quarta-feira, 7 de novembro de 2018

Vidal Idony Stockler (1924 - 2014)


Abraço, linda maneira
de transmitir o calor
da bela luz verdadeira
cheia de paz e de amor!

A cabana do sertão
tem na mesa um bom café,
batata, farinha e pão...
oração e muita fé!

A cabocla Maringá,
a mais bela do sertão,
deu ao rico Paraná
nome à cidade-canção.

A esperança não se vê,
é pura imaginação...
e eu me pergunto: - Por que
sobrevive essa ilusão?

Ante aplausos da menina,
na restinga do sertão,
rolam as águas da mina,
cantado suave canção.

A paciência domina
impulsos de afobação,
clarividência que ensina
as veredas da Razão.

A tão frequente saudade,
na caminhada da vida,
retrata felicidade
de outra época vivida...

A tapera que, outro dia,
só vivia festejada,
hoje curte nostalgia...
só cantar... da passarada.

Até o fogo se consome,
quando lhe falta alimento
e, morrendo, troca o nome:
a cinza será o rebento.

A velhice, sem temores,
fala dos dias passados,
quando sempre havia flores,
amigos... e namorados.

Canta o galo no terreiro,
corre o cavalo na raia;
na mata grita o ferreiro...
as águas lambem a praia.

Consulto meu travesseiro,
a forte insônia me diz:
- Sonha, sonha, companheiro,
querendo ser bem feliz!

Criança, mimo de gente,
remetendo rara luz,
pela sua alma fluente
em que a beleza seduz.

Detesto toda maldade,
não comungo com a dor.
Meu nome é felicidade,
empunho a taça do amor.

E canta água na cascata,
tropeiro segue o caminho,
no mar desliza a fragata,
as aves dormem no ninho.

Em suave visão seleta
de bom sonho encantador,
brilham luzes ao poeta,
distribuindo paz e amor!

E na festa da colheita,
com alegria encantada,
lavrador vê, na receita,
o fruto da terra amada.

E seja ou não coincidência,
luz de vela é como a fé:
Durante a sua vivência,
queima, queima e morre em pé.

Ilumine sua estrada
praticando sempre o bem,
e torne a vida encantada...
com anjos dizendo Amém!

Memórias... um lindo achado,
para que eu possa externar
as trovas do meu agrado,
frutos do alegre pensar.

Na caminhada da vida
escuros há, e claridade...
Vencer espaços da lida
encerra felicidade.

Na grandeza do universo,
feitura do Criador,
verte a leveza do verso,
nasce a beleza da flor.

Na manjedoura, só paz...
nasce o Menino Jesus!
Quanta alegria Ele traz,
quanta fé, perdão e luz...

Na paz de Deus vivo, sim,
numa perfeita harmonia,
caminhando sempre assim,
sustentado na alegria.

Na leveza do meu sonho,
imensa felicidade!
Acordado, eu me componho...
só faltou continuidade.

No caminho, a ribanceira
impõe drástica parada;
fala bem perto a palmeira:
- Por ali tem outra estrada...

No jardim a branca palma,
de perfume tão profundo...
Beija-flor, com toda calma,
inspira... Sou rei do mundo!

Nossa terra, nossa gente,
sob o céu de puro anil,
num espaço continente,
somos o lindo Brasil!

O rico e belo pinheiro
das terras do Guairacá,
com seu porte vanguardeiro:
símbolo do Paraná!

O São Francisco de Assis
seguiu seus próprios caminhos,
teve fé e foi feliz...
amigo dos passarinhos.

O sapo, quieto, feioso,
não aparenta valor...
mas há o lado valoroso:
Mata os insetos da flor!

O tempo constante passa,
leva passagens queridas;
é fogueira com fumaça,
a corroer nossas vidas...

Ouça o murmurar das águas
e o cantar da suave brisa,
jogue fora suas mágoas
e tenha a paz por divisa.

Para uns a noite é sonho,
para outros sonho é dia.
Com sorriso, até suponho:
- Tudo é fina melodia.

Poesia é forma de escrita,
mas elaborada em verso:
Vem da inspiração do artista
e brilha em todo o Universo!

Procurei sempre o saber,
em uma escala crescente...
e a vida ensinou-me a ver
o poder de Deus presente.

Realce não pude ser
nas áreas do trovador,
mesmo assim, passo a fazer
a trova.... com muito amor!

Saudade - recordação
de uma luz que não morreu,
que mora no coração,
onde sempre ali viveu.

Seja estrela sorridente,
na maneira de viver,
e com força transcendente
faça o bem acontecer!

Sinta a ternura da paz,
a beleza que produz...
Na harmonia que se faz,
todo escuro vira luz!

Turismo, doce cultura,
irmana-se à educação,
rico evento que assegura
estreitamento e união.

Viaja, viaja, caminhando,
viandante maltrapilho,
no sol ou chuva... sonhando
ter um dia com mais brilho.

Voltar a tempo passado,
impossível... só vontade.
O que tudo foi marcado,
vislumbra-se na saudade...

Fonte:
União Brasileira dos Trovadores Seção de Porto Alegre-RS. Trovas de Vanda Fagundes Queiroz e Vidal Idony Stockler. Coleção Terra e Céu LXV. Cachoeirinha/RS: Texto Certo, 2016.

Carlos Drummond de Andrade (Caso de Secretária)


Foi trombudo para o escritório. Era dia de seu aniversário, e a esposa nem sequer o abraçara, não fizera a mínima alusão à data. As crianças também tinham se esquecido. Então era assim que a família o tratava? Ele que vivia para os seus, que se arrebentava de trabalhar, não merecer um beijo, uma palavra ao menos!

