quarta-feira, 11 de julho de 2018

Silmar Bohrer (Lampejos Poéticos) X


Vinicius de Moraes (A Arte de Ser Velho)


É curioso como, com o avançar dos anos e o aproximar da morte, vão os homens fechando portas atrás de si, numa espécie de pudor de que o vejam enfrentar a velhice que se aproxima. Pelo menos entre nós, latinos da América, e sobretudo, do Brasil. E talvez seja melhor assim; pois se esse sentimento nos subtrai em vida, no sentido de seu aproveitamento no tempo, evita-nos incorrer em desfrutes de que não está isenta, por exemplo, a ancianidade entre alguns povos europeus e de alhures. 

Não estou querendo dizer com isso que todos os nossos velhinhos sejam nenhuma flor que se cheire. Temo-los tão pilantras como não importa onde, e com a agravante de praticarem seus malfeitos com menos ingenuidade. Mas, como coletividade, não há dúvida que os velhinhos brasileiros têm mais compostura que a maioria da velhorra internacional (tirante, é claro, a China), embora entreguem mais depressa a rapadura. 

Talvez nem seja compostura; talvez seja esse pudor de que falávamos acima, de se mostrarem em sua decadência, misturado ao muito frequente sentimento de não terem aproveitado os verdes anos como deveriam. Seja como for, aqui no Brasil os velhos se retraem daqueles seus semelhantes que, como se poderia dizer, têm a faca e o queijo nas mãos. Em reuniões e lugares públicos não têm sido poucas as vezes em que já surpreendi olhares de velhos para moços que se poderiam traduzir mais ou menos assim: "Desgraçado! Aproveita enquanto é tempo porque não demora muito vais ficar assim como eu, um velho, e nenhuma dessas boas olhará mais sequer para o teu lado..." 

Isso, aqui no Brasil, é fácil sentir nas boates, com exceção de São Paulo, onde alguns cocorocas ainda arriscam seu pezinho na pista, de cara cheia e sem ligar ao enfarte. No Rio é bem menos comum, e no geral, em mesa de velho não senta broto, pois, conforme reza a máxima popular, quem gosta de velho é reumatismo. O que me parece, de certo modo, cruel. Mas, o que se vai fazer? Assim é a mocidade- ínscia, cruel e gulosa em seus apetites. Como aliás, muito bem diz também a sabedoria do povo: homem velho e mulher nova, ou chifre ou cova. 

Na Europa, felizmente para a classe, a cantiga soa diferente. Aliás, nos Estados Unidos dá-se, de certo modo, o mesmo. É verdade que no caso dos Estados Unidos a felicidade dos velhos é conseguida um pouco à base da vigarista; mas na Europa não. Na Europa veem-se meninas lindas nas boates dançando cheek to cheek com verdadeiros macróbios, e de olhinho fechado e tudo. Enquanto que nos Estados Unidos eu creio que seja mais... cheek to cheek. Lembro-me que em Paris, no Club St. Florentin, onde eu ia bastante, havia na pista um velhinho sempre com meninas diferentes. O "matusa" enfrentava qualquer parada, do rock ao chá-chá-chá e dançava o fino, com todos os extravagantes passinhos com que os gauleses enfeitam as danças do Caribe, sem falar no nosso samba. Um dia, um rapazinho folgado veio convidar a menina do velhinho para dançar e sabem o que ela disse? - isso mesmo que vocês estão pensando e mais toda essa coisa. E enquanto isso, o velhinho de pé, o peito inchado, pronto para sair na física. 

Eu achei a cena uma graça só, mas não sei se teria sentido o mesmo aqui no Brasil, se ela se tivesse passado no Sacha's com algum parente meu. Porque, no fundo, nós queremos os nossos velhinhos em casa, em sua cadeira de balanço, lendo Michel Zevaco ou pensando na morte próxima, como fazia meu avô. Velhinho saliente é muito bom, muito bom, mas de avô dos outros. Nosso, não.

Fonte:

Cecim Calixto (Cajado de Sonetos) 1


ANTENAS DE FLORES

Bendita a chuva que o jardim viceja
Na venturança de regar as flores.
A minha lida no rimar enseja
Brindar o ramo que produz olores.

A borboleta no agapanto adeja
E beija as rosas de infinitas cores;
Ao lado seu, o colibri bafeja
O florilégio - seu vergel de amores.

Mas o arquiteto que cuidou da planta,
Ante a beleza se comove e canta
O belo canto que a natura ordena:

"Crescei mimosas e a exalar perfumes,
Em liberdade, sem querer betumes,
Porque sois vós minha florida antena."

GÊMEAS PAIXÕES

Passou tristonho pela minha tenda,
Na palidez do rosto o amargo pranto.
Fez-me sentir toda emoção da lenda
Do cancioneiro em seu choroso canto.

Seguindo o vate pela mesma senda,
Fui encontra-lo em meu sombral recanto
Beijando a terra, a rabiscar legenda,
Sobre o sepulcro carcomido e santo.

Ambos choramos pelo amor perdido,
Com emoção e o coração dorido
Pela saudade que jamais se esquece.

E eu volto sempre àquela cova rude,
Porque minha alma, em solidão, alude
Ouvir lamento igual a minha prece.

