quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Aluísio Azevedo (O Coruja) Parte 26

CAPÍTULO XVIII

Enquanto Teobaldo dançava, ouvia música e conversava em casa docomendador Rodrigues de Aguiar, o pobre Coruja via-se em papos de aranha com os nervos da Ernestina, cuja crise não fora tão passageira como afiançara aquele. De mais a mais, o Caetano havia saído logo em seguida ao amo e nessa noite recolhera-se mais tarde que de costume; teve André por conseguinte de servir de enfermeiro à rapariga, sem licença de abandoná-la um só instante, porque as convulsões histéricas e os espasmos se repetiam nela quase que sem intermitência.

Foi uma noite de verdadeira luta para ambos; o rapaz, apesar da riqueza dos seus músculos, nem sempre lhe podia conter os ímpetos nervosos. A infeliz escabujava como um possesso; atirava-se fora da cama, rilhando os dentes, trincando os beiços e a língua, esfrangalhando as roupas, em um estrebuchamento que lançava por terra todos os objetos ao seu alcance. No fim de algumas horas o Corja sentia o corpo mais moído do que se o tivessem maçado com uma boa carga de pau. Além de que, a sua nenhuma convivência com mulheres e o seu natural acanhamento, mais penosa e critica tornavam para ele aquela situação. Ernestina cingia-se-lhe ao corpo, peito a peito, enterrando-lhe as unhas na cerviz, mordendo-lhe os cabelos, refogando-lhe com ânsia sobre o rosto, como em um supremo desespero de amor. E André, tonto e ofegante, sentia vertigens quando seus olhos topavam as trêmulas e agitadas carnes da histérica, completamente desvestidas nas alucinações do espasmo.

Às quatro horas da madrugada, quando Teobaldo chegou do baile, ele ainda estava de pé e a enferma parecia ter afinal sossegado e adormecido.

— Que! Exclamou aquele. Pois ainda trabalhas?

— Schit! Qual trabalho... Respondeu Coruja, pedindo silêncio com um gesto.

Passei a noite às voltas com a Ernestina... Ah! Não imaginas... Ataques sobre ataques!... Pobre rapariga! Não faças bulha... Creio que ela agora está dormindo...

— Impressionou-se naturalmente com o que eu lhe disse à tarde... Ora! Não fosse importuna!

— Coitada!

— Bem, disse Teobaldo, mas recolhe-te ao quarto e trata de descansar; eu fico aqui. Vai.

— Mas não te deitas?

— Tenho ali aquele sofá; não te incomodes comigo. Vai para a cama, que deves estar caindo de cansaço. Adeus.

O Coruja notou que o amigo trazia qualquer preocupação.

— Sentes alguma coisa? perguntou-lhe.

— Ao contrário: há muito tempo não me acho tão bem disposto.

— Então boa noite.

— Até amanhã.

Coruja recolheu-se ao quarto e o outro pôs-se a passear na sala, enquanto se despia; depois chegou à porta da alcova, encarou com um gesto de tédio o prostrado de Ernestina e voltou logo o rosto, como se tivesse medo de acordá-la com o seu olhar.

Todo ele era só uma idéia: — A filha do comendador. Branca não lhe saía da imaginação; tinha ainda defronte dos olhos aquele sorriso que ela lhe deu à janela; sentia ainda entre as suas a sua tremula mãozinha e nos ouvidos a música das últimas palavras que lhe ouviu.

— Adorável! Adorável! Repetia ele.

E foi para a mesa em mangas de camisa e começou a escrever versos sentimentais.

Ouviam-se, no silêncio fresco da madrugada, o bater inalterável do relógio e os bufidos suspirados de Ernestina, que parecia dormir um sono de ébrio.

— Que mulher impertinente!... Considerou ele, atirando com a pena e deixando pender para trás a cabeça a fitar o teto.

E pensou:

— Quando eu me lembro que a esta criatura nada falta — Casa, rendimentos, criados, e que ela se vem meter aqui, possuída de esperanças injustificáveis... Nem sei que juízo forme a seu respeito!... Será isto o verdadeiro amor?... Talvez, mas, se assim é, arrenego dele, porque não conheço coisa mais insuportável!... Ainda se ela não fosse tão desengraçada!... Tão tola!... Mas, valha-me Deus! Nunca vi mulher mais ridícula quando tem ciúmes; ainda não vi ninguém fazer cara tão feia para chorar!... Se ela fosse jeitosa ao menos; mas não tem gosto para nada, não sabe pôr um vestido, não sabe por um chapéu; e, em vez de endireitar com o tempo, parece que vai ficando cada vez mais estúpida! Não! Definitivamente é uma mulher impossível, apesar de toda a sua dedicação! E, para se divertir, pôs-se a lembrar as asneiras dela. Ernestina não dizia nunca "eu fui", era "eu foi"; pronunciava pãos, razães, tostãos e gostava muito de preceder com um a certos verbos, como divertir, divulgar, reunir, retirar e outros; como também não pronunciava as letras soltas no meio da palavra. "Obstáculo" em sua boca era ostáculo, "obsta" era osta e assim por diante. E a respeito dos tempos do verbo? Se ela queria dizer "entremos", dizia entramos e vice-versa; perguntava — "tu fostes? — Tu fizestes?" Uma calamidade!

Além disso, ultimamente dera para engordar, por tal forma que parecia ainda mais baixa e mais desairosa. Não era feiazinha de rosto, isso não; mas em toda a sua fisionomia, como no resto, não se encontrava um só traço original, distinto, impressionável. Vestia-se, calçava-se e penteava-se como toda a gente, e só conversava a respeito de vulgaridades, sem ter nunca uma frase própria; rindo quando repetia uma pilhéria já muito estafada, e desconfiando sempre que lhe diziam qualquer coisa que ela não entendesse. Uma lesma!

E Teobaldo a fazer estas considerações; e ela lá dentro a ressonar, agitada de vez em quando pelo sonho; ora gemendo, ora articulando palavras incompletas e destacadas.

— O bonito será se ela adoece deveras aqui em casa!... Considerou ele. Era só o que faltava!

E, notando que amanhecia, ergueu-se da mesa, lavou-se, mudou de roupa e tomou um cálice de conhaque. Já de chapéu e de bengala, ia a sair, quando Ernestina se remexeu na cama, depois assentou-se e perguntou com a voz muito quebrada e fraca:

— És tu, Teobaldo?

— Que deseja? interrogou ele secamente.

— Não te recolhes?

— Não, porque me tomaram a cama.

— Não sejas mau.

— Ora!

— Para que me tratas desse modo?... Estou tão incomodada, tão doente... Se soubesses como tenho sofrido!...

— Sofre por teima! A senhora podia perfeitamente estar em sua casa, feliz e tranqüila.

— É exato; a culpa é minha. Que horas são?

— Amanhece.

— Que? Pois já se passou a noite inteira? Ah! Agora me recordo que estive sem sentidos.

— Adeus.

— Vais sair?

— Vou.

— Por que não te demoras um pouco? Faze-me um bocado de companhia...

— Não, filha, preciso sair. Adeus.

— Escuta: foste sempre ao baile?

— Fui.

— Divertiste-te muito?

— Sim.

— Namoraste?

— Adeus.

— Vem cá.

Ele se aproximou dela com má vontade.

— Acho-te tão aborrecido, meu amor; não me trates com essa indiferença.

— Se lhe parece!

— Que?

— Que não devo estar aborrecido.

— Por minha causa?

— Naturalmente.

— Pois então vai-te embora, vai! Nunca mais te aborrecerei!

Teobaldo apertou-lhe a mão. Ela pediu-lhe um beijo, ele negou-lho e saiu cantarolando um trecho de ópera.

Logo que se perdeu no corredor a voz do moço, Ernestina ergueu-se e foi, amparando-se aos móveis e à parede, até à mesa, onde estavam, ao lado do candeeiro de petróleo ainda aceso, os versos há pouco escritos por Teobaldo. Leu-os,  chorou e, assentando-se no lugar em que ele estivera, tornou da pena e lançou em uma folha de papel o seguinte, pouco mais ou menos: Declaro que sou a única autora de minha morte e declaro também que reconheço por meu legitimo herdeiro o Sr... Teobaldo Henrique de Albuquerque, morador nesta casa. O meu testamento, no qual lego-lhe todos os meus bens, achase nas notas de tabelião Ramos.

Datou, assinou, pôs a folha de papel sobre a cômoda e, tornando à mesa, agarrou o candeeiro, desatarrachou-lhe a griseta, lançou esta para o lado sem lhe apagar a torcida e, julgando-se cheia de resolução, levou aos lábios o reservatório de querosene.

Mal, porém, encheu a boca com o primeiro trago fugiu-lhe a coragem de suicidar-se e, já arrependida de tal propósito, arremessou de uma golfada sobre a mesa o venenoso líquido, que foi ter à torcida e logo se inflamou.

Ernestina, assustada com isto, arremessou nervosamente o candeeiro que tinha ainda nas mãos, e o petróleo derramou-se, inundando-a. Então levantou-se uma grande chama que a envolveu toda. Ela soltou um grito e procurou ganhar a porta da sala; a chama recresceu com o deslocamento do ar.

A desgraçada conseguiu todavia chegar até onde estava André. O Coruja ergueu-se de pulo e viu, sem compreender logo, aquela enorme labareda irrequieta, que lhe percorria o quarto, a berrar desesperadamente.

Correu a socorrê-la; mas Ernestina acabava nesse momento de cair por terra, agonizante. Embalde ele procurava com os próprios punhos apagar-lhe as chamas do vestido.

Da sala até ali, por onde ela atravessava de carreira, viam-se na parede, de espaço em espaço, a forma de sua mão, desenhada com gordura derretida e pequenos pedaços de carne. Três vizinhos haviam acudido do andar de baixo e procuraram esclarecer o fato; a carta, encontrada sobre a cômoda, tudo explicou. Em breve a casa encheu-se de gente do povo e empregados da Polícia. Puxou-se o sofá para o meio da sala e nele se depois o corpo de Ernestina; não foi possível despi-lo totalmente dos farrapos que o cobriam, porque estes se tinham grudado às enormes feridas abertas pelo fogo. Toda ela, coitadinha, apresentava urna triste figura negra e esfolada em muitos pontos. Estava horrível; o cabelo desaparecera-lhe; os olhos eram duas orlas vermelhas e ensangüentadas; a boca, totalmente deslabiada, mostrava os dentes cerrados com desespero; e dos ouvidos sem orelhas e do nariz sem ventas escorria-lhe um líquido gorduroso e amarelento.

Um dos vizinhos, que era médico, passou logo o atestado de óbito e o Coruja tratou de dar as providencias para o enterro.

Teobaldo, ao entrar da rua às três da tarde, parou, sem ânimo de penetrar na sala, e, muito lívido, perguntou ao companheiro:

— Que é isto? Ela morreu?.

— Matou-se.

E André, carregando com ele para o seu quarto, narrou-lhe minuciosamente o ocorrido e disse-lhe depois:

— E o seu herdeiro és tu.

— Eu?!