Mas, no escritório, havia flores à sua espera, sobre a mesa. Havia o sorriso e o abraço da secretária, que poderia muito bem ter ignorado o aniversário, e entretanto o lembrara. Era mais do que uma auxiliar, atenta, experimentada e eficiente, pé de boi da firma, como até então a considerara; era um coração amigo.

Passada a surpresa, sentiu-se ainda mais borocoxô: o carinho da secretária não curava, abria mais a ferida. Pois então uma estranha se lembrava dele com tais requintes, e a mulher e os filhos, nada? Baixou a cabeça, ficou rodando o lápis entre os dedos, sem gosto para viver.

Durante o dia, a secretária redobrou de atenções. Parecia querer consolá-lo, como se medisse toda a sua solidão moral, o seu abandono. Sorria, tinha palavras amáveis, e o ditado da correspondência foi entremeado de suaves brincadeiras da parte dela.

— O senhor vai comemorar em casa ou numa boate?

Engasgado, confessou-lhe que em parte nenhuma. Fazer anos é uma droga, ninguém gostava dele neste mundo, iria rodar por aí à noite, solitário, como o lobo da estepe.

— Se o senhor quisesse, podíamos jantar juntos — insinuou ela, discretamente.

E não é que podiam mesmo? Em vez de passar uma noite besta, ressentida — o pessoal lá em casa pouco está me ligando —, teria horas amenas, em companhia de uma mulher que — reparava agora — era bem bonita. Daí por diante o trabalho foi nervoso, nunca mais que se fechava o escritório.

Teve vontade de mandar todos embora, para que todos comemorassem o seu aniversário, ele principalmente. Conteve-se, no prazer ansioso da espera.

— Aonde você prefere ir? — perguntou, ao saírem.

— Se não se importa, vamos passar primeiro em meu apartamento. Preciso
trocar de roupa.

Ótimo, pensou ele; faz-se a inspeção prévia do terreno e, quem sabe?

— Mas antes quero um drinque, para animar — ela retificou.

Foram ao drinque, ele recuperou não só a alegria de viver e de fazer anos como começou a fazê-los pelo avesso, remoçando. Saiu bem mais jovem do bar, e pegou-lhe do braço.

No apartamento, ela apontou-lhe o banheiro e disse-lhe que o usasse sem cerimônia. Dentro de quinze minutos ele poderia entrar no quarto, não precisava bater — e o sorriso dela, dizendo isto, era uma promessa de felicidade.

Ele nem percebeu ao certo se estava se arrumando ou se desarrumando, de tal modo os quinze minutos se atropelaram, querendo virar quinze segundos, no calor escaldante do banheiro e da situação. Liberto da roupa incômoda, abriu a porta do quarto. Lá dentro, sua mulher e seus filhos, em coro com a secretária, esperavam-no atacando “Parabéns pra você”.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas. 
São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

segunda-feira, 5 de novembro de 2018

Odenir Follador (Relatos de uma Avó)


Certo dia, eu e meu marido estávamos sentados na sala, ele lendo as notícias do jornal, e eu o meu livro, que interrompia de tempo em tempo, para tricotear um conjuntinho de lã para minha pequena neta Fabíola. Estavam para chegar ainda àquela tarde. Parei por uns instantes com meus afazeres, divagando meus pensamentos, lembranças e saudades que de súbito se fizeram presentes, quando aqui estiveram no ano passado.

Como estará a minha neta? Agora com quatro anos, mais alta e mais bonita, com certeza. Tenho saudades do seu sorriso e de suas correrias pela casa. Sempre irrequieta e curiosa, e quando parava um pouco, corria a se sentar no meu colo, me fazendo muitas perguntas: se eu era parecida com sua mãe quando mais nova, se ela ficaria com os cabelos brancos e com muitas rugas como eu... Enfim, eram tantas as perguntas, mas que eu adorava responder e ainda enfeitava um pouco, alongando minhas respostas em pequenas histórias. E a embalando com minhas antigas cantigas de ninar, que ela gostava, e aos poucos começa a adormecer, abrindo um pouquinho um dos olhos, para ver se era eu que continuava ali, e com um doce sorriso adormecia.

Voltei a ler mais um pouco e a tricotear a seu conjuntinho... Já estava quase pronto, talvez ainda terminasse antes da sua chegada. E novamente comecei a pensar... Parece ter sido ontem quando eu fazia estas mesmas coisas aos meus filhos, e hoje estou aqui, repetindo tudo novamente com a minha netinha. Então eu percebo o quanto os nossos netos são importantes para os avós. Eles possuem um pouquinho de nossos filhos, mas também de nós, seus avós, é claro, são sangue do nosso sangue. Por vezes, me vejo no jeitinho deles sorrirem, no olhar, ou até mesmo no modo de falarem.

Não estamos sempre com os netos, não somos nós que passamos as noites ao seu lado e que os alimentamos; só temos estes únicos momentos, para abraçá-los, de pegá-los no colo para uns afagos ou para lhes contar algumas histórias e também, para fazer aquelas guloseimas tão esperada por eles... Isso representa tão pouco; mas é o suficiente para nos deixar feliz e realizado por tê-los tão juntinho de nós, mesmo que seja por um pequeno espaço de tempo.

Fonte: Texto enviado pelo autor

Martins Fontes (Poemas Recolhidos)


OLHOS, ESPELHO DA ALMA

Adeus. O teu amor me torturava:
era uma rosa que, se às vezes, tinha
no perfume, a candura que eu sonhava,
também espinhos infernais continha.

Contra a própria vontade é que eu te amava,
sem a esperança de que fosses minha.
Por teu orgulho, não serás escrava.
Por meu orgulho, não serás rainha.

Adeus. Beijo-te a mão, tendo a certeza
de que procuras, disfarçando o pranto,
não demonstrar a mínima tristeza.

E ambos sorrindo, e pálidos de espanto,
em nossos olhos vemos, com surpresa,
que é por capricho que sofremos tanto!

