quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Aparecido Raimundo de Souza (Três Lágrimas)

EU CHOREI PELA PRIMEIRA VEZ NA MINHA VIDA quando meu casamento com a Dalva desmoronou, soterrado por visões sonâmbulas, no árduo facho da angústia dos estertores mais sombrios. Contava vinte e poucos anos, era muito jovem e imaturo. Entre rastros de violências mal cuidadas, parecia um nômade na busca constante da plenitude pessoal. Nenhuma experiência me conduzia à frente, principalmente a de convivência a dois. Na cabeça, um vazio de múltiplas formas não deixava os pensamentos tomarem chão. Se às vezes cogitava abrir o peito, na tentativa de modificar as coisas mais corriqueiras, secretos ventos sopravam contrariamente, e levavam, para longe, esses desejos mais veementes. Por isso, não havia a quem recorrer para pedir conselhos. Fazia o que dava na telha, como Lúcifer nas trevas, o espírito resistindo às fúrias do inferno, batendo, constantemente, com os costados n’água. Morávamos em um subúrbio apodrecido de São Paulo, e, nessa época, eu prestava serviços a meu pai. Estudava faculdade à noite. A cidade, demasiadamente provinciana, consumia a existência dos dias numa luta suprema de atribulações mórbidas. O povo, em si, tacanho e restrito a dogmas antigos, não oferecia condições de perspectivas melhores. Tudo girava em torno de enervante rotina. Um belo dia, acorrentada dentro do próprio ego, Dalva partiu. Foi embora como o vento gasoso transformado em furacão. Levou mala e cuia, e, a tiracolo, arrastou nosso filho Eduardo.

Por esse motivo, pouco ou quase nada recordo dele. O que guardo, são frágeis mimos, retratos intermediários do único aniversário que conseguimos realizar juntos, nada mais. Se olho no espelho e questiono respostas, o silêncio exaurido me cerca e violenta bem fundo o coração. Se penso no garoto ou experimento arrancar lembranças do passado, apenas flui a negação de um grito sufocado na garganta seca. A toda hora, fantasmas iracundos transpõem os umbrais do imensurável e me amedrontam. Geram, no meu cérebro, cenas abjetas de um filme triste e melancólico que não gostaria de rever.

Deparo com feridas abertas cujas chagas não cicatrizaram. Resumo esse tempo observando que muito cedo, na minha vida, ficou tarde demais. Comecei a namorar, andavam altas, as horas no relógio da desesperança. Aos vinte, portanto, o húmus da solidão denegrida, já havia envelhecido os dias e escurecido, sobremaneira, meu risonho e cálido amanhã...

EU CHOREI PELA SEGUNDA VEZ NA MINHA VIDA quando meu relacionamento amoroso e afetivo com a Carla complicou mais do que devia. Naufraguei,de repente, nas águas gélidas de um mar enfurecido e me acorrentei em porões mal cheirosos, onde lâmpadas e grades se confundiam com despojos de um fim de aurora traçado por mãos incógnitas. Nessa época, já diplomado, nascia do estardalhaço do anel de grau à vontade de seguir carreira e me tornar um advogado brilhante. Na casa dos trinta, ganhava a vida sepultando os meses com os poucos clientes que apareciam no escritório. Carla, a jovem esposa, moldava seus projetos a instintos soltos; construía um universo sem subterrâneos. Nas horas de folga, trabalhava comigo na função de secretaria. Também estudava as ciências jurídicas e pretendia, mais à frente, ser alguém de raízes, pontilhando caminhos em busca de crepúsculos não fecundados. Antes de providenciar o divórcio com Dalva (a primeira mulher), passamos a dormir interiorizado sono, acordar com a alquimia do pôr do sol, a dividir tarefas e afazeres embaixo do mesmo teto. Dessa união, olhos e pensamentos navegando idêntico curso, futuro e pretérito interligados em igual verbo, nasceu Narjara. Todavia, o destino se esvaiu nos contornos da repetição e dividiu espaços. De súbito, veio o fim. Com ele, rusgas, gritos, lágrimas molhando o espelho, reservando, uma vez mais, novas incertezas e dissabores.