— É exato. Deixou-te o que possuía. coitada!

E limpou as lágrimas.

— Diabo! Exclamou Teobaldo, soltando um murro na cabeça. Diabo! Maldito seja eu!

O outro não queria consentir que ele visse o cadáver, mas Teobaldo repeliu-o e correu para junto de Ernestina. Atirou-se de joelhos ao lado dela e abriu a soluçar como um perdido.

— Desgraçado que eu sou! Desgraçado que eu sou!

E ergueu a cabeça para lhe dar um beijo na testa.

— Quem sabe, pensou ele, inundando-a de lágrimas, quem sabe se este mesmo beijo um pouco antes não teria te poupado à morte!... Criminoso que sou! Enquanto morrias aqui, abandonada e repelida por mim, que te não merecia; enquanto me lançavas com o teu último suspiro a tua benção e o teu perdão, eu te amaldiçoava e maldizia o teu afeto, sem ao menos compreende-lo!

Coruja veio arrancá-lo dali à força, e tão acabrunhado o achou depois do enterro que, para o consolar, lhe disse:

— Então, então, meu Teobaldo! O que está feito já não tem remédio! Nada lucras com ficar neste estado! Vamos! No fim de contas não tens culpa do que sucedeu!...

— Não é verdade, meu André? Volveu o outro, apoderando-se das mãos do Coruja. Não é verdade que não sou um assassino perverso?... Não é verdade que, se a matei...

— Oh! Tu não a mataste!.

— Sim, matei-a! Sei perfeitamente que fui a causa de sua morte; mas eu também não podia adivinhar que a minha indiferença a levasse a tal extremo!

— Decerto, decerto!

— Ah! Sou um desgraçado! Sou um ente maldito! Todos me cercam de carinhos e bondades, eu só os retribuo com o mal e com a ingratidão. Reconheço que sou amado demais! Reconheço que nada mereço de ninguém porque nada produzo em benefício de quem quer que seja! Deviam dar cabo de mim como se faz com os animais daninhos!

Enlouqueceste, Teobaldo! Estás a dizer tolices!

— Não! Replicou este, não! E em ti mesmo vejo a confirmação do que estou dizendo. És trabalhador, és perseverante, és digno de toda a felicidade, e, só por minha causa, não consegues ser feliz!

— Ao teu lado não posso ser infeliz, meu amigo.

— Ao meu lado és sempre tão desgraçado como eu! Ainda não conseguiste o teu casamento, ainda não conseguiste fazer o teu pecúlio, e tudo por quê?... Porque eu aqui estou! Já hoje não foste à tua obrigação; ontem gastaste o dia inteiro a cuidar desta pobre mulher que eu matei...

Coruja percebeu que eram inúteis as suas palavras de consolação, porque o desespero de Teobaldo estava ainda no período agudo, e, para distraí-lo, resolveu procurar casa no dia seguinte e tratar logo da mudança.

Aqueles fatos serviram para redobrar a irregularidade da vida de Teobaldo, porque vieram modificar as teorias deste sobre o amor da mulher e aqueceram-lhe durante algum tempo as algibeiras.

Foi por seu próprio pé à procura de Leonília que, não conseguindo realizar a premeditada viagem, havia tornado à existência primitiva e achava-se luxuosamente instalada como dantes. Contou-lhe todo o ocorrido e acabou pedindo-lhe perdão de se ter mostrado até aí tão indiferente grosseiro também com ela.

A cortesã estranhou a visita, mas não menos a estimou por isso, abençoando instintivamente do fundo da alma a morte da outra, que lhe restituía o amante. Foi assim que Teobaldo voltou aos braços dela, entregando-se como por castigo, como para cumprir uma penitência, em honra à memória de Ernestina.

Todavia não se esqueceu de Branca; era esta a idéia verdadeiramente boa e consoladora de sua vida; era sua doce estrela de esperanças, o grande lago azul onde o seu pensamento ia descansar, quando votava desiludido dos prazeres ruidosos e prostrado pelo tédio da ociosidade.

Agora assistia à casa do comendador com mais freqüência e, uma vez em que se achou a sós com Branca, tomou-lhe as mãos e disse-lhe:

— Ah! Se eu pudesse lhe falar com franqueza...

— Mas...

— Sei que não tenho esse direito: a senhora nunca me autorizou a tal; muito me custa, porém, esconder por mais tempo o meu segredo... Oh! É um desgosto tão grande... tão profundo.

— Um desgosto? creia que me penaliza essa notícia...

— Obrigado, no entanto...

— Mas, qual é o desgosto?

— Consente que lho confesse?

— Sim.

— Promete não ficar zangada comigo?

— Diga o que é.

— É o seu casamento.

— Com meu primo? Ora, isso ainda não está decidido.

— Mas estará em breve...

— Crê?

— É a vontade do comendador... e a senhora como filha dócil e obediente.

— Meu pai não seria capaz de casar-me contra a minha vontade...

— E é contra a sua vontade este casamento?

— O senhor já sabe que sim; mas não vejo onde esteja a causa do seu desgosto.

— É porque sou amigo de seu primo... E desejava vê-lo casado comigo?...

— Ao contrário, e por isso que me desgosto.

— E por que não deseja vê-lo casado comigo?

— Por que...

— Diga.

— Porque a amo.

Branca estremeceu toda e quis fugir.

— Ouça-me, acrescentou Teobaldo, segurando-a pelos braços. Ouça e perdoe, minha doce esperança, minha vida! A senhora foi o meu bom anjo, foi a salvadora de minha alma; eu já me sentia perdido, gasto, morto; desde que a vi, reanimei-me como por encanto! Adoro-a, Branca, e basta uma palavra sua, uma única, para que eu seja o mais feliz ou o mais desgraçado dos homens!.

— Cale-te, Teobaldo!

— Não! Quero que me responda!...

— Mas que lhe hei de eu dizer?.

— Diga-me se devo ou não ter esperanças de ser amado pela senhora.

Ela quis escapar-lhe de novo; ele não deixou.

— Vamos! Fale.

— Sim... disse Branca afinal, corando muito e fugindo.
–––––––––-
continua…

domingo, 18 de agosto de 2013

Aluísio Azevedo (O Coruja) Parte 25

CAPÍTULO XVII

O Aguiar morava lá para Mata-cavalos, em casa própria, e tão caprichoso era com esta quanto com a sua própria pessoa. Aquelas pequenas salas forradas de fresco, mobiliadas com certo esmero, enfeitadas de quadros e cortinas, diziam admiravelmente com o tipo do dono. Orçava ele então pelos vinte e oito anos e parecia mais bem disposto que nunca. Bonito, mas antipático, tinha uma dessas caras gordas, bem barbeadas, sem rugas nem espinhas, bigode curto e retorcido à força, queixo redondo, olhos pequenos e vivos, nariz grosso, testa muito estreita e magníficos cabelos. Não era muito gordo, nem tão pouco muito magro; não era alto, mas, igualmente, ninguém podia dizer que era baixo, e vestia-se com inalterável apuro, chegando a fazer disso uma preocupação. Era um luxo a roupa branca que ele usava durante o trabalho; gostava das calças de brim engomado e trazia sempre boas pedras de valor no peito da camisa e nos dedos.

Aguiar pertencia ao comércio tanto por gosto como pelas circunstâncias em que nascera; destinado para isso desde o berço por seu pai, um rico negociante português, dera os primeiros passos entre o Razão e o Caixa e criara os primeiros cabelos da barba em Londres, para onde o enviara aquele a praticar em velhas casas comerciais.

Não chegara a conhecer a mãe, porque esta morrera pouco depois de o dar à luz; só tornou ao Brasil com a notícia do falecimento de seu pai, cujo lugar no comércio preencheu logo. Foi então que Teobaldo se relacionou com ele, por acaso, em um baile de máscaras no Pedro II. O filho do barão, que nesse tempo era ainda um bom gastador, fascinou-o de pronto com as suas maneiras fidalgas e muito mais distintas que as dele; dentro em pouco haviam-se feito companheiros inseparáveis de pândega; quase sempre ceavam juntos, gastavam com a mesma largueza, conheciam as mesmas mulheres e, muita vez, jogavam ao lado um do outro nas tavolagens da época.

As desastrosas circunstâncias a que ao depois se viu Teobaldo reduzido, separaram-nos por algum tempo, mas não de todo; e, agora, aquele convite para a casa do comendador Rodrigues e as confidencias que o precederam, como que o ligavam de novo e mais estreitamente. O comendador era tio do Aguiar por parte de pai; velhote de seis palmos de altura, forte e nervoso, coração bom, mas de gênio irascível e fulminante.

O sobrinho dizia a rir que ele, se lhe chegassem um charuto aceso à ponta do nariz, estourava. Viera muito pequeno de Portugal em companhia do irmão; fora tropeiro durante uns vinte anos em S. Paulo e Minas; depois estabeleceu-se na Mata, negociou forte e veio afinal, já velho, a levantar a sua tenda no Rio de Janeiro. Da sua paixão pela política apenas lhe restavam as recordações de quarenta e dois, ano em que se batera pela revolução de Minas, saindo ferido de uma pequena escaramuça na ponte de Santa Luzia; contava este fato a toda a gente e sempre com o mesmo entusiasmo.

Era viúvo; tivera três filhas, das quais apenas uma lhe restava, Branca; um mimo de quinze anos, a formosa tirana para quem o Aguiar pedia versos ao amigo e em honra da qual se afestoava agora o velho casarão do comendador.

Teobaldo chegou às cinco horas a Mata-cavalos, ainda muito impressionado pelas contrariedades desse dia.

— Ah! Mas desta vez creio ter conseguido endireitar a vida ... disse ele logo que entrou em conversa com o dono da casa.

E pôs-se a contar o ocorrido a respeito de Leonília e Ernestina.

— Tomara eu as tuas desgraças... Respondeu aquele disposto a falar dos próprios amores.

Teobaldo não lhe deu licença para isso e continuou a tratar de si, até à ocasião de irem ambos para a mesa.

Aguiar, que não era dos mais pecos em questões culinárias, caprichou no jantar que ofereceu ao amigo, e, à prova do terceiro vinho, já os dois lamentavam intimamente não dispor de mais segredos para os confiar um ao outro. Teobaldo pediu novas informações a respeito de Branca.

— Ah! Fez o negociante, meneando a cabeça com os olhos fechados; vais ver o que é uma criatura perfeitamente adorável. Bela. inteligente, distinta, espirituosa, tudo o que há de bom, que há de puro e que há de mais sedutor no mundo! Uma obra-prima! Ah! Que se ela sentisse por mim a metade do que eu sinto por ela!...

— É não desanimar, filho! Deixa correr o tempo; não acredito que uma menina de quinze anos resista a todo esse amor!

— Não sei, ela é de uma tal frieza para comigo...

— Talvez aparente... Não conheces as mulheres... foi para elas que se inventou o provérbio "Quem desdenha quer comprar".

— Em todo o caso não desanimarei sem ter esgotado até o último recurso.

— Está claro! E teu tio? Que tal é?