A VERDADE É MAIS ESTRANHA QUE A FICÇÃO

Beijei-te. Acabo de sonhar contigo.
E, ainda meio dormindo e mal desperto,
para minha saudade e meu castigo,
sinto-me longe, quando estavas perto.

Sonho! Mais que a verdade que investigo,
e em ti somente tenho descoberto,
tu, que és de fato o verdadeiro amigo,
menos enganas, sendo embora incerto.

Se a vida ilude, distinguir quem há de,
na aparência de tudo quanto veja,
se o sonho é mais falaz do que a verdade?

A boca da mulher que se deseja
da-nos sempre a ilusão, na realidade,
de que apenas sonhando é que se beija.

SE EU FOSSE DEUS

Se eu fosse Deus seria a vida um sonho,
Nossa existência um júbilo perene!
Nenhum pesar que o espírito envenene
Empanaria a luz do céu risonho!

Não haveria mais: o adeus solene,
A vingança, a maldade, o ódio medonho,
E o maior mal, que a todos anteponho,
A sede, a fome da cobiça infrene!

Eu exterminaria a enfermidade,
Todas as dores da senilidade,
E os pecados mortais seriam dez...

A criação inteira alteraria,
Porém, se eu fosse Deus, te deixaria
Exatamente a mesma que tu és!

EU JÁ TE AMAVA

Antes de conhecer-te, eu já te amava.
Porque sempre te amei a vida inteira:
Eras a irmã, a noiva, a companheira,
A alma gêmea da minha que eu sonhava.

Com o coração, à noite, ardendo em lava
Em meus versos vivias, de maneira
Que te contemplo a imagem verdadeira
E acho a mesma que outrora contemplava.

Amo-te. Sabes que me tens cativo.
Retribuis a afeição que em mim fulgura,
Transfigurada nos anseios da Arte.

Mas, se te quero assim, por que motivo
Tardaste tanto em vir, que hoje é loucura,
Mais que loucura, um crime desejar-te?

OTELO

Quem minha angústia suportar, prefira
a morte, redentora, à desventura
de não poder, nas vascas da loucura,
distinguir a verdade da mentira.

Infrene dúvida, implacável ira,
esta que me alucina e me tortura!
— Ter ciúmes da luz, formosa e pura,
do chão, da sombra e do ar que se respira!

Invejo a veste que te esconde! a espuma
que, beijando teu corpo, linha a linha,
toda do teu aroma se perfuma!

Amo! E o delírio desta dor mesquinha,
faz que eu deseje ser tu mesma, em suma,
para ter a certeza de que és minha!

INCONTENTADO

Quando em teus braços, meu amor, te beijo,
se me torno, de súbito, tristonho,
é porque às vezes, com temor, prevejo
que esta alegria pode ser um sonho.

Olho os meus olhos nos teus olhos... Ponho,
trêmulo, as mãos nas tuas mãos... E vejo
que és tu mesma, que és tu! E ainda suponho
Ser enganado pelo meu desejo.

Quanto mais, desvairado de ansiedade,
do teu corpo, meu corpo se avizinha,
mais de ti, junto a ti, sinto saudade...

- E o meu suplício atroz não se adivinha,
quando, beijando-te, o pavor me invade
de que em meus braços tu não sejas minha!

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. Os Mais Belos Sonetos que o Amor Inspirou. 1. ed. Rio de Janeiro, 1963.

Martins Fontes (1884 - 1937)


José Martins Fontes nasceu em Santos, 23 de junho de 1884 e faleceu na mesma cidade em 25 de junho de 1937. É considerado o melhor poeta de sua geração na lusofonia, e um dos dez melhores na língua portuguesa; os outros nove são Camões, Bocage, António Nobre, Guerra Junqueiro, Fernando Pessoa, Castro Alves, Olavo Bilac, Raimundo Correia e Alberto de Oliveira (o brasileiro).

Martins Fontes, o "Zezinho Fontes", nasceu na casa 4 da praça José Bonifácio, filho de Isabel Martins Fontes e do Dr. Silvério Martins Fontes. Frequentou os principais colégios de seu tempo. Em sua vida de estudante em Santos, teve como professor Tarquínio da Silva, ao qual prestou homenagem posteriormente. Mais tarde vai estudar no Rio de Janeiro.

Aos oito anos de idade, Martins Fontes publicou seus primeiros versos num jornalzinho denominado "A Metralha", dando os primeiros sinais do grande poeta que viria a ser durante sua vida, do qual foram publicados 9 números aos domingos e cujo cabeçalho em três cores era feito por seu avô, o coronel Francisco Martins dos Santos. A 1° de maio de 1892, estreia recitando um hino a Castro Alves. Com dezesseis anos, ele lê uma ode de sua autoria na inauguração do monumento comemorativo ao quarto centenário do Descobrimento do Brasil, levantado próximo à biquinha em São Vicente.

Em 1908, defendeu tese de doutorado na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, tornando-se médico sanitarista, tendo convivido com poetas como Olavo Bilac, Coelho Neto, Emílio de Meneses e outros. Depois de formado foi médico da Comissão das Obras do Alto Acre, interno da Santa Casa do Rio de Janeiro, auxiliar de Oswaldo Cruz na profilaxia urbana, médico da Santa Casa de Misericórdia de Santos, médico da Beneficência Portuguesa de Santos, inspetor sanitário em Santos e Diretor do Serviço Sanitário.

Também foi médico da Sociedade Humanitária dos Empregados no Comércio, da Companhia Segurança Industrial, da Companhia Brasil, da Repartição de Saneamento e da Casa de Saúde de Santos.

