu peso. E, ao perecer nas águas, tais palavras pronunciou:

Roubamigalha: - Teu proceder não haverá de passar despercebido, ó lnchabochechas, que este náufrago fizeste despencar do teu corpo como uma pedra. Em terra, ó mui perversa, não me vencerias nem no vale-tudo, nem na luta, nem na corrida; mas te valeste da fraude para jogar-me nágua. Tem a divindade um olho vingador e pagarás teu crime ao exército de ratos, sem que consigas escapar.

E assim expirou ele na água. Mas aconteceu de vê-lo Lambeprato, que se achava sobre a branda relva da ribeira; e a proferir horríveis chiados correu para dar notícia aos ratos. Assim que estes a souberam, ficaram dominados de terrível ira. Ordenaram em seguida aos arautos que, ao romper da aurora, convocassem todos para uma reunião na morada de Róipão, pai do desditado Roubamigalha, cujo cadáver apareceu estendido na lagoa, pois o mísero já não se achava mais próximo da ribeira: ia flutuando no meio do charco. E quando, ao surgir da madrugada, todos acudiram ao encontro, Róipão, irritado com a sorte do filho, foi o primeiro a falar:

Róipão: - Amigos! Embora a mim em particular as rãs causaram tanta dor, a atual desventura a todos nós alcança. Sou muito desgraçado, pois perdi três filhos. Ao mais velho, matou-o a muito odiada doninha, pondo-lhe as garras em uma toca. Ao segundo, levaram-no à morte os cruéis homens, inventando uma engenhosa armadilha à qual chamam ratoeira e que é a perdição dos ratos. E o que era meu terceiro filho, tão caro a mim e a sua veneranda mãe, afogou-o lnchabochechas, levando-o para o fundo da lagoa. Mas eia, armai-vos, guarnecei vossos corpos com lavradas armaduras e saiamos todos contra as rãs.

Expondo tais razões, a todos persuadiu a que se armassem; e a todos armou Ares, que é quem cuida da guerra. Primeiro ajeitaram a seus músculos bainhas de verdes favas bem preparadas, que então abriram e que durante a noite haviam roído das plantas. Puseram-se couraças de peles hastes, dispostas com grande habilidade, depois de esfolarem uma doninha. O escudo consistia numa tampa, das que levam uma lamparina no centro; as lanças eram longuíssimas agulhas, labor de Ares em bronze; e o capacete era uma casca de ervilha por sobre as frontes.

Assim armaram-se os ratos. Ao perceberem isso, as rãs saíram da água e, reunidas, celebraram uma comissão para tratar do pernicioso embate. E, enquanto procuravam saber qual a causa daquele levante e tumulto, acercou-se deles um arauto com uma varinha na mão - Furaondas, filho do magnânimo Róiqueijo - e anunciou-lhes a funesta declaração de guerra:

Furaondas: - Ó, rãs! Os ratos nos ameaçam com guerra e me enviaram para vos dizer para se armarem para a luta e o combate, pois viram nágua a matar Roubamigalhas vosso rei lnchabochechas. Pelejai, pois, vós, os mais valentes entre as rãs.

Assim começou, e seu discurso penetrou em todos os ouvidos e mexeu com as mente de todas as rãs. E como sobrou a culpa para lnchabochecha, ele falou:

Inchabochechas: - Amigos! Não levei o rato à morte, nem o vi perecer. Deve ter-se afogado enquanto brincava às margens do lago, imitando o nadar das rãs; e os perversos me acusam - a mim, que sou inocente. Mas, adiante, busquemos de que modo nos será possível destruir os pérfidos ratos. Vamos cobrir o corpo com as armas e vamos nos colocar nos altos da ribeira, no lugar mais abrupto; e quando vierem eles nos atacar, fisguemos os que de nós se aproximarem pelos cascos e tiremo-los rapidamente do lago, dentro de suas próprias armadilhas. E depois que na água se afogarem, pois não sabem nadar, vamos erigir um alegre troféu que o ratocídeo comemore.

E assim a todos persuadiu que se armassem. Cobriram suas pernas com folhas de malca; puseram-se as couraças de verdes acelgas; transformaram habilmente em escudos folhas de couve; tomaram como se lança fosse cada qual os seus juncos longos; e cobriram a cabeça com elmos que eram conchas de caracóis. Vestida a armadura, enfileiraram-se no alto da ribeira, brandindo as lanças, cheios de furor.

Então, ao estrelado céu, chamou Zeus as divindades, e mostrando-lhe a batalha e os fortes combatentes, que eram muitos e manejavam longas lanças - como se pusesse em marcha um exército de centauros ou de gigantes -, perguntou sorridente quais deuses ajudariam as rãs e quais os ratos? E disse a Atenéia:

Zeus: - Filha! Irás por ventura auxiliar os ratos, já que todos saltam em teu templo, onde se divertem com o vapor da gordura queimada e com manjares de toda espécie?

E Atenéia respondeu-lhe:

Atenéia: - Ó pai! Jamais iria prestar ajuda aos aflitos ratos porque eles já me causaram um sem-número de males, destruindo os diademas e as lâmpadas para beberem o azeite. E ainda mais me atormenta o ânimo o fato de me roerem e ainda esburacarem uma túnica de sutil trama que eu mesma havia tecido; e agora a costureira me constrange pelo ocorrido - horrível situação para uma imortal! -, pois comprei fiado o tecido para tecer e agora não sei como irei devolver a ele. Mesmo assim, não pretendo defender as rãs, que tampouco elas têm juizo: recentemente, ao voltar de um combate em que muito me cansei, elas não me permitiram cerrar os olhos com seu alarido; e estive deitada, sem dormir e com a cabeça dolorida até ouvir o galo cantar. Portanto, ó Deuses!, vamos nos abster de dar-lhes a nossa ajuda, pois combaterão corpo a corpo mesmo que uma divindade se lhes oponha - vamos nos divertir todos contemplando aqui do céu a batalha.

Assim falou, e os restantes deuses obedeceram-na e todos juntos se encaminharam para determinado lugar estratégico. E então os mosquitos anunciaram, com grandes trombetas, o fragor horroroso do combate; e Zeus Cronida no céu troou, dando o sinal para a funesta luta.

Começou com Chiaforte ferindo Lambehomem com a lança, cravando-a no ventre e no fígado: o rato caiu de boca para baixo, os pêlos manchados e, ao tombar com grande baque, as armas ressoaram sobre seu corpo. Depois Habitatocas, como alcançara Lamacento, enterrou-lhe no peito a forte lança: a negra morte apresou o caído e voou-lhe a alma do corpo. Acelguívoro matou Penetraondas atirando-lhe o dardo no coração e nas mesmas margens matou também Róiqueijo.

Rãdojunco, ao ver Furapresunto, começou a tremer, tirou o escudo e fugiu, saltando na água. Descansanalama, o irrepreensível, matou o Comedordecapim e Gozadoraquático feriu também de morte ao rei Róipresunto, atingindo-lhe com o cabo da arma na parte de cima da cabeça: o cérebro do rato fluiu-lhe pelo nariz e a terra manchou-se de sangue! Lambepratos matou com a lança Descansanalama, o irrepreensível: a escuridão velou seus olhos. Ao vê-lo, Comealho agarrou Farejado pelos pés e, ao apertar o tendão com força, afogou-o no lago. Ladrãodemigalha quis vingar seu companheiro defunto e feriu Comealho no ventre, bem no meio do fígado: caiu a rã a seus pés e o espírito dela foi para o Hades. Andaentrecouves atirou-lhe de longe um punhado de lama que lhe borrou o rosto todo e por pouco não o cegou. Ficou raivoso o rato e, colhendo com a mão uma enorme pedra, verdadeiro obus da terra, com ela feriu Andaentrecouves abaixo do joelho: partiu-se a perna direita da rã, que caiu de costas no pó. Tagarela veio em seu auxílio e, atacando Ladrãodemigalha, feriu-o no ventre: enterrou-lhe todo o afiado junco e, ao arrancar a arma, os intestinos esparramaram-se no solo. E, assim que o viu no alto da ribeira, habitatocas - o qual, sentindo-se bastante abatido, retirava-se coxeando do combate - saltou num fosso para escapar da horrível morte. Róipão feriu Inchabochechas na extremidade do pé; e este; aflito, jogou-se no lago. Ao vê-lo caído e exausto, Alguívoro abriu caminho por entre os combatentes dianteiros e avançou sobre Róipão com seu junco em lance, não conseguindo, porém, romper-lhe a couraça, na qual cravou a ponta da arma. Feriu-o, no entanto, no forte casco de reforço, fazendo-se êmulo do próprio Ares, o divinal Cataorégano, único combatente que se destacava por entre a multidão de rãs. Mas partiram contra ele que, ao perceber-se assim acuado, não quis esperar seus esforçados heróis e acabou submergindo na parte mais profunda do lado.

O mancebo Roubaparte, entre todos destacado e filho do irrepreensível Roedorqueespreitaopão, recebeu deste a ordem para que se juntasse ao combate, e o filho garantiu, esbravejando, que haveria de exterminar toda a linhagem das rãs. Foi a elas com ganas de luta; rompeu ao meio uma casca de noz e armou-se. Temerosas, as rãs retiraram-se para o lago. E haveria ele de levar a cabo seu propósito, pois grande era sua força, se não o houvesse percebido imediatamente o pai dos homens e dos deuses: Zeus,
que compadecido das rãs, moveu a cabeça e assim falou:

Zeus:        - ó Deuses! Enorme é a façanha que meus olhos vão contemplar. Muito perplexo deixou-me Roubaparte ao se vangloriar de que haverá de destruir as rãs do lago. Enviemos o quanto antes Palas Atenas, que é quem produz o tumulto da guerra, ou Ares, para que o retirem da batalha, independente de sua valentia.

Ares respondeu-lhe:

Ares:        - Nem o poder de Palas Atenas nem o de Ares haverão de bastar para livrar as rãs da horrível derrota. Mas mesmo assim sigamos em seu auxílio, ou então move tu a tua arma, com a qual mataste os titãs, que eram em muito melhores do que todos; e desta maneira será dominado o mais valente, tal como em outros tempos fizeste perecer o robusto varão Capaneo, o grande Enceladonte e as ferozes famílias dos Gigantes.

Assim disse, e Zeus arremessou seu brilhante raio. Antes, emitiu um trovão que fez estremecer o vasto Olimpo, e em seguida lançou o raio - a terrível arma de Zeus que voou serpenteando da sua soberana mão. A queda do raio a todos causou pavor, tanto às rãs quanto aos ratos; mas nem por isso o exército destes últimos abandonou o combate, talvez esperando ainda mais do que destruir a linhagem das beligerantes rãs, se Zeus, no Olimpo, compadecendo-se delas, não lhes houvesse imediatamente enviado ajuda.

De pronto apresentaram-se uns animais com ombros como bigornas, de garras curvas e andar oblíquo, pés torcidos, com bocas como tesouras, peles de crustáceos, com ossos consistentes, costas largas e reluzentes, cambaios, lábios prolongados, e que olhavam pelo peito e tinham oito pés e duas cabeças, indomáveis; eram caranguejos que puseram-se a cortar com suas bocas as caudas, pés e mãos dos ratos, cujas lanças se dobravam ao enfrentar os novos inimigos. Temeram-nos os tímidos roedores e, cessando qualquer resistência, puseram-se em fuga.

E assim, ao pôr-do-sol, terminava aquela batalha que só um dia durara.
       
