O PASSAGEIRO CHEGA PARA PAGAR A TARIFA ao trocador estendendo as mãos cheias de moedinhas.
- Posso ficar lhe devendo cinco centavos? - pergunta com sua costumada gentileza.
- Não! - A passagem é um real e cinquenta e cinco centavos -, Assevera o cobrador, com ares pouco cavalheirescos. - Se não tem a grana completa, desce...
- Eu sei moço. Quebra essa... Ou terá que trocar cinquenta reais.
- Prefiro. Se deixar o senhor ir em frente – junta o exemplo à explicação -, terei que tirar do meu bolso na hora de prestar contas. A empresa não perdoa.
- Cinco centavos...?
-... De cinco em cinco...
Diante da intransigência do cobrador o passageiro mete as moedas de volta numa niqueleira. Em seguida puxa do bolso a nota de cinquenta reais.
- Se é assim, fazer o quê?
- Espere um pouco...
-... Vou saltar logo.
- Onde?
- Vila Alegria.
- Tá longe. Daqui até lá, bem uns vinte pontos. Espere aqui do lado para não atravancar os demais.
O passageiro senta naquele banco destinado às grávidas e aos idosos e fica a espreita. Em cada parada, ao longo do caminho, sobe uma nova leva de gente. Algumas exibem notas grandes, iguais à dele, outras trazem cartões magnéticos e passes pré-pagos.
Vinte minutos depois volta a cutucar o funcionário.
- Conseguiu?
- Calma cavalheiro.
- Meu ponto está chegando...
À medida que o pessoal cruza a catraca, o trocador junta o dinheiro para devolver o troco.
- Aqui...
Antes de seguir adiante o passageiro resolve conferir as notas e as moedas recebidas. Percebe uma pequena falta. Retruca:
- Amigo, dei cinquenta reais...
-... E eu lhe devolvi o troco.
- A passagem não é um real e cinquenta e cinco?
- É o que diz a plaqueta logo aqui atrás de mim.
- Desculpe. A grana está errada.
- Como assim?
- O amigo terá que me devolver quarenta e oito reais e quarenta e cinco centavos.
- E quanto lhe passei?
- Quarenta e oito reais e quarenta centavos. Faltam cinco centavos.
- Estou sem moedinhas nesse valor.
- Perdão. Exijo o troco correto.
- Parceiro, entenda, não tenho cinco centavos. Será que essa enorme quantia vai lhe fazer falta? Pelo amor de Deus!...
- Veja bem, não é pela quantia. É pela sua postura. Pela sua sacanagem.
O cobrador começa a dar sinais de visível irritação. Desforra:
- Passa logo e não chateia. Pense nos demais que estão a sua retaguarda e também querem pagar a passagem para chegarem a seus locais de destino...
- Não, não vou passar. Quero o troco a que tenho direito: quarenta e oito reais e quarenta e cinco centavos.
- Faz questão de cinco centavos?
- Estou pagando na mesma moeda.
Meia dúzia de rostos furiosos pede, com urgência, a desobstrução para o interior do coletivo.
- “E ai, meu chapa. É pra hoje?”.
- “Dá pra ser, cidadão?”.
- “Será que terei de pular?”
Diante desses protestos o trocador se empolga e bota banca. Berra:
- O cara tá fazendo esse carnaval por causa de cinco centavos. É mole?
Um terceiro entra em favor do cobrador.
- Vai ver está precisando para inteirar a “malmita...”
O passageiro na exigência dos cinco centavos continua impassível. Esbraveja:
- Faço questão dos cinco centavos. É merreca? Sim! Mas é meu.
Um senhor de boné azul marinho com uma pombinha branca da paz desenhada nele estende uma moedinha de dez centavos.
- Moço, toma aqui. Vai com Deus.
- Agradeço a sua boa vontade em querer ajudar. Todavia, não posso aceitar. Ele aqui é que tem de se virar e me dar o troco correto.
- Estou lhe dando cinco centavos a mais... Sem ter nada com o peixe...
- Valeu a sua intenção. Penhoradamente agradeço a sua gentileza.
- Estou propenso a supor que o encrenqueiro aqui é o prezado.
- Peço mil desculpas por todo o transtorno que estou causando, mas o senhor pegou o bonde andando. Quando entrei, tentei pagar a passagem com moedas. Tinha exatamente um real e cinquenta. Faltavam cinco centavos. Falei com o distinto e pedi que me deixasse passar sem eles. Houve a recusa. Alegou que teria que desembolsar de seus fundos na hora de prestar contas à empresa. Então mandei a nota de cinquenta. Agora está me devolvendo o troco errado. Ora bolas: se não posso ingressar sem os cinco centavos –, o senhor como um homem decente e honesto -, deverá concordar comigo que ele também não tem o direito de ficar me devendo os cinco centavos, ainda mais se levar em conta que apresentei nota maior. O certo, o justo, nesse caso, é cobrar um real e cinquenta...
Um silêncio sepulcral toma conta dos presentes.
- “Ele tem razão” - Argumenta uma colegial com uma mochila nas costas.