Durante a epidemia de gripe de 1918 tornou-se um dos beneméritos da cidade, desdobrando-se para socorrer os bairros do Macuco e Campo Grande e estendendo sua ação para a localidade de Iguape. Como médico, notabilizou-se como conferencista e foi tisiologista da Santa Casa de Misericórdia de Santos e destacado humanista, lutou junto com Oswaldo Cruz em defesa sanitária da cidade de Santos. Em seu consultório particular tratava de pessoas sem poder aquisitivo, não cobrando as consultas.

Fundou com Olavo Bilac uma agência publicitária para serviços de propaganda dos produtos brasileiros na Europa e em outros países. Em 1924 tornou-se correspondente da Academia das Ciências de Lisboa. Quando Júlio Prestes, governador do Estado de São Paulo e candidato à presidência da República, partiu em viagem para percorrer os países da Europa e EUA, Martins Fontes foi convidado para acompanhá-lo como médico da caravana. Devido ao seu trabalho como conferencista conheceu o Brasil de norte a sul, e ainda a Argentina, o Uruguai, os Estados Unidos, a França, a Inglaterra, a Espanha, a Itália e Portugal.

Colaborou literariamente com os jornais A Gazeta e o Diário Popular em São Paulo, e para o Diário de Santos e o Cidade de Santos, além de inúmeros periódicos do Rio de Janeiro e outras cidades.

Foi titular da Academia das Ciências de Lisboa e, ao longo de sua vida, recebeu os títulos de comendador da Ordem de São Tiago da Espada, Cavaleiro da Espanha, Par da Inglaterra entre outras distinções. É patrono da cadeira n.° 26 da Academia Paulista de Letras.

Morreu na cidade natal e está ali sepultado no Cemitério de Paquetá.

Sua obra literária é bastante volumosa, chegando atualmente a cinquenta e nove títulos publicados, em poesia e prosa.

Algumas publicações:
Verão. Santos, 1917.
A Dança. Santos, 1919.
O Mar. São Paulo,, 1922.
As Cidades Eternas. Santos, 1923.
O Colar Partido. Santos, 1927.
Poesias. Santos, 1928.
O Mar, A Terra e o Céu. Santos, 1929.
Canções do Meu Vergel. São Paulo, “Revista dos Tribunais”, Fevereiro de 1937.

Fonte:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Martins_Fontes

Vinicius de Moraes (O Menino de Ilha)


Às vezes, no calor mais forte, eu pulava de noite a janela com pés de gato e ia deitar-me junto ao mar. Acomodava-me na areia como uma cama fofa e abria as pernas aos alíseos e ao luar: e em breve as frescas mãos da maré cheia vinham coçar meus pés com seus dedos de água. 

Era indizivelmente bom. Com um simples olhar podia vigiar a casa, cuja janela deixava apenas encostada, mas por mero escrúpulo. Ninguém nos viria nunca fazer mal. Éramos gente querida na ilha, e a afeição daquela comunidade pobre manifestava-se constantemente em peixe fresco, cestas de caju, sacos de manga-espada. E em breve perdia-me naquela doce confusão de ruídos... o sussurro da maré montante, uma folha seca de amendoeira arrastada pelo vento, o gorgulho de um peixe saltando, a clarineta de meu amigo Augusto, tuberculoso e insone, solando valsas ofegantes na distância. A aragem entrava-me pelos calções, inflava-me a camisa sobre o peito, fazia-me festas nas axilas, eu deixava a areia correr de entre meus dedos sem saber ainda que aquilo era uma forma de cortar o tempo. Mas o tempo ainda não existia para mim, ou só existia nisso que era sempre vivo, nunca morto ou inútil. 

Quando não havia luar era mais lindo e misterioso ainda. Porque, com a continuidade da mirada, o céu noturno ia desvendando pouco a pouco todas as suas estrelas, até as mais recônditas, e a negra abóbada acabava por formigar de luzes, como se todos os pirilampos do mundo estivessem luzindo na mais alta esfera. Depois acontecia que o céu se aproximava e eu chegava a distinguir o contorno das galáxias, e estrelas cadentes precipitavam-se como loucas em direção a mim com as cabeleiras soltas e acabavam por se apagar no enorme silêncio do Infinito. E era uma tal multidão de astros a tremeluzir que, juro, às vezes tinha a impressão de ouvir o burburinho infantil de suas vozes. E logo voltava o mar com o seu marulhar ilhéu, e um peixe pulava perto, e um cão latia, e uma folha seca de amendoeira era arrastada pelo vento, e se ouvia a tosse de Augusto longe, longe. Eu olhava a casa, não havia ninguém, meus pais dormiam, minhas irmãs dormiam, meu irmão pequeno dormia mais que todos. Era indizivelmente bom. 

Havia ocasiões em que adormecia sem dormir, numa semiconsciência dos carinhos do vento e da água no meu rosto e nos meus pés. É que vinha-me do Infinito uma tão grande paz e um tal sentimento de poesia que eu me entregava não a um sono, que não há sono diante do Infinito, mas a um lacrimoso abandono que acabava por raptar-me de mim mesmo. E eu ia, coisa volátil, ao sabor dos ventos que me levavam para aquele mar de estrelas, sem forma e corpo e ouvindo o breve cochicho das ondas que vinham desaguar nas minhas pernas. 

Mas - como dizê-lo? - era sempre nesses momentos de perigosa inércia, de mística entrega, que a aurora vinha em meu auxílio. Pois a verdade é que, de súbito, eu sentia a sua mão fria pousar sobre minha testa e despertava do meu êxtase. Abria os olhos e lá estava ela sobre o mar pacificado, com seus grandes olhos brancos, suas asas sem ruído e seus seios cor-de-rosa, a mirar-me com um sorriso pálido que ia pouco a pouco desmanchando a noite em cinzas. E eu me levantava, sacudia a areia do meu corpo, dava um beijo de bom-dia na face que ela me entregava, pulava a janela de volta, atravessava a casa com pés de gato e ia dormir direito em minha cama, com um gosto de frio em minha boca.