Fonte:
COSTA, Flávio Moreira da (org.) . Os 100 melhores contos de humor da literatura universal. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001

Alberto Caeiro (Caravela da Poesia XX)

Alberto Caeiro (heterônimo de Fernando Pessoa)

POUCO A POUCO

Pouco a pouco o campo se alarga e se doura.
A manhã extravia-se pelos irregulares da planície.
Sou alheio ao espetáculo que vejo: vejo-o,
É exterior a mim. Nenhum sentimento me liga a ele.
E é esse sentimento que me liga à manhã que aparece.
Pouco me Importa
Pouco me importa.
Pouco me importa o que?
Não sei: pouco me importa.
Primeiro Prenúncio
Primeiro prenúncio de trovoada de depois de amanhã.
As primeiras nuvens, brancas, pairam baixas no céu mortiço,
Da trovoada de depois de amanhã?
Tenho a certeza, mas a certeza é mentira.
Ter certeza é não estar vendo.
Depois de amanhã não há.
O que há é isto:
Um céu de azul, um pouco baço, umas nuvens brancas no horizonte,
Com um retoque de sujo embaixo como se viesse negro depois.
Isto é o que hoje é,
E, como hoje por enquanto é tudo, isto é tudo.
Quem sabe se eu estarei morto depois de amanhã?
Se eu estiver morto depois de amanhã, a trovoada de depois de amanhã
Será outra trovoada do que seria se eu não tivesse morrido.
Bem sei que a trovoada não cai da minha vista,
Mas se eu não estiver no mundo.
O mundo será diferente —
Haverá eu a menos —
E a trovoada cairá num mundo diferente e não será a mesma trovoada
Pastor do Monte
Pastor do monte, tão longe de mim com as tuas ovelhas
Que felicidade é essa que pareces ter — a tua ou a minha?
A paz que sinto quando te vejo, pertence-me, ou pertence-te?
Não, nem a ti nem a mim, pastor.
Pertence só à felicidade e à paz.
Nem tu a tens, porque não sabes que a tens.
Nem eu a tenho, porque sei que a tenho.
Ela é ela só, e cai sobre nós como o sol,
Que te bate nas costas e te aquece, e tu pensas
noutra cousa indiferentemente,
E me bate na cara e me ofusca. e eu só penso no sol.

QUANDO TORNAR A VIR A PRIMAVERA

Quando tornar a vir a Primavera
Talvez já não me encontre no mundo.
Gostava agora de poder julgar que a Primavera é gente
Para poder supor que ela choraria,
Vendo que perdera o seu único amigo.
Mas a Primavera nem sequer é uma cousa:
É uma maneira de dizer.
Nem mesmo as flores tornam, ou as folhas verdes.
Há novas flores, novas folhas verdes.
Há outros dias suaves.
Nada torna, nada se repete, porque tudo é real.

QUANDO VIER A PRIMAVERA
Quando vier a Primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.

Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma

Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.

Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.

QUANDO ESTÁ FRIO

Quando está frio no tempo do frio, para mim é como se estivesse agradável,
Porque para o meu ser adequado à existência das cousas

O natural é o agradável só por ser natural.
Aceito as dificuldades da vida porque são o destino,
Como aceito o frio excessivo no alto do Inverno —
Calmamente, sem me queixar, como quem meramente aceita,
E encontra uma alegria no fato de aceitar —
No fato sublimemente científico e difícil de aceitar o natural inevitável.

Que são para mim as doenças que tenho e o mal que me acontece
Senão o Inverno da minha pessoa e da minha vida?
O Inverno irregular, cujas leis de aparecimento desconheço,
Mas que existe para mim em virtude da mesma fatalidade sublime,
Da mesma inevitável exterioridade a mim,
Que o calor da terra no alto do Verão
E o frio da terra no cimo do Inverno.

Aceito por personalidade.
Nasci sujeito como os outros a erros e a defeitos,
Mas nunca ao erro de querer compreender demais,
Nunca ao erro de querer compreender só corri a inteligência,
Nunca ao defeito de exigir do Mundo
Que fosse qualquer cousa que não fosse o Mundo.

QUANDO A ERVA CRESCER
Quando a erva crescer em cima da minha sepultura,
Seja este o sinal para me esquecerem de todo.
A Natureza nunca se recorda, e por isso é bela.
E se tiverem a necessidade doentia de "interpretar" a erva verde
sobre a minha sepultura,
Digam que eu continuo a verdecer e a ser natural.

SEJA O QUE FOR

Seja o que for que esteja no centro do Mundo,
Deu-me o mundo exterior por exemplo de Realidade,
E quando digo "isto é real", mesmo de um sentimento,
Vejo-o sem querer em um espaço qualquer exterior,
Vejo-o com uma visão qualquer fora e alheio a mim.

Ser real quer dizer não estar dentro de mim.
Da minha pessoa de dentro não tenho noção de realidade.
Sei que o mundo existe, mas não sei se existo.
Estou mais certo da existência da minha casa branca
Do que da existência interior do dono da casa branca.
Creio mais no meu corpo do que na minha alma,
Porque o meu corpo apresenta-se no meio da realidade.
Podendo ser visto por outros,
Podendo tocar em outros,
Podendo sentar-se e estar de pé,
Mas a minha alma só pode ser definida por termos de fora.
Existe para mim — nos momentos em que julgo que efetivamente
Por um empréstimo da realidade exterior do Mundo

Se a alma é mais real
Que o mundo exterior como tu, filósofos, dizes,
Para que é que o mundo exterior me foi dado como tipo da realidade"

Se é mais certo eu sentir
Do que existir a cousa que sinto —
Para que sinto
E para que surge essa cousa independentemente de mim
Sem precisar de mim para existir,
E eu sempre ligado a mim-próprio, sempre pessoal e intransmissível?
Para que me movo com os outros
Em um mundo em que nos entendemos e onde coincidimos
Se por acaso esse mundo é o erro e eu é que estou certo?
Se o Mundo é um erro, é um erro de toda a gente.
E cada um de nós é o erro de cada um de nós apenas.
Cousa por cousa, o Mundo é mais certo.

Mas por que me interrogo, senão porque estou doente?
Nos dias certos; nos dias exteriores da minha vida,
Nos meus dias de perfeita lucidez natural,
Sinto sem sentir que sinto,
Vejo sem saber que vejo,
E nunca o Universo é tão real como então,
Nunca o Universo está (não é perto ou longe de mim.
Mas) tão sublimemente não-meu.

Quando digo "é evidente", quero acaso dizer "só eu é que o vejo"?
Quando digo "é verdade", quero acaso dizer "é minha opinião"?
Quando digo "ali está", quero acaso dizer "não está ali"?
E se isto é assim na vida, por que será diferente na filosofia?
Vivemos antes de filosofar, existimos antes de o sabermos,
E o primeiro fato merece ao menos a precedência e o culto.

Sim, antes de sermos interior somos exterior.
Por isso somos exterior essencialmente.

Dizes, filósofo doente, filósofo enfim, que isto é materialismo.
Mas isto como pode ser materialismo, se materialismo é uma filosofia,
Se uma filosofia seria, pelo menos sendo minha, uma filosofia minha,
E isto nem sequer é meu, nem sequer sou eu?

Fonte:
Poemas Inconjuntos (http://www.cfh.ufsc.br/~magno/inconjuntos.htm)
Imagem formatada com sobreposição de figuras modificadas com imagens obtidas na internet,
sem identificação do autor.

Autran Dourado (O Risco do Bordado).

Obra-prima da carpintaria literária, O risco do bordado vem percorrendo desde seu lançamento, em 1970, o caminho típico de um clássico contemporâneo, alcançando um notável sucesso de público e crítica, suscitando inúmeras teses universitárias e sendo adotado como leitura curricular. O próprio Autran Dourado considera-o o eixo central de sua obra pela forma com que conjuga sua obsessiva construção de uma mítica mineira. "Escrevo para compreender Minas", declarou ele.

Ambientado na mítica Duas Pontes, cidade a que retornaria em outros livros como uma síntese do universo interiorano de seus personagens, O risco do bordado é uma viagem ao passado do escritor João da Fonseca Ribeiro, que volta ao cenário de sua infância. Ao encontrar antigos moradores da cidade, parentes e companheiros de infância, ele vai montando uma espécie de quebra-cabeças entre o vivido e o imaginado, completando e expandindo fragmentos de memória que são a narrativa de sua infância e adolescência.

Como num típico romance de formação, em que o principal interesse está no crescimento e desenvolvimento do protagonista, o leitor vai sabendo, aos poucos, como João se tornou o que é, sua dura trajetória na descoberta da sexualidade, da amizade, da traição e, também, da literatura. Prostitutas, jagunços, antepassados mortos, parentes velhos, figuras características de Duas Pontes cruzam o caminho de João, que desta forma vai enxergando, retrospectivamente, o risco sob o bordado que, afinal, é a sua própria história de vida.

Autran Dourado dá à narrativa o ritmo descontínuo da memória. Ele trabalha idas e vindas e histórias fragmentadas que, num primeiro momento, podem se assemelhar a contos sutilmente interligados. Arquitetado paciente e minuciosamente a partir de gráficos e esquemas, O risco do bordado tem um similar na obra do autor: Uma poética do romance. Neste ensaio, também reeditado pela Rocco, ele explica cada detalhe da construção do romance, publica os desenhos e plantas-baixas que auxiliaram sua construção e reflete sobre seu processo de criação como um todo.

Artigo:

O Herói Trágico em O risco do bordado, de Autran Dourado.
Por: Lilian Manes de Oliveira - Revista Saberes - Letras/Universidade Estácio, RJ.


Numa sequência cronológica linear, constata-se que o crescimento de João, protagonista de O risco do bordado, corresponde a um sucesso de mistérios que o levam a questionar-se, em sua trajetória de menino a homem. Por vezes as diferentes formas de questionamento revestem um mesmo mistério. O encontro de João com o mistério leva-o a um sentimento trágico da vida. Ele é um pessimista sombrio. A busca de um sentido existencial o conduz a uma atitude de tragédia.

Seu primeiro encontro é com a "Casa da Ponte", que dá título ao primeiro capítulo da obra. Esta tem seu ciclo trágico iniciado e concluído por tal casa.

Segundo Albert Camus, "a tragédia é um mundo fechado". "Mundo fechado" era a Casa da Ponte, "reino proibido" de pequenas e grandes tragédias, que despertavam a curiosidade do menino. Dividido entre dois sentimentos, a vontade de ver Teresinha Virado (o despertar do sexo) e o medo de ser descoberto pela mãe, seu Bernardino ou outra pessoa, João é um personagem tenso: "nunca para ele uma espera durou tanto num átimo assim tão pequeno. O coração carregado, lampejos, vislumbres". "Metade dele queria ir logo embora, a outra metade fincava pé".

O problema ainda semiconsciente do garoto, diante do sexo, vai reaparecer num sentimento irrealizado de amor incestuoso, em "O salto do touro".

Num outro momento, João se defronta com a morte. "... agora que o velho Maximino estava para morrer – aquela agonia lenta que chegava a dar nos nervos e que deixava os meninos, o colégio, a cidade, suspensos de angústia, de medo".

"É limpa a tragédia, é repousante, é certa" (Jean Anouilh). Limpa? Como um terreno após a explosão de uma bomba atômica. Repousante e certa? Como a morte inelutável.

Os colegas de João, a empregada do tio-avô desempenham, cada um, seu papel. Dir-se-ia que correspondem ao coro da tragédia grega, que anuncia a morte do velho, que não deixa nenhuma margem à esperança. Não há surpresa nessa morte. Ela é esperada, longamente esperada. Não atinge João. O que o atinge é a agonia, a situação que se prolonga, a angústia resumindo todos os seus sentimentos: contar ou não à vovó Naninha? Ir ou não ao enterro? A morte já estava decidida. O desenlace, irremediável. Eis o verdadeiro efeito da tragédia. Ela é limpa; é pura, porque é fatal.