CONSELHO AMIGO

A natureza castigando está
E o plantador sem ter razão lastima;
Pois ele pensa que plantando dá
Sem o respeito à decisão de cima.

Tem que aprender as condições e já...
O plantador que a sua terra estima,
Não há colheita que se mostre má
Quando a floresta a natureza anima.

Refiz a mata do ribeiro ativo
E de abundância felizmente vivo
Pelas colheitas que o galpão revela.

Eu planto fava que até sol resiste
E a pouca chuva não a deixa triste
Pois faço tudo para o agrado dela.

TELEFONE INGRATO

Quase destruo o telefone mudo,
Velho caduco que jamais me fala.
Ele bem sabe - de aflição acudo -
Ouvir a voz que o coração regala.

Esperto não usa o tom agudo,
Quando me vê transfere toda escala.
O baixo tom é o seu tenaz escudo,
Mais a esperteza da vilã cabala.

Como viver neste cruel negrume
Quando demonstra sobre mim ciúme,
De forma vil e que jamais me apraza.

Um jeito existe e bem assim não brigo:
Eu vou traze-la a residir comigo
E coloca-lo no porão de casa.

Fonte:
Cecim Calixto. Flores do meu cajado: sonetos. 
Curitiba: Juruá Editora, 2015.

terça-feira, 10 de julho de 2018

Vinicius de Morais (Namorados públicos)


Da mesma forma que os monumentos históricos ou artísticos, as belezas naturais, os bailes e cafés, os parques e jardins - os casais de namorados são coisa que pertencem ao patrimônio de uma cidade. Uma cidade sem namorados públicos não é uma verdadeira cidade. Os cicerones de Paris costumam mostrá-los aos turistas, inteiramente despreocupados em suas ternuras, como típicas curiosidades locais. No Hyde Park, em Londres, é possível vê-los às centenas, sobre o gramado esmeralda desse parque inexcedível como se estivessem em casa. O transeunte margeia beijos intermináveis, abraços infinitos, olhares abissais, namorados que leem romances, namorados que dormem, namorados que brigam, a um passo uns dos outros, perfeitamente indiferentes ao que lhes vai em torno, - e o que é formidável - guardados da curiosidade, ou malícia alheias, por um passante policial, cuja função é zelar pela perfeita consecução de seus carinhos, com uma imparticipação e fidelidade dignas de todos os aplausos. É claro que os namorados não abusam. Mas nessa questão de carinhos de superfície eles se permitem um uso inumerável. Entregam-se em beijos que fariam a inveja de John Gilbert ao tempo da sua paixão por Greta Garbo. Dão-se abraços de não se saber mais quem é o outro. Fazem-se cafunés maravilhosos, esfregam-se os narizes, acarinham-se os rostos, enfim: tudo isso que faz a deliciosa cozinha dos que se amam e que vem sendo a mesma desde os tempos mais recuados no tempo.

Ninguém pode dizer que o Rio não seja uma cidade de namorados: ela o é. Seria difícil, aliás, compreender-se uma cidade tão pródiga em beleza, sem namorados. Mas são namorados, meu Deus, ou tão ousados ou tão tímidos que parecem uma contrafação da natureza humana diante da Natureza. Grande culpada disso foi, até certo tempo, a nossa polícia de costumes, que arrolava todas as carícias de namorados dentro de um mesmo código moral, chegando até ao abuso de prender gente casada que saía para namorar fora de casa. Não. Há carícias e carícias. Que mal existe em se beijarem os namorados em praça pública ou nos cantos de rua? Em que uma coisa dessas ofende a moral? Por que não se poderão eles abraçar ternamente, quando tiverem vontade? Pois parece incrível: outro dia um amigo meu contou que foi "apitado" várias vezes por um guarda do Jardim Botânico, por estar dando um "peguinha" na namorada. De fato: é justo, mais do que justo, que se moralizem os costumes. Nada mais certo. Mas perseguir os namorados, da mesma forma que arrancar as plantas dos parques, ou maltratar os animais, é indício de mau caráter. Que os namorados se beijem à vontade nesta linda Rio de Janeiro. Nada há de mal no beijo dos namorados, como no amor dos pássaros. Deixai-os nos seus parques, nas suas ruas escuras, nos seus portões de casa. Deixai-os namorar, Senhor Prefeito, Senhor Diretor do Jardim Botânico, deixai-os namorar, porque eles têm cada dia menos lugares onde ir esconder seus anseios. Deixai-os se beijarem à vontade, porque o que em seus beijos irrita os burgueses moralizantes é justamente essa liberdade, essa beleza, essa poesia, esse voo que há num beijo de amor. Tréguas aos namorados!

Fonte:
Vinicius de Morais. Prosas.

segunda-feira, 9 de julho de 2018

Silmar Bohrer (Lampejos Semanais) IX


Dorothy Jansson Moretti (Chá da Tarde) V


A brisa afasta a cortina,
e uma nesga de luar,
fugindo à fria neblina,
vem aos meus pés se abrigar.

Ao amor louco e funesto,
que se destrói na tortura,
prefiro o afeto modesto
que se refaz na ternura.

A onda, infrene, agitada,
abaixa a crista e desmaia,
e em vinheta rendilhada,
beija as areias da praia.

Atravessando o vitral,
a luz do sol se desvela,
pondo, em chispas de cristal,
seu brilho à humilde capela.

Duas sombras na vidraça,
e que desespero o meu,
saber que o vulto que a enlaça
é de outro… não sou eu!

Em bando sutil, as garças,
pontilhando o lamaçal,
são quais pérolas esparsas,
adornando o pantanal.

Esbocei desejos leves,
mas uma brisa outonal
trincou, em rajadas breves,
os meus sonhos de cristal.

Hora do Ângelus… Ao sino,
as garças voam, iguais,
como se o ofício divino
as atraísse aos rituais.

Nas cambiantes desmaiadas
que tingem o entardecer,
suponho sombras veladas,
prenunciando o envelhecer.

Nós dois, cativos, risonhos,
em nossa ilusão fagueira,
ninávamos nossos sonhos,
ao balanço da porteira.

Nos momentos ponderados,
dizer a palavra exata 
é servir pomos dourados,
sobre bandejas de prata.

O espetáculo termina,
e aos poucos, na escuridão,
do palhaço à bailarina
o circo despe a ilusão.

Ora eloquente, ora mudo,
teu olhar é uma charada:
promessa sutil de Tudo,
no fútil revés… do Nada.

Que mil vozes, no universo,
dominem a imensidade;
mas que fale, no meu verso,
somente a voz da verdade!

São Paulo, que no escaninho
de tantos feitos altivos,
guardes também o carinho
dos teus filhos adotivos!

Se acaso uma cordilheira
encobre os teus horizontes,
leva como companheira
a fé que remove os montes!

Sobe ao ar, como fumaça,
essa tristeza que eu trago,
assim, que você me abraça 
e me envolve em seu afago.

Transportando sem fadiga,
o seu minúsculo galho,
a pequena formiga
é um gigante do trabalho…

Fonte:
Dorothy Jansson Moretti. Chá da tarde: trovas. 
Itu/SP: Ottoni Editora, 2006.

Clarice Lispector (Conversas)


Um dia acordei às quatro da madrugada. Minutos depois tocou o telefone. Era um compositor de música popular que faz as letras também. Conversamos até seis horas da manhã.

Ele sabia tudo a meu respeito. Baiano é assim? E ouviu dizer coisas erradas também. Nem sequer corrigi. Ele estava numa festa e disse que a namorada dele – com quem meses depois se casou – sabendo a quem ele telefonava, só faltava puxar os cabelos de tanto ciúme. Na reunião tinha uma Ana e ele disse que ela era ferina comigo. Convidou-me para uma festa porque todos queriam me conhecer. Não fui.

Em compensação estive uma vez numa festa na casa de Pedro e Míriam Bloch. Foi poucos meses antes da morte de Guimarães Rosa. Guimarães Rosa e Pedro foram comigo para outra sala, na qual pouco depois entrou Ivo Pitangui. Guimarães Rosa disse que, quando não estava se sentindo bem em matéria de depressão, relia trechos do que já havia escrito. Espantaram-se quando eu disse que detesto reler minhas coisas. Ivo observou que o engraçado é que parece que eu não quero ser escritora. De algum modo é verdade, e não sei explicar por quê. Mas até ser chamada de escritora me encabula. Nessa mesma festa Sérgio Bernardes disse que há anos tinha uma conversa para ter comigo. Mas não tivemos. Pedi uma coca-cola, em vez. Ele estava falando com o nosso grupo coisas que eu não entendia e não sei repetir. Então eu disse: adoro ouvir coisas que dão a medida de minha ignorância. E tomei mais um gole de coca-cola. Não, não estou fazendo propaganda de coca-cola, e nem fui paga para isso.

Guimarães Rosa então me disse uma coisa que jamais esquecerei, tão feliz me senti na hora: disse que me lia, “não para a literatura, mas para a vida”. Citou de cor frases e frases minhas e eu não reconheci nenhuma.

Outra pessoa que me telefonava de madrugada explicara que passava pela minha rua, via a luz acesa, e então me telefonava. No terceiro ou quarto telefonema disse-me que eu não merecia mentiras: na verdade o fundo da casa dele dava para a frente da minha e ele me via todas as noites.

Como se tratava de oficial de marinha, perguntei-lhe se tinha binóculo. Ficou em silêncio. Depois me confessou que me via de binóculo. Não gostei. Nem ele se sentiu bem de ter dito a verdade, tanto que avisou que “perdera o jeito” e não me telefonaria mais. Aceitei. Fui então à cozinha esquentar um café. Depois sentei-me no meu canto de tomar café, e tomei-o com toda a solenidade: parecia-me que havia um almirante sentado à minha frente. Felizmente terminei esquecendo que alguém pode estar me observando de binóculo e continuo a viver com naturalidade. Como vocês veem isto não é coluna, é conversa apenas. Como vão vocês? Estão na carência ou na fartura?

Fonte:
Clarice Lispector. A Descoberta do Mundo (Cronicas).

João Batista Xavier Oliveira (Poemas Avulsos)


A MORTE DO POETA

Fenece o poeta na paz da poesia.
Os ares dos cantos, calados, sentidos,
acenam tristezas nos vagos ouvidos;
o sol perde o brilho no pranto do dia.

Um misto de dores e versos não lidos
acena sem cena à linha vazia-
num gesto de pautas à vã melodia-
um canto no canto dos temas queridos.

Às rimas no templo sagrado, converso
silêncio das flores de triste universo.
Poeta parece que ouve o lamento...

no alto da estrofe gravada na mente
cantiga do tempo que faz permanente
a bênção divina no lar, firmamento.

PRIMEIRO DE MAIO

Olhando o calendário fico pasmo:
Que maravilha de nação feliz!
...E ao ver as folgas com entusiasmo
lembro das malas: nossa! Nem desfiz!

E num enlevo a remedar orgasmo
vou planejando: e agora, meu país?
Em qual lugar eu vou curtir marasmo
longe da lida que nada condiz?

Conto nos dedos os dias faltantes.
Se é feriado na terça ou na quinta
falto na sexta ou segunda e bem antes

Que outro espertinho na frente desminta
fico doente de espirro por nada.
Vejo-me a postos: mais uma jornada!!

DEIXE-ME VIVER
(Poema contra o aborto)

Mamãe, eu quero viver;
pedi para retornar
e procurar evolver
no seio de um simples lar.

Não se culpe constrangida
por um ato intempestivo;
o mais importante é a vida;
eu, no seu útero vivo!

Sinta com delicadeza
no seu ventre o movimento
e agradeça à natureza
esculpir o seu rebento.

É uma dádiva divina
ter minha vida em você.
Não descarte na latrina
um ser que sente... que vê...

Imagine o meu futuro
a seu lado, vencedor,
com seu caminhar seguro
cumprindo a sina do amor!

Pense em seu corpo cansado
precisando de um abraço;
eu caminhando a seu lado
a proteger o seu passo.

Mamãe, alimente a aurora
em mim tão frágil, indefeso,
para quando for embora
não carregar nenhum peso!

MONÓLOGO DO BASTIDOR

Sou a ferida exposta acobertada
por mentes que dominam consciências;
cinismo onde plateia entusiasmada
entorpecida perde referências.

Caráter e vaidade sem decência
abarcam teoria distanciada
na prática sem ética... ciência...
sem brio que ao vazio leva ao nada.

O aqui e agora são mais importante; 
lá fora o vento sopra bem distante.
Eu sou o cerne que requer destreza,

porém pressinto tempos exigentes,
sentimentos puros, transparentes ,
num palco pelas artes da certeza!

O CAMINHO DA ROSA

Se cada um fizer a sua parte
não sobra parte para repartir;
não sobra aparte que preocupe a arte...
mundo destarte só resta sorrir.

Se cada um plantar uma roseira
a vila inteira será um jardim;
não sobra beira à espinhosa asneira...
dessa maneira é sorriso sem fim.

Se cada um olhar-se na verdade
fraternidade romperá vereda;
o pensamento terá mais espaço

e minha parte será rosa e há de
ser a verdade daquele que ceda
do seu caminho todo seu abraço!

Fonte: Poemas enviados pelo poeta

domingo, 8 de julho de 2018

José Feldman (Álbum de Trovas) 27


Olivaldo Júnior (Três Microcontos sobre o Destino)


O TREVO DA SORTE 

Ganhara aquele trevo da sorte do primeiro namorado. Hoje, mulher de quarenta e poucos anos, balzaquiana, tinha naquela relíquia um verdadeiro tesouro. Dava-lhe sorte. Que sorte! 

O trevo, na verdade, morava num velho e amarelado livro que ninguém mais lia, perdido na estante, entre um e outro retrato de um parente morto, com sua história inútil, opaca, vã. 

Mariana, esse era o nome da pobre, ainda esperava que o vento da boa sorte lhe trouxesse um amor. Nunca lhe trouxe nenhum! Não era culpa do trevo. Ele só estava no livro "errado". 

A VELHA VIOLA 

Juquinha não sabia o quanto, mas havia uma cara que não tocava mais nada. Aposentara a viola e deixara para trás seu dom de Paulinho da Viola, que faz samba sem olhar para trás. 

Nos tempos de mocidade, quanta menina beijara só por causa do pedaço de pinho, seu anjo no caminho das velhas serenatas! Sentia-se um verdadeiro menestrel, trovador, poeta! 

Assim, no enterro do Juquinha, não sabiam o que fazer com a velha viola. Enterrá-la junto com ele? Não, não era o caso!... Deixaram-na. E há quem diga que ele vem tocá-la à noite. 

O AMIGO PERDIDO 

Hoje olhei as fotos e os vídeos de um amigo, do amigo perdido. Não o vejo mais, nem sei por onde anda. Sei que ficou perdido nosso encontro perfeito, repleto de música e versos. 

Tínhamos tanto em comum, mas de nada valeu. Não sei se ele se lembra de mim, se ele se deixa esquecer do poetinha que ouvia seu pinho tocar. Hoje é o amigo perdido, sem mais. 

Ao fim da noite, entre as letras que tenho, nasceram histórias sobre a ventura, o destino, essa espécie de deus que determina o caminho que se deve tomar. Tristeza, amigo, adeus. 

Fonte: textos enviados pelo autor

Guimarães Passos (Poemas Avulsos) II


DEPOIS...

Tão profundamente triste 
fiquei depois daquele beijo 
que já não era desejo e sim hábito 
de todos os nossos encontros 

era verão e eu não sabia 
que certas coisas não tem fim 

passei noites em claro procurando entender 
o que enfim não se explica 
chamam vida e é assim

MEA CULPA

Não é tua alma o lírio imaculado,
Que à luz de uns olhos puros se levanta,
Pois não fulgura em teu olhar a santa
Chama, que brilha isenta do pecado.

Se o teu seio palpita apaixonado,
Se a voz do amor nos teus suspiros canta,
Não me ilude o queixume, que à garganta,
Quebras, para me ver mais desgraçado!

Eu bem sei quem tu és... Mas, que loucura
Arrasta-me a teus pés como um cativo!
Mostra-me o inferno a aberta sepultura:

E abraçado contigo, ó pecadora!
Eu desço-o tão feliz como se fora
Um justo ao claro céu subindo vivo.

NO EXÍLIO

Longe da terra pátria!... Os longos dias
Do exílio amargam, mas não há no mundo
Desgraçado tão grande que, no fundo,
Não encontre um prazer nas agonias.

Que o céu alheio aclara-me jucundo,
Se os teus olhos de mim já não desvias,
Se o calor do teu peito a cinzas frias
A saudade reduz em que me afundo!

Ouvir-te o coração apaixonado
Chegar-te aos lábios num prazer tamanho,
Compensa a dor ao mais desesperado.

Bendita a sorte que me uniu contigo:
Mostrou-me a Pátria um coração estranho,
Deste-me, estranha, um coração amigo!

VOLTAS

Mui formosa não vos acho,
Mui feira também não sois;
Dos dons estais entre os dois,
Nem por cima, nem por baixo.
Tendes, sim, muito despacho,
Mas não que as outras demais,
Porque sois todas iguais,

Dizer-vos que, só, mentis,
Seria injustiça tanta
Que, só mentira a garganta,
Mais que as mentiras que ouvis.
Também não sois mais feliz,
Nem mais infeliz que as mais,
Porque sois todas iguais,

Promessas não vos falecem,
Não vos falecem negaças,
Dão-vos perdão vossas graças,
Vossos pecados as crescem.
Se penas vos acontecem,
Mais que as outras não penais,
Porque sois todas iguais.

De amar-vos não me arrependo,
Bem que nunca amado houvera;
Nem vos quero mais sincera,
Tão fementida vos tendo;
Mal éreis, assim não sendo,
Pois não éreis como as mais,
Já que sois todas iguais.

VILANCETE

Sois como as demais mulheres,
Nem menos sois, nem sois mais,
Porque sois todas iguais.

XXIII

Não, nunca saibas a verdade inteira
De minha vida triste e aventurosa,
Porque mais vale uma ilusão fagueira
Que uma realidade dolorosa.

Pensa de mim aquilo que não queira
A mais negra alma sobre si; ditosa
Ou indiferente, ou de qualquer maneira,
No meu estado desgraçado goza.

Faze de mim um péssimo conceito,
Esquece que eu existo e que meu peito
Pelo teu peito pulsa apaixonado.

Antes me odeies, com dó profundo
Digas um'hora: porque veio ao mundo
Quem havia de ser tão desgraçado!

XLI

Sonho que vou contigo ao reino augusto,
À encantada região da eterna glória,
E ante as ardentes vibrações da história,
Trêmulo, os passos triunfantes susto.

Não sei que clarins de ouro de vitória
Estalam no ar, enchendo-nos de susto,
E eu próprio vejo sobre um sol meu busto,
Enquanto os deuses louvam-me a memória.

O teu amor me conduziu a tanto;
Chego à maior de todas as alturas,
Vencendo os mais intérminos caminhos.

Desperto - e os olhos enchem-se de pranto:
Vejo, em vez de venturas, desventuras,
Em vez de louros, vejo só espinhos.

Malba Tahan (O Sinal de Ramanita)

Há poucos anos, quando visitei Calcutá, tomei para guia, a fim de melhor conhecer as curiosidades religiosas da índia, um brâmane chamado Marichipa, que me fora indicado pelo gerente do Hotel Dakka.

Uma tarde, quando percorríamos o templo de Parvati, passou junto de nós, acompanhada de diversos turistas ingleses, uma mulher loura, elegantemente trajada, e que despertava a atenção de todos pelas linhas incomparáveis de sua formosura.

— Quem será essa encantadora estrangeira? — perguntei ao guia. — Dificilmente poderíamos encontrar, sob o céu da Ásia, criatura mais sedutora!

— É uma das hóspedes do Grande Hotel — explicou-me Marichipa. — Disseram-me que veio da América e que pretende chegar, numa excursão de automóvel, até Alahabad. É rica, muito destemida e percorre o mundo à procura de ídolos exóticos para uma coleção.

Ao meu espírito de muçulmano causou não pequena admiração aquela criatura maravilhosa que abandonava o conforto da civilização para vir caçar manipansos entre os adoradores do Ganges. Parecia-me impossível que se me deparasse outra vez na vida tão original colecionadora de ídolos.

— Por Allah! — exclamei, com entusiasmo. — Essa americana do Grande Hotel é a verdadeira perfeição.

Marichipa sorriu, exibindo os seus dentes amarelos.

— Verdadeira perfeição... — repetiu ele. — Só mesmo um cego ou um apaixonado deixará de notar que aquela mulher traz no rosto o sinal de Ramanita!

Fitei o guia hindu sem disfarçar o grande interesse que as suas palavras haviam despertado em mim. Já não era a primeira vez que me acontecia ouvir referir-se alguém ao sinal de Ramanita. Declarei-lhe, pois, que não hesitaria em gastar meia libra para ouvir uma explicação minuciosa a tal respeito.

O ouro torna eloquente o indivíduo mais tímido e acanhado. A meia libra prometida operou o milagre. O guia contou-me, numa linguagem obscura, cheia de realismos grosseiros uma interessante lenda que poderia ser intitulada “O Sinal de Ramanita”.

Vou tentar traduzi-la.

No país de Navayanta vivia uma jovem chamada Ramanita, que possuía as sete virtudes, os quinze atributos e era, além do mais, de boa casta e de origem nobre.

Os brâmanes disseram-lhe um dia: — Queres agradar ao incomparável Indra (1), deus do ar? Vem servir no templo. Poderás acompanhar pelas ruas as vacas sagradas e receber, nos dias de festas, as dádivas dos fiéis.

A formosa Ramanita não atendeu ao convite dos sacerdotes. Para servir no templo de Indra seria ela obrigada a renunciar ao amor do jovem  Deybek,  príncipe  do  Adjimir. E a menina, embora venerasse Shiva e temesse Indra, não se sentia com coragem para tão grande sacrifício. Na Índia é assim: a mulher apaixonada põe o seu amor acima dos próprios deuses!

— Verdadeira perfeição!... — repetia ele. — Só mesmo um cego ou um apaixonado deixará de notar que aquela mulher no rosto o sinal de Ramanita!

E os deuses hindus são poderosos; alguns há que possuem quatro e até oito braços!

Vivem no mundo — assim afirmam os adeptos de Indra — certos seres gigantescos e perversos chamados Rakshassas (2). E aconteceu que o pai de Ramanita caiu gravemente enfermo, ferido pela maldade sem limites de um desses demônios.

Os brâmanes procuraram novamente a jovem:

— Ó Ramanita! O teu velho pai sofre a influência dos espíritos maus! Queres salvá-lo? Já vimos um Deityas rondando tua casa com o rosto coberto com véu preto!

— Que devo fazer? — perguntou Ramanita.

— Bem sei que os Deityas são mensageiros da morte!

— Vem servir em nosso templo durante um ano — aconselharam os brâmanes. — Intercederemos junto a Indra por teu pai e, é certo, ele ficará, em consequência de nossas preces, são e salvo. Pelas quatro faces de Brama, ó Ramanita, salva teu pai!

As palavras dos sacerdotes calaram fundo no coração da jovem. O apelo feito — pelas faces do Grande Deus — não foi em vão e Ramanita resolveu servir ao templo durante um ano e assim o fazia somente para livrar seu pai das garras impiedosas dos Rakshassas.

Como esquecer, porém, durante tão largo período, aquele que era o seu único amor?

E uma noite, quando Ramanita, já presa no templo, fiel à sua palavra, lamentava o seu triste destino, viu surgir na sua frente a figura deslumbrante de Laidasa, que é uma das muitas ninfas, — denominadas apsaras — que habitam o céu de Indra.

— Por que choras. Ramanita? — perguntou, com voz carinhosa, Laidasa. — Aqui estou, por ordem de Indra, para auxiliar-te. Dize, pois, o que desejas. Tudo farei para servir-te.

— Tenho saudades de meu noivo — soluçou Ramanita. — E, além dessa saudade vive dentro de mim um ciúme torturante. Assalta-me o receio de que as mulheres, durante a minha ausência roubem o coração daquele que será meu esposo.

 — Que queres que eu faça? — perguntou a ninfa.

    — Bondosa apsara — acudiu a jovem apaixonada. — sei que és dotada, como todos os gênios que pertencem ao paraíso de Indra, de um poder extraordinário. Só poderei permanecer tranquila neste templo se for atendida no pedido que te vou fazer. Não quero que apareça no mundo, enquanto eu estiver afastada do meu noivo, mulher alguma que seja dotada de uma beleza impecável. Deixarás, bem visível, em todas as mulheres, por mais formosas que sejam, um traço qualquer de imperfeição.

— Assim farei, minha filha — respondeu a enviada celeste. — Conserva em paz o teu coração, pois enquanto estiveres presa ao serviço de Indra, não aparecerá no mundo mulher alguma que possa dizer como Ramanita: “A minha formosura é impecável!”

E tendo pronunciado tais palavras, Laidasa desapareceu.

Alguns meses depois soube Ramanita que o príncipe Deybek havia perecido nas garras de um tigre, durante uma caçada.

A infeliz serva do templo não resistiu a esse golpe da fatalidade.

E quando ela morreu, o seu corpo adorável, conduzido pelos sacerdotes, foi atirado ao Ganges.

Desaparecia com Ramanita, nas ondas do rio sagrado, a última mulher perfeita do mundo.

E sabe por quê?

Porque o deus Indra, fiel à sua promessa, continuou a imprimir em todas as mulheres, por mais formosas que pretendam ser, um traço qualquer de imperfeição. Uma tem os olhos excessivamente pequenos; outras apresentam as faces descoradas; uma terceira não sabe disfarçar o nariz defeituoso. Esta tem o queixo saliente; envergonha-se aquela da pele toda manchada. Queixa-se uma da boca demasiadamente grande; lamenta a outra a pequenez ridícula do colo. Se algumas são baixas demais, outras há exageradamente altas. Vesga é uma; parece-nos gagá a outra. Uma é formosa e não tem caráter: outra e linda, mas estúpida e pouco inteligente. Ali encontramos uma que é deslumbrante, mas tem o grave defeito de ser fria e inexpressiva: acolá surge-nos outra que é interessante, cheia de encantos, mas é pérfida e desonesta. Todas têm, enfim, no corpo, ou resvalando para o espírito, o infalível sinal de Ramanita.

Quando o guia terminava a sua curiosa narrativa, passou novamente pelo lugar em que nos achávamos a sedutora americana do Grande Hotel — a original aventureira que caçava ídolos pela índia.

Olhei atentamente para o rosto da linda excursionista e reparei que ela tinha, realmente, sobre a face direita, uma pequena mancha escura que descendo do nariz vinha formar uma curva sinuosa junto ao lábio.

Era, com certeza, o sinal de Ramanita, — o sinal terrível que toma mil formas, um milhão de aspectos, mas que, felizmente para as mulheres, os homens apaixonados nunca chegarão a ver.
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NOTAS
1- Indra — Um dos deuses da mitologia hindu. Vide nota 3 incluída no conto “Minha vida querida”.

2 - Rakshassas — São gênios que só se preocupam com o mal que podem fazer aos mortais. São tidos, por isso, como verdadeiros demônios.

Fonte: 
Malba Tahan. Minha vida querida.

Augusto Gil (Livro D'Ouro da Poesia Portuguesa vol.3) IV


NOIVA
A João da Silva

«Anda a dor dissimulada
Mas ela dará seu fruto.»
Crisfal

«Vai ser pedida. Casa qualquer dia.»
     (Trecho duma carta)

Tive noticias hoje a teu respeito:
«Vai ser pedida. Casa qualquer dia».
E o coração tranquilo no meu peito
– Continuou a bater como batia...

Surpreso duma tal serenidade,
Todo eu, intimamente, me sondava:
Pois nem ciúme? Nem sequer saudade?!
– E nem ciúmes, nem saudade achava...

Saudades, não; que o teu amor antigo
Guardam-no as cinzas (neste coração)
Como em Pompeia aqueles grãos de trigo
Que após centenas d'annos deram pão...

Saudades! Mas de quê?! Pois não sei eu
A lei antiga como o próprio mundo
De que o prazer mal chega, já morreu,
E só a dor nas almas cava fundo?

Causei-te longas horas d'amargura,
Não consegues voltar a ser feliz;
A chaga que te abri não terá cura,
E se curar – lá fica a cicatriz.

Á luz dum juramento que traíste
Tu hás de ver-me toda a vida pois.
Ergueste-o a Deus num dia amargo e triste
E Deus casou-nos esse dia, aos dois...

Ciúmes também não, por te venderes.
Desgraçadinha! Antes te houvesses dado;
Não descerias tanto entre as mulheres,
Seria mais humano o teu pecado.

Porém, embora a tua falta aponte,
P'ra mim és a que foste (ou que eu supus);
O sol desaparece no horizonte
– E a gente vê-o ainda a dar-nos luz...

Pode a desgraça erguer em frente a mim
Altas montanhas d'elevados cumes.
O sol do amor doura-las-a, e assim,
Vendo-o tão alto, não terei ciúmes.

Ciúmes! - Ele - é que há de te-los, quando,
Em claras noites de luar silente,
Ouvir vibrar alguma voz, cantando
Os versos que te fiz devotamente.

Versos para te ungirem os ouvidos
E os lábios d'anêmica e de santa,
Tão pobres, tão ingênuos, tão sentidos,
Que o povo humilde os acolheu e os canta.

Então, se te olhar bem, logo adivinha...
Logo sombriamente se convence
De que a tua alma se fundiu na minha
– E apenas o teu corpo lhe pertence.

DE PROFUNDIS CLAMAVI AD TE DOMINE
À Léo

Ao charco mais escuso e mais imundo
Chega uma hora no correr do dia
Em que um raio de sol, claro e jocundo,
O visita, o alegra, o alumia;

Pois eu, nesta desgraça em que me afundo,
Nesta contínua e intérmina agonia,
Nem tenho uma hora só dessa alegria
Que chega ás coisas ínfimas do mundo!...

Deus meu, acaso a roda do destino
A movimentam vossas mãos leais
Num aceno impulsivo e repentino,

Sem que na cega turbulência a domem?!
Senhor! Não é um seixo o que esmagais;
Olhai que é – “o coração dum homem”!...

QUANDO AS ANDORINHAS PARTIAM...
A Cassianno Neves

Boca talhada em milagrosas linhas,
A luz aumenta com o seu falar.

Esta manhã um bando de andorinhas
Ia-se embora, atravessava o mar.

Chegou-lhes ás alturas, pela aragem,
Um adeus suave que ela lhes dissera,

– E suspenderam todas a viagem,
Julgando que voltara a primavera...

A PARÁBOLA DO PÚCARO D'ÁGUA

Acreditaram os românticos que a arte residia principalmente na disformidade. Se através das próprias dores descessem às profundas realidades da vida, teriam observado que... o viver do povo encerra em si uma poesia sagrada. Senti-la e mostra-la não é tarefa de maquinista; para tal, não é necessário juntar-lhe efeitos teatrais.

... O que é preciso é ter olhos para ver na sombra, na pequenez e na humildade, é um coração que auxilie a vista nestes recessos do lar, nestas sombras de Rembrandt.
(MICHELET. “O Povo”)

A Manuel Penteado

Buscava em algum assunto adrede
A versos que inculcassem novidade,
Quando uma intensa e irreprimível sede
Me fez voltar do sonho á realidade.

E pedi água (já se vê) que veio
Consoante é d'uso cá por entre o povo
Num púcaro de barro ingênuo e feio,
Servindo-lhe de salva um prato covo.

Bebi o liquido dum trago só;
E dito o «Deus te pague» habitual,
Subi de novo a escada de Jacó
No heroico intuito de escalar o ideal...

Mas o idealismo é como a névoa ondeante
Que os rios erguem pela madrugada;
O olhar distingue-a, quando está distante,
E da que nos rodeia – não vê nada...

De que serve afinal tentar a gente
Reter, dentro das mãos, fumo de palha,
Se aqui, aos nossos olhos, no existente,
Há tanta coisa que os atraia e valha?...

A água vinda neste vaso frágil
Que um ignorado artista modelou
Num gesto – já mecanizado e ágil -
Á força d'imitar o que encontrou,

É um assunto cheio de beleza,
Cheio de claro e alto ensinamento.
Assim na branda fala portuguesa
O desse eu, como o tenho em pensamento!...

A água é como a esp'rança
Que a tudo se sujeita...
Onde quer que se deita
Lá fica humildemente acomodada,
Seja a concha da mão duma criança,
Ou a taça lendária da balada...

Tanto sacia
Num vaso tirreno dos da antiga Roma
(Que um só valia
O rútilo ouro d'avaro banqueiro)
Como a que se toma
Na argila porosa,
Alegre trabalho dum simples oleiro...

E é
Até
Bem mais saborosa
No barro suarento
Deixado à janela,
Que num opulento
Copo lavrado
Que seja pertença de rica baixela
E sonho gentil, cinzel fantasista
Dalgum grande artista
Dos raros d'agora, ou do tempo afastado...

Bichos humanos, feras em pé,
Sede bondosos como a água o é...

No luzente alcantil da magnitude,
Ou no áspero declive da pobreza,
Nunca cerreis o espirito á virtude,
Nunca fecheis os olhos á beleza.
Que todo o coração,
Desde o sábio de gênio ao cavador,
Seja o Cálix de paz e de perdão
Contendo a água límpida e lustral
Dum irmanado e perpetuo amor...

Água que limpe a mácula do mal
E mitigue a miséria, a ânsia, a mágoa
Desta cruenta e impiedosa guerra
Em que tantas criaturas se consomem.

      Nem só da água
      Que vem da terra
      Tem sede o homem...

Nasce uma fonte
Rumorejante
Na encosta dum monte;

E mal que do seio
Da terra brotou,
Logo o seu veio
Transparente
E diligente
Buscou e achou
Mais baixo lugar...

E sempre descendo,
E sempre a cantar,
Vai andando,
Galgando,
Vencendo,
(Ou tenta vencer...)
Folha, raiz, areia, o que tolher
A sua descida...

Ao brotar da dura frágua
– É uma lágrima d'água...

Mas esse humilde fiozinho,
Que um destino bom impele,
Encontra pelo caminho
Um outro que é como ele...

Reúnem-se, fundem-se os dois,
Prosseguem de companhia,
E fica dupla depois
A força que os leva e guia...

Junta-se aos dois um terceiro,
Outros confluindo vão,
E o regato é já ribeiro
E o ribeiro é rio então...

E nada agora o domina
Ao fiozinho da fonte.
Entre colina e colina,
Ou entre um monte e outro monte,

Caminha sem descansar,
Circula através do mundo
– Até á beira do mar
Onipotente e profundo...

Da altura em que estejais (ou vos pareça;
A vaidade é uma amante enganadora)
Que o mais alto de vós se humilhe e desça
Como se humilde e pobre sempre fora...

E que os demais desçam também de todo
O orgulho e mando sobre escravas gentes
Até ao vale, de lágrimas e lodo
Onde a miséria brada e range os dentes.

E como as águas que se vão juntando
E juntas, e cantando, vão descendo,
Reuni o choro derramado, quando
Atravessardes esse vale horrendo.

E o atoleiro que se havia feito
No val, dantesco, pútrido, sombrio,
Mudar-se-ha no irrigante leito
Dum fertilizador e claro rio;

E o rio, andando, andando, há de alargar
– Com bilhões de lágrimas vertidas -
Num infinito e luminoso mar
De novas e amplas e cantantes vidas!

Fonte:
Augusto Gil. Luar de Janeiro. 
Lisboa/Portugal: A Lanterna, 1909