Fonte:

domingo, 4 de novembro de 2018

Pierre de Ronsard (Poemas Escolhidos) I


SONETO XXIX

As cidades são vis, os burgos são odiosos,
padeço quando vejo o mundo indiferente;
passeio pela mata antiga, longamente,
vivendo a grande paz dos rumos silenciosos.

Não encontro no bosque animais tão furiosos,
nem pedra, vegetal ou rio transparente,
que não sofram comigo a minha dor freqüente,
tão cheia de paixão e anseios cobiçosos.

Um pensamento emerge de outro, e me acompanham
como prantos de amor que os meus sentidos banham,
a rolar em meu ser em forma de uma fonte.

Se acaso alguém me encontra em meio da folhagem,
fitando a minha barba e o horror de minha fronte,
julga ter encontrado algum monstro selvagem.

(Tradução Fernando Torquato Oliveira)

SONETO LXVI

Céu, ar e ventos, píncaros dispersos,
colinas e florestas verdejantes,
rios sinuosos, fontes borbulhantes,
campos ceifados, bosques tão diversos,

semiabertos covis, antros imersos,
pastagens, flores, ervas rastejantes,
vales longínquos, praias coruscantes,
e vós, rochedos, que guardais meus versos,

desde que partirei, mas sem dizer
adeus ao seu olhar, para esconder
esta emoção que nunca terá fim;

eu vos suplico, céu, ventos e montes,
pastagens e florestas, rios, fontes,
antros, flores: - dizei-lhe adeus por mim!

(Tradução Fernando Torquato Oliveira)

MADRIGAL
(do livro Sonetos para Helena)

Se amar, minha Senhora, é, de noite e de dia,
sonhar, querer, pensar o meio de agradar,
esquecer tudo mais e nada mais tentar
senão no amor de quem tanto assim me angustia;

se amar é perseguir fugitiva alegria
e perder-me a mim mesmo e sozinho ficar;
padecer sem consolo, e ter medo, e calar,
soluçar, implorar, alvo de zombaria;

se amar é existir, não em mim; mas só nela,
esconder o pesar, que em risos se rebela,
sentir dentro do peito a luta desigual,

frio e calor, febre de amor que me avassala,
temendo confessar de onde vem esse mal,
se isso tudo é amor, com fúria se revela.

Amo-a e sei muito bem que o que sofro é fatal.
O coração o diz, mas a boca se cala.

(Tradução de  Mello Nóbrega)
obs.: Forma curiosa de soneto medieval, com estrambote, versos adicionais aos 14 versos do soneto, como acabou se fixando, na forma chamada petrarqueana.

“TOME ESTA ROSA”

Tome esta rosa, flor como você,
a rosa que supera  as outras rosas,
a flor que brilha mais que as mais viçosas,
cujo perfume encerra um não sei quê.

Tome esta rosa e ao próprio seio dê
meu coração, repleto de amorosas
intenções, em que as chagas dolorosas
não mataram a crença de quem crê.

De mim difere a rosa, todavia:
nasce e morre uma rosa num só dia,
mil dias causticaram meu amor,

que vive sem repouso e amargurado.
Prouvesse a Deus a tal amor ter dado
um só dia de vida, como à flor!

(Tradução Francisco Pimentel)

UM SONETO PARA HELENA

Deus Amor, que no mundo és um rei de grandeza,
vê tua glória e a minha em seus jardins passar;
vê seu límpido olhar que é minha estrela acesa
ou é lâmpada em luz que ilumina um altar.

Vê seu corpo - retrato e exemplo da beleza,
aurora na manhã mais divina a raiar;
vê que doma o destino e excede a natureza
por sua alma, em que Deus se pode contemplar.

Vê como erra perdida em sonhos, pensativa,
como te vence, Amor, e te aprisiona em flores;
vê como a relva estende a seus pés um mantéu.

Vê dos olhos brotar-lhe a primavera viva;
vê como em profusão suas chamas de amores
embelezam a terra e enternecem o céu.

(Tradução Murillo Araujo)

SONETO XXXII

Eu amo a flor de Março,(1) eu amo a bela rosa;
esta é sagrada à Deusa antiga,(2) e tem-lhe a fama;
aquela tem por nome o nome de uma dama
que torna a minha vida incerta e tormentosa.

A três aves eu amo: a que a pluma formosa banha
em chuvas de Maio e pelo azul (3) se inflama;
a que vive sozinha (4) e seus males proclama;
e, por fim, a que ao filho (5) eleva a voz radiosa.

Eu amo esse pinheiro (6) onde Vênus atou
a minha liberdade, ao tempo em que tornou
meu coração fiel a uma doce pessoa.

E amo o galho do arbusto (7) a Febo devotado,
onde a dama que adoro, em um gesto encantado,
os cabelos prendeu - e fez-me uma coroa.

(Tradução Fernando Torquato Oliveira)

NOTAS:
(1) A violeta, que aparecia em Março, mês cujo nome lembra o de Maria - Mars/Marie.
(2) Vênus.  
(3) Cotovia.  
(4) Rola.             
(5) Aedo foi transformado em rouxinol porque matou, por descido o próprio filho.       
(6) Discreta indicação ao nome de sua amada- Marie Dupin.
(7) Loureiro.

Fonte:
J G de Araujo Jorge. Os Mais Belos Sonetos Que O Amor Inspirou: Poesia Universal Européia e Americana. vol. III. 1a edição, 1966.

sábado, 3 de novembro de 2018

Olivaldo Júnior (O Caçador de Passarinhos)

Para Higor

Liberta, que serás também.

Era uma vez um homem que gostava de caçar. Não caçava borboletas, nem caçava encrenca por aí. Era uma vez um homem que gostava mesmo era de caçar passarinhos.