Outra vez ela aparece. A fatalidade previsível; a "ananké" dos gregos, o "fatum" latino vai-se repetir em "A volta do filho pródigo" e em "Assunto de família"."Às vezes vovô Tomé achava que tio Zózimo tinha puxado ao pai dele, era muito parecido com o bisavô Mariano". Eis a premonição trágica. O desempenho de Zózimo e Zé Mariano é descrito, como se João tivesse sempre presente no espírito o trágico futuro que os aguardava. Zé Mariano trancou-se num barraco e suicidou-se. Tio Zózimo também, enforcado. Em "As voltas do filho pródigo", João ainda é personagem, o que serve de ligação deste grupo com os dos capítulos precedentes. Em "Assunto de família", João é sujeito oculto, apenas ouvinte, pois o caso é narrado em falsa terceira pessoa, sendo o avô quem fala, o remorso e a culpa identificando os dois. A situação trágica se propõe pelo desdobramento do sujeito enunciante. João participa de ambas as tragédias, já que "presencia" a primeira como o "ouvido" do avô. O capítulo é escrito em terceira pessoa. A tragicidade do personagem se revela na busca da saída para uma angústia que o leitor apenas percebe, sem entender-lhe, a princípio, a razão. Vovô Tomé acha uma saída: comunica-se com o neto. Agora João carrega consigo a dúvida. Os tormentos do avô são seus. Todo esse capítulo poderia ser transposto para a primeira pessoa; mas, se tal ocorresse, não haveria mais o ouvinte: vovô Tomé continuaria incomunicável.

A busca se apodera de João. Incomunicável é ele. É trágico. O questionamento lhe pertence. Ele conscientiza o problema. As perguntas sobre o comportamento do tio nunca lhe são respondidas. Mas percebe a atmosfera trágica num crescendo quotidiano. As cartas que vovó Naninha oculta; o desespero de vovô Tomé; de novo, o coro trágico anunciando a João a volta do tio. Quando ele chega, a tragicidade aumenta; porém sofre uma interrupção. Como um parêntese entre a chegada e o fim de Zózimo, este volta à vida, a família se alegra, os habitantes da cidade o cumprimentam: é o trágico aberto. A um ciclo trágico que se fecha, segue outro ciclo trágico que se abre. Num de seus retornos ao lar, o filho pródigo se suicida. Sucessivamente, João se encontra com a loucura, com a morte. É o trágico cerrado.

Outra vez a figura da morte: a de Zé Mariano. O coro trágico – Teodomiro e Sá Vitoriana – pressentindo o desenlace trágico. A angústia de vovô Tomé: "não demorou três dias (três dias que foram a minha agonia, a minha morte temporã)".

O que compõe a atmosférica trágica não é só a obra, é o leitor; o que conta são as relações dos personagens com o leitor. A atmosfera trágica implica adesão, engajamento, identificação. Daí chamar-se tensão dionisíaca ao estado no qual o leitor se sente ligado ao destino dos personagens, seja por identidade, seja por vontade de ruptura, tão intimamente que ele perde consciência de que este destino não é o seu. Assim a morte, destino comum a todos, pode constituir um tema de tragédia, quando o leitor se identifica com ela. A morte trágica é a minha morte, eu sou o sujeito da ação que se representa.

Entretanto, a morte não é somente o ponto extremo de um engajamento que pode encontrar sua força em outras circunstâncias. No trágico, pode representar um papel secundário. É uma das saídas. O homem é trágico, porque faz uma pergunta, respondida ou não. Só o homem é trágico, porque nunca encontrará uma resposta. As saídas não são A SAÍDA.

Vovô Tomé sofreu o tormento da incomunicabilidade. Não conseguiu penetrar no íntimo do pai, pois Zé Mariano lhe era de um mutismo monossilábico. O ciúme que sentia do meio-irmão foi provocado pelo distanciamento em que, embora filho legítimo, o pai o colocara. Em companhia de Teodomiro, parecia que o pai voltava à vida.

Um princípio de identidade estabelece o paralelismo. Também João não se comunica com o pai. Em seu mundo habitam mãe, avó, avô, tios, amigos. Referia-se ao pai de leve. O leitor sabe apenas que é mal sucedido nos negócios, não se dá bem com o sogro. João não deixa vir à tona os motivos. A incomunicabilidade está nas entrelinhas. Apenas, depois de morto ( "Sob a magia da dor") , descobre-se o nome do pai: Tonico Nogueira. João ainda acrescenta: "remedando o tio que assim o apresentava às pessoas". O silêncio sobre o pai é quase total.

O destino também é o inimigo de tia Margarida. O sobrinho não entende o porquê de uma existência estreita, daquele "mundo fechado". "Querendo, ela podia ser bem bonita". No entanto, um sentimento de culpa em relação a ela o acompanha desde menino. "Esse era o seu pecado mais fundo, a sua maior dor; embora ele nada tivesse feito, nenhuma culpa lhe coubesse. Porém, a culpa tudo tingia e envenenava". "O salto do touro materializa essa culpa, dá-lhe razões de existir. O destino foi inimigo de João também. "Destino", palavra criada por Hegel, para explicar a natureza profunda do tormento helênico, por ele próprio definida: "O destino é a consciência de si mesmo, mas como de um inimigo."

Engloba, portanto, algo exterior e que se realiza no interior do ser humano. O mecanismo trágico existe desde o sempre. "Querendo" e "podia": duas hipóteses. O risco do bordado impede de realizá-las. Prazer e dor, eis a tragédia pura; suas mil combinações refletirão as mil possibilidades de sofrer.
 
"Valente Valentina" retrata a magia e o deslumbramento, a necessidade apolínea do sonho que eleva o homem. Sonho que se esfuma na dualidade da tensão existencial. "Ah, meu Deus, como tudo se passou tão depressa! ... Eu súbito descobri a verdade de que a gente só guarda para toda a vida aquilo que dói demais. Num instante chegou a hora do Circo Milano partir". Valentina partira. "Eu nada podia fazer". Não mais restava nenhuma esperança. O próprio princípio da tragédia se põe em causa. "O mundo é uma comédia para o homem que pensa e uma tragédia para o homem que sente" (Provérbio espanhol).

No capítulo final, "As roupas do homem", o protagonista se liberta de suas dúvidas, recupera sua identidade. O simplesmente João a verbaliza: João da Fonseca Nogueira. Livra-se dos sentimentos de impotência diante do mistério existencial. O trágico o levou à descoberta de um universo misterioso e confusamente temido. Consegue a serenidade: os tormentos que o afligiam são apenas recordações.

O trágico termina num apaziguamento triste. João olha de frente seu destino. Liberta-se, pelo repouso que a tragédia da vida lhe trouxe.

Fonte:
Apostila 8 de Contemporânea da Lit. Brasileira. Disponível em http://www.jayrus.art.br/Apostilas/LiteraturaBrasileira/Contemporanea/Autran_Dourado_O_Risco_do_Bordado_resumo.htm

O Nosso Português de Cada Dia (Pegadinhas do Português) 4

Pegadinha 14
Costuma se fazer bons negócios nesta feira.

O verbo concorda com o seu sujeito, na voz passiva. Observe que temos dois verbos, um auxiliar e outro, principal.

Veja outros exemplos de uso da voz passiva em situações semelhantes:

Não se podem prever essas situações. (Não podem ser previstas essas situações.)
Devem-se devolver os crachás ao final do evento. (Devem ser devolvidos os crachás ao final do evento.)

A frase inicial estaria corretamente escrita da seguinte maneira:

Costumam se fazer bons negócios nesta feira.

Pegadinha 15

Não exceda da dosagem alcoólica permitida.

O verbo exceder não admite preposição. Outros exemplos:

O motorista foi multado porque excedeu os limites de peso de carga de seu caminhão.
(Errado: O motorista foi multado porque excedeu dos limites de peso de carga de seu caminhão.)

Lotação: 42 passageiros. Não exceda este limite. (Errado: Lotação: 42 passageiros. Não exceda deste limite.)

O certo seria escrever a frase original do seguinte modo:

Não exceda a dosagem alcoólica permitida.

Pegadinha 16

Não estacione! Sujeito a guincho.

Nada pode estar sujeito a um objeto que, neste caso, é o guincho, mas sim a uma ação, que seria a de guinchamento. Em outras hipóteses, os que transgridem a lei penal estão sujeitos a prisão, mas não a preso; se a transgressão for grave, podem até estar sujeitos a banimento, mas não a banido; como também, uma latinha de cerveja, no freezer, está sujeita a congelamento, mas não a gelo.

A frase inicial, corretamente grafada, ficaria assim:

Não estacione! Sujeito a guinchamento.

Pegadinha 17

Não fiz o dever de matemática.

Para muitas pessoas, há uma confusão muito grande, envolvendo os significados das palavras dever e deveres. Inicialmente, determinemos suas semânticas, conforme os bons dicionários:

dever: obrigação;

deveres: tarefas (sempre no plural).

O exemplo seguinte economiza muita explicação e esclarece a questão:

O dever de cada estudante é fazer seus deveres escolares.

Talvez, esta regrinha ajude a estabelecer com mais clareza a distinção:
deveres (tarefas) se fazem;
dever (obrigação) se cumpre.

Outros exemplos:
Ele cumpriu o dever de pai.
O dever de todo militar é servir o seu país.
Deixei de fazer os deveres de geografia.
Ela não dá conta de realizar os deveres domésticos. Precisa de uma empregada.

A frase original, corrigida, fica assim:

Não fiz os deveres de matemática.

Pegadinha 18

Pare de atazanar os outros!

Eis uma pérola da linguagem popular. Se formos a um dicionário e chegarmos à excrescência atazanar, teremos como significado a remissão ao vocábulo atenazar, que significa torturar, aborrecer, irritar, apertar com tenaz. Atazanar é uma palavra sem origem, é uma anomalia resultante da pronúncia atrapalhada de atenazar. Fica-se, portanto, com esta grafia, que é a correta.

A frase original deve ser reescrita, assim:

Pare de atenazar os outros.

Pegadinha 19

O comandante nos disse que ficássemos alertas.

Aqui está uma dica de português para vestibular e concurso, a qual tem gerado muita controvérsia. A palavra alerta pertence à classe dos advérbios e, como tais, é invariável. Não se flexiona para indicar gênero (Ele está alerta.), como também para indicar número (Permaneço alerta. Permanecemos alerta. Eles permanecem alerta.). Só se admite variação, quando substantivada, isto é, quando a palavra estiver acompanhada de artigo (Esqueci os alertas do comandante.).

Então, depois da correção da frase inicial, fica assim:

O comandante nos disse que ficássemos alerta.

Fonte:
126 Pegadinhas em Língua Portuguesa. www.softwareebookecia.com.

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) 25. Manual de Cozinha

Arranjei hoje com um contínuo um Manual do Perito Cozinheiro, para ler durante a viagem, à falta de outra leitura edificante, instrutiva ou deleitável.

Trago a cabeça cheia de leituras de jornal, e já não me diverte nada, pelo contrário, a sarabanda cotidiana das crônicas, estudos, fantasias, comentários, bisbilhotices e descomposturas. Tenho a impressão de já haver lido isso tudo não sei quantas vezes, desde a minha vida anterior, nosremotos pródromos do jornalismo com Mr. Théophraste Renandot. É incrível como as coisas atuais caducam depressa, como as novidades são velhas, como os fatos extraordinários são vulgares.

É verdade que a impressão de perpétua velhice só se prova agudamente quando se vai descambando ladeira abaixo dos anos em enta. Mas isso apenas demonstra que o espetáculo é comprido e só se pode bem apreciar depois de lhe ter visto um bom pedaço.

O fato é que estou fazendo quaresma a respeito dessa carne-de-vaca dos prelos. Ontem, li no bonde o Livro de são Cipriano, conhecimento que me entreteve como um fruto proibido, e que valeu ao dono do volume, servente da repartição, um pacote de fumo Veado. Hoje, um dos meus colegas devia emprestar-me as Noites da Virgem, mas afinal parece que teve receio de que eu lhe extraviasse essa "mimosa jóia", e declarou-me que a não havia encontrado; mentira, pois é o seu livro de cabeceira.