— Um tipo, mas belo homem... Vais gostar dele. Fala-lhe na revolução mineira...

— Aquela casa pertence-lhe, ou é alugada?

— A casa em que ele mora? Pertence-lhe, e, como essa, mais duas lá mesmo em Botafogo.

— E ele vive só com a filha?

— Não; tem mais uma pessoa em casa: Mme. de Nangis.

— Mme. de Nangis? Quem vem a ser?...

— É uma professora francesa, a quem meu tio encarregou da educação de Branca.

— Ah!... E é velha?

— Meia idade...

— Bonita?

— Não é feia.

— Mora lá há muito tempo?

— Há mais de oito anos.

— E não dizem nada a respeito dela com teu tio?

— Não, porque já disseram tudo o que podiam dizer.

— Com razão?

— Sei cá; é de supor que sim.

— Nunca percebeste nada entre eles?

— Nem pretendo.

— Por conveniência...

— Não.

— Então por quê?

— Ora! Que diabo me interessa isso?...

— É boa! Pois não tencionas casar com tua prima?...

— Sim, mas minha prima nada tem que ver com Mme. de Nangis...

Teobaldo sacudiu os ombros em sinal de desaprovação.

— E ela que tal é? Simpática? Perguntou depois.

— Quem? A professora? É: toca piano admiravelmente e dizem que tem espírito.

— Dizem?

— Sim; eu ainda não dei por isso.

— É instruída?

— Tanto como qualquer pretensiosa.

— Amável?

— Tanto quanto é instruída.

— Parece que não morres de amor por ela...

— Enganas-te; Mme. de Nangis protege o meu casamento.

— Ah! E só por isso é que a estimas?.

— Por isso e pela grande influencia que ela tem sobre meu tio.

— Então é exato o que disseram a respeito deles...

— Homem, a coisa vem desde os últimos tempos de minha tia...

— E por que o velho não se casa agora com a professora?

— Por uma razão muito simples: Mme. de Nangis é casada...

— Casada? E o marido?

— Está em Paris.

— Ah!...

E a graça é que lhe dá uma pensão.

— À custa do comendador?

— À custa do comendador é um modo de dizer, porque o que é dele é dela...

— Ah! A coisa chegou a esse ponto?

— Ora!

Às dez da noite apearam-se os dois rapazes à porta do comendador Rodrigues de Aguiar.

Casa antiga, de aparência muito feia, mas com um belo interior. Teobaldo, ao primeiro passo que deu de portas adentro, notou logo em tudo uma certa felicidade de escolha, uma bem educada sobriedade nos objetos de luxo; percebeu que não entrava em uma dessas casas burguesas em que a gente se fatiga só com olhar os móveis e donde se sai com a alma atordoada e cheia de tédio.

Ele, que havia muito não entrava em uma sala dessa ordem, sentiu despertar dentro de si todo o seu passado adormecido, e, como a planta desterrada que ia amortecendo ao ar livre e logo se endireita quando a recolhem à tepidez da estufa, assim ele se fez o que era dantes ao lado da família.

Ali, Teobaldo achou-se perfeitamente bem; estava no seu elemento. Flor amimada e crescida entre carinhos, era, quando se achava nas ruas, nos cafés ou nas casas de trabalho, uma criatura deslocada e nostálgica. Para o seu completo bem-estar e para o seu bom humor tornava-se indispensável aquele perfume de riqueza, aquele meio aveludado e fino.

O amigo apresentou-o ao tio, e os três conversaram por longo tempo ao fundo de uma saleta, onde se jogava. É inútil dizer que o filho do Barão do Palmar, insinuante como era, cativou logo as simpatias do velho, principalmente depois que lhe falou de Minas e do papel que seu pai representara na revolução. Aprovou muito o projetado casamento do amigo com Branca e terminou desfazendo-se em elogios ao bom gosto e à distinção
que presidiam àquelas salas.

— Não, quanto a isso, respondeu o velho, não aceito os seus cumprimentos, porque não devem ser dirigidos a mim; pertencem de direito a uma senhora que acompanha minha filha há oito anos, Mme. de Nangis... Daqui a pouco lhe serão ambas apresentadas. Se não fosse Mme. de Nangis...

E, como Branca passasse nesse ato pela sala próxima de braço com uma amiga, o comendador interrompeu o que dizia e correu ao encontro dela.

Teobaldo apressou-se a segui-lo.

— É esta, disse o velho.

E, voltando-se para a menina:

— O Sr. Teobaldo Henrique de Albuquerque, filho de antigos conhecidos meus e amigo de teu primo Afonso, que teve a boa idéia de o trazer a esta casa.

Teobaldo vergou-se respeitosamente e declarou que estava encantado em ter feito conhecimento com pessoas tão distintas.

Em seguida o comendador deu-lhe o braço e levou-o até onde estava Mme. de Nangis.
Nova apresentação.

— Agora, disse o velho, está cumprido o meu dever e o senhor que trate de si; faça-se apresentar às amigas de minha filha. Com licença.

— Vai principiar o concerto, observou a professora aceitando o braço que lhe ofereceu Teobaldo — o senhor gosta de música?

— Apaixonadamente, minha senhora.

— Toca algum instrumento?

— Um pouco de piano.

— Quando tiver ocasião dar-nos-á muito prazer em se deixar ouvir.

— V. Exa. confunde-me...

E chegaram à sala próxima, onde duas rabecas, uma violeta e um violoncelo dispunham-se a executar uma serenata de Schubert.

Depois da serenata, Mme. de Nangis anunciou a Teobaldo que ia dançar uma quadrilha e perguntou se ele queria um par.

O rapaz respondeu que ficaria muito lisonjeado se ela própria o aceitasse para seu cavalheiro.

— Com muito gosto, mas fique sabendo que o senhor perde com a troca, replicou a professora.

Dentro de uma hora, Teobaldo era o objeto da curiosidade de todas as damas.

Seu tipo destacava-se naturalmente, sem o menor exagero de galanteria, sem frases pretensiosas, e sempre correto, elegantemente frio e de um distintíssimo comedimento nas palavras e nos gestos.

Branca foi o seu par nos Lanceiros; depois cedeu-lhe também uma valsa, terminada a qual puseram-se ambos a conversar.

— O senhor é que é o autor de uns versos, que saíram há poucos dias no jornal?

— Sim, minha senhora, mas como chegou V. Exa. a lembrar-se de semelhante coisa?

— É que meu primo me havia dito que eram de um amigo dele, creio até que chegou a citar o seu nome e, agora, vendo-os juntos...

— V. Exa. gosta de versos?

— Qual é a moça de minha idade que não gosta de poesia?... Ainda ontem meu pai trouxe-me um livro de Casimiro de Abreu. Conhece?

— Já li. Tem coisas admiráveis.

— Oh! É tão terno, tão apaixonado, que faz chorar. E, mudando de tom:

— Sabe? Meu primo também é poeta...

— Ah! Fez Teobaldo.

— Ofereceu-me hoje uma poesia. Quer ver?

Teobaldo bem podia dispensar a leitura, mas não quis prejudicar o outro e disse quando a terminou:

— Magnífico! Não sabia que o Aguiar tem tanto talento!

— Eu também não...

— Até aqui o apreciava somente pelas suas qualidades morais.

Branca não respondeu, porque neste momento uma senhora principiava a cantar ao piano.

Daí a pouco, a um canto da janela, perguntava Afonso ao amigo:

— Então, que tal achaste minha prima?

— Encantadora.

— Não é?!

— Adorável! Uma flor!

— Falou-te nos versos que lhe dei?

— É verdade, e eu tive de elogiá-los, para fazer não desconfiar que eram meus. Imagina em que estado não ficaria minha modéstia; qualifiquei-os de admiráveis!

— E, com efeito, são muito bons.

— Qual! Escrevi-os de afogadilho! Ah! Mas se eu já a conhecesse, juro-te que sairiam inspirados!

— Pois reserva a inspiração para outra vez.

Não continuaram a conversa, porque Mme. de Nangis veio ter com Afonso e arrebatou-o, dizendo ao outro:

— Tenha paciência, roubo seu amigo por um instante!

Teobaldo ia também deixar a janela, quando a cortina desta se agitou e apareceu Branca.

— Ah! Fez ele, V. Exa. estava aí?

— Sim, o que foi muito bom, porque posso lhe agradecer os versos que o senhor me fez.

— Pois ouviu?

— Ouvi, mas foi sem querer... Que mal ha nisso...

— Seu primo é que não ficará satisfeito.

— Se souber, mas que necessidade tem ele de saber?...

— Quer que eu não lhe diga nada?

— Decerto, e nem só isso, corno desejo que meu primo não fique na primeira poesia e me ofereça muitas outras. Vou daqui direitinha dizer isso mesmo a ele próprio.

E, como para agradecer antecipadamente os versos de Teobaldo, estendeu-lhe a mão, que o moço apertou entre as suas, um tanto comovido. Horas depois, os dois rapazes, já instalados nos seus sobretudos, metiam-se no carro e abandonavam a festa do comendador.

Pela viagem Teobaldo, a despeito do bom humor do companheiro, quase que não deu palavra; e, ao se pararem-se, Afonso notou que o achava triste.

— Não é nada, respondeu o outro. — Adeus. Até mais ver!

E deixou-se cair para o fundo do cupê, respirando com alívio e murmurando entredentes:

— Adorável criança!
––––––––––––
continua…

sábado, 17 de agosto de 2013

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) Mãe

Pobre mulher, aquela boa e sincera mãe que vi ontem, tão mansa, tão entregue ao seu pequenino!

Era bonita, mas como que o ignorava. Estava tão despreocupada no bonde como se estivesse em sua casa. 'Trazia o filhinho ao regaço, e brincava-lhe com uma das mãozinhas, fazendo-a saltar, arremessando-a e abaixando-a, aos pequenos tapas, como uma bola. O pequeno ria-se de quando em quando, e a cada risada o rosto da mãe tomava uma expressão forte, escultural de felicidade plena e remansosa.

A certo momento, pegou a criança pelo tronco, pô-la em pé sobre os joelhos, e começou a sacudi-la como a pregar-lhes sustos. Fazia-lhe, ora, uma cara de surpresa cômica, arregalando os olhos; ora, uma cara de cólera, carregando as sobrancelhas, afuzilando o olhar; ora, uma cara de choro desconsolado, em que todos os músculos se relaxavam e as pálpebras e os cantos da boca descaíam.

Jogral do seu pequerrucho, essa mãe se esquecia de si, se despojava de todas as preocupações habituais, concentrava toda a sua vida naquele ser único, pequenino e fragílimo. Era um simples brinquedo em poder do seu bebê, -brinquedo todo cheinho de amor, como outros o são de serragem.

Mas, por que, deuses imortais e impossíveis! por que seria necessário que essa mãe, resumindo o mundo em seu filho, trabalhasse tão obstinadamente por gravar nele os gestos eternos da loucura humana? Gestos de fúria, de terror, de cupidez, de despeito, de ciúme, -toda a mímica do inferno mundano, -formas para ele ainda vazias, mas nas quais se irá pouco a pouco vertendo e solidificando a substância do seu pequeno Eu rarefeito e disperso?