Assim, dia a dia, ele deixava arapucas pelo caminho, que era sempre o mesmo caminho de sempre, sem qualquer, sem nenhuma novidade.

Porém, o que esse homem não sabia era que, para caçar qualquer pardal, qualquer canário, qualquer tipo de passarinho, era preciso ter primeiro uma gaiola, algum lugar de onde esse pássaro nunca mais pudesse sair. E o homem, coitado, não tinha nenhuma gaiola.

Foi que, um dia, ele achou por bem fazer uma gaiola. Não tinha muita, ou quase nenhuma experiência com esse tipo de trabalho, então, o que saísse de suas mãos de poeta e de funcionário público municipal que se julga menor, já seria um grande (e)feito para ele.

Gaiola pronta, tratou de espalhar suas arapucas novamente. O mar parecia estar para peixe, mesmo que a intenção fosse pegar pássaros.

Não é que, como quem não quer nada, quase à noitinha, um passarinho muito lindo entrou na arapuca do homem, que, se aproveitando da distração momentânea do pardal, tratou de pegá-lo logo e trancafiá-lo em sua nova gaiola?...

O homem, porém, não era um caçador de passarinhos de verdade. Estava mais para um ornitólogo do que para um caçador. Mas, como havia adorado aquele pardalzinho que pegara, quis que ele ficasse para sempre em sua nova casa.

O pardal, por sua vez, já tinha seu ninho à vista, e o homem até sabia disso. Mas, como era o seu pardal de estimação, não queria libertá-lo.

Assim, desde o momento em que o pegou, ficou vigiando para ver se ele não fugia, não deixava a gaiola. E foi ficando cada vez mais infeliz.

Um dia, por um cochilo do homem, o pardal saiu das grades que o aprisionavam. Indignado com seu descuido, o homem se culpara pelo acontecido, sem ter sequer se dado conta de que a porta da gaiola nunca, jamais tinha existido.

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Texto enviado pelo autor

Irmãos Grimm (Os Seis Criados)


Em tempos muito remotos, existiu uma velha rainha, que era feiticeira e a filha dela era a criatura mais bela do mundo.

A velha rainha só se preocupava em atrair os homens para prejudicá-los. Todo pretendente que aparecia, ela informava-o de que, se quisesse casar com a filha, devia antes decifrar uma adivinhação, se não o conseguisse, teria de morrer.

Muitos jovens, seduzidos pela beleza deslumbrante da princesa, arriscavam-se, mas nenhum conseguia acertar a adivinhação imposta. Então, sem a menor piedade, fazia-os ajoelhar e, no mesmo instante, mandava decepar-lhes a cabeça.

Um belo príncipe, ouvindo falar na beleza radiosa da princesa, disse ao rei seu pai:

- Deixai-me partir, meu pai; quero obter a mão dessa princesa.

- Jamais! - respondeu o rei - se lá fores irás ao encontro da morte.

Não se conformando com isso, o moço adoeceu gravemente, ficando entre a vida e a morte durante sete anos, sem que médico algum pudesse curá-lo. Vendo que não tinha mais esperanças, o pai disse-lhe com profunda tristeza:

- Podes ir tentar a sorte. Não encontrando o que te possa curar, e se tens mesmo que morrer, faço-te a vontade.

Ouvindo essas palavras, o moço levantou-se completamente bom e, alguns dias depois, pôs-se alegremente a caminho.

Sucedeu-lhe ter de atravessar a cavalo uma grande planície e, de longe, avistou enorme pilha de feno. Aproximando-se, observou que nada mais era do que a barriga de um homem deitado, a qual, à distância, parecia um montinho.

O gordão, quando viu o cavaleiro, levantou-se e disse:

- Se tendes necessidade de um criado, tomai-me ao vosso serviço.

- Que vou fazer com um homem tão desajeitado? - disse o príncipe.

- Oh, isto não quer dizer nada, - disse o gordão - se me espicho todo, sou três mil vezes mais gordo ainda.

- Se é assim, talvez me possas ser útil. Vem comigo! - disse o príncipe.

O gordão acompanhou-o e não demorou muito encontraram um indivíduo deitado no chão, com o ouvido encostado na relva.

- Que estás fazendo aí? - perguntou-lhe o príncipe.

O homem respondeu:

- Escuto.

- E que é que escutas tão atentamente?

- Estou justamente escutando o que vai pelo mundo, porque nada escapa ao meu ouvido. Chego a ouvir até a erva crescer.

Um tanto admirado, o príncipe perguntou-lhe:

- Dize-me, então: o que ouves na corte daquela velha rainha que tem uma filha maravilhosa?

O orelhudo respondeu:

- Ouço o sibilar da espada cortando a cabeça de um infeliz pretendente.

O príncipe, então, disse:

- Tu poderás ser-me útil, vem daí comigo.

E os três continuaram juntos o caminho. Pouco mais além, viram no chão dois pés e um bocado de pernas e não viram o resto. Depois de andar bastante, viram um tronco e finalmente a cabeça.

- Alô! - disse o príncipe - como és comprido!

- Isso não é nada, - respondeu o outro - se me estico bem, fico três mil vezes mais comprido ainda. Sou mais alto que a mais alta montanha do mundo. Se precisais de mim, seguir-vos-ei com muito gosto.

- Vem! - disse o príncipe - Poderás ser-me útil.

E foram andando.;Pouco depois encontraram um tal, sentado à margem da estrada com os olhos vendados. O príncipe perguntou-lhe:

- Sofres da vista, que não suportas a luz?

- Não! - respondeu o homem - Não posso tirar a venda, pois tamanha força possuem meus olhos, que despedaçam qualquer coisa em que pousam. Se puder ser-vos útil, disponde de mim.

- Vem comigo! - disse o príncipe - Talvez me sejas útil.