Arranjei-me porém com o contínuo, que fora da repartição é cozinheiro praticante, em ocasião de festa e regabofe, e dentro da repartição aprende a arte, decora receitas e dá consultas. Seja registado em sua honra, que não preenche apenas assim o seu horário oficial: também serve o café e faz o jogo do bicho.

O Manual fez-me o efeito refrescante de um bastão de cristal japonês passado pelas têmporas em hora de dor de cabeça. Nunca eu havia provado a tal ponto a maravilhosa utilidade das leituras inúteis. A parte referente ao preparo do peru com farofa e de outras aves domésticas e selváticas parecia escrita por um estômago inspirado, tanto garbo havia na variedade dos termos técnicos, na escolha das palavras mais precisas e sugestivas, no emprego dos adjetivos mais emanteigados e olorosos, enfim na composição de um estilo todo suavemente tostado e pururuca.

Li tudo, mas com absoluto desinteresse; por um puro ato de vontade, sem que nada me obrigasse ou seduzisse, ou me prometesse o mais remoto benefício. Singular prazer, cujo valor só depois completamente reconheci. Nem sequer me era dado pensar no aproveitamento de alguma receita, porque todos os pratos de que eu gosto já são perfeitamente executados e são de sobra para uma rotação conveniente dos menus; a tal ponto que ao saborear o frango assado no domingo, já eu sinto um pouquinho de saudade da torta de palmito da quinta-feira, e vice-versa, e assim por diante.

O que havia de bom nessa leitura era o emprego tenaz da vontade num objeto indiferente, ótimo exercício; era, depois, o esquecimento de umas amofinações, porque é impossível conciliar-se a leitura atenta de uma série de receitas de assados e cabidelas com o remeximento de espinhos espirituais.

Era, finalmente, a entrevisão liminar de um vasto mundo desconhecido, o mundo da Copa e da Cozinha, da pastelaria e das Artes afins; um mundo de ocupações e preocupações, de atividades e de idealidades, com sua história, seu tesouro tradicional, sua literatura, sua arte, sua ética, sua ciência; um mundo que aí fervilha tão perto do meu e ao qual eu andava alheio como se ele fosse Marte ou Saturno!

Esta percepção da impermeabilidade dos diferentes planos da vida me calou fundo na alma, e eu me senti ainda mais pequenino.

Se eu amanhã fizesse (mera hipótese) um poema forte, ou construísse uma teoria de mecânica, ou propusesse uma nova e fecunda maneira de interpretar a história, nada disso teria a mínima repercussão no mundo da Cozinha e da Copa; nem um eco sequer do meu nome chegaria até lá. A preparação do peru com farofa continuaria a mesma; ou, se se modificasse, havia de ser por ação de um dos íncolas, inovador de talento; e a alma do artista viveria em todo esse mundo largo mais viva e mais venerada do que a Divina Comédia ou o Discours de la Méthode ou o Novum Organum cá pelo nosso. E a sua glória não sofreria contestações nem eclipses, proclamada cada dia, através de tempos sem conta, por milhares de bocas verídicas e gratas!

E o nosso pobre mundo comum é todo assim, feito de mundinhos concêntricos, que se articulam sem se confundir E nós, ai de nós! pretendemos viver "cosmicamente!"

Fonte:
Domínio Público

Aluísio Azevedo (O Esqueleto) Parte XIV, final – O Esqueleto

Assim muito aclamado pelas massas populares que lhe iam agradecer a carta de liberdade, d. Pedro desanuviou-se das tristezas que por alguns momentos o ensombraram com o caso de Branca.

De toda essa história tenebrosa que o fizera cruzar armas contra o Satanás não percebia grande cousa. Ficava-lhe apenas na memória o vago delineamento incerto de uma criança que ele supusera amante do escultor e que fora sua por uma noite sombria e treda como nas aventuras daquele tempo. E ficava-lhe principalmente nos quartos baixos do palácio o magro fidalgo das Espanhas que se aproveitava da ferida para prolongar o seu apetite e as suas bravatas.

D. Bias fortunava-se de fato um homem feliz. Servia-se do ferimento como indelével e irrecusável atestado de bravura inscrito no pergaminho da sua pele. E servia-se mais ainda do cozinheiro do Paço a quem estava constantemente pedindo bifes e bifes e outras esquisitas guloseimas.

Gesticulava, gritava e berrava.

Inimigo da solidão, rodeava-se dos criados a quem vivia contando as aventuras complicadas em que se metera. E tanta fertilidade tinha a sua irrequieta imaginação de espanhol, que conseguia sempre forjar mais um caso para o serão de cada noite, e mais um episódio para a conversa de cada dia.

E tantas fez que em torno dele formou-se uma reputação de espírito e bom humor.

D. Pedro quis vê-lo.

Entrou-lhe no aposento muito sério, com a compostura solene e grave de um imperador que também gosta da troça, mas deseja conservar a sua força moral.

Falou no ferimento, mostrando-se muito sentido com o acontecimento, lamentando-se do ocorrido, mas sem uma alusão ao Satanás.

- Ora senhor, ora senhor, isto não foi, não foi nada, explicou d. Bias. - O ferro entrou-me apenas dez polegadas no braço. Uma ninharia!

- Sim. Não foi nada, mas podia ser fatal.

D. Bias respondeu com um forte oscilar desprezível de ombros. Que não se importava. Que já estava acostumado àquelas cousas.

- Em todo caso posso garantir-te que não tinha vontade nenhuma de te matar.

- Ora senhor! Por quem é não falemos mais nisso. Eu até já vou me esquecendo de que fui ferido. A força do hábito, sabe, a força do hábito!

- Com que então tens sido ferido muitas vezes?

- Nem contas há que as possa enumerar.

E narrou:

- De uma, lá nas Espanhas, voltava eu muito sossegado de três duelozinhos pequeninos em que tinha morto os quatro adversários quando me saiu à frente um piquete de cavalaria comandado pelo irmão dos cinco rapazes que eu acabava de remeter para os infernos.

- E brigaste contra todo o piquete?

- Qual briguei! qual nada! Matei-os a todos sem exceção de um cavalo.

- Mas então não foste ferido!

- Fui, sim, senhor! Quando não havia mais adversários contra quem pelejar, caiu uma tempestade e veio um raio com tanta força que...

- Foste queimado?

- Qual queimado! Senhor! Feri-me eu mesmo com a minha espada indo a desviar-me do raio.

- E onde?

- Já não me recordo mais. Mas, caramba! que aquilo, sim, foi um golpe bem dado e de mão de mestre. Voou um braço para aqui, uma perna p'ra ali e a cabeça não sei para onde.

- Diabo! Pois tu te fizeste assim em pedaços?

- Qual eu! qual nada! Senhor. Foi o inimigo.

- Mas que inimigo?

- Ah! Eu não sei.

D. Pedro não pôde conter uma gargalhada e saiu.

Saiu, alegre da vida, cantarolando umas cantigas brejeiras. E teve uma idéia. A idéia de fazer uma caçoada com d. Bias, de pregar-lhe um bom susto. Deviam ser interessantes a cara e as falas do aventuroso cavaleiro das Espanhas, quando lhe aparecesse diante de si um fantasma ameaçador e tétrico que contra ele investisse numa encenação apavorante de tragédia. E, nas boas disposições de espírito em que estava, d. Pedro tratou logo de preparar a pilhéria.

Vieram-lhe a princípio dúvidas para escolha entre diversos projetos que se lhe apresentaram à imaginação. Mas, à noite, quando se despedia da cigana, lá no circo do Valongo, resolveu-se, enfim, e pediu ao Vampa que lhe vendesse um esqueleto articulado, que havia a um canto da parede e de que o saltimbanco se servia nas suas mágicas e pantomimas.

Trouxe-o, ruas afora por aquela noite escura, debaixo da capa, como um mistério, bem junto a si, como uma profanação.

E, quando entrou no Paço, antes de cear, foi logo ao quarto de d. Bias.

Segurando o esqueleto pela coluna vertebral, mal envolveu-o na capa, o bastante para esconder-se a si e para permitir que o descendente do soldado de Cid Campeador pudesse ver toda a horrível conformação espetral do fantasma.

D. Bias dormia.

Uns pratos vazios, muito lambidos e uma garrafa escorropichada, atestavam que o valente cavaleiro andante das aventuras contadas acabara de cear; lautamente, mais lautamente do que era permitido supor a quem o visse magro e esgalgado, um esqueleto ele mesmo. Acordou e gritou.

Sobre o peito descansa-lhe a ossadura descarnada da mão do esqueleto. E a olhá-lo, com o grande olhar tenebroso e mau das caveiras, estava um vulto bem junto a si, debruçado sobre o seu leito. Gritou.

Gritou e retorceu-se todo na cama, nu e esquelético, envolto na mortalha alvadia do lençol, fantasma contra fantasma.

D. Pedro ria-se.

E largou o esqueleto que então caiu todo inteiro sobre d. Bias.

Foi, nesse momento, um espetáculo diabolicamente nunca visto e nunca sonhado até então.

Por entre os lençóis e a capa, no belo contraste do preto e branco, debatiam-se os dous. D. Bias a contorcer-se todo, a querer desvencilhar-se desse novo companheiro de dormida, animava-o, fazia-o viver, emprestava-lhe movimento.

- Por Dios! choramingava o espanhol, por Dios! Não me faça nada! Deixe-me em paz, tenha pena de mim!

E fazia-se súplice, e queria erguer-se para ficar de joelhos, para pedir piedade, para comprometer-se a tudo quanto o fantasma quisesse, para tornar-se submisso e escravo, enfim, com tanto que o deixasse viver.

E com os movimentos que tentava, o esqueleto movia-se também, recolhia o braço num amplexo que horripilava o outro, intrometia a perna entre as do fidalgo das Espanhas, ligava-se-lhe enfim numa bela conjunção amorosa.

D. Bias soluçava. A voz desaparecia-lhe até.

Foi preciso que o príncipe, já farto do espetáculo, interviesse e separasse os dous.

- Caramba! fez d. Bias. Eu tinha medo porque era um esqueleto e não havia contra quem lutar!

E mais calmo depois, achou uma boa compensação no convite para a ceia de d. Pedro que este tinha mandado trazer para o quarto.

Não comia entretanto com toda a sua habitual voracidade. O esqueleto, que ficara sobre o leito, incomodava-o.

Levantou-se, e escondeu-o dentro de um armário.

- Se o esquecem agora, e se o descobrem daqui a cem anos... lembrou o príncipe.

D. Bias mastigou barulhentamente um grande naco de carne; e depois, olhando muito sério para o armário, disse:

- Caramba! que boa peça vou eu pregar às gerações futuras!