Ama-o como a um anjo, e luta por fazer dele apenas um destes vasos de miséria, de impureza e de sofrimento!

Belo e medonho, o amor de mãe. Suavíssimo e terrível. A sombra dos seus gestos, branda como a dos ramos, prolonga-se até o horizonte da vida, onde a sombra enorme da Fatalidade passa arrastando pelos cabelos a sombra da Ilusão.

Fonte:
Domínio Público

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Aparecido Raimundo de Souza (Roletrando)

O PASSAGEIRO CHEGA PARA PAGAR A TARIFA ao trocador estendendo as mãos cheias de moedinhas.

- Posso ficar lhe devendo cinco centavos? - pergunta com sua costumada gentileza.

- Não! - A passagem é um real e cinquenta e cinco centavos -, Assevera o cobrador, com ares pouco cavalheirescos. - Se não tem a grana completa, desce...

- Eu sei moço. Quebra essa... Ou terá que trocar cinquenta reais.

- Prefiro. Se deixar o senhor ir em frente – junta o exemplo à explicação -, terei que tirar do meu bolso na hora de prestar contas. A empresa não perdoa.

- Cinco centavos...?

-... De cinco em cinco...

Diante da intransigência do cobrador o passageiro mete as moedas de volta numa niqueleira. Em seguida puxa do bolso a nota de cinquenta reais.

- Se é assim, fazer o quê?

- Espere um pouco...

-... Vou saltar logo.

- Onde?

- Vila Alegria.

- Tá longe. Daqui até lá, bem uns vinte pontos. Espere aqui do lado para não atravancar os demais.

O passageiro senta naquele banco destinado às grávidas e aos idosos e fica a espreita. Em cada parada, ao longo do caminho, sobe uma nova leva de gente. Algumas exibem notas grandes, iguais à dele, outras trazem cartões magnéticos e passes pré-pagos.

Vinte minutos depois volta a cutucar o funcionário.

- Conseguiu?

- Calma cavalheiro.

- Meu ponto está chegando...

À medida que o pessoal cruza a catraca, o trocador junta o dinheiro para devolver o troco.

- Aqui...

Antes de seguir adiante o passageiro resolve conferir as notas e as moedas recebidas. Percebe uma pequena falta. Retruca:

- Amigo, dei cinquenta reais...

-... E eu lhe devolvi o troco.

- A passagem não é um real e cinquenta e cinco?

- É o que diz a plaqueta logo aqui atrás de mim.

- Desculpe. A grana está errada.

- Como assim?

- O amigo terá que me devolver quarenta e oito reais e quarenta e cinco centavos.

- E quanto lhe passei?

- Quarenta e oito reais e quarenta centavos. Faltam cinco centavos.

- Estou sem moedinhas nesse valor.

- Perdão. Exijo o troco correto.

- Parceiro, entenda, não tenho cinco centavos. Será que essa enorme quantia vai lhe fazer falta? Pelo amor de Deus!...

- Veja bem, não é pela quantia. É pela sua postura. Pela sua sacanagem.

O cobrador começa a dar sinais de visível irritação. Desforra:

- Passa logo e não chateia. Pense nos demais que estão a sua retaguarda e também querem pagar a passagem para chegarem a seus locais de destino...

- Não, não vou passar. Quero o troco a que tenho direito: quarenta e oito reais e quarenta e cinco centavos.

- Faz questão de cinco centavos?

- Estou pagando na mesma moeda.

Meia dúzia de rostos furiosos pede, com urgência, a desobstrução para o interior do coletivo.

- “E ai, meu chapa. É pra hoje?”.

- “Dá pra ser, cidadão?”.

- “Será que terei de pular?”

Diante desses protestos o trocador se empolga e bota banca. Berra:

- O cara tá fazendo esse carnaval por causa de cinco centavos. É mole?

Um terceiro entra em favor do cobrador.

- Vai ver está precisando para inteirar a “malmita...”

O passageiro na exigência dos cinco centavos continua impassível. Esbraveja:

- Faço questão dos cinco centavos. É merreca? Sim! Mas é meu.

Um senhor de boné azul marinho com uma pombinha branca da paz desenhada nele estende uma moedinha de dez centavos.

- Moço, toma aqui. Vai com Deus.

- Agradeço a sua boa vontade em querer ajudar. Todavia, não posso aceitar. Ele aqui é que tem de se virar e me dar o troco correto.

- Estou lhe dando cinco centavos a mais... Sem ter nada com o peixe...

- Valeu a sua intenção. Penhoradamente agradeço a sua gentileza.

- Estou propenso a supor que o encrenqueiro aqui é o prezado.

- Peço mil desculpas por todo o transtorno que estou causando, mas o senhor pegou o bonde andando. Quando entrei, tentei pagar a passagem com moedas. Tinha exatamente um real e cinquenta. Faltavam cinco centavos. Falei com o distinto e pedi que me deixasse passar sem eles. Houve a recusa. Alegou que teria que desembolsar de seus fundos na hora de prestar contas à empresa. Então mandei a nota de cinquenta. Agora está me devolvendo o troco errado. Ora bolas: se não posso ingressar sem os cinco centavos –, o senhor como um homem decente e honesto -, deverá concordar comigo que ele também não tem o direito de ficar me devendo os cinco centavos, ainda mais se levar em conta que apresentei nota maior. O certo, o justo, nesse  caso, é cobrar um real e cinquenta...

Um silêncio sepulcral toma conta dos presentes.

- “Ele tem razão” - Argumenta uma colegial com uma mochila nas costas.

- “Devolve o troco direito” - Protesta um grandalhão.

- “Esses caras de jumento todos os dias embolsam nossas moedinhas”- conclui um terceiro.

- “Safado. Ladrão” berra eufórica, a galera.

- “No fim do dia ele junta uma quantia considerável. Se multiplicado por trinta dias...”.

O quadro de repente toma proporções inesperadas.

- “Perverso esse um. Devolve a grana do moço...”.

 “-... Ou deixa o cidadão passar faltando os benditos cinco centavos”.

- “É isso mesmo...”.

Sem saída, detido pela impotência daquele festival confuso de vozes a beira de um ataque de nervos, o motorista, coitado, não sabe o que fazer, ou que atitude tomar. Está impedido de partir e fechar a porta dianteira. Uma enxurrada de cabeças, braços e pernas se acotovela tanto do lado de dentro, quanto de fora, querendo subir a bordo.

- “Devolve a grana, pilantra”.

- “Tudo isso por causa de cinco centavos?”.

Por fim, o consenso prevalece:

- Me passa os quarenta e oito reais e quarenta.

- Faltam cinco centavos...

-... Amado, mais tem Deus para me dar, que o diabo para tirar.

Satisfeito, o passageiro roda o molinete, entrega as moedinhas da niqueleira e revê a nota que causou toda a balbúrdia. Salta logo depois. O trocador, enfurecido, meio que lesado, perdido de si, rebolado no monturo da vergonha segue o resto da viagem reclamando. Desprecisão tanta, miséria maior. Faz cara de choro. Finge desengonçado, num gesto mal ensaiado. Retruca:

- Vão descontar do meu bolso. Esta empresa é uma droga! Uma droga! Que droga...!

Envolvidos, entretanto, pela avidez da chegada, cada um segue emborcado nos próprios problemas. No minuto seguinte, ninguém mais se lembra do cobrador e seus queixumes.
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Aparecido Raimundo de Souza, 59 anos é jornalista. Nasceu em 19 de março de 1953 em Andirá, Paraná. Reside no Espírito Santo. Free lance da Revista ISTO É GENTE.

Alguns livros de sua autoria:

Parada de sucesso
Como matar sua mulher sem deixar vestígios
Do fundo do meu coração
Com os chifres à flor da cabeça
A outra perna do saci
O vulto da sombra estranha
Refúgio para cornos avariados
Tudo o que eu gostaria de ter dito
Havia uma ponte lá na fronteira

Fonte:
http://www.paralerepensar.com.br/aparecidoraimundo_roletrando.htm

Virgínia Crisóstomo (Poesias Avulsas)

Ser
 
No singular é pujança
que vaza e bebe e mergulha
para em seguida emergir
e se deixar derramar

Na alteridade oscila
o pendular desejo
a insinuar sem dizer
no seu falar de viés
de sinuosas vias

Na plenitude é presença
de grota a colher vida
contraste de sombra e de luz
a permear lacunas
frequência de onda lunar

É singular e plural
o sensual divino
do feminino ser
Feito cordas que vibram
antigas canções de ninar

Par a Par

O equilíbrio entre dois
na gangorra
é não ficar do mesmo lado

Não haveria diversão
não fosse o impulso sincronizado
às vezes desajeitado
a mover a gangorra

Sem a alternância
um estaria isolado no topo
e o outro preso no chão

E não desfrutariam do prazer
de estarem para a par na gangorra
a eixo de cada oscilação

Manto azul
 
O sol adormece sobre o cansaço do dia.
Na penumbra das horas a vida repousa
enquanto as trevas cumprem seu destino.

No encontro da noite com o dia,
a lua recolhe os miasmas sinistros
que o sol em breve irá cremar.

As últimas lágrimas de orvalho
diluem-se sobre as folhas,
umedecem a terra,
acordam a semente.

E a brisa da aurora dispersa as nuvens
para dar passagem à manhã
a envolver de esperanças
com seu manto azul, o novo dia.

Salgueiro
 
No recomeço de tudo
o sopro da vida pulsa
no escuro útero

É a regressão do ser
a vestir-se de grão

O broto em mutação
cava a passagem de ida
ao desconhecido instante
de orvalho e de sol
de vento e de lua

Fiel ao fio que o ancora
oferta à generosa chã
altaneira fronde
de flores e frutos

À tormenta e sua ceifa
inclina-se em reverência
e doa-lhe imoladas folhas
adubo de gérmen latente

Cada nó, cada gume
urde a preciosa trama
que forma a antiga morada
de todas as eras

O sopro da vida pulsa
e tudo é recomeço
neste jeito humano de ser

Fonte:
Rebra

Virgínia Crisóstomo

Virgínia Barbosa Leal Crisóstomo é recifense de nascimento e olindense de coração.

Filha de escritor e de historiadora e mãe de um casal de filhos, por trinta anos foi advogada da Caixa Econômica Federal em Pernambuco.

Iniciou seu percurso literário em 2003, com o livro “O Caleidoscópio da Vida”.

Em 2005 editou “Para quem não tem colírio – Desnudando o comportamento compulsivo”, e “Fênix”.

Participou de algumas antologias, entre elas “Pimenta Rosa” e “O Fim da Velhice – A superação bem humorada de um conceito”, “Pimenta Rosa”, “Antologia das Águas” e “Vozes – A Crônica Feminina Contemporânea em Pernambuco.