E todos juntos continuaram andando. Mais adiante, encontraram um homem deitado ao sol abrasador, tremendo de frio como uma vara verde.

- Como é possível que sintas tanto frio, com um sol tão quente? - perguntou o príncipe.

- Ah, eu sou de natureza diversa da dos outros. Quanto mais calor, mais frio sinto e o gelo me penetra na medula dos ossos. Quanto mais frio, mais calor eu sinto. No meio do gelo não aguento o calor e no meio do fogo, não aguento o frio.

- És um tipo interessante! - disse o príncipe - Se queres servir-me, acompanha-me.

Continuaram juntos o caminho e, mais além, avistaram um homem que espichava imensamente o pescoço e olhava por cima das montanhas e bosques. Intrigado, o príncipe perguntou-lhe:

- Que estás olhando com tanto interesse?

O homem respondeu:

- A minha vista é tão aguda, que alcança além das montanhas e vales, podendo ver o que se passa no mundo.

O príncipe então disse-lhe:

- Vem comigo! Faltava-me justamente um tipo como tu!

Assim, acompanhado pelos seis criados, o príncipe chegou à cidade habitada pela velha rainha. Apresentou-se diante dela, sem revelar a identidade, e declarou:

- Se me concedeis a mão de vossa filha, farei tudo o que me impuserdes.

A rainha feiticeira alegrou-se por lhe ter caído nas garras um tão belo rapaz, e disse-lhe:

- Três vezes eu te darei uma empreitada. Se de cada vez a levares a termo conforme meu desejo, serás senhor e esposo de minha filha.

- Qual é a primeira? - perguntou o príncipe.

- Quero que me tragas o anel que deixei cair no fundo do Mar Vermelho.

O príncipe foi ter com os criados e disse-lhes:

- A primeira empreitada não é nada fácil. Temos de pescar o anel que a rainha perdeu no Mar Vermelho. Aconselhai-me o que devo fazer.

Então Olhos de lince falou:

- Quero antes ver onde está.

Foi olhar para as profundezas do Mar e, depois, disse:

- Está lá no fundo, espetado na ponta de uma rocha.

O compridão levou todos até junto do Mar, e disse:

- Eu bem poderia pescá-lo, se pudesse vê-lo.

- Não seja essa a dificuldade! - disse o gordão.

E deitou-se com a boca na água, as ondas despejavam-se-lhe dentro como absorvidas por um abismo. Em breve ele bebeu toda a água do mar, deixando-o seco como um prado.

O compridão curvou-se, um pouco, e apanhou o anel. Cheio de alegria, o príncipe correu a entregá-lo à rainha. Ela ficou pasma. Depois disse:

- Sim, é mesmo esse o anel. Executaste bem a primeira empreitada, agora tens a segunda. Olha, naquele campo, em frente ao meu castelo, há trezentos bois pastando, todos muito gordos. Tens de os comer todos, inclusive o couro, os chifres e os ossos. E na adega há trezentos barris de vinho, tens de beber tudo. Se sobrar um pelo que seja de um boi, ou uma gotinha de vinho, perderás tua bela cabeça.

O príncipe perguntou:

- Não posso convidar alguns comensais? Sem uma boa companhia, não tem graça comer!

A velha sorriu, ironicamente, e disse:

- Se queres ter companhia, podes convidar um apenas, e não mais.

O príncipe foi ter com os criados e disse ao Gordão:

- Hoje, convido-te a almoçar; uma vez pelo menos, comerás até te fartares.

O Gordão aceitou o convite e foi-se esticando sempre mais e comeu os trezentos bois sem deixar um pelo sequer, perguntando ainda se não havia mais nada para sobremesa. Para beber o vinho não teve necessidade de copo, bebeu-o todo mesmo pelos barris, lambendo a última gotinha que lhe caíra no dedo.

Finda a refeição, o príncipe chamou a velha, mostrando-lhe que nada havia sobrado. A segunda empreitada estava concluída. Ela ficou enormemente admirada e disse:

- Ninguém jamais conseguiu fazer isso. Tens. porém, de realizar a terceira.

Consigo mesma ia pensando: "Desta não me escaparás e não salvarás a tua cabeça."

- Hoje à noite, - disse ela - levarei minha filha ao teu quarto. Tu tens de abraçá-la, mas livra-te de ferrar no sono enquanto estais abraçados. Eu chegarei à meia-noite em ponto. Se ela não estiver em teus braços, estás perdido.

O príncipe refletiu: "Esta empreitada é muito fácil. É claro que ficarei com os olhos abertos." Contudo, chamou os criados e expôs-lhes a exigência da velha, dizendo:

- Quem sabe lá que cilada se esconde atrás disto? É preciso ser prudente. Ficai de guarda à porta e prestai muita atenção para que a princesa não saia do quarto.

Ao anoitecer, chegou a velha com a filha. Empurrou esta para os braços do príncipe e saiu. O compridão deitou-se fazendo um círculo em volta deles e o Gordão postou-se diante da porta, de maneira a não deixar sair ninguém.

Assim ficaram os dois abraçadinhos e a moça não proferia palavra. A lua, filtrando através da janela, iluminava-lhe o semblante e o príncipe pôde ver-lhe deslumbrante beleza. Ficava a olhar embevecido para ela, apaixonado e feliz, e seus olhos não cansavam de contemplá-la. Isso durou até às onze horas, aí então a velha lançou um sortilégio sobre todos eles, fazendo-os dormir. Imediatamente a moça desapareceu.

Eles dormiram até meia-noite menos um quarto, quando cessou o efeito do sortilégio e todos acordaram.

- Oh, que desgraça, - exclamou o príncipe - estou perdido, estou perdido!

Os fiéis criados também lastimavam-se, mas Ouvidofino disse:

- Calem-se! Quero ouvir.