FIM

Ditados Populares do Brasil (Letra M)

Macaco velho não bota a mão em cumbuca.
Mais fácil é pegar um mentiroso que um coxo.
Mais tem Deus pra dar, que o Diabo pra tomar.
Mais vale amigo na praça, do que dinheiro na caixa.
Mais vale cair em graça, do que ser engraçado.
Mais vale quem Deus ajuda, que quem bem cedo madruga.
Mais vale um gosto, do que dez vinténs.
Mais vale um pássaro na mão, que dois voando.
Mal de muitos, consolo de poucos.
Malandro esperto, não chia.
Malandro que é bom não estrila.
Malhar, enquanto o ferro está quente.
Manda quem pode, obedece quem tem juízo.
Maria vai com as outras.
Matar dois coelhos, com uma cajadada só.
Mateus, primeiro os meus.
Mato a cobra, e amostro o pau.
Me fale em pau de jangada, que é pau que abóia.
Melhor a pobreza honrada que a riqueza roubada.
Melhor esmagar, do que ser esmagado.
Mente desocupada, celeiro do que não presta.
Mentira exige memória.
Mentira tem pernas curtas.
Mingau quente se come pelas beiradas.
Muita conversa, pouco trabalho.
Muito riso é sinal de pouco juízo.
Mulher é como relógio, deu o primeiro defeito nunca mais anda direito.
Mulher é pra pouco tempo, ex-mulher é para sempre.
Mulher sem filho é como terra sem água.
Maior do que o mundo só o coração de mãe.
Mais vale chegar atrasado neste mundo, do que adiantado no outro.
Mantenha a distância.
Mãos limpas, mas o bolso cheio de notas sujas.
Melancia grande e mulher muito boa, ninguém come sozinho.
Mesmo o amor que não compensa é melhor que a solidão.
Meu negócio é sombra, água fresca, jornal de letra grande e ganhar na loteria.
Meu silêncio é desdém.
Meu vício é você, morena.
Meus olhos te dirão a verdade.
Meus sonhos te pertencem.
Mexa com as mulheres, mas conserve a sua direita.
Minha vingança é o silêncio.
Minha embriaguez, tu és meu cálice.
Montanha comigo é champanha.
Morar com sogra é vestibular para o céu.
Morena, esse é o teu ninho.
Moro no mundo e passeio em casa.
Morrer não dói, o que dói é viver sofrendo.
Mulher bonita é como estrada boa, perigosa.
Mulher, cachaça e bolacha em toda parte se acha.
Mulher é como calo. Incomoda.
Mulher de janela, nem costura nem panela.
Mulher é como árvore, só dá galhos.
Mulher e bateria não se emprestam, voltam descarregadas.
Mulher e carga não se despreza.
Mulher é como música, só faz sucesso quando é nova.
Mulher e freio não merecem confiança.
Mulher e retrato só se revela no escuro.
Mulher e sopa só quente.
Mulher é como morcego, só sai ? noite.
Mulher é como bife, só amacia quando apanha.
Mulher é como estrada, é boa, mas perigosa.
Mulher é como jornal, quando novo, distrai, quando velho, só serve pra embrulho.
Mulher é como papel de embrulho, só se ajeita com peso em cima.
Mulher é como pau de porteira: quando cai um, bota-se outro.
Mulher é como pudim, só doce e gostoso.
Mulher feia, cachorro e cobra, comigo é na paulada.
Mulher é fogo, homem é estopa; vem o diabo e sopra.
Mulher feia e enfeitada é sepultura cheia de flor.
Mulher feia e frete, de graça não carrego.
Mulher feia e fruta azeda só com muita cana.
Mulher feia e cachorro vira lata só o dono procura.
Mulher feia e onça só na jaula.
Mulher feia e urubu comigo é na pedrada.
Mulher feia é como relógio, só presta pra fazer hora.
Mulher feia é igual a ventania, só quebra galho.
Mulher feia só come do meu se roubar.
Mulher moderna que casa com “pão” passa fome.
Mulher na janela não cozinha nem mexe panela.
Mulher noturna não ama ninguém.
Mulher que dá muita bola acaba levando chute.
Mulher e caminhão não se empresta.
Mulher é como canjica, quanto mais mexe melhor fica.

Fonte da Imagem: http://www2.portoalegre.rs.gov.br

sábado, 23 de março de 2013

Luiz Gama (Cristais Poéticos)

QUEM SOU EU?

Quem sou eu? que importa quem?
Sou um trovador proscrito,
Que trago na fronte escrito
Esta palavra — Ninguém! —
A. E. ZALUAR - Dores e Flores


(...)
O que sou e como penso,
Aqui vai com todo o senso,
Posto que já veja irados
Muitos lorpas enfunados,
Vomitando maldições
Contra as minhas reflexões.
Eu bem sei que sou qual Grilo
De maçante e mau estilo;
E que os homens poderosos
Desta arenga receosos,
Hão de chamar-me tarelo,
Bode, negro, Mongibelo;
Porém eu, que não me abalo,
Vou tangendo o meu badalo
Com repique impertinente,
Pondo a trote muita gente.
Se negro sou, ou sou bode,
Pouca importa. O que isto pode?
Bodes há de toda a casta,
Pois que a espécie é muita vasta...
Há cinzentos, há rajados,
Baios, pampas e malhados,
Bodes negros, bodes brancos,
E, sejamos todos francos,
Uns plebeus, e outros nobres,
Bodes ricos, bodes pobres,
Bodes sábios, importantes,
E também alguns tratantes...
Aqui, nesta boa terra,
Marram todos, tudo berra;
Nobres Condes e Duquesas,
Ricas Damas e Marquesas,
Deputados, senadores,
Gentis-homens, vereadores;
Belas Damas emproadas,
De nobreza empantufadas;
Repimpados principotes,
Orgulhosos fidalgotes,
Frades, Bispos, Cardeais,
Fanfarrões imperiais.
Gentes pobres, nobres gentes,
Em todos há meus parentes.
Entre a brava militança
Fulge e brilha alta bodança;
Guardas, Cabos, Furriéis,
Brigadeiros, Coronéis,
Destemidos Marechais,
Rutilantes Generais,
Capitães de mar e guerra,
— Tudo marra, tudo berra —
Na suprema eternidade,
Onde habita a Divindade,
Bodes há santificados,
Que por nós são adorados.
Entre o coro dos Anjinhos
Também há muitos bodinhos. —
O amante de Siringa
Tinha pêlo e má catinga;
O deu Mendes, pelas contas,
Na cabeça tinha pontas;
Jove quando foi menino,
Chupitou leite caprino;
E, segundo o antigo mito,
Também Fauno foi cabrito.
Nos domínios de Plutão,
Guarda um bode o Alcorão;
Nos lundus e nas modinhas
São cantadas as bodinhas:
Pois se todos têm rabicho,
Para que tanto capricho?
Haja paz, haja alegria,
Folgue e brinque a bodaria;
Cesse, pois, a matinada,
Porque tudo é bodarrada!

SEREI CONDE, MARQUÊS E DEPUTADO

Pelas ruas vagava, em desatino,
Em busca do seu asno que fugira,
Um pobre paspalhão apatetado,
Que dizia chamar-se - Macambira.

A todos perguntava se não viram
O bruto que era seu, e desertara;
Ele é sério (dizia), está ferrado,
E tem o branco focinho, é malacara.

Eis que encontra postado numa esquina,
Um esperto, ardiloso capadócio,
Dos que mofam da pobre humanidade,
Vivendo, por milagre, santo ócio.

Olá, senhor meu amo, lhe pergunta
O pobre do matuto, agoniado;
“Por aqui não passou o meu burrego
Que tem ruço o focinho, o pé calçado?”

Responde-lhe o tratante, em tom de mofa:
“O seu burro, Senhor, aqui passou,
Mas um guapo Ministro fê-lo presa,
E num parvo Barão o transformou!”

Ó Virgem Santa! (exclama o tabaréu,
Da cabeça tirando o seu chapéu)
Se me pilha o Ministro, neste estado,
Serei Conde, Marquês e Deputado!...

A CATIVA

Nos olhos lhe mora,
Uma graça viva,
Para ser senhora
De quem é cativa.
CAMÕES

Como era linda, meu Deus!
Não tinha da neve a cor,
Mas no moreno semblante
Brilhavam raios de amor.

Ledo o rosto, o mais formoso
De trigueira coralina,
De Anjo a boca, os lábios breves
Cor de pálida cravina.

Em carmim rubro esgastados
Tinha os dentes cristalinos;
Doce a voz, qual nunca ouviram
Dúlios bardos matutinos.

Seus ingênuos pensamentos
São de amor juras constantes;
Entre as nuvens das pestanas
Tinha dois astros brilhantes.

As madeixas crespas, negras,
Sobre o seio lhe pendiam,
Onde os castos pomos de ouro
Amorosos se escondiam.

Tinha o colo acetinado
— Era o corpo uma pintura —
E no peito palpitante
Um sacrário de ternura.

Límpida alma — flor singela
Pelas brisas embalada,
Ao dormir d'alvas estrelas,
Ao nascer da madrugada.

Quis beijar-lhe as mãos divinas,
Afastou-mas — não consente;
A seus pés de rojo pus-me,
— Tanto pode o amor ardente!

Não te afastes, lhe suplico,
És do meu peito rainha;
Não te afastes, neste peito
Tens um trono, mulatinha!...

Vi-lhe as pálpebras tremerem,
Como treme a flor louçã
Embalando as níveas gotas
Dos orvalhos da manhã.

Qual na rama enlanguescida
Pudibunda sensitiva,
Suspirando ela murmura:
Ai, senhor, eu sou cativa!...

Deu-me as costas, foi-se embora
Qual da tarde ao arrebol
Foge a sombra de uma nuvem
Ao cair a luz do sol.

A UM NARIZ

Você perdoe,
Nariz nefando
Que eu vou cortando
E ainda fica nariz em que
se assoe.
G. DE MATOS


Aí vai, leitores,
Um monstro esguio,
Que em corropio
De uma rua tem posto os moradores.

Maior que a proa
De nau de linha,
Tem camarinha
Aonde à tarde se obumbra a tocha coa,

Rinoceronte
De tromba enorme,
Mais desconforme
Do que o mero, a baleia, a catodante

Nariz bojante,
Recurvo e longo,
Que lá do Congo
Alcança o Tenerife e monte Atlante.

De raça eslava
Tremenda espiga,
E há quem diga
Que nela Polifemo cavalgava.

Nariz alado,
De cor bringela.
Que de pinguela,
Serviu no Amazonas celebrado.

E se não mente
A tradição,
De lampião
Fazia num farol da Líbia ardente.

Nariz de pau,
Com tal composto,
Que sobre o rosto
Tem forma de bandurra ou berimbau.

Cavado e torto,
Formal tripeça,
Fundido à pressa
Nas forjas de Vulcano — por aborto.

Nariz de forno,
De amplas badanas,
Que mil bananas
Aloja em cada venta, sem transtorno.

É tão famoso
O tal nariz,
Que por um triz
Não fez parte do Cabo Tormentoso.

Qual catatau
Da testa pende,
E alguém entende
Ser ninho de coruja ou picapau.

Nariz de barro,
Mas não cozido,
Que suspendido,
Sobre as grimpas da lua vai de esbarro.

De quanto fiz
Não se enraiveça;
Não enrubesça,
Que pr'a dar e vender sobra nariz.

LÁ VAI VERSO!

Quero também ser poeta,
Bem pouco, ou nada me importa,
Se a minha veia é discreta,
Se a via que sigo é torta.
F. X. DE NOVAIS


Alta noite, sentindo o meu bestunto
Pejado, qual vulcão de flama ardente,
Leve pluma empunhei, incontinente
O fio das idéias fui traçando.

As Ninfas invoquei para que vissem
Do meu estro voraz o ardimento;
E depois, revoando ao firmamento,
Fossem do Vate o nome apregoando.

Ó Musa da Guiné, cor de azeviche,
Estátua de granito denegrido,
Ante quem o Leão se põe rendido,
Despido do furor de atroz braveza;
Empresta-me o cabaço d'urucungo,
Ensina-me a brandir tua marimba,
Inspira-me a ciência da candimba,
Às vias me conduz d'alta grandeza.

Quero a glória abater de antigos vates,
Do tempo dos heróis armipotentes;
Os Homeros, Camões — aurifulgentes,
Decantando os Barões da minha Pátria!
Quero gravar em lúcidas colunas
Obscuro poder da parvoíce,
E a fama levar da vil sandice
A longínquas regiões da velha Báctria!

Quero que o mundo me encarando veja
Um retumbante Orfeu de carapinha,
Que a Lira desprezando, por mesquinha,
Ao som decanta de Marimba augusta;
E, qual outro Arion entre os Delfins,
Os ávidos piratas embaindo —
As ferrenhas palhetas vai brandindo,
Com estilo que presa a Líbia adusta.

Com sabença profunda irei cantando
Altos feitos da gente luminosa,
Que a trapaça movendo portentosa
À mente assombra, e pasma à natureza!
Espertos eleitores de encomenda,
Deputados, Ministros, Senadores,
Galfarros Diplomatas — chuchadores,
De quem reza a cartilha da esperteza.