- “Devolve o troco direito” - Protesta um grandalhão.
- “Esses caras de jumento todos os dias embolsam nossas moedinhas”- conclui um terceiro.
- “Safado. Ladrão” berra eufórica, a galera.
- “No fim do dia ele junta uma quantia considerável. Se multiplicado por trinta dias...”.
O quadro de repente toma proporções inesperadas.
- “Perverso esse um. Devolve a grana do moço...”.
“-... Ou deixa o cidadão passar faltando os benditos cinco centavos”.
- “É isso mesmo...”.
Sem saída, detido pela impotência daquele festival confuso de vozes a beira de um ataque de nervos, o motorista, coitado, não sabe o que fazer, ou que atitude tomar. Está impedido de partir e fechar a porta dianteira. Uma enxurrada de cabeças, braços e pernas se acotovela tanto do lado de dentro, quanto de fora, querendo subir a bordo.
- “Devolve a grana, pilantra”.
- “Tudo isso por causa de cinco centavos?”.
Por fim, o consenso prevalece:
- Me passa os quarenta e oito reais e quarenta.
- Faltam cinco centavos...
-... Amado, mais tem Deus para me dar, que o diabo para tirar.
Satisfeito, o passageiro roda o molinete, entrega as moedinhas da niqueleira e revê a nota que causou toda a balbúrdia. Salta logo depois. O trocador, enfurecido, meio que lesado, perdido de si, rebolado no monturo da vergonha segue o resto da viagem reclamando. Desprecisão tanta, miséria maior. Faz cara de choro. Finge desengonçado, num gesto mal ensaiado. Retruca:
- Vão descontar do meu bolso. Esta empresa é uma droga! Uma droga! Que droga...!
Envolvidos, entretanto, pela avidez da chegada, cada um segue emborcado nos próprios problemas. No minuto seguinte, ninguém mais se lembra do cobrador e seus queixumes.
––––––––––––
Aparecido Raimundo de Souza, 59 anos é jornalista. Nasceu em 19 de março de 1953 em Andirá, Paraná. Reside no Espírito Santo. Free lance da Revista ISTO É GENTE.
Alguns livros de sua autoria:
Parada de sucesso
Como matar sua mulher sem deixar vestígios
Do fundo do meu coração
Com os chifres à flor da cabeça
A outra perna do saci
O vulto da sombra estranha
Refúgio para cornos avariados
Tudo o que eu gostaria de ter dito
Havia uma ponte lá na fronteira
Fonte:
http://www.paralerepensar.com.br/aparecidoraimundo_roletrando.htm
- Posso ficar lhe devendo cinco centavos? - pergunta com sua costumada gentileza.
- Não! - A passagem é um real e cinquenta e cinco centavos -, Assevera o cobrador, com ares pouco cavalheirescos. - Se não tem a grana completa, desce...
- Eu sei moço. Quebra essa... Ou terá que trocar cinquenta reais.
- Prefiro. Se deixar o senhor ir em frente – junta o exemplo à explicação -, terei que tirar do meu bolso na hora de prestar contas. A empresa não perdoa.
- Cinco centavos...?
-... De cinco em cinco...
Diante da intransigência do cobrador o passageiro mete as moedas de volta numa niqueleira. Em seguida puxa do bolso a nota de cinquenta reais.
- Se é assim, fazer o quê?
- Espere um pouco...
-... Vou saltar logo.
- Onde?
- Vila Alegria.
- Tá longe. Daqui até lá, bem uns vinte pontos. Espere aqui do lado para não atravancar os demais.
O passageiro senta naquele banco destinado às grávidas e aos idosos e fica a espreita. Em cada parada, ao longo do caminho, sobe uma nova leva de gente. Algumas exibem notas grandes, iguais à dele, outras trazem cartões magnéticos e passes pré-pagos.
Vinte minutos depois volta a cutucar o funcionário.
- Conseguiu?
- Calma cavalheiro.
- Meu ponto está chegando...
À medida que o pessoal cruza a catraca, o trocador junta o dinheiro para devolver o troco.
- Aqui...
Antes de seguir adiante o passageiro resolve conferir as notas e as moedas recebidas. Percebe uma pequena falta. Retruca:
- Amigo, dei cinquenta reais...
-... E eu lhe devolvi o troco.
- A passagem não é um real e cinquenta e cinco?
- É o que diz a plaqueta logo aqui atrás de mim.
- Desculpe. A grana está errada.
- Como assim?
- O amigo terá que me devolver quarenta e oito reais e quarenta e cinco centavos.
- E quanto lhe passei?
- Quarenta e oito reais e quarenta centavos. Faltam cinco centavos.
- Estou sem moedinhas nesse valor.
- Perdão. Exijo o troco correto.
- Parceiro, entenda, não tenho cinco centavos. Será que essa enorme quantia vai lhe fazer falta? Pelo amor de Deus!...
- Veja bem, não é pela quantia. É pela sua postura. Pela sua sacanagem.