Cada um seguiu por sendas opostas. Ânsias solfejando rimas desconexas desenharam um poema melancólico em derredor do que restou de um amor que parecia eterno. Na verdade, foi dura a visão que entrou pela janela na qual me debrucei cansado, vencido, magoado, tentando ver lá fora, na multiplicação do pesado silêncio, o vazio que permaneceu depois que ela (igualmente de bolsas e malas) passou a mão em Narjara, bateu a porta de casa alçando voo em direção a incerto porvir...

ENTÃO EU CHOREI PELA TERCEIRA VEZ NA MINHA VIDA. Desta feita, não por casamentos destruídos, ou por invasões de sofrimentos no alagadiço da alma em frangalhos. Derramei lágrimas em trêmulo mistério pelo nascimento de Amanda, minha filha com Marlúcia. A miudinha chegou, num mastim sonoro, bebendo o orgulho que crescia ao meu redor. Abriu os olhinhos assistida por bons médicos, maternidade de primeira linha, tudo a tempo e a hora. Eufórico, nutrindo a certeza do mortal esplendor, não cabia, no corpo, o contentamento que fluía de dentro do meu coração. Preparei sonhos para o esperado dia. Ensaiei piqueniques, acordei quimeras de um adormecido desejo de explosão refreado na alma. Deixei que florescesse a esperança, como uma canção inocente rasgando o crepúsculo. E ela coroou eterna estrela, efêmera luz divinal, anjo descido do espaço. Mas trouxe, porém, no lábio superior, um pequeno corte desfigurando o rostinho de boneca. Foi, na verdade, um choque, um baque tremendo que consumiu parte de mim. Senti-me como o faminto sem o pão para aplacar a fome visceral, como a dor incômoda na pele do enfermo descrente, como a fé que se matou de tédio no peito de um condenado à pena de morte. Senti-me como se alguém atirasse, inopinadamente, um balde de água fria, com afoiteza descomedida, em noves meses de espera, cercados de preparações e surpresas. Todavia, Amanda, meses depois, cirurgiada, voltou ao normal. Do quadro antigo somente fotos selecionadas em álbuns de família. Uma fita de vídeo mal gravada. Um pedaço da história, da pureza, da infância que logo se tornou remota. Evidentemente que essa lacuna não ficará adormecida, ou esquecida no “para sempre’’.

Amanhã, ou depois, já mocinha, Amanda, irá por certo, indagar por essa fase da sua estrada. É o livro que ao ser folheado não poderá estar faltando nenhuma página, mesmo que essa página traga, à tona, acontecimentos e lembranças que deveriam ficar enterradas.

Amanda, hoje, grita o universo a plenos pulmões. É flor em botão, barco de alegrias singrando águas tranquilas. Minha filha saltita, pula, corre, ri o rostinho marcado por uma tênue e quase apagada cicatriz. Ingênua pétala misturando esperança e perdão em flashes endereçados a Deus. Seu olhar é um pouquinho triste, com certeza, é um pouquinho triste. Quando a vejo (o dedinho polegar esquerdo na boca), me ponho a imaginar o que fiz de errado para ser castigado através dessa inocente? Ao mesmo tempo, me alegro interiormente, porque numa determinada intermitência do destino, entre espinhos e chagas, entre acertos e desacertos, entre idas e vindas, nesse encontro especial (por que não?), ela chegou como uma esperança sem par, iluminando com fulgor descomedido, meus passos incertos. Essa mocinha quer queira eu, ou não, mudou radicalmente os horizontes que pairam sobre minha cabeça -, e, mais que isso -, me fez acreditar piamente que lá do alto, bem acima das nuvens visíveis, alguém gosta um bocadinho assim, de mim. Barriguinha (como a trato carinhosamente) me consagra ao seu esbanjamento de vida plena e eu me sinto inteiramente realizado e feliz por ter tido a sorte de ser escolhido para ser seu PAI.

Fonte:
SOUZA, Aparecido Raimundo de. Havia uma ponte lá na fronteira. São Paulo/SP : Ed. Sucesso, 2012.

Luiz Máximo de Souza (Caderno de Trovas)



A gente mesmo procura,
a gente mesmo perfaz,
o caminho da amargura,
ou o caminho da paz.
 -
Ame o bem!  O amor estude!
Seja justo, honesto e honrado!
Quem não vive de virtude,
pode morrer de pecado!
-
As lágrimas e os sorrisos
dão-nos a prova evidente
dos caminhos indecisos
porque anda a vida da gente.
-
Colhendo rosas, vi Rosa
entre as rosas do jardim;
era a rosa mais formosa
que sorria para mim…
-
Crianças abandonadas
nas nossas grandes cidades,
tristes fotos estampadas
do abandono das bondades.
-
Do teu carinho, querida,
eu preciso inteiramente;
como preciso da vida,
como preciso ser gente.
-

É bem possível que eu seja
um indiscreto qualquer...
Mas, quem é que não deseja
um carinho de mulher?
-
Levando sempre no "papo"
quase toda secretária,
o patrão pegou um "guapo",
disfarçado de Rosária…
-
Não cruzemos nossos braços
pelos caminhos da vida!
Se os frutos estão escassos,
a lavoura está florida!
-
Não quero ser emotivo,
porém, percebo e adivinho:
– sem teu carinho não vivo,
não vives sem meu carinho.
-
Nariz espetacular...
é o nariz do seu Diniz:
– quando se põe a roncar,
todo mundo pede... bis!
-
Neste abandono em que estamos
destruindo nosso amor,
nós próprios alimentamos
as chamas de nossa dor.
-

O abandono desabona,
desacredita e degrada
mais aquela que abandona
que a pessoa abandonada.
-
O amor, quando é verdadeiro,
neste lema se resume:
- não existe por dinheiro,
não se agrada com perfume.
-
O desamor dos humanos
é realmente o culpado
da existência dos tiranos,
da obstinação do pecado.
-
Olhe o nariz da Ermengarda
e observe que narigão!
É, perto de uma espingarda,
um verdadeiro canhão!
-
Os caminhos da amargura
e os caminhos da esperança,
você mesmo é que os procura,
você mesmo é que os alcança…
-
Pelos caminhos da vida
encontrei você, meu bem,
sem esse encontro, querida,
eu não seria ninguém.
 -

Perfumes, como atitudes,
ninguém pode avaliar...
Que as suas totais virtudes
não irá, nunca, encontrar…
-
Se eu tiver os teus carinhos
e tu tiveres os meus,
viveremos mais juntinhos
e bem mais perto de Deus.
-
Sejamos todos irmãos,
bons amigos, bons vizinhos;
estendamos nossas mãos,
ao cruzarmos os caminhos.
 -
Se não queres que o abandono
te envileça e te degrade,
não subas tanto no trono
da desumana vaidade.
-
Se te amar pecado fosse,
se é pecado ainda te amar,
esse pecado é tão doce
que vale a pena pecar.
-
Se te contemplo a me olhar,
bem nos meus olhos, sorrindo,
é o mesmo que contemplar
botões de rosas se abrindo…
-

Se te fechas no egoísmo,
se abandonas pais e irmãos,
forjando estás teu abismo,
com as tuas próprias mãos.
-
Seu salário era curtíssimo,
e o remédio pro Correia
foi pedir ao Meritíssimo
para dormir.. na cadeia…
-
Simplesmente não me atinge
o abandono inconsequente
do amor que somente finge,
do amor que odeia somente.
-
Sobre o nariz discutiam
sua posição funesta...
E, ao final, se divertiam:
- E se ele fosse na testa?
-
Tens, minha deusa formosa,
nos teus lábios de carmim,
todo o perfume da rosa
mais bela que há no jardim.
-
Todo excesso de requinte
não surte bom resultado;
carinho, por conseguinte,
também tem que ser dosado.
-
Todo perfume é um poema,
cujas estrofes floridas
cantam a essência suprema
das flores de nossas vidas.
-
Vou lhe dizer a verdade,
a verdade, nua e crua:
– sem carinho a sociedade
conjugal não continua...

Olivaldo Júnior (A última carta)

Aquele homem pegou suas últimas palavras e juntou numa carta para seu amigo. Não, não se matou. Pensou que iria ficar para semente e plantou uma carta, uma última carta. Mais que tão só expressão, a última carta daquele homem era cheia de estrelas que caíram do céu e viraram poesia. Poesia é a lua que hiberna.

Não sabia de onde vinha, nem para onde ia, mas tinha um amigo. Dizia na carta o quão importante tinha sido encontrar alguém para as horas de morte, em que a vida renasce nos olhos de quem nos entende. Tanto a dizer, e nada se diz. Tanto a fazer, e pouco se faz. Será que a vida é assim, um eterno externo a fazer? Será?

Gostava do amigo a seu lado, dizendo de coisas que os dois compreendiam. Não se podia prever o fim da amizade. Tudo tem fim? Começa de novo a canção, e uma nova emoção nasce em nós. Cada ponto cruzado da trama, do acorde, do acordo, enrodilha-se em nós como um elo com a vida, que, mesmo de morte, avoa.

A última carta jamais chegaria ao destino. Com milhões de versos, muitos de pé quebrado, ela dormiria para sempre na gaveta da escura mesinha. Seu violão, de vez em quando, tarde da noite, clamava em silêncio por ele, que o ninava nos braços como quem nina um bebê, um filho, "Pinóquio" a quem dava uma vida.

Bem no fim de tanta escrita, mal assinava seu nome. Não carecia, porque a carência das letras o denunciava nos verbos usados: queria, precisava, gostaria... O som da última carta vinha pleno de noites sem lua, em que se pode ouvir o som do peito e dos roucos soluços na fronha de outrora. Nunca enviaria tal carta, a última, a primeira, a seguinte, igual a tantas e inédita carta.

Fontes
O Autor
Imagem = www.eltrendelavida.mx

terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Olivaldo Júnior (Felicidade)

Sim, ele está feliz. Um homem que esteve com alguém que ama só pode mesmo estar feliz. "Mas o que é felicidade?", perguntou ele ao psicólogo, dia desses, durante a sessão, que, prontamente, assim lhe disse: "Felicidade é a realização de seus desejos". Ah, então era isso?! Não era algo palpável, nem vendável, nem comprável. A realização de seus desejos... Hum... Isso é difícil! Mas, de sol a sol, de chuva a chuva, ele tentava, e juro que sim.

Lembro-me dele quando criança, era tão belo, tão puro, não sabia nada do mundo. Não, não acredito que o mundo seja feio, há muita beleza no mundo. Mas, para aquele menino, o mundo era uma coisa, sei lá, uma coisa que é feita do eterno com o de repente, uma coisa perene. Não, ele não via que o mundo gira, e gira tão rápido que, se não tomarmos cuidado, ele nos pega, derruba e, depois, só Deus sabe o trabalho que dá ficar em pé.

Aquele homem estava muito feliz. Logo, talvez, a tristeza se achegaria novamente a ele e o abraçaria com suas mãos delicadas que sufocam o peito, com sua voz bem macia que nos faz derramar um rio de lágrimas densas, há muito guardadas. Porém, por ora, estava feliz. Não sabia onde pôr as mãos, e seus pés tinham vontade de andar. As mãos, ele as poria no teclado e escreveria mais um texto; e os pés, ele os cruzaria bem debaixo da mesa.

Felicidade... Como diria Clarice, a Lispector, "que palavra mais doida"! Mas, sem ela, vivemos em busca de nós sem promessa de um campo bem vasto de girassóis, ainda que seja tão só em vã metáfora. Todos querem seu lote na terra prometida, na terra de Oz, na América dos velhos tempos, quando não tinha caído nenhum "cogumelo" em lugar nenhum. Algum trocado, por favor, que aquele homem está muito feliz. Felicidade é gostar de estar.

Fontes:
O Autor
Imagem = www.frasesdobem.com.br

Contos Populares Portugueses (A Gaita Milagrosa)

Havia numa terra um indivíduo que possuía uma gaita com a virtude de fazer bailar os ouvintes quando tocava. De uma ocasião, passava um sujeito com um jumento carregado de louça e o dono da gaita pôs-se a tocá-la.

Tanto o dono do jumento como este puseram-se logo a bailar, e com tantos saltos, que em pouco tempo toda a louça se fez em cacos.

Gritava o dono da louça ao tocador da gaita que não tocasse, mas este só tirou a gaita dos lábios quando já não havia uma única peça de louça inteira. Exasperado, o pobre homem foi queixar-se ao juiz e o tocador foi chamado à sua presença.

- És acusado de ter quebrado a louça deste homem - disse o juiz ao gaiteiro.

- Eu não sou culpado. Toquei a minha gaita, e esse senhor e o seu jumento puseram-se a dançar.

- Tens contigo a gaita? - Tenho.

- Toca - ordenou o juiz, sentado na sua poltrona.

O gaiteiro tirou a gaita do bolso e pôs-se a tocar. O dono da louça, que a esse tempo estava encostado a uma cadeira, pegou na cadeira e bailou com ela. O juiz, qui ia tomar uma pitada de rapé da sua caixa de ébano, começou a pular, batendo com os dedos na tampa à maneira de castanholas. A mãe do juiz, que estava entrevada na cama, no quarto próximo, levantou-se imediatamente, bailando, batendo as palmas e cantando:

Vá de folia,
Vá de folia,
Que há sete anos
Me não mexia!

E assim se converteu o escritório do juiz numa animada sala de baile, pois que até as cadeiras, os tinteiros e todos os mais móveis se puseram a saltar e a bailar.

Passados momentos, pediu o juiz ao tocador que cessasse de tocar a gaita, e o homem obedeceu imediatamente, pois viu que tanto o dono da louça como o juiz e a mãe suavam com abundância.

O juiz, depois de limpar o suor disse para o tocador:

- Podes-te ir embora sem culpa nem pena, porque és um homem que até curou a minha mãe, que há muitos anos se não podia mexer na cama.

E o tocador saiu da presença do juiz muito contente e satisfeito.

Não diz a história se a mãe do juiz voltou para a cama.

Fonte: Viale Moutinho (org.) . Contos Populares Portugueses. 2.ed. Portugal: Publicações Europa-América.

Silvana da Rosa (A mulher escritora e personagem nos contos de fadas) Parte XIII

L’Héritier utilizou-se dos contos de fadas para unir as diferentes classes sociais, babás e literatas, mostrando a realidade deprimente em que a mulher vivia, independendo da classe a que pertencia. Estilo também adotado por d’Aulnoy, porém essa escritora distanciava-se de Marie–Jeanne L’Héritier quanto ao uso do linguajar, e também quanto à expressão de sentimentos e de valores adotados.

      L’Héritier, pertencente à tradição francesa, através da língua culta, redigia contos elegantes, os quais eram considerados excessivamente rebuscados para o entendimento popular. Pelo contrário, d’Aulnoy não possuía “papas na língua” como já foi visto, uma vez que essa escritora retratava o vulgar e o mundano, bem como amores bestiais. Enquanto L’Héritier recolhia os contos populares e os lapidava, acrescentando a eles valores e sentimentos superiores, d’Aulnoy os escancarava, sem censura ou pudor.

      Marina Warner cita o posicionamento de L’Héritier quanto às histórias vindas diretamente da boca do povo:

                       Essas histórias se encheram de impurezas ao passarem pela boca da gente comum, assim como a água pura se polui com lixo ao passar por um bueiro sujo. Quando as pessoas são simples, são também grosseiras: não sabem o que é apropriado. Se um evento licencioso e escandaloso é mencionado ligeiramente, a história que contarão depois se encherá com todos os detalhes. Esses atos criminosos são relatados com um bom propósito, mostrar que eram sempre punidos, mas o povo, de quem os recebemos, relatam-nos sem cobri-los com nenhum véu, e de fato os vinculam tão firmemente às questões que revelam que fica difícil contar as mesmas aventuras e mantê-los ocultos do público. (WARNER, 1999, p. 206)
                     
      Convém salientar mais uma diferença entre d’Aulnoy e L’Héritier, ou seja, a primeira compunha seu enredo com metamorfoses de animais; a segunda não inseria seres animalescos em suas narrativas, mas sim, propunha às suas heroínas desafios até então considerados masculinos. Isso acontece em Marmoisan ou L’innocent tromperie, uma vez que a heroína disfarça-se de homem e vai para a guerra. A garota se faz passar pelo irmão gêmeo que havia morrido de forma inusitada.

Marmoisan, assim a heroína se chamava, destacou-se pela bravura entre os demais guerreiros e, como a escritora abominava a linguagem inculta e mundana, transferiu, então, essa aversão a sua personagem. A heroína jamais participava de um círculo de conversa masculina, onde o assunto principal era a conduta feminina. Afinal, a heroína cai nas graças de um príncipe que, após descobrir sua verdadeira identidade, casa-se com ela.

Faz-se interessante ressaltar que, já nessa época, século XVII, L’Héritier assim como d’Aulnoy, mostravam uma nova identidade da personagem feminina: mulheres inteligentes que podiam muito bem direcionar suas vidas, bem como assumir funções masculinas e desempenhá-las da melhor forma possível. Tanto que, em Marmoisan, o príncipe valoriza a mulher, primeiramente, pela sua bravura como soldado, e, após, pela sua beleza.

      Além de Marmoisan, L’Héritier escreveu La robe de sincerité, uma vez que a heroína é uma tecelã chamada de Hermínia que auxilia o pai, o falso mago Misandro, em uma cômica e ardilosa mentira. Misandro afirma ao rei de Creta que há um manto capaz de denunciar se as mulheres são fiéis ou infiéis, quando usado pelas mesmas. Assim, sob a ordem do rei, a filha do mago, Hermínia, e sua mãe, passaram a tecê-lo. Logo após o manto estar pronto, os homens exigiram que as mulheres o usassem, com isso a confusão começou, pois o referido vestuário deveria mostrar em seu bordado a situação da mulher, porém nada se via, o que deixava o sexo masculino enlouquecido. No entanto, quando os homens saem do estado de insanidade, vêem que foram enganados. Hermínia, procurando salvar a vida do pai, assume a culpa pela invenção do fato e, por isso, é perdoada.

Nesse conto, percebe-se nitidamente a amplitude da ingenuidade masculina, que se faz grotesca ao acreditar que um manto pode transparecer o interior humano. Além disso, torna-se evidente a sabedoria, a humildade feminina e a generosidade em que a filha assume a culpa para salvar a vida de seu pai.

De certo modo esse conto apresenta versão semelhante, criada em 1837, por Hans Andersen, A roupa nova do rei. Ambos, L’Héritier e Andersen, criam artefatos que, supostamente, quando usados, podem refletir o interior, as virtudes ou os vícios humanos.

Referindo-se ao conto La robe de sincerité, de L’Héritier, Warner salienta que:
      
Os adultérios e outros crimes que os homens fantasiavam, quando não viam nada no manto, representam as calúnias atiradas sobre mulheres inocentes; a colaboração de Hermínia com o pai revela a teia de fidelidades conflitantes em que as mulheres são presas; os contos e imagens que teceu, como os escritos da própria L’Héritier, representam seu protesto – a história diferente, a versão feminina [...] (WARNER, 1999, p. 211)
                     
      Soma-se ao círculo de escritoras de contos de fadas, bem como, ao das preciosas, Julie-Henriette de Castelnau de Murat. A escritora, nascida em 1670, na Bretanha, deixou-a para casar-se com o conde de Murat e residir em Paris.

      A poetisa esteve exilada, após redigir textos acusatórios sobre o rei Luis XIV e a suposta amante do mesmo. Durante seu período de reclusão, inúmeros boatos sobre sua postura “insana” disseminaram-se. Nesse tempo, Murat escreveu contos e novelas, o que fez transparecer o seu amargor em relação aos convencionalismos sociais e, até mesmo, em relação ao amor. Julie Murat só foi libertada após a morte do rei, tendo assim permissão para retornar a Paris.

      Em Le palais de la vengeance, Murat aborda o desgaste de sentimentos com o passar do tempo, como o amor. No conto, narra-se a história de uma feiticeira má que, no apogeu de sua crueldade, enclausura dois jovens amantes em um palácio de cristal. Durante o confinamento, ao invés de o casal fortificar os seus sentimentos virtuosos, acontece o contrário, eles descobrem que não mais se amam.

      Murat, em Le palais de la vengeance, coloca em xeque a conhecida frase final dos contos de fadas “e eles viveram felizes para sempre”. A escritora mostra que nem todo relacionamento afetivo é eterno e que o amor, se não for verdadeiro, pode se desgastar com o tempo. Dessa forma, a escritora, sutilmente, suger e que os casamentos podem ser desfeitos, caso não mais se tenha sentimentos de afeição entre ambos.

Les lutins du château de Kernosyra consiste de três contos interpolados. Novamente, narra-se a história de um confinamento, mas, desta vez, é o de duas irmãs órfãs que estão sob a tutela de uma tia má e interesseira. Com a chegada de dois jovens galantes, essa rotina entediante modifica-se: bailes e inúmeros divertimentos acontecem, acompanhados pela escritura de histórias de acordo com os festejos.

      No entanto, esse período feliz já possui tempo delimitado, condicionado pela vinda de um pretendente para uma das meninas, escolhido pela tia, sendo que esse é tão tolo e inculto a ponto de não saber diferenciar o que é um animal de caça de uma vaca leiteira. Dessa forma, Murat denuncia a clausura e os relacionamentos detestáveis que as mulheres de sua época eram condicionadas a viver e, mais uma vez, retoma a questão da ignorância masculina.

Em Peau d’ours, o conto desenrola-se a partir do momento em que um ogro, o Rinoceronte, deseja casar-se com a princesa Hawthorn. A cerimônia acontece, porém, em uma vacilada do ogro que sai da caverna para caçar ursos para a ceia, a serva da princesa costura a mesma em uma pele de urso. Hawthorn, ao cobrir-se com essa pele, percebe que é encantada, pois ela tornou-se uma linda ursa. Quando, ao fugir, é capturada por um príncipe, seu mistério é desvendado.

Murat, em Peau d’ours, denuncia, além da clausura feminina, outra contravenção a que ela é submetida, ou seja, a mulher precisava disfarçar ou anular os seus anseios mais íntimos para poder sobreviver em uma esfera em que a sociedade e as leis eram regidas somente por homens e somente a eles era permitida a totalidade de direitos. Além disso, a escritora ressalta a falta na esperteza do homem-ogro, uma vez que em um “cochilo” deste a mulher o supera em sua sabedoria e agilidade.

Aos nomes de L’Héritier, d’Aulnoy e Murat acresce-se Jeanne-Marie Leprince de Beaumont. A escritora francesa Beaumont, nascida em 1711, tornou-se notável durante o século XVIII ao sugerir que as suas meninas, as quais cuidava como governanta, eram inteligentes e capazes de refletir e opinar sobre a qualidade das obras que lhes eram oferecidas para leitura. Warner cita a afirmativa de Beaumont quanto a isso:

elas dirão com muita gravidade sobre um livro que estão lendo: “O autor se desviou do assunto; diz coisas muito fracas. Seu princípio é falso; suas inferências também devem ser.” E mais ainda: minhas meninas provarão o que dizem. Não julgamos de forma correta a capacidade das crianças; nada está fora do alcance delas [...] Hoje em dia as damas lêem todo tipo de livros: de história, política, filosofia, e até mesmo os que tratam de religião [...] Portanto devem ser [...] capazes de discernir entre verdade e falsidade. (WARNER,1999, p. 328)
                     
      Jeanne-Marie Leprince de Beaumont foi uma das tantas mulheres de sua época que manteve por dois anos um casamento arranjado por sua família. Posteriormente, contraiu uma segunda união e teve vários filhos.
                     
      Beaumont escreveu mais de setenta obras, dentre essas Le magasin des enfants, em 1757. Sua obra se canonizou com o conto A Bela e a Fera. Várias de suas obras têm caráter didático, e a autora escreve de acordo com a ideologia cristã, ou seja, atribuindo castigos e recompensas às ações do homem, bem como abordando os valores humanos, porém o que a tornou realmente inovadora foi a utilização dos contos de fada como medida educadora para crianças e jovens. Entre seus contos está La Belle et la Bete (A Bela e a Fera).    Neste, a heroína Bela submete-se a casar com um homem-animal para salvar a vida de seu pai. O que não poderia se esperar é que o monstro se revelasse um verdadeiro cortesão, assim conquistando Bela, que consegue salvá-lo da morte, afirmando amá-lo e que com ele deseja ficar eternamente.
                      
      A moral dessa narrativa assemelha-se à do livro O Pequeno Príncipe, de Saint-Exupéry, ou seja, o que é essencial é invisível aos olhos. A beleza da Fera escondia-se em seu interior, o que poderia torná-lo realmente belo eram as suas virtudes. E, quanto à heroína, ela deveria enxergar o invisível    e sacrificar-se sempre, em prol da felicidade de seus familiares.

      O conto A Bela e a Fera de Beaumont foi baseado no já existente, escrito por Gabrielle-Suzanne Barbot Gallon, madame de Villeneuve (1695-1755), inserido na novela denominada Les contes Marins ou La jeune américaine, em 1740.

continua…

Fonte: Silvana da Rosa. Do tempo medieval ao contemporâneo: o caminho percorrido pela figura feminina, enquanto escritora e personagem, nos contos de fadas. Dissertação de Mestrado em Letras. Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), 2009

segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Olivaldo Júnior (Roupa de missa)

Minha professora de canto sempre nos dizia: Amanhã tem apresentação, quero todos bonitos, com a "roupa de missa"! E sabíamos que era para estarmos "na estica", muito elegantes, com a melhor roupa que tivéssemos para cantarmos.

Que importância damos à roupa que vestimos? É verdade que tem uma para cada ocasião (e até mesmo sua falta, no momento certo, pode ser bela); mas que importância você dá para a forma como se apresenta às pessoas? Há quem não ligue para isso e se vista ou como pode, ou como consegue, ou como a bolso permite. Manoelito se preocupava com sua roupa. Gostava de estar bem vestido, nos "trinques".

O rapaz de que lhe falo morava com sua mãe e gostava de andar na moda. Não saía de casa sem perfume, nem seu sagrado gel no cabelo, tomando o cuidado de aplicá-lo pouco e com cuidado, para não lambuzar a cuca e parecer mané. Quando apontava na esquina, comentavam que ele era o mais bem vestido da vila e, quem sabe, da cidade, que não era grande, mas na medida para os casos amorosos do caro Manoelito. Entre um beijinho e outro, pedia à mãe que passasse bem sua camisa, pois tinha que impressionar. Só não usava uma roupa: um conjunto de calça e camisa, muito finos, herdados de um tio bastante rico que não os visitava quase nunca.

"Pois esta vida não está sopa / E eu pergunto com que roupa / Com que roupa eu vou / Pro samba que você me convidou"... Ah, Manoelito amava essa música! Iria com qualquer roupa para todo samba que houvesse, menos com "aquela", o conjunto de calça cinza e camisa branca, de manga comprida e gola alta, que eram seu love. Se fosse mulher, poderia imitar aquela mãe do poema de Drummond em que ele fala do "caso do vestido" e pendurar camisa e calça na parede, como se pendura um quadro, objeto de recordação, adoração, admiração. Mas não. Era fanático pela roupa, que guardava a sete chaves no guarda-roupa, tão bem fechado que as baratas da casa tinham desistido de tentar profaná-la, roendo os punhos de qualquer outra peça, menos "importante" para Manoelito.

Certo dia, houve um casamento na família e sua mãe, dona Eudóxia, queria porque queria que o filho desencantasse aquela roupa e a estreasse no casório, pois seria convidado de honra. Nada! Ele se negava a dar esse gosto à senhora. Desesperado, disse que não iria mais ao casamento, que não adiantava brigar. Nunca a usaria. O que fazer? Assim foi por muito tempo. Tinha se afeiçoado tanto àquelas duas peças de fino linho, jamais as teria sobre o corpo. Jamais?!

Aquela roupa tão linda, tão bem preservada, com tanto carinho e com tanto capricho, sem traços de traça, sem rastros de rato, foi usada por ele, sim. A famosa "roupa de missa" coube como uma luva em nosso amigo no dia de sua passagem para o Céu, em que São Pedro, numa túnica bem pomposa, o recebera. Lindo, Manoelito, com sua roupa mais cara, chegou na hora da ceia e, ao lado de Noel Rosa, ceou feliz. A roupa lhe caíra bem.

Fontes:
O Autor
Imagem = http://www.bandsc.com.br