Caducas Tartarugas — desfrutáveis,
Velharrões tabaquentos — sem juízo,
Irrisórios fidalgos — de improviso,
Finórios traficantes — patriotas;

Espertos maganões de mão ligeira,
Emproados juízes de trapaça,
E outros que de honrados têm fumaça,
Mas que são refinados agiotas.

Nem eu próprio à festança escaparei;
Com foros de Africano fidalgote,
Montado num Barão com ar de zote —
Ao rufo do tambor e dos zabumbas,
Ao som de mil aplausos retumbantes,
Entre os netos da Ginga, meus parentes,
Pulando de prazer e de contentes —
Nas danças entrarei d'altas caiumbas.

JUNTO À ESTÁTUA

(No Jardim Botânico da Cidade de S. Paulo)

Já a saudosa Aurora destoucava
Os seus cabelos de ouro delicados,
E as boninas nos campos esmaltados
De cristalino orvalho borrifava.
CAMÕES - Soneto


Em plácida manhã serena e pura,
Sentado à borda de espaçoso lago;
O corpo recostado em frio marmor,
Tórridos membros sobre a terra quedos.

Qual túmido Tritão de amor vencido,
Transpondo as serras, iracundos mares,
D'Aurora o berço perscrutando ousado,
Dolorosos suspiros exalava
Meu frágil peito, da natura escravo,
Já nas fúlgidas portas do Oriente,
Trajando púrpura, majestoso assoma
Luzeiro ardente, que expandindo os raios,
Deslumbra os olhos, e a razão sucumbe,
E, com furtiva luz, pálidas fogem
Notívagas esferas cintilantes.

(...)

Longe do mundo, das escravas turbas,
Que o ouro compra de avarentos Cresos,
A minh'alma aos delírios se entregava,
À sombra de ilusões — de aéreos sonhos.

Formosa virgem de nevado colo,
De garços olhos, de cabelos louros;
Sanguíneos lábios, elegante porte,
Mimoso rosto de Ericina bela,
Curvando o seio de alabastro fino,
Mimosa imprime nos meus lábios negros
Gostoso beijo de volúpia ardente! —
Vencido de prazer, nadando em gozos,
Já temeroso pé movendo incerto,
Vôo com ela às regiões etéreas
Nas tênues asas de ternura infinda.
....................................

Rasgando o véu das ilusões mentidas,
Que est'alma frágil seduzir puderam,
Imóvel terra, cambiantes flores,

Viram meus olhos no romper da Aurora;
E d'entre os braços, que cerrados tinha,
Gelada estátua de grosseiro mármore!...

Cândidas boninas
E purpúreas rosas,
Violetas roxas
Do luar saudosas;

Verdejantes murtas,
Redolentes cravos,
Lindas papoulas
Da donzela escravos,

Ao soprar da brisa,
Em balanço undoso,
O mortal encantam
Num sonhar gostoso.

Mas fugindo as nuvens
— Que a ilusão fulgura,
Só vagueia à sombra
Da infernal ventura.

O BARÃO DA BORRACHEIRA

Quando pilho um desses nobres,
Ricos só d'áureo metal
Mas d'espírito tão pobres
Que não possuem real,
Não lhes saio do costado,
— Sei que é trabalho baldado,
Porque a pele dura têm;
Mas eu fico satisfeita,
Que o meu ferrão só respeita
A virtude, e mais ninguém!
F.X. DE NOVAIS - A Vespa


Na Capital do Império Brasileiro,
Conhecida pelo — Rio de Janeiro,
Onde a mania, grave enfermidade,
Já não é como dantes, raridade;
E qualquer paspalhão endinheirado
De nobreza se faz empanturrado -
Em a rua chamada do Ouvidor,
Onde brilha a riqueza, o esplendor,
À porta de uma modista de Paris,
Lindo carro parou — Número — X — ,
Conduzindo um volume, na figura,
Que diziam alguns, ser criatura
Cujas formas mui toscas e brutais
Assemelham-na brutos animais.

Mal que da sege salta a raridade,
Retumba a mais profunda hilaridade.
Em massa corre o povo, apressuroso
Para ver o volume monstruoso;
De espanto toda a gente amotinada
Dizia ser coisa endiabrada!

Uns afirmam que o bruto é um camelo,
Por trazer no costado cotovelo,
É asno, diz um outro, anda de tranco,
Apesar do focinho d'urso branco!
Ser jumento aquele outro declarava,
Porque longas orelhas abanava.
Recresce a confusão na inteligência,
O bruto não conhecem d'excelência.
Mandam vir do Livreiro Garnier,
Os volumes do Grande Couvier;
Buffon, Guliver, Plínio, Columella,
Morais, Fonseca, Barros e Portela;
Volveram d'alto a baixo tais volumes,
Com olhos de luzentes vagalumes,
E desta nunca vista raridade
Não puderam notar a qualidade!

Vencido de roaz curiosidade
O povo percorreu toda a cidade;
As caducas farmácias, livrarias,
As boticas, e vãs secretarias;
E já todos a fé perdida tinham,
Por verem que o brutal não descobriam,
Quando idéia feliz e luminosa,
Na cachola brilhou dum Lampadosa
Que excedendo em carreira os finos galgos,
Lá foi ter à Secreta dos Fidalgos;
E dizem que encontrara registrado
O nome do colosso celebrado:
Era o grande Barão da borracheira,
Que seu título comprou na régia-feira!...

O REI CIDADÃO
(Dois Metros de Política)


O Imperador reina, governa, e administra,
tal é o nosso direito público, consagrado
na constituição.
VISCONDE DE ITABORAÍ - Discursos


É o direito coisa alpendurada,
Que põe-nos a cabeça atordoada.
O princípio, a doutrina, a conclusão,
Nas idéias produzem turbação.
Acertar eu pretendo a todo instante;
Mas sinto o meu bestunto vacilante;
Se na tese aprofundo, e bato à fronte,
Todo o Rei me parece um mastodonte!
Pelo que já vou crendo no rifão
— Que o Rei da mista forma é velhacão.

No tempo antigo o Rei obrava só;
De chanfalho na mão cortava o nó;
E os ministros calados como escudos,
Eram todos do Rei criados-mudos.
Hoje em dia, porém, mudou-se a cena,
Quebrou-se o férreo guante, voga a pena;
A pena e a palavra; a língua luta,
Soberana domina a força bruta.
O Rei não obra só; pois na linguagem,
Obra mais do que o Rei a vassalagem.
— Reina o Rei, não governa — é o problema;
— Mas, se reina, governa: eis o dilema!
— Não só reina, governa e administra —
É suprema doutrina monarquista.

De outro ponto o ministro não quer meias,
Quer o Rei regulado, um Rei de peias;
E antolha-se, Penélope do dia,
Capaz de refazer a monarquia;
Um rei feroz não quer, nem Rei tirano,
Mas um Rei cidadão — republicano!

(...)

PACOTILHA

Não ralhem, não façam bulha,
Que eu não sei se isto é pulha.
Polca


(...)

Se trôpego velho
De queixo caído,
Dengoso e rendido,
Com moça se liga;
Lá quando mal cuida
Na fronte lhe saltam,
Relevos que esmaltam,
Em forma de espiga.

Se rapa o que pode
Finório empregado,
Campando de honrado,
Cuidando que brilha;
Em dia aziago
Tropeça, baqueia,
E vai, na cadeia,
Juntar-se à quadrilha.

Se impinge nobreza
Brutal vendilhão,
Que sendo Barão,
Já pensa que é gente;
Aqueles que o viram
Cebolas vendendo
Vão sempre dizendo —
Que o lorpa é demente.

Se em peitos que fervem
Infâmias tremendas
Avultam comendas
E prêmios de honor;
É que, com dinheiro,
Os rudes cambetas
Se levam das tretas
E mudam de cor.

Se fino larápio
De vícios coberto,
Com foros d'esperto,
De honrado se aclama;
É que a ladroeira.
Banindo o critério,
Firmou seu império
C'o gente de fama.

Se audaz rapinanto,
Fidalgo ou Barão,
Por ser figurão,
Triunfa da Lei;
É que há Magistrados
Que empolgam presentes
Fazendo inocentes
Os manos da grei.

Mulato esfolado,
Que diz-se fidalgo,
Porque tem de galgo
O longo focinho;
Não perde a catinga,
De cheiro falace,
Ainda que passe
Por bráseo cadinho.

E se eu que pretácio,
D'Angola oriundo,
Alegre, jucundo,
Nos meus vou cortando;
É que não tolero
Falsários parentes,
Ferrarem-me os dentes,
Por brancos passando.

 SORTIMENTO DE GORRAS PARA A GENTE DO GRANDE TOM

(...)

Se grosseiro alveitar ou charlatão
Entre nós se proclama sabichão;
E, com cartas compradas na Alemanha.
Por mil anos impinge ipecacuanha;
Se mata, por honrar a Medicina,
Mais voraz do que uma ave de rapina;
E num dia, se, errando na receita,
Pratica no mortal cura perfeita;
Não te espantes, ó Leitor, da novidade,
Pois que tudo no Brasil é raridade!

Se os nobres desta terra, empanturrados,
Em Guiné têm parentes enterrados;
E, cedendo à prosápia, ou duros vícios,
Esquecem os negrinhos seus patrícios;
Se mulatos de cor esbranquiçada,
Já se julgam de origem refinada,
E, curvos à mania que os domina,
Desprezam a vovó que é preta-mina:
Não te espantes, ó Leitor, da novidade,
Pois que tudo no Brasil é raridade!

Se o governo do Império Brasileiro,
Faz coisas de espantar o mundo inteiro,
Transcendendo o Autor da geração,
o jumento transforma em sor Barão;
Se estúpido matuto, apatetado,
Idolatra o papel de mascarado;
E fazendo-se o lorpa deputado,
N'Assembléia vai dar seu — apolhado,
Não te espantes, ó Leitor, da novidade,
Pois que tudo no Brasil é raridade!

Se impera no Brasil o patronato,
Fazendo que o Camelo seja Gato,
Levando o seu domínio a ponto tal,
Que torna em sapiente o animal;
Se deslustram honrosos pergaminhos,
Patetas que nem servem p'ra meirinhos,
E que sendo formados Bacharéis,
Sabem menos do que pecos bedéis,
Não te espantes, ó Leitor, da novidade,
Pois que tudo no Brasil é raridade!

Se temos Deputados, Senadores,
Bons Ministros e outros chuchadores;
Que se aferram às tetas da Nação
Com mais sanha que o tigre, ou que o Leão;
Se já temos calçados — mac-lama,
Novidade que esfalta a voz da Fama,
Blasonando as gazetas — que há progresso,
Quando tudo caminha p'ra o regresso:
Não te espantes, ó Leitor, da pepineira,
Pois que tudo no Brasil é chuchadeira!

Se contamos vadios empregados,
Porque são das potências afilhados,
E sucumbe, à matroca, abandonado,
O homem de critério, que é honrado;
Se temos militares de trapaça,
Que da guerra jamais viram fumaça,
Mas que empolgam chistosos ordenados,
Que ao povo, sem sentir, são arrancados;
Não te espantes ó Leitor, da pepineira,
Pois que tudo no Brasil é chuchadeira!

(...)

 Fontes:
http://www.jayrus.art.br/Apostilas/LiteraturaBrasileira/Romantismo/LUIZ_GAMA.htm
GAMA, Luiz. Trovas burlescas e escritos em prosa. São Paulo: Cultura, 1944

Luiz Gama (1830 – 1882)

Luiz Gonzaga Pinto da Gama
(Salvador BA, 1830 - São Paulo SP, 1882)

Era filho de escravos, e foi vendido pelo pai, em 1840, por causa de uma dívida de jogo.

Comprado em leilão pelo alferes Antonio Pereira Cardoso, passou a viver em cativeiro em  Lorena SP.