O cobrador começa a dar sinais de visível irritação. Desforra:
- Passa logo e não chateia. Pense nos demais que estão a sua retaguarda e também querem pagar a passagem para chegarem a seus locais de destino...
- Não, não vou passar. Quero o troco a que tenho direito: quarenta e oito reais e quarenta e cinco centavos.
- Faz questão de cinco centavos?
- Estou pagando na mesma moeda.
Meia dúzia de rostos furiosos pede, com urgência, a desobstrução para o interior do coletivo.
- “E ai, meu chapa. É pra hoje?”.
- “Dá pra ser, cidadão?”.
- “Será que terei de pular?”
Diante desses protestos o trocador se empolga e bota banca. Berra:
- O cara tá fazendo esse carnaval por causa de cinco centavos. É mole?
Um terceiro entra em favor do cobrador.
- Vai ver está precisando para inteirar a “malmita...”
O passageiro na exigência dos cinco centavos continua impassível. Esbraveja:
- Faço questão dos cinco centavos. É merreca? Sim! Mas é meu.
Um senhor de boné azul marinho com uma pombinha branca da paz desenhada nele estende uma moedinha de dez centavos.
- Moço, toma aqui. Vai com Deus.
- Agradeço a sua boa vontade em querer ajudar. Todavia, não posso aceitar. Ele aqui é que tem de se virar e me dar o troco correto.
- Estou lhe dando cinco centavos a mais... Sem ter nada com o peixe...
- Valeu a sua intenção. Penhoradamente agradeço a sua gentileza.
- Estou propenso a supor que o encrenqueiro aqui é o prezado.
- Peço mil desculpas por todo o transtorno que estou causando, mas o senhor pegou o bonde andando. Quando entrei, tentei pagar a passagem com moedas. Tinha exatamente um real e cinquenta. Faltavam cinco centavos. Falei com o distinto e pedi que me deixasse passar sem eles. Houve a recusa. Alegou que teria que desembolsar de seus fundos na hora de prestar contas à empresa. Então mandei a nota de cinquenta. Agora está me devolvendo o troco errado. Ora bolas: se não posso ingressar sem os cinco centavos –, o senhor como um homem decente e honesto -, deverá concordar comigo que ele também não tem o direito de ficar me devendo os cinco centavos, ainda mais se levar em conta que apresentei nota maior. O certo, o justo, nesse caso, é cobrar um real e cinquenta...
Um silêncio sepulcral toma conta dos presentes.
- “Ele tem razão” - Argumenta uma colegial com uma mochila nas costas.
- “Devolve o troco direito” - Protesta um grandalhão.
- “Esses caras de jumento todos os dias embolsam nossas moedinhas”- conclui um terceiro.
- “Safado. Ladrão” berra eufórica, a galera.
- “No fim do dia ele junta uma quantia considerável. Se multiplicado por trinta dias...”.
O quadro de repente toma proporções inesperadas.
- “Perverso esse um. Devolve a grana do moço...”.
“-... Ou deixa o cidadão passar faltando os benditos cinco centavos”.
- “É isso mesmo...”.
Sem saída, detido pela impotência daquele festival confuso de vozes a beira de um ataque de nervos, o motorista, coitado, não sabe o que fazer, ou que atitude tomar. Está impedido de partir e fechar a porta dianteira. Uma enxurrada de cabeças, braços e pernas se acotovela tanto do lado de dentro, quanto de fora, querendo subir a bordo.
- “Devolve a grana, pilantra”.
- “Tudo isso por causa de cinco centavos?”.
Por fim, o consenso prevalece:
- Me passa os quarenta e oito reais e quarenta.
- Faltam cinco centavos...
-... Amado, mais tem Deus para me dar, que o diabo para tirar.
Satisfeito, o passageiro roda o molinete, entrega as moedinhas da niqueleira e revê a nota que causou toda a balbúrdia. Salta logo depois. O trocador, enfurecido, meio que lesado, perdido de si, rebolado no monturo da vergonha segue o resto da viagem reclamando. Desprecisão tanta, miséria maior. Faz cara de choro. Finge desengonçado, num gesto mal ensaiado. Retruca:
- Vão descontar do meu bolso. Esta empresa é uma droga! Uma droga! Que droga...!
Envolvidos, entretanto, pela avidez da chegada, cada um segue emborcado nos próprios problemas. No minuto seguinte, ninguém mais se lembra do cobrador e seus queixumes.
––––––––––––
Aparecido Raimundo de Souza, 59 anos é jornalista. Nasceu em 19 de março de 1953 em Andirá, Paraná. Reside no Espírito Santo. Free lance da Revista ISTO É GENTE.
Alguns livros de sua autoria:
Parada de sucesso
Como matar sua mulher sem deixar vestígios
Do fundo do meu coração
Com os chifres à flor da cabeça
A outra perna do saci
O vulto da sombra estranha
Refúgio para cornos avariados
Tudo o que eu gostaria de ter dito
Havia uma ponte lá na fronteira
Fonte:
http://www.paralerepensar.com.br/aparecidoraimundo_roletrando.htm
Nenhum comentário:
Postar um comentário