Escutou um instante, depois exclamou:

- Ela está sentada num rochedo distante trezentas horas daqui, e está chorando a sua sina. Isso agora é contigo, Compridão. Se te esticas todo, com dois passos chegarás até lá.

- Esta bem, - respondeu Compridão - mas Olhosderaio tem de me acompanhar para dar cabo do rochedo.

Assim dizendo, carregou nas costas o homem dos olhos vendados e, num relâmpago, acharam-se diante do rochedo encantado. Imediatamente Compridão tirou a venda dos olhos do companheiro e este, pousando-os sobre o rochedo, fê-lo quebrar-se em mil pedaços.

Compridão tomou a princesa nos braços e num instante levou-a ao castelo. Em seguida, rápido como um raio, voltou a buscar o companheiro. Antes que soassem as doze badaladas da meia-noite, estavam todos no castelo, alegres e felizes.

Ao último toque da meia-noite, chegou a velha, devagarinho, devagarinho, com um sorriso de mofa nos lábios, a significar:

- Ah, agora é meu! Não me escapará! - julgando que a filha estivesse no rochedo a trezentas horas daí.

Quando entrou no quarto e viu-a entre os braços do príncipe, ficou espavorida e exclamou:

- Eis aí um que sabe mais do que eu!

Mas não tinha o que dizer e foi obrigada a conceder- lhe a mão da filha. Entretanto, sussurrou-lhe ao ouvido:

- Que humilhação para ti, teres de obedecer a uma pessoa ordinária! E não poderes escolher um marido digno de ti!

No íntimo do coração, a princesa orgulhosa revoltou-se e encheu-se de ira, então premeditou uma grande vingança.

No dia seguinte, ela mandou amontoar trezentas carroças de lenha, dizendo ao príncipe que, embora tivesse cumprido as três empreitadas, ela só se casaria com ele se, pondo-se no meio daquela lenha, fosse capaz de resistir ao fogo.

Ela julgava que nenhum dos criados se deixaria queimar por ele. Por amor a ela, o príncipe se submeteria ao sacrifício e a deixaria livre de uma vez por todas. Mas os criados disseram:

- Todos nós já fizemos alguma coisa; agora cumpre ao Friorento fazer o que lhe toca.

Colocaram-no no meio da lenha e atearam-lhe fogo. As labaredas subiram para o céu durante três dias, até queimar toda a lenha e, quando a fogueira se apagou, Friorento estava lá no meio das cinzas tremendo como uma vara verde.

- Nunca sofri tanto frio na minha vida! - disse ele - Se esta fogueira durasse mais um pouco, eu acabaria morrendo enregelado.

Não havia mais escapatória. A bela princesa foi obrigada a casar-se com o jovem desconhecido. A caminho da igreja, a velha lamentou-se:

- Não posso suportar esta vergonha!

E mandou o exército ao seu encalço, com ordens de estraçalhar quem encontrassem pela frente e trazer- lhe de volta a filha.

Mas Ouvidofino, que ficara a escutar, ao ter conhecimento desta ordem secreta da velha, disse ao Gordão:

- Que faremos?

Este não teve um minuto de hesitação, vomitou atrás da carruagem dos noivos a água do mar que havia engolido, formando um grande lago, onde os soldados se precipitaram e morreram afogados.

Ao saber disso, a feiticeira expediu os seus couraceiros, mas Ouvidofino ouvira a ordem e, em seguida, o barulho das armas, então tirou a venda dos olhos do companheiro e este com o olhar fulminou todos os inimigos, espatifando-os como se fossem de vidro.

Os noivos, então, puderam seguir para diante sem dificuldades e, quando receberam a bênção nupcial na igreja, os criados despediram-se deles, dizendo ao príncipe:

- Estão cumpridos os vossos desejos. Já não precisais de nós. Agora vamos pelo mundo em busca da felicidade.

A uma meia hora antes do castelo, havia uma aldeia e lá estava um guardador de porcos vigiando a vara. Quando chegaram lá, o príncipe disse à mulher:

- Sabes quem sou? Não sou um príncipe, mas sim um guardador de porcos. Aquele que aí está é meu pai. Nós devemos ajudá-lo no trabalho e guardar os seus porcos.

Apearam da carruagem diante de uma hospedaria e o príncipe segredou aos hospedeiros que, durante a noite, levassem os trajes suntuosos da princesa e os escondessem.

Pela manhã, quando a princesa despertou, nada encontrou para vestir, então a hospedeira deu-lhe um vestido velho e um par de meias de lã estragadas, com o ar de quem estava a fazer um presente régio, dizendo:

- Se não fosse pelo vosso marido, eu não vos daria nada.

A princesa acreditou, realmente, ter-se casado com um guarda-porcos. Passou a ser guardadora juntamente com o marido, mas ia pensando: "Bem mereci tudo isto, por causa da minha soberba e presunção!."

Essa situação durou oito dias e ela já não podia mais, porque estava com os pés tremendamente feridos. Ao cabo dos oito dias, apareceram uns desconhecidos, que lhe perguntaram se sabia quem era seu marido.

- Sei, sim! - respondeu ela - É um guarda-porcos! Acaba justamente de sair para ir vender umas correias e algumas fitas.

Os desconhecidos, então, disseram-lhe:

- Vem conosco, vamos para onde está teu marido.

E levaram-na para o castelo. Quando ela entrou no salão de honra, deu com o marido ricamente ataviado com os trajes reais. Assim, de momento, não o reconheceu, até que o príncipe, tomando-a nos braços e beijando-a lhe disse:

- Sofri muito por tua causa, por isso tiveste que sofrer um pouco por mim.

Depois disso, prepararam uma grandiosa festa para celebrar as núpcias e, quem esta história contou, bem quisera ter estado lá.

Fonte:
Contos de Grimm