Em 1847 foi alfabetizado por Antonio Rodrigues do Prado Júnior, hóspede de Antonio Pereira Cardoso.

No ano seguinte fugiu da fazenda e foi para São Paulo SP.

Lá casou-se, por volta de 1850, e freqüentou o curso de Direito como ouvinte, mas não chegou a completá-lo.

Em 1864 fundou o jornal Diabo Coxo, do qual foi redator. O periódico era ilustrado pelo italiano Angelo Agostini, considerado marco da imprensa humorística em São Paulo.

Entre 1864 e 1875 colaborou nos jornais Ipiranga, Cabrião, Coroaci e O Polichileno.

Fundou, em 1869 o jornal Radical Paulistano, com Rui Barbosa.

Sempre utilizou seu trabalho na imprensa para a divulgação de suas idéias antiescravistas e republicanas.

Em 1873 foi um dos fundadores do Partido Republicano Paulista, em Itu SP.

Nos anos seguintes, teve intensa participação em sociedades emancipadoras, na organização de sociedades secretas para fugas e ajuda financeira a negros, além do auxílio na libertação nos tribunais de mais de 500 escravos foragidos.

Por volta de 1880, foi líder da Mocidade Abolicionista e Republicana.

Os poemas de Luís Gama estão vinculados à segunda geração do Romantismo. Entretanto, segundo o crítico José Paulo Paes, "distanciando-se dos literatos da época pelo seu realismo de plebeu, Luiz Gama deles se distanciava também pela concepção que tinha da literatura. Para ele, ser poeta não era debruçar-se sobre si mesmo, num irremediável narcisismo, mas voltar-se para o mundo, medi-lo com olhos críticos, zurzir-lhe os erros, as injustiças, as falsidades.".

Fontes:
http://www.jayrus.art.br/Apostilas/LiteraturaBrasileira/Romantismo/LUIZ_GAMA.htm
Imagem - http://andrelemes.wordpress.com

Ungulani Ba Ka Khosa (Ualalapi)

Ualalapi é o nome de um guerreiro nguni a quem é destinada a missão de matar Mafemane, irmão de Mudungazi (depois chamado Ngungunhane-Gungunhana). Este guerreiro dá o título ao relato, ficcionado por Ba Ka Khosa, da vida e da época do hosi (rei, imperador, em língua tsonga) Ngungunhane, famoso pela resistência que opôs aos portugueses nos finais do séc. XIX. Mas à medida que a narrativa progride, o quadro que se desenrola aos nossos olhos é bem outro. Numa escrita veloz, forte, densa, violenta, crua, chocante por vezes, recorrendo a metáforas quase brutais, perpassada de aforismos e de uma raiva não disfarçada que a poderosa imaginação visual do autor reforça, Ngungunhane é-nos revelado como um homem cruel, sanguinário, violento, um verdadeiro tirano para o seu povo - a sua designação como imperador ou rei é propositadamente anárquica -, na mesma medida em que os colonizadores portugueses o eram para com esse mesmo povo (vejam-se os testemunhos epocais transcritos, num paralelismo óbvio com o que se vai ler em seguida). Um e outros provocam a destruição do império de Gaza, deixando um rasto de miséria, fome, crueldade, sofrimento e humilhação. Uma «história»-ficção de sangue, de guerra, de arbitrariedades, de morte. Mas sem dúvida tão perturbadora quanto fascinante.

"Estes homens da cor de cabrito esfolado que hoje aplaudis entrarão nas vossas aldeias com o barulho das suas armas e o chicote do comprimento da jibóia. Chamarão pessoa por pessoa, registando-vos em papéis que ... vos aprisionarão. Os nomes que vêem dos vossos antepassados esquecidos morrerão por todo o sempre, porque dar-vos-ão os nomes que bem lhes aprouver, chamando-vos merda e vocês agradecendo. Exigir-vos-ão papéis até na retrete, como se não bastasse a palavra, a palavra que vem dos nossos antepassados, a palavra que impôs a ordem nestas terras sem ordem, a palavra que tirou crianças dos ventres das vossas mães e mulheres. O papel com rabiscos norteará a vossa vida e a vossa morte, filhos das trevas".
[O último discurso de Ngungunhanhe, segundo Ungulani Ba Ka Khosa, Ualalapi, Associação dos Escritores Moçambicanos, 2ª edição, p. 118]
––––––––

O livro de estréia de Ungulani Ba Ka Khosa Ualalapi, publicado em 1987, é um romance histórico que foi distinguido em 1994 com o prémio Nacional de Ficção, e em 1990, junto com Vozes Anoitecidas de Mia Couto, com o Grande Prémio da Ficção Narrativa. Trata-se da primeira obra de ficção que, como sublinha Chabal (1996: 85), se dedica exclusivamente ao passado colonial de Moçambique e que conta a ascensão de Ngungunhane, o imperador de Gaza, famoso pela resistência que opôs aos portugueses nos finais do século XIX e a derrocada do seu império.

O livro constrói-se a partir de uma colagem de fragmentos históricos, comentários de oficiais portugueses envolvidos na campanha contra o império de Ngungunhane, e a imaginação de Khosa na reconstrução de episódios deste período na forma de seis contos que constituem o romance. Deste modo o livro aborda exactamente o momento inicial da ocupação efectiva pelos portugueses e a passagem do tempo pré-colonial ao período colonial. Ualalapi, no entanto, não é uma obra que apresenta os grandes feitos heróicos de um Grande Homem contra a violência do domínio colonial, como Ngungunhane vai ser retratado no Moçambique da pós-independência. Em vez disso dedica-se muito mais a uma representação de Ngungunhane que corresponde à realidade histórica, mostrando a imagem de um tirano cruel em relação aos outros povos africanos, mas também para com o seu próprio povo.

É por essa razão que o ‘Outro’, na forma dos ‘brancos, do outro lado do mar’[(citação de Akawitchi Akaporo – armas e escravos, p.31)], se limita na parte fictícia do romance a duas alusões inseridas nos episódios relatados. A primeira encontra-se logo no começo do romance, na referência à morte de Ngungunhane no exílio “em roupas que sempre rejeitara e no meio da gente da cor do cabrito esfolado que muito se espantara por ver um preto” (p.30). Apesar deste anúncio da consequência final da invasão dos portugueses para o rei, verifica-se a presença do invasor europeu na parte fictícia do romance primeiro incidentalmente, como quando os grandes do reino têm de decidir sobre o castigo do guerreiro Mputa, que é falsamente acusado de ter afrontado a primeira mulher do imperador:

(...) Este, com a argúcia que a vida ensinara, disse ao rei, em jeito de síntese, que a morte não seria digna para um homem que ousou cobiçar o corpo da rainha. Era necessário um castigo brutal e memorável na mente dos súbditos; por que não cegá-lo como faziam os tsongas em tempos que não importa recordar? Caso faças isso o teu poder imperial sairá fortificado nestes tempos tumultuosos em que os homens da cor de cabrito esfolado assediam o teu reino vasto (Khosa 1990: 47).

O romance dá-nos assim uma impressão da maneira como os portugueses surgiram lentamente nesta parte da África e como eram percepcionados enquanto seres diferentes. É, por outro lado, um ponto de vista que contrasta com os fragmentos históricos dos oficiais portugueses, intitulados “Fragmentos do fim”, que representam a história do ponto de vista do colonizador. Estes falam sobretudo sobre o andamento da campanha militar e revelam a relação de domínio subjacente.

O significado histórico da presença portuguesa relativamente ao futuro desenvolvimento do território mostra-se no fim do livro, no derradeiro capítulo “O último discurso de Ngungunhane”, que é um monólogo no qual Ngungunhane profetiza o período colonial, antes da sua partida para o desterro:

Estes homens da cor de cabrito esfolado que hoje aplaudis entrarão nas vossas aldeias com o barulho das suas armas e o chicote do comprimento da jibóia. Chamarão pessoa por pessoa, registando-vos em papéis que enlouqueceram Manua e que vos aprisionarão (Khosa 1990: 118).

Segue-se uma séria de descrições pormenorizadas das conseqüências socio-culturais do tempo colonial referindo-se à alienação da sociedade moçambicana em relação às culturas africanas e à dinâmica e ao impacto social do período do domínio português. Manua, o filho de Ngungunhane a que se refere aqui o imperador, é relativamente às diferentes formas em que se manifesta o ‘Outro’ certamente uma das personagens mais interessantes do livro, por ser, como afirma, um “dos poucos na minha tribo, que teve acesso ao mundo dos brancos, à sua língua, aos seus costumes e à sua ciência (...)” (p.100). A alienação dele em relação à sua origem africana revela-se nitidamente, nesta passagem:

Quando eu for imperador eliminarei estas práticas adversas ao Senhor, pai dos céus e da Terra. Serei dos primeiros, nestas terras africanas a aceitar e assumir os costumes nobres dos brancos, homens que estimo desde o primeiro dia que tive acesso ao seu civismo são (p.100).

         Manua revela-se aqui um adepto fervoroso dos costumes do ‘Outro’, colonizador e da cultura europeia, um forte contraste com a profecia de Ngungunhane no fim do livro que mostra um ponto diferente de vista do imperador em relação à cultura europeia, indicando uma grande diferença entre as posições do pai e do filho:

(...); e haverá homens com vestes de mulher que percorrerão campos e aldeias, obrigando-vos a confessar males cometidos e não cometidos, convencendo-vos de que os espíritos nada fazem, pois tudo o que existe na terra e nos céus está sob o comando do ser que ninguém conhece mas que acompanha os vossos passos e as vossas palavras e os vossos actos. A noite terá caído definitivamente nestas terras que mudarão de face com o vosso suor (p.119).

         Trata-se aqui de uma alusão aos efeitos da “desvalorização das formas de culturas indígenas, que caracterizou a política colonial de assimilação” (Leite: 1998: 90), em que Manua representa um dos primeiros moçambicanos envolvidos neste processo, que “contribuiu para a descaracterização e rasura de valores ancestrais” (idem), o que se pode verificar também na descrição do moço pelos outros passageiros no navio a Lourenço Marques que afirmam que se veste “como um branco (...), (...) não tem cara de maltês, (...), (...) e estudou muito mais que o compadre” (p.104). O filho de Ngungunhane apresenta-se, portanto, como um dos primeiros africanos assimilados, o que nos indica a alienação de uma parte da sociedade moçambicana através da influência da cultura europeia.

Por outro lado, a violência excessiva no romance que caracteriza os métodos de Ngungunhane mostra um paralelo com a brutalidade deste ‘Outro’, colonizador e português nos “Fragmentos do fim”. Faz com que o imperador, a personagem central nesta época crucial na história de Moçambique, se revele um tirano que não se distingue dos portugueses na opressão e destruição das culturas africanas, que considera com uma inferioridade semelhante:

(...) Trouxemos a chuva para estas terras adustas e educamos gente brutalizada pelos costumes mais primários. E hoje essa gente está entre vocês. Nguni! (p.29).

A crueldade com que Ngungunhane governava exibe-se frequentemente no romance e pode ser lida nas entrelinhas das palavras do rei a respeito do castigo de Mputa que “puseram em delírio o povo tsonga que esquecera que estava perante o invasor que poisara naquelas terras com o sangue dos inocentes guerreiros nunca relembrados, (...)” (p.49), o que sublinha mais uma vez a semelhança entre a maneira de agir do imperador de Gaza e os métodos dos portugueses. É um facto que se pode verificar também no capítulo “O cerco ou fragmentos de um cerco” que comprova a ferocidade com que o imperador submeteu outros povos e onde se pode observar como os nguni correspondem ao ‘Outro’ do ponto de vista dos machopes:

– Vamos lutar e morrer se for necessário, mas o nosso desprezo pelos nguni manter-se-á por séculos, porque esta terra é e será nossa. (...) O nosso não é para que as nossas mulheres não sejam escravas e os nossos filhos não engrossem as fileiras desse exército bárbaro. (...).