É sócia da União Brasileira de Escritores e integrante do Grupo Literário Celina de Holanda.

páginas em sites:

www.recife.pe.gov.br/pr/seccultura/fccc/cadastro/
 www.interpoética.com.br

Fonte:
Rebra

Norália de Mello Castro (Síndrome de Proteus)

Escultura de Leya Terranova
Todas as vezes que ela passa por aquela rua movimentada, pára para ver a estátua-mulher. Vê-la é sentir arrepios da ponta dos pés à cabeça, e ter a nuca molhada de suores frios.

A estátua-mulher está pregada aos pés do Banco do Brasil. Ela sente náuseas, tem ânsias, parece-lhe que o tempo não se fez. O frio percorre seu corpo: ela, pregada nos pés daquela estátua. Está agitada, mais firme, mais presa. A estátua está de cor-cinza-marrom. A chuva, o sol, os dias e as noites lhe deram o tom bronzeado sem brilho. Suas pernas têm reentrâncias, espaços vazios carcomidos na aridez do bronze.

Desde que ela a vira ali no canteiro, defronte ao Banco, sentiu que os ares daquela rua, da sua cidade, mudavam: as pessoas passavam, paravam; uns, pasmos como ela, outros, críticos horrorizados: “só pode ter sido algum Adão ainda inconformado com a perda de sua costela que esculpiu a estátua-mulher”. Disseram até que ela era símbolo de todas as mulheres conjuntas disformes inertes. Hoje, ninguém se importa com a estátua-mulher de pés disformes e pernas grossas, imensas, pregadas nas ancas diminutas que foram absorvidas: as pernas apenas se unem para carregar as patas de elefante.

Parece que todos se acostumaram e outras estátuas semelhantes foram postas na cidade. Mas a estátua-mulher continua mexendo com ela, até estragando-lhe dias em angústia, fazendo-a mergulhar nas suas pernas sem ancas, absorvidas em movimentos circulares e em sombras.

A estátua-mulher e o Banco.

Ela não entende porque a colocaram ali na frente tal estátua disforme! Talvez um lembrete constante, uma questão de hierarquia... O poder maior fará sempre a mulher em plano secundário, embora possam até sublimá-la.

Aquele literato, ao apresentar a poetisa, quase se desculpou por gostar tanto das poesias dela e justificou-se: “o pensamento do homem é mais racional, objetivo, e o da mulher, coração sentimentos”.

Para a mulher, o lugar é em frente ao Banco do Brasil, pregada. Competir com o homem – no mundo de dentro ou de fora – é ter os pés pregados em pernas sem ancas, num elefantismo grotesco. Não cabem sentimentalismos no mundo dos bancos. Aos vencedores... tudo! Aos perdedores... zás, silêncio!

Hoje, ao passar pelo Banco, custou-lhe mais cansaço. Ela chega fria ao trabalho. A sala está cheia de gente. Tem de recompor-se, pois terá de ouvir a todos. A estátua-mulher e os concursos literários não vitoriosos têm de ficar engarrafados nas suas ancas; não, nas suas pernas: ela sente as pernas pesadas, que vontade de dormir.

Junto à sua mesa, já tem uma cliente. Ela olha a cliente: é jovem, risonha, olhos vivos, cabelos pretos encaracolados a cair-lhe pelos ombros.

- Preciso de ajuda, Doutora, preciso de...

Ela sorri em resposta.

- Preciso de botas especiais.

“Que loucura, acabei de ver a estátua-mulher e esta jovem vem pedir botas.”

- Qual o seu nome?

- Tereza de Jesus Maria do Espírito Santo. – responde-lhe prontamente a jovem, rindo.

“Não pode ser, ela deve estar brincando.”

- Mas pode me chamar de Tetê. – acrescenta a jovem.

- E para que as botas, Tetê?

- Quero continuar estudando, estou no último ano do segundo grau e, sem botas, não consigo ir às aulas, caio à toa.

- Por quê?

Tetê se levanta, se distancia da mesa e lhe mostra, sempre com sorriso na boca. Não se lhe percebe nenhum rito de amargura revolta ou dor. Tetê mostra bem suas pernas e diz:

- Tudo que quero na vida é estudar enquanto puder. Estudar.
 
Ela olha bem para Tetê, à sua frente a estátua-mulher em carne e osso, pés disformes vermelhos, com manchas subindo pelas pernas e coxas, e Tetê capenga. Ela olha para as ancas de Tetê que lhe sustentam o caminhar daquelas patas de elefante. Ela passa as mãos em suas próprias ancas, normais. Tetê sorridente, feliz em poder estudar, mesmo capengando em botas novas, carregando suas ancas disformes. É o que Tetê mais quer da vida: enfrentar a síndrome de Proteu, estudando enquanto puder e sempre com botas novas.

De noite, ela volta ao Banco do Brasil, especialmente para ver de novo a estátua-mulher.

Lá está ela, pregada no mesmo lugar. (e Tetê terá dois, três ou mais anos para usar botas? Quem poderá responder?) Tetê, de botas novas, irá feliz para a escola. Sente dores horríveis, mas enfia as botas, põe um sorriso nos lábios e vai. A estátua-mulher está agora com o rosto de Tetê que lhe sorri. Ela vê, então, os braços da estátua: a suavidade de seus braços é tão grande quanto as suas patas. Ela olha outra vez para a estátua-mulher com o rosto de Tetê que lhe faz sinal sorrindo assinalando: vai.
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Conto escrito em 1984. Parte do livro PASSSOS NA ETERNIDADE, 1º. Lugar no concurso Gralha Azul- Paraná – 1986, sob o título O elefantismo.
Revisto e reescrito em 2010, com o título Síndrome de Proteu, levantou 1º; lugar no concurso da Academia Brasileira de Médicos Escritores – Abrames-RJ, em 2011.

Fonte:
REBRA
http://rebra.org/escritora/escritora_ptbr.php?assunto=texto&id=1626

Aluísio Azevedo (O Coruja) Parte 24

CAPÍTULO XVI

Na manhã seguinte, em que Teobaldo encarregou ao Coruja de despachar Ernestina, viu-se este em sérios embaraços.

Que diabo havia ele de dizer àquela mulher?... Contudo era urgente tomar urna resolução, porque as coisas não podiam continuar pelo jeito que levavam... A rapariga, mal calculou pelo exórdio onde chegaria o sermão de André, ergueu-se do lugar em que estava, avançou contra ele de punhos fechados e gritou-lhe  sobre o nariz:

— Bem desconfiava eu! Você mesmo é quem me anda intrigando com o outro, seu cara do diabo! Desconfiei, e eu, quando desconfio, não me engano!

— Não diga assim…

— Peste! Um bicho feio, que parece estar sempre a maquinar maldades!

— As aparências muita vez enganam…

— Qual! Enganam o que? Pensam e conversam lá o que bem entendem a meu respeito e depois vem este basbaque me atenazar os ouvidos: "Porque a senhora deve convir, porque a senhora deve perceber que isto prejudica Teobaldo!" Prejudicar em que?! Eu porventura exijo dele alguma coisa! Já alguma vez lhe pedi dinheiro? Vocês falam de boca cheia! Onde iriam descobrir uma rapariga de minha idade, jeitosa corno eu sou e que nada mais pede do que um pouco de delicadeza! Brutos! Ainda por cima se queixam, como se eu lhes desse prejuízos!

— Desculpe, mas dá...

— Prejuízo? Em que? Recebo porventura alguma coisa das mãos dele? Exijo algum sacrifício?

— Não, mas perturba...

— Perturbo? Como?

— Perturba a vida de Teobaldo. Olhe, enquanto a senhora estiver aqui, ele não voltará à casa e, como sabe, isto é já um sério transtorno para quem precisa cuidar do futuro...

— Qual! Ele se não vem para casa, é porque anda lá por fora na pândega! Encontra por lá em que se divertir!

— Juro-lhe que se engana...

— A mim não embaçam!

— E ninguém pensa em tal; a senhora é quem procura iludir-se; já devia ter percebido que Teobaldo não está agora em circunstâncias de a tomar a seu cargo...

— Porque tem outras!

— Não sei; isso é lá com ele.

— É um ingrato!

— Pode ser.

— Um cínico!

— Não acho.

— Você é tão bom como ele!

— Quem me dera.

— Uma corja, ambos!

— São opiniões!

— Dois imbecis

— Talvez...

— Dois idiotas!

O Coruja não replicou mais e pôs-se a passear ao comprido do quarto, muito aborrecido com o insucesso das suas palavras.

Depois, tendo ido e revindo mais de vinte vezes, voltou-se de novo para Ernestina:

— Mas a senhora por que não se vai embora? É muito melhor... Em casa nada lhe falta, tem tudo! Vá! Deixe em paz o meu amigo...

— Não deixo!

— Mas isso não é justo... Que interesse tem a senhora em fazer semelhante coisa...

— Não sei! Ele é o homem que eu amo, acabou-se!

— E que culpa tem ele disso, coitado?

— Não sei. Amo-o!

— Pois não o ame...

— Não posso.

— Ou, se o ama, não queira fazer-lhe mal.

— Ele que não faça a mim!

— Ele? Ele não lhe faz mal.

— Como não? Pois o senhor ainda acha pouco? Pois então eu desço da minha dignidade e venho procurá-lo aqui; ponho-me aos pés dele, declaro que estou disposta a ser uma escrava, se ele me tratar com carinho, e a única resposta que recebo é um coice?

— Coice!

— Decerto; quando um homem faz com uma mulher o que Teobaldo faz comigo, dá coices!

— Mas, perdão, minha senhora, Teobaldo falou-lhe com toda a franqueza. A senhora apresentou-lhe um contrato, não é verdade? Pois bem, ele não o aceitou. A senhora é que faz mal em, no lugar de retirar-se dignamente, ficar aí dias inteiros e fazer o que tem feito...

— Não saio! Pode dizer o que quiser, é inútil; não saio!

— Mas há de convir que com isso pratica uma arbitrariedade. Teobaldo não lhe deve nada...

— Deve-me tudo! Deve-me dedicação e amor!

— Mas os sermões, quando não são encomendados...

Nisto, o diálogo foi interrompido pelo barulho de um carro que parava à porta da rua. E logo em seguida ouviram-se ligeiros passos no corredor e uma voz de mulher, que gritava:

— O Teobaldo ainda mora aqui?

Coruja correu na direção da voz, enquanto Ernestina se instalava na poltrona, afetando ares de dona de casa e dizia com todo o desembaraço:

— Entre, quem é?

Leonília apareceu à porta do quarto, hesitante; olhou em torno de si, como quem receia haver-se enganado:

— Desculpe, mas supunha que ainda morava aqui um rapaz que procuro...

— Teobaldo?

— Justamente.

— É aqui mesmo, respondeu Ernestina. Que deseja dele?

— Desejo falar-lhe. A senhora vem a ser...

— O que não é da sua conta. Se tem algum recado a deixar, eu me encarrego de transmiti-lo a Teobaldo.

— A senhora então é a mulher dele?... Perguntou Leonília, cuja impaciência principiava a denunciar-se.

— Não, não é! Apressou-se a afirmar o Coruja, que parecia muito aflito com a situação. Não é mulher dele, não senhora.

— Quando digo — Mulher — Quero dizer: amante. Sei que ele não é casado...

