segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

Franz Kafka (O Vizinho)


Meu negócio descansa inteiramente sobre os meus ombros. Duas senhoritas com suas máquinas de escrever e seus livros comerciais no primeiro quarto, e uma escrivaninha, caixa, mesa de informações, cadeiras de braços e telefone no meu, constituem todo meu aparelhamento de trabalho. É muito fácil controlar isso com uma vista de olhos, e dirigi-lo. Sou muito jovem e os negócios se acumulam aos meus pés. Não me queixo, não me queixo. 

Desde o Ano Novo, um jovem alugou sem hesitar a sala contígua, pequena e desocupada, que por tanto tempo titubeei, estupidamente, em tomar para mim. Trata-se de um quarto com antecâmara e, além do mais, uma cozinha. Tivesse podido utilizar o quarto e a antecâmara - minhas duas empregadas sentiram-se mais uma vez sobrecarregadas em suas tarefas -, mas, para que me teria servido a cozinha? Esta pequena hesitação foi a causa de permitir que me tirassem a sala. Nela está instalado, pois, esse jovem. Chama-se Harras. Com exatidão não sei o que faz ali. Sobre a porta lê-se: "Harras, escritório". Pedi informações, comunicaram-me que se trataria de um negócio idêntico ao meu. Na realidade, não vem ao caso dificultar-lhe a concessão de crédito, pois se trata de um homem jovem e de aspirações, cujas atividades tenham talvez futuro, mas não se poderia, contudo, aconselhar que se lhe outorgue crédito, pois atualmente, segundo todas as presunções, careceria de fundos. Quer dizer, a informação que se dá habitualmente quando não se sabe de nada. 

Às vezes encontro Harras na escada, deve ter sempre uma pressa extraordinária, pois se escapule diante de mim. Nem mesmo pude vê-lo bem ainda, e já tem pronta na mão a chave do escritório. Num instante abre a porta, e antes que o observe bem já deslizou para dentro como a cauda de uma rata e aí tenho outra vez à minha frente o cartaz "Harras, escritório", que li muitas mais vezes do que o merece. 

A miserável finura das paredes, que denunciam o homem eternamente ativo, ocultam porém o desonesto. O telefone está suspenso à parede que me separa do quarto de meu vizinho. 

Não obstante, destaco-o apenas como constatação particularmente irônica. Mesmo quando pendesse da parede oposta, ouvir-se-ia tudo da sala vizinha. Evitei o meu costume de pronunciar ao telefone o nome de meus clientes. Mas não é necessária muita astúcia para adivinhar os nomes através de característicos mas inevitáveis torneiros da conversação. Às vezes, aguilhoado pela inquietação, sapateio nas pontas dos pés em volta do aparelho, com o receptor no ouvido, mas não posso impedir que se revelem segredos.

Naturalmente, as resoluções de caráter comercial se tornam assim inseguras e minhas voz, trêmula. Que faz Harras enquanto telefono? Se quisesse exagerar muito - o que é preciso fazer com frequência para ver claro -, poderia dizer: Harras não precisa telefone, usa o meu, colocou o sofá contra a parede e escuta; eu, em troca, quando o telefone toca, devo ir atender, tomar nota dos desejos do cliente, adotar resoluções graves, sustentar conversações de grandes proporções, porém, antes de tudo, proporcionar a Harras informações involuntárias, através da parede. 

Ou antes, nem mesmo espera o fim da conversação, porém que se ergue depois da passagem que lhe informa suficientemente sobre o caso, atira-se, segundo o seu costume, através da cidade e, antes de eu ter pendurado o receptor, está talvez trabalhando já contra mim.

Fonte:
Franz Kafka. Contos.

domingo, 9 de dezembro de 2018

Olivaldo Júnior (Trovas para o Dia Universal do Palhaço)

10 de dezembro: Dia Universal do Palhaço


1
Ponho a bola no nariz
e pareço outra pessoa:
sou palhaço, sou feliz,
levo a vida "numa boa"!...
2
Lá na lona improvisada,
entre tantos dissabores,
o palhaço e a garotada
da alegria são doutores.
3
Cada riso que eu coloco
no meu rosto semimudo
'vira' o riso que provoco
no seu rosto carrancudo.
4
Das estrelas decadentes,
o palhaço vence a "treva"
e ressurge dos ausentes:
alva estrela que se eleva!
5
Não sou Bozo, nem sou clown,
mas, em plena noite escura
- toda vez que eu fico "down" -,
me transformo com ternura…

Fonte:
O Trovador

Carlos Drummond de Andrade (Caso de Arroz)



E assim aquela eficiente dona de casa do Leblon resolveu o problema do arroz, do feijão, da carne e de outras preciosidades da nossa era: mudando de mercearia.

- Não! - exclamou a amiga. - Não vá me dizer que Nossa Senhora Aparecida desceu por aqui e montou um supermercado. Milagre não vale!

Pois não era milagre, quem falou nisso? Era apenas a federação, que divide (e reúne) o Brasil em nações autônomas, com seus recursos econômicos e seu comércio próprios. Os novos fornecedores de