– Iremos para a luta com a certeza da vitória, apesar deste cerco criminoso que moveram contra nós, um cerco que contraria os princípios mais elementares de uma guerra de homens, de uma guerra que os nossos antepassados mais remotos cultivaram com a certeza de que os homens olham-se de frente e as lanças chocam-se sob o olhar atento dos guerreiros (...) (p.86).

         O trecho sublinha obviamente a destruição de algumas partes da sociedade autóctone que se deu, portanto, já sob o domínio de Ngungunhane cujo regimento se caracterizava pela inobservância das regras da tradição. O fragmento comprova que o não respeito por uma cultura tradicional e a relação subjacente de domínio, que certamente entrou numa fase de aceleração sob domínio colonial português, já começou no período do império de Gaza no fim do século XIX, onde a opressão de povos e tradições já fazia parte da estratégia imperial de Ngungunhane.

O mesmo pode verificar-se no que diz respeito à própria tradição nguni, como consta do caso da doença misteriosa da sua mulher preferida, Damboia, caso que mostra como Ngungunhane se sobrepõe à tradição, proibindo a realização do nkuaia devido à convicção dele que “e se ela se vai, vai-se o império, homens!” (p.63), quebrando a regra de só não realizar a cerimónia no caso da morte do rei, visto que Damboia não era soberana nem estava morta:

E por isso e outras coisas mais que vos aprouver dizer, para o bem do reino, o nkuaia não se realiza. Na capital não ressoarão esses cânticos de louvor que nos rejuvenescem. Os guerreiros não baterão os escudos do bayete, levantando a poeira pré-histórica dos nossos antepassados esquecidos. (...) Por isso, as leis que vigoraram até aqui irão vigorar, e eu serei homem de mais leis emanar quando para isso for necessário, porque o império é meu, e o poder pertence-me; (...) (p.63).

         O absurdo da guerra e o carácter violento de Ngungunhane, descontrolado pela estranha e vergonhosa doença que atinge Damboia, mostra-se também na ordem dada ao comandante para que as suas tropas ataquem e massacrem um reino vizinho:

Ide, vassalos, e apagai as tochas que por este império estiveram acesas. E para que os machope não se riam da nossa dor, tu Maguiguane, vai por essas terras espalhar a morte e a dor. Eu quero que todos, mas todos, se compadeçam com a dor que nos atacou. Ide, guerreiros, que o império vos salvaguarda, agora e depois da morte (p.63).

     Em resumo, pode-se dizer que os métodos do império de Gaza mostram semelhanças com a táctica que os portugueses aplicarão contra os povos de Moçambique. Desta maneira pode-se verificar como Ngungunhane pretende construir um ‘Mesmo’ por exclusão do ‘Outro’, em processos idênticos à da colonização portuguesa, baseado numa relação de domínio. No último capítulo, no qual o imperador desenvolve um discurso profético acerca das consequências da presença portuguesa a respeito do desenvolvimento socio-cultural do território, mostra-se o significado histórico da chegada do português em toda a sua dimensão histórica, indicando as transformações da sociedade causadas por esta intervenção ao longo do tempo:

Os nomes que vêem dos vossos antepassados esquecidos morrerão por todo o sempre, porque dar-vos-ão os nomes que bem lhes aprouver, chamando-vos merda e vocês agradecendo. Exigir-vos-ão papéis até na retrete, como se não bastasse a palavra, a palavra que vem dos nossos antepassados, a palavra que impôs ordem nestas terras sem ordem, (...) (p.118).

     Esta passagem indica ao mesmo tempo que as palavras de Ngungunhane correspondem a um dos aspectos centrais na representação da identidade pós-colonial nos romances de Mia Couto. A alienação da sociedade moçambicana em relação à sua origem africana através da perda dos nomes africanos das pessoas é um assunto que já encontrámos na personagem Marta em A Varanda do Frangipani, afirmando que os membros da sua família “já há muito perderam seus nomes africanos” (VFA: 129). No que diz respeito às consequências socio-culturais da presença dos portugueses, nota-se como o monólogo do imperador refere explicitamente o período do colonialismo, descrevendo pormenorizado o sofrimento da população indígena:

(...) Começarão a abandonar as vossas aldeias ante a vergonha e a impotência de verem as vossas filhas violadas em plena rua, os vossos pais mortos como reses, os vossos irmãos chicoteados por peidarem de medo frente ao branco que vos aviltará por todo o sempre, queimando as vossas casas, usurpando a terra que vem dos vossos antepassados, cobrando as moedas pelas palhotas que erguestes com suor, obrigando-vos a trabalhar em machambas enormes, onde dia e noite andarão como sonâmbulos, comendo jibóias e macacos, escalavrando a terra com os dedos descarnados e tirando a merda da criança do vosso patrão (p.120).

     É interessante como Khosa conseguiu traçar um paralelo entre o império de Gaza e o tempo colonial através do fictício último discurso de Ngungunhane. Por um lado esclarece que a tradição da exploração já existiu antes da chegada dos portugueses. Por outro lado faz com que a profecia chegue pela boca de Ngungunhane, um tirano igual aos portugueses, o que faz com que a significação do tempo colonial ganhe ainda maiores dimensões. A ocupação efectiva pelos portugueses aparece assim como um ponto de não-retorno, significando o início de um processo que não só conduz à construção de uma nação moçambicana, mas também traduz uma transformação irrevogável, como resume Ngungunhane na previsão dos futuros acontecimentos:

E aí o mundo terá mudado para sempre (p.121).

Apesar disso apresenta exemplos concretos como esta transformação se manifestará na sociedade moçambicana, no surgimento de uma nova classe social:

E por todo o lado, como uma doença que a todos ataca, começarão a nascer crianças com a pele da cor do mijo que expelis com agrado nas manhãs. Serão crianças da infâmia (p.119).

Ngungunhane alude aqui à posição difícil dos mulatos em Moçambique, um assunto que aparece também na obra de Mia Couto. Além disso, pode-se verificar como o afastamento da sociedade da sua origem exprime-se de maneira semelhante como em A Varanda do Frangipani e Terra Sonâmbula, visando a tensão entre o passado e a modernidade em Moçambique, aqui anunciado por Ngungunhane:

Fora das grades os vossos netos esquecer-se-ão da língua dos seus antepassados, insultarão os pais e envergonhar-se-ão das mães descalças e ocultarão as casas aos amigos. A nossa história e os nossos hábitos serão vituperados nas escolas sob o olhar atento dos homens com vestes de mulher que obrigarão as crianças a falar da minha morte e a chamarem-me criminoso e canibal (p.121).

         O processo de alienação por causa da fusão da cultura europeia com as culturas africanas mostra-se evidentemente na religião:

         (...) Mas começarão a aprender novas doutrinas que rejeitarão os espíritos, os feiticeiros e curandeiros. Todos ou quase todos aceitarão o novo pastor, mas pela noite adentro muitos irão ao curandeiro e pedirão a raiz contra as balas do inimigo, (...). (p.122).

         A profecia de Ngungunhane alude assim à convivência do passado com a modernidade em Moçambique, neste lugar na forma da coexistência da religião cristã e das tradições africanas. Apesar disso, aponta o facto de que não só se trata de uma mera aquisição de elementos da cultura europeia, mas que a situação inicial do embate das culturas imediatamente dá lugar a um processo de deslocações nas quais os africanos se apropriarão das novas doutrinas que o europeu traz para encontrar um caminho para a liberdade. Mas processo também no qual os europeus se moçambicanizaram:

(...) Outros transformar-se-ão em serpentes, entrarão no campo inimigo, estudarão os seus passos e verão o quantitativo. E esta será a nossa guerra vitoriosa contra os homens que entraram nestas terras sem autorização de ninguém. Muitos dos filhos destes homens ficarão nestas terras e aprenderão as nossas línguas e dançarão as nossas danças e casarão com as nossas mulheres à vista de toda a gente e serão os nossos irmãos de verdade (...) (idem).

         Por outro lado, esta passagem mostra que a chegada do português provocará mudanças sociais de carácter definitivo. O presságio do futuro limita-se, porém, não só ao papel do intruso no período colonial, mas mostra que a miséria profetizada por Ngungunhane não terminará com o fim do domínio do português:

Chegada a vitória tereis um preto no trono destas terras. (...) Mas não tereis chegado ainda ao tempo da vossa felicidade, seus cães, porque a maldição que abraçou estas terras, perdurará por séculos e séculos. (...) A desordem será de tal ordem que as casas mudarão de cor, passando a ter a cor da morte que se instalará nas vossas terras que terão a extensão de meses e meses de percurso (p.122-123).

         No seu último discurso Ngungunhane exprime que a libertação e independência em 1975 ainda não significarão o fim da guerra, mas uma transformação da guerra de carácter colonial em guerra civil, guerra que se estendeu até 1992. O romance faz assim uma ligação entre o tempo do império Gaza e os acontecimentos históricos dos últimos trinta anos em Moçambique. É por essa razão que Ualalapi deve ser considerado como um romance em diálogo ou em confronto com a história e com as fabricações da história, assumindo como tema central a questão do ‘Outro’ no processo político e cultural de construção de uma identidade nacional.

Fonte:
Capítulo de tese de Christoph Oesters (Utrecht, 11/2005)
http://www.jayrus.art.br/Apostilas/LiteraturaAfricana/Ungulani_Ba_Ka_Khosa.htm

Ungulani Ba Ka Khosa (1957)

Escritor moçambicano, de nome verdadeiro Francisco Esau Cossa, nascido a 1 de Agosto de 1957, em Inhaminga, província de Sofala.

Khosa fez o ensino primário na provincia de Sofala e o ensino secundário, parte em Lourenço Marques e parte na Zambézia. Em Maputo tira o bacharelato em História e Geografia na Faculdade de Educação da Universidade Eduardo Mondlane e exerceu a função de professor do ensino secundário.

Em 1982 trabalha para o Ministério da Educação durante um ano e meio. Seis meses depois de ter saído do Ministério da Educação é convidado para trabalhar na Associação dos Escritores Moçambicanos (AEMO), da qual é membro.

Iniciou a sua carreira como escritor com a publicação de vários contos e participou na fundação da revista Charrua da AEMO.

Foi a realidade vivida em Niassa e Cabo Delgado, onde existiam as zonas de campos de reeducação que eram mal organizadas, que o fez inclinar mais para a literatura e, por isso, sentiu a necessidade de escrever para falar e expor essa realidade para as pessoas

Tem publicadas a seguintes obras: Ualalapi (1987), Orgia dos Loucos (1990), Histórias de Amor e Espanto (1999) e No Reino dos Abutres (2002).

Centrada sobre a crueldade e despotismo de Ngungunyane, o último Imperador de Gaza, Ualalapi , a primeira das obras citadas, foi distinguida, em 1990, com o Grande Prémio da Ficção Narrativa; em 1994 com o Prémio Nacional de Ficção e, em 2002, foi considerada como um dos melhores livros africanos do século XX.

Ungulani Ba Ka Khosa por Ungulani:

"Os editores têm sempre a mania de exigirem uma pequena resenha das nossas vidas. Somos obrigados a abrir algumas estradas e enveredarmos por carreiros que só a nós nos diz respeito. É assim a vida. Mas vamos a ela: Nasci em Inhaminga, Distrito de Cheringoma (província de Sofala) a um de Agosto do ano 57. Nunca assentei arraiais por largo tempo num determinado local. Andei pelo país inteiro (exceptuando Tete). De formação tenho um bacharelato que sustenta o Ungulani. De livros posso mencionar Ualalapi, Orgia dos Loucos, e Estórias de Amor e Espanto. Pronto. Cá está parte do meu percurso. "

(contra-capa de No Reino dos Abutres, Imprensa Universitária, 2002, Maputo)

Fonte:
http://www.jayrus.art.br/Apostilas/LiteraturaAfricana/Ungulani_Ba_Ka_Khosa.htm