— Também não é amante... respondeu aquele, a despeito dos olhares que lhe lançava Ernestina.

— É talvez uma criada...

A outra, então não resistiu mais, e veio colocar-se defronte de Leonília, a medi-la de alto a baixo, como se quisesse fulminá-la com os olhos.

A cortesã soltou uma risada.

— Também não é criada?... Disse. Então que diabo é... Ah! Já sei... Talvez alguma parenta da província!

— Não, não respondeu André.

— Será simplesmente uma amiga? Perguntou ainda Leonília.

— Previno-a, acudiu a outra, de que não admito debiques para o meu lado!

— Não, filha, eu apenas desejo saber a quem tenho de confiar o que trago para Teobaldo. Encontrei a senhora aqui, com ares de dona de casa, pergunto-lhe muito naturalmente se é mulher dele, ou amante, ou parenta, ou quando menos uma criada, e a senhora fica dessa forma e parece que me quer comer viva! Se alguém deve estar aborrecida sou eu, porque, no fim de contas venho fazer uma visita e, das duas uma: ou a senhora representa a dona da casa e neste caso devia ser mais cortes, ou não representa coisa alguma e por conseguinte devia ser menos intrometida...

— Isso é desaforo!

— Será, mas é um desaforo justo e merecido; quanto à decepção que acabo de sofrer, não é com a senhora que me avenho, pois nem a conheço, mas sim com Teobaldo, que me ofereceu a casa e é o único responsável por esta sensaboria.

Mal acabava Leonília estas palavras, quando se ouviu parar na rua um tílburi, e logo no corredor os passos de Teobaldo.

— E ele aí está, acrescentou ela, dirigindo-se para a porta da sala, o que fez com que o Coruja não tivesse tempo de prevenir o amigo.

— Olá! Exclamou este, vendo Leonília. Por aqui! Supunha-te longe, já em viagem para a Europa!

Mas o seu bom humor transformou-se em tédio logo que ele deu com a figura enfurecida de Ernestina que, a um canto do quarto, parecia colada à poltrona por uma tremenda raiva. E, corno em resposta à presença dela:

— Não tive remédio senão vir à casa, porque tenho de ir hoje a uma soirée com o Aguiar.

— Sim, sim, respondeu Leonília; antes, porém de mais nada, dize-me quem é aquela senhora e qual é aqui a sua posição.

Teobaldo, parado em meio da sala, de pernas abertas, começou a coçar a cabeça, sem encontrar uma resposta. Por esse tempo, o Coruja, que não podia ver ninguém na situação em que estava Ernestina, aproximou-se da outra e disse:

— Aquela senhora está aqui por minha causa...

— Você não se enxerga! Exclamou a mal agradecida, sem compreender a intenção benévola do moço. — Estar aqui por causa dele! Olha que pretensão! Verdade é que...

— Basta! Interrompeu Teobaldo. E, voltando-se para a outra. Ela está aqui por mim.

— É tua amante? perguntou Leonília.

— Não.

— Tua parenta?

— Também não. É uma amiga e veio a meu convite passar aqui alguns dias.

Cavalheiro, como sempre, não quis, dizendo a verdade, cobrir de ridículo uma pobre mulher, cujo crime único era amá-lo até à impertinência; Leonília, porém, que não estudara pelo mesmo código de civilidade, já não pensava desse modo e acrescentou com ironia:

— Ah — Veio a tomar ares... Estimo que aproveite isso, mas é bom que lhe recomendes seja um pouco mais cortes com as pessoas que te procuram.

— Deixa-te disso! Respondeu Teobaldo.

— Não, insistiu Leonília. — Que tu protejas aquela mulher compreende-se, porque só tens recebido de suas mãos protestos e mais protestos de amor; eu, porém, não estou no mesmo caso, dela só recebi as mais significativas provas de grosseria e de atrevimento.

— Sim, sim, mas acabemos com isto! Replicou Teobaldo.

Ernestina ergueu-se e foi ter com ele:

— Exijo que repilas aquele insulto.

— Ora!

— Não repeles?

— Ninguém aqui te insultou, filha!

— És tão bom como ela!

— Mau!

— És um infame!

— Pior!

— És um miserável!

— Cale-se!

— Colocar-me nesta posição ridícula...

— Olhe que me faz perder a paciência!...

— Pensei que estivesse na casa de um cavalheiro e vejo que me sucede justamente o contrário…

— Ah! O meu procedimento é imperdoável, não há dúvida!

— Com certeza! Um homem que se presa não coloca uma mulher nesta posição!...

— Ah! Insiste? Além de impertinente é atrevida? Pois então ouça: A senhora, se acha nesta posição, é porque assim o quis; eu, há três dias, que emprego todos os meios e modos para a afastar de mim, e a senhora cada vez mais a agarrar-se-me que nem uma ostra! E fique sabendo agora que, se não fossem os meus escrúpulos de homem delicado, há muito que a teria enxotado daqui ou encarregado alguém de despejá-la lá fora!

Ernestina ouviu tudo isto sem um gesto, nem um movimento. Quando Teobaldo acabou estava mais lívida que um defunto e os lábios tremiam-lhe tanto quanto lhe arfava o peito; a outra ainda mais lhe aumentava a agonia lançando-lhe olhares de desprezo.

— Coitada! Disse afinal Leonília.

Ernestina deu um arranco na direção do quarto, naturalmente com a intenção de preparar-se para sair, mas em meio do caminho cambaleou e, soltando um grito agudo, desfaleceu nos braços do Coruja, que a acudira de pronto.

— Agora, entram os nervos em cena!... Observou Leonília em ar de caçoada.

Coruja conduziu a desfalecida para a cama de Teobaldo, enquanto este, Lufando de impaciência, andava de um lado para outro da sala, muito agitado, as mãos nas algibeiras, o olhar carrancudo.

— Que maçada! Resmungava de vez em quando. Que maçada!

— É pô-la na rua! Aconselhou Leonília.

— Ora, deixe-me você também! Respondeu ele furioso,

— Recebeste a minha carta!

— Recebi.

— Não ficaste zangado?

— Não.

— E é dessa forma que me amas?

— É.

— Pois olha que eu não sou como aquela desgraçada, Babes?

Teobaldo sacudiu os ombros com indiferença.

— Confesso que te havia escrito urna outra carta, mas não quis dar-te o gostinho de recebê-la.

— E eu a encontrei no teu quarto, dentro de um livro.

— Pois leste?...

— Sim, e afianço-te que ela me causou ainda pior efeito que a outra, a cínica.

— Isso quer dizer...

— Que estimei a notícia da tua viagem.

— Obrigado, exclamou Leonília. Não devia esperar outra coisa de ti! És um miserável! Ah! Mas descansa que não te perseguirei!

E, rabanando a cauda do vestido, saiu como um raio.

— Passe bem! Disse Teobaldo, sem lhe voltar o rosto, e continuou a passear de um para o outro lado da sala, gesticulando enfurecido a cada grito histérico que partia da sua alcova.

— Sabino! Gritou ele.

Apareceu o velho Caetano:

— Vossemecê que deseja?

— O Sabino?

— Ainda não voltou.

— Quero o fato de casaca e o sobretudo; mas isso com pressa! Não posso me demorar neste inferno! Que delicioso domingo!

Os gritos de Ernestina repetiam-se.

— E de mais a mais aquela música!... Pensava o rapaz a morder os beiços.

Ah! Mas tudo isto há de endireitar agora por uma vez ou eu não serei quem sou!... O Coruja surgiu à porta do quarto para dizer muito aflito:

— Teobaldo! Ó Teobaldo! Vê esta mulher, que está perigosa, coitada!

— Que a leve o diabo! Não fosse idiota!

O outro lançou-lhe um olhar de censura.

— Isso passa... Disse aquele como para se justificar.

— Um simples ataque de nervos...

E, vestindo a roupa que lhe trouxe Caetano:

— Não tenhas receio, ela voltará a si...

— É que parece que lhe falta o ar...

— Desaperta-lhe o colete...

— Eu?... Perguntou o Coruja enrubescendo.

— Isso é o que devias ter feito logo.

E, apressando o laço da sua gravata branca, foi ter com Ernestina, desabotoou-lhe o vestido, desatou-lhe o colete e, depois de a sacudir duas vezes, deixou-a cair de novo sobre a cama.

— Não é ... Disse ele, olha, põe-lhe mais água de Colônia na cabeça e dá-lhe
de cheirar daquele frasquinho que está sobre a mesa.
Coruja obedeceu e ele correu à sala para acabar a sua toilette.
Já pronto, o sobretudo no braço, um charuto ao canto da boca.
— Melhorou?
— Está mais tranqüila, creio que vai tornar a si...
— Bem. É preciso que eu saia antes que ela acorde. Despediste-a, como te recomendei?

— Sim, mas inutilmente, não houve meio de a convencer...

— Pois então, em voltando de todo a si, repete-lhe a ordem, e, se ela insistir, mudamo-nos amanhã mesmo...

— Amanhã?...

— Ah! É preciso acabar com isto uma vez por todas!... Quero saber se vim ao mundo só para servir de divertimento a estas senhoras... Que horas são?

— Devem ser quatro.

— Bom! Ó Caetano!

— Meu senhor.

— Vê se o tílburi ainda está aí embaixo.

E, muito elegante na sua casaca, disse ao Coruja, batendo-lhe no ombro:

— Até logo. Janto com o Aguiar e depois vou a uma soirée, na casa de um tio que ele tem em Botafogo. Adeus, não te descuides da Ernestina.

E saiu.
–––––––––––––-
continua…

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Nilton Manoel (Baú de Trovas)

A noite calada e escura
que silencia meu pranto,
revela toda a amargura
na falta de teu encanto.

Com esse salário de fome...
sem ver a cor do dinheiro,
pobre, nem papel consome...
Fazer o que no banheiro.

Com meu freezer sem nadinha,
vou amargando o rosário;
Quem come pão com farinha
sabe o que vale o salário.

Conduzindo arma sem porte,
foi detido o valentão,
que, da praia, por esporte,
vinha abraçando um canhão.

Deriva, momento incerto,
em que a vida segue a esmo,
mas quem vai de peito
vence a tudo,até a si  mesmo .

Do jeito que a coisa vai
em tudo se põe durex...
pobre, sem panela sai
pra comer de marmitex.

Dos meus sonhos eu bendigo
as passadas frustrações;
Hoje é mais puro o meu trigo
sendo humilde nas ações.

Em férias, certo doutor,
ganha auréola de moleque,
quando perde sua cor,
no exagero de um pileque.

Fez-se pai o jornalista
e, uma ideia lhe desfralda:
- Batiza a filha, o egoísta,
com o nome de... Jornalda!

Homem maduro tem força;
firme, enfrenta ondas e ventos...
por mais que os anos lhe torça,
jamais perde os bons momentos.

Indo por outros caminhos
neste mundo, às vezes rude,
vou fugindo dos espinhos
pois, das mulheres, não pude!

Leia a sorte, meu senhor!
-Que sorte tenho cigana?
mãos de pobre professor
vive sem linhas e  grana.

Muda o  mundo...tudo muda!
mas no campo do saber
há quem todo o tempo estuda,
mas é “verde” de morrer.

Na caminhada, maduro,
ponho fogo na fornalha;
quero deixar no futuro,
as lições de quem trabalha.

Não existe culpa imensa
para quem crê no perdão,
tendo o Deus de sua crença
tranqüilo em seu coração

Na rua, toda nuazinha,
escondendo a cara santa,
no carnaval da Lurdinha,
até morto se  levanta

Nesse comércio bizarro
de promoção de viés.
Ainda venderão carro
dando de brinde mais dez.

No espaço da folha branca
o universo do escritor,
torna a vida bem mais franca
se traça versos de amor.

O meu palácio encantado,
onde o ano todo é natal,
é um quadradinho alugado,
chamado "caixa postal"!

O mundo - pleno em magia,
nossa bola de cristal,
mesmo amargo, traz poesia,
aos momentos mais sem sal.

Por entre as pedras da fonte,
cantante em sai alegria,
o bardo vê no horizonte
sua fonte de poesia.

Promoção de negro humor
em grandes filas, à vista;
qualquer “lixo” tem valor,
na glória do varejista...

Quem como eu faz poesia,
sabe que a glória é completa:
- Ninguém aposenta o dia
de trabalho de um poeta.

Quem tem coração de paz
vive de culpa liberto,
porque faz do  bem que faz
um céu de Sol mais aberto.

Quem tem vida vive atento
pelos caminhos que enfrenta;
brinda as farpas do momento
com chocolate e pimenta.

Ribeirão Preto é café
-terra amiga e sempre nova-
quinze décadas de fé
que todos cantam em trova.

Sem ter bolas de cristal,
quem sabe onde pisa faz
de sua estrada um rosal
se é do Bem e pela paz.

Sem ter calçado e camisa
pra não cair na prisão,
salário de pobre é a brisa
mal dá pra comprar o calção.

Talento é ter arte e graça
brincando com a vida séria;
pobre curte até a desgraça
com o salário da miséria.

Viver pobre é contramão
mundo triste de aguentar;
A sorte que traz o pão
enfrenta os jogos de azar.

Nilton Manoel

Nasceu em Ribeirão Preto- SP. Brasil, em 03 de janeiro.
 
NILTON MANOEL é trovador. Aceitou o convite de Luiz Otávio e ingressou na UBT (União Brasileira de Trovadores) como ativista da Trova. Não tem a menor preocupação em buscar premiações  literárias, mas apoia por justiça classificações ordinais. Tem quase 100 concursos realizados com apoio da municipalidade e entidades diversas nas categorias: estudantil, municipal, estadual e internacional. Ajudou Luiz Otávio na edição do Decálogo de Metrificação e na Comissão de Métrica. Preparou documentário para que leis de suporte literário se efetivassem.

NILTON MANOEL, além de ser afiliado a UBT, integra a Academia Brasileira de Poesia, Academia Brasileira de Trova, Academia de Trovadores do Rio Grande do Norte, Academia Friburguense de Letras, Academia Mageense de Letras, Academia Santista de Letras, Academia Poços-caldense de Letras, Sociedade de Cultura Latina, Instituto Histórico e Geográfico do DF. Foi conselheiro municipal de cultura (três gestões) e  várias vezes vice-presidente da UBT-Paulista. Tem comendas e prêmios recebidos. Manteve em rádio o programa Cultura em Movimento; em jornais: Prosa e Verso, Trova em Movimento, Movimento da Trova, Bazar de Letras. Editou O Ubeteano que, ainda, é encontrado em sites de busca.

Livros editados: Cem anos de jornalismo escolar ribeirão-pretano, Didática da Trova, Trovas da Juventude, Cenas Urbanas, Poesia Mágica, entre outros.

Tem trovas premiadas e publicadas em Niteroi (RJ), Curitiba (PR), Pouso Alegre (MG), Ribeirão Preto (SP), Angra dos Reis (Ateneu Angrense de Letras e Artes), Vitória (ES), Campinas (SP) e em livros virtuais e em www.usinadeletras.com.br,www.movimentodasartes,com.br, www. falandodetrovas.com.br, ubtnacional.com.br.  Participa de diversas antologias: Ponto & Virgula (Funpec-Editora), Sexta Antologia da UEI (União dos Escritores Independentes), III antologia da Casa do Poeta e do Escritor (onde foi o 1º presidente),  Ave-Palavra (Funpec, coordenada pela profª.  Ely Vieitez Lisboa, Versos a Ribeirão Preto (Nilton da Costa Teixeira), Almanaque Santo Antônio e Folhinha do Sagrado Coração (Editora Vozes), publicações de Maria Tereza Cavalheiro e antologias de Débora Novaes de Castro (www.haicai.com.br). Possui diversas aparições em Mensagens Poéticas de Ademar Macedo e Seleções em Folha de Manoel Fernandes Menendez.

Na vida profissional é professor normalista (IEOM), pedagogo, professor de português da SEE/SP, onde já esteve coordenador pedagógico (8 anos) . É pós-graduado em Fundamentos e Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa, (Redação, Produção e Interpretação de Textos), pós-graduado em Sociologia, Contabilista (CRC), Jornalista (MTb).

Dedica-se as artes visuais, a filatelia e a numismática. Fez teatro amador e foi aluno por quatro anos na Escola Municipal de Artes-Plásticas. 

Fonte:
O Autor

Terezinha Ofélia Nascimento Rennó (De Forno e Fogão)

Terezinha é de Itajubá – MG
(5. Lugar no VI Concurso Literário Cidade de Maringá, Modalidade Crônica: Troféu Lucilla Maria Simas de Assis)

–––––––––––––––––-
    O calor que cora as faces da Aninha cora também as quitandas que Coralina faz e ensina com carinho e boa vontade! Enquanto uma menina atiça as achas, avivando as brasas para aquecer o forno do antigo fogão cor de cinza – pintado com a cinza do fogão – a outra mistura os ovos, põe açúcar e farinha no fermento já crescido. Dona de mãos fortes, Alice sova a massa que será a mais gostosa rosca Rainha.

    A tradição da família vem do tempo em que a avó, mulher previdente e tinhosa, escrevia as receitas no grosso caderno, cuja caligrafia primava pela clareza. Na primeira página lia-se a dedicatória mais autoritária que já se viu para o ritual culinário:

    “Às minhas filhas, ordeno: Cumpram minhas ordens e não sentirão saudades dos assados, bolos, sonhos e brevidades... Que este caderno passe das mãos de suas filhas para as das suas netas e delas para as bisnetas... Assim, quitutes, sabores, aromas e eu, seremos lembrados por muitos e muitos anos.”

    Coralina e Aninha são as abelhas da vez! No afã do bom labor, após o “encantamento” da mãe, administram a tradicional tarefa com louvor. Sob a direção da mais velha, pela prática adquirida, o manejo dos tabuleiros e o tempo no forno.

    Desde cedo a velha chaminé deixava escapar para além do telhado tufos de fumaça branca que subiam às nuvens: anúncio festivo de que o fogo ardia na cozinha da vovó Mariquinha...

    O cheiro dos assados perfumava a casa e aguçava apetites... Lina era quem coava o café. O coador de pano, amparado pelo mancebo, enchia o grande bule de ágata verde. Lívia, na hora do lanche da tarde, arrumava a louça sobre a longa mesa, acolhia a família e alguns vizinhos que não escondiam o desejo de um bom “bate papo” e, na oportunidade impar, saboreavam as deliciosas receitas herdadas da avó – já na quarta geração de quitandeiras.

    Verdadeira festa para os olhos e satisfação para o estômago, naturalmente!

    Nota no rodapé da última página do caderno: “Apesar do longo tempo de uso, o caderno encontra-se em bom estado de conservação!”

Fonte:
Livreto dos Concursos

´Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) Um Homem Perfeito

O Sr. João Cesário da Costa apareceu-me hoje muito loquaz e prazenteiro. Sentou-se a meu lado, palpou as minhas disposições auditivas, notou que eram boas, e deixou escapar a loqüela, primeiro às gotas espaçadas, depois às gotas que já quase se ligavam num fio, por fim jorro franco.

Principiou por falar do tempo, que estava "lindíssimo e convidativo." Daí deslizou para considerações acerca do nosso clima e do europeu, das nossas estações e das européias. Descambou então para o elogio da nossa "terna primavera" e da nossa "natureza exuberante". Isto o levou ao fatídico paralelo entre a natureza e o indígena; e Cesário revelou gravemente que, segundo a opinião de Humboldt, no Brasil tudo é grande, menos o homem.

Mostrei-me consternado por isso, e Cesário caiu no domínio da educação, cujo principal objetivo, no Brasil, devia consistir em debelar a empregomania, o bacharelismo e a macaqueação do estrangeiro. Quando chegamos ao ponto, o meu amigo, depois de ter passado pela política, ia bordando comentários em roda do vestido feminino e deplorando a subversão da família.

Enquanto ele orava, eu vinha-lhe mentalmente acompanhando a curva das associações de idéias e avaliando as vastas etapas que fazia através da matéria pensável, metido nas botas de sete léguas da imaginação discursivas.

É assim, justamente, que os homens práticos pensam, desde que saem do crédulo habitual das preocupações profissionais. Tomam as suas associações espontâneas e os seus estados vulgares de sentimento como legítimas formas de cogitação. E têm um grande desdém pelos poetas -sendo que poetas são todos quantos não se contentam com essa moagem perpétua de idéias feitas e de idéias que nunca se acabam de fazer.

Na verdade, isto é eminentemente prático. Nada mais é preciso para viver, e viver bem, e prosperar, e fazer jus a um mausoléu de cinco metros de altura, com cúpula guardada por um anjo de magoado semblante e grandes asas, talhado em mármore branco pelo melhor marmorista da cidade.

João Cesário tem um mérito, além de muitos outros: não é uma edição, nem mesmo uma edição barata de Acácio, versão portuguesa e pacata de Mr. Prudhomme e variedade conservadora do farmacêutico Homais.

Acácio, Prudhomme e Homais eram homens de princípios ou de ideais, ao passo que Cesário não tem convicções arraigadas: é um bom homem, arranjado, comodista, amigo da boa roupa, da boa mesa e da boa prosa, com ambições modestas e com um grande tato instintivo do que lhe pode ser útil e agradável. Incapaz das parlapatices de Prudhomme, da compenetração respeitosa de si próprio que distinguia Acácio, e de aziumados sectarismos à maneira de Homais.

Apenas se encontra com eles no terreno do lugar-comum. Mas o lugar-comum não é privativo destes ou daqueles, é a terra de ninguém onde todo o mundo, uns mais amiúde, outros mais de longe em longe e mais a medo, faz as suas incursões e as suas colheitas.

De resto será o lugar-comum coisa tão desprezível? Não, o lugar-comum é necessário. Faz parte das forças da natureza. É da natureza do espírito humano a necessidade de cunhar uma espécie de moeda divisionária das idéias, que possa andar pelas próprias mãos dos que não tenham capitais e que presta enorme serviço a toda a gente.

Se se quer encarar o caso na sua verdadeira latitude, o ponto de vista escolar, estilístico, literário, é de uma insuficiência absoluta, e por sua estreiteza e vetustez bem merece figurar também na categoria dos lugares-comuns elegantes.

O abuso desse ponto de vista crítico e aristocrático vai espalhando nos espíritos inclinados às letras e às idéias um terror excessivo e doentio do ominoso pecado. E com isso chega a criar freqüentemente uma espécie de Acácios às avessas, que repelem boas idéias por serem velhas, sem sempre forjar novas que sejam boas, e esquecem-se da corrente e desempenada linguagem da conversação, e embrulham em formas rebuscadas os mais fugitivos e ambíguos fiapos de pensamento, como quem fizesse gaiolinhas de metal dourado para guardar pernilongos.

A grande e imponente maioria dos humanos não dá nenhum apreço às idéias por si mesmas. Estas, quando caem na circulação geral, perdem toda a sua virtude abstrata, empastam-se na grossa praticidade e na violenta concreteza dos valores vitais imediatos. Descem do plano lógico para o biológico. Rousseau disse que pensar é um ato contra a natureza, e os atos contra a natureza ela os pune empeçando-os ou desviando-os, reassimilando-os e recolocando-os na órbita dos seus próprios fins.

As idéias, na marcha geral e normal da vida, têm um valor tão puramente instrumental, oportunístico e subalterno como as armas, os utensílios, os aparelhos e todas as coisas que prolongam os nossos meios naturais de ação. É preciso que um homem esteja pervertido pela literatura e análogas manias, para ter a fantasia de inventar idéias, pelo simples prazer de criar instrumentos originais. Se a faca e o martelo já foram inventados há milhares de anos, e prestam ótimo serviço, para que é que o Sr. Cesário havia de imaginar um traste novo e aperfeiçoado, só para cortar uns cipós ou para bater uns pregos de quando em quando? Não seria econômico. Enorme desproporção entre o esforço e o resultado.

Com um pequeno arsenal de lugares-comuns, Cesário está dispensado de gastar inutilmente largas somas de tempo e de trabalho. Põe a sua provisão no bolso, cada dia, conforme as necessidades, e sai para os seus negócios, para os seus prazeres de sociedade, para as suas demandas, para a sua descansada pescaria de proveitos possíveis, nas horas vagas. Surte-se com a suave facilidade de quem completa, em casa a sua toilette habitual, pondo meia dúzia de charutos na carteira, um lenço de sobressalente no bolso da calça, um canivete no bolsinho do colete.

Dá-se bem com o sistema, e a sociedade ainda melhor. Ganha esta um homem afável, serviçal, maneiro, de fácil e macio contato, simples de utilizar.

Multipliquem-se estes homens exemplares por mil, e veja-se que incalculável benefício não seria, que harmônica estabilização de um tipo social indígena, que precioso reforço de cidadãos bem construídos, normalizados, estandardizados, sem mistérios e sem surpresas, sólidos, garantidos, de uso limitado mas seguro e preciso, -como a louça inglesa, como a cutelaria de Manchester, como o presunto holandês, como o óleo de fígado de bacalhau, como o fósforo Jonkonpings, como as camisas do Porto!

Foi essa multiplicação de um tipo modesto mas viável e bom que fez aquela coesão e aquela estabilidade magnífica da sociedade britânica, - o seu núcleo resistente, a sua massa harmônica e firme, a deslocar-se através da história com o ímpeto regular de um imenso exército em marcha.

Suponham-se agora estes inumeráveis Cesários preocupados todos com fabricar idéias e esmaltá-las sob formas graciosas e cortantes. Que calamidade! Ganharíamos, talvez, algumas jóias do espírito, mas, em troca, que multidão de intelectuais neurastênicos, incertos, cáusticos, insociáveis, prisioneiros eternos de si mesmos, despidos de tolerância e de benignidade, sacrificando tudo por uma frase de espírito, inadaptáveis a todo esforço comum, inimigos de toda disciplina obscura e de todo devotamento discreto e silencioso, e enfim grandes criadores efetivos de mal-estar, de desinteligência e de estéreis, inacabáveis veleidades e agitações no seio da massa e no das moças!

Fonte:
Domínio Público

terça-feira, 13 de agosto de 2013

Eliana Ruiz Jimenez (Para Gostar de Trovas) vol.1

TROVAS LÍRICAS E FILOSÓFICAS

Tem muito mais graça a vida
quando a gente tem com quem
repartir bem repartida
a graça que a vida tem.
A.  A. de Assis

Oh, linda trova perfeita,
que nos dá tanto prazer...
Tão fácil, depois de feita,
tão difícil de fazer!
Adelmar Tavares

O tempo é bom conselheiro,
do tempo eu não me desgrudo.
Quem faz do Tempo um parceiro,
encontra um tempo pra tudo!...
Ademar Macedo

A vida é feita de engodos
e as sinas não são comuns;
o Sol nasce para todos
mas a sombra é para alguns...
Antonio Juraci Siqueira

Felicidade é somente
uma visita apressada
que aparece de repente
e parte sem dizer nada.
Aparício Fernandes

Saudade, ponte encantada
entre o passado e o presente,
por onde a vida passada
volta a passar novamente!
Archimimo Lapagesse

Não queiras muito da vida...
Vê bem que a felicidade
muita vez é percebida
só depois de ser saudade...
Batista Nunes

As almas de muita gente
são como o rio profundo:
- A face tão transparente,
e quanto lodo no fundo!...
Belmiro Braga

Se amigo é o que escuta a queixa,
seca o pranto e ajuda a rir,
mais amigo é o que não deixa
sequer o pranto cair!
Carolina Ramos

Meus pobres sonhos, tão fracos,
a vida em escombro os fez,
mas, teimosa, eu junto os cacos...
e eis-me a sonhar outra vez!
Dorothy Jansson Moretti

Nas asas do desvario,
tentando um sonho alcançar,
eu despenquei no vazio,
mas... aprendi a voar!
Edmar Japiassú Maia

Neste mundo desigual
onde o mal suplanta o bem,
o contraste social:
cada qual vale o que tem!
Francisco José Pessoa
 

Sei que os motivos são poucos,
sei que as razões também são,
mas este amor nos faz loucos
e os loucos não têm razão!
Gerson César de Souza

Eu me recuso, tristeza,
a conviver com teu mundo:
- Rio que tem correnteza
não cria lodo no fundo!
Héron Patrício

Na distância, ao teu aceno,
quanta tristeza me invade...
O trem ficando pequeno
e, em mim, crescendo a saudade!...
Hermoclydes Siqueira Franco
 

Floresta amiga, perdoa
o fogo, a serra, a agressão:
a humanidade ainda é boa,
certos homens é que não!
João Freire Filho
 

Trovadores meus irmãos,
vamos viver de mãos dadas:
onde há correntes de mãos,
não há mãos acorrentadas!...
José Maria Machado de Araújo

A paz se faz com amor
e o que mais nos desafia
não é plantar uma flor,
mas regá-la todo dia!
José Ouverney
 

Enganam-se os ditadores,
que, no seu furor medonho,
mandam matar sonhadores,
pensando matar o sonho!
Joubert de Araújo Silva

Se o bem não podes fazer,
o mal não faças também,
que o bem já faz sem saber,
quem não faz mal a ninguém.
Lilinha Fernandes

Às vezes o mar bravio
dá-nos lição engenhosa:
afunda um grande navio,
deixa boiar uma rosa!
Luiz Otávio

Se houver um conflito cala,
porque em plena discussão,
quanto mais a gente fala,
tanto mais perde a razão.
Maria Nascimento

Que a lei, com todo o seu porte,
seja um escudo do bem...
E que a justiça do forte
seja a do fraco também!
Mara Melinni

Por mais simples, mais modesta
que nos possa parecer,
a vida é sempre uma festa
para quem sabe viver.
Maria Madalena Ferreira

No amor é bom ter cuidados
para evitar dissabor...
Nem sempre em beijos trocados
trocam-se beijos de amor.
Milton Nunes Loureiro
 

Quem cultiva uma amizade
dentro do seu coração
pode morrer de saudade
mas nunca de solidão.
Olympio Coutinho
 

Seria a vida enfadonha
sem as dúvidas que tive.
Quem tem certeza não sonha,
e quem não sonha não vive...
Orlando Brito

Ninguém é pedra polida,
se não mudar de conduta;
pois, a pedreira da vida
é feita de pedra bruta!
Prof. Garcia

Vou sorrindo com cuidado,
sondando bem a pessoa,
pois ser feliz é um pecado
que pouca gente perdoa!
Zálkind Piatigorsky
 
 TROVAS SATÍRICAS E HUMORÍSTICAS
 Enquanto o Zé se arrebenta
sonhando em se aposentar,
deputado se aposenta
antes mesmo de sonhar.
Dorival C. da Silva

Cabelo é um negócio louco...
Há divergências fatais:
- Na cabeça, um fio é pouco;
mas... na sopa... ele é demais!!!
Elisabeth Souza Cruz.

Lá em casa, a bagunça é boa,
tudo de pernas pro ar,
e o analista da patroa
ainda a manda relaxar...
Elton Carvalho

Parece humor, ou piada,
mas é vero o conteúdo,
pobre diz que não tem nada,
mas, se chove, perde tudo...
Fabiano M. Wanderley

Vendo a perua chegar,
pergunta logo a vizinha:
Querida, o que vai tomar?
Seu marido, queridinha...
Istela Marina G. Lima
 

Caindo do nono andar,
o otimista diz a alguém
que, no quinto, o vê passar
- "Até agora... tudo bem!!!
lzo Goldman

Marido que à noite escapa
com mulheres e aguardente,
o remédio é chá de tapa,
sem açúcar, forte e quente!
José Lucas de Barros

Foi graças a seu gingado,
que a garota, um "avião",
ganhou do "seu" deputado
"baita" cargo em comissão!
Lisete Johnson

Faz regime... e, por fazê-lo,
se desespera a coitada,
pois sempre tem pesadelo
com rodízios... de salada!...
Pedro Mello
 

Mil livros já devorei,
mas neles não achei graça:
até hoje eu nada sei...
- Muito prazer! Sou a traça!
Renato Alves

De político do “avesso”,
a gente já tem calombo...
pois, quando ele dá tropeço,
é o povo que leva o tombo!!!
Roberto Tchepelentyky

Nas lojas sempre envolvido,
não tem crédito jamais...
- ou por ser desconhecido,
ou conhecido demais !...
Rodolpho Abbud
 

Originário de um surto
de inspiração impudica,
o plágio é o único furto
que o próprio ladrão publica...
Rodrigues Crespo

Na "guerra" pela conquista
de um bom salário, valentes,
a manicure e o dentista
lutam "com unhas e dentes"!
Therezinha Dieguez Brisolla

O meu marido é carteiro;
porém bem cedo aprendeu
que no lar, o tempo inteiro,
quem dá as cartas sou eu.
Wanda de P. Mourthé

Fonte:
http://poesiametrovas.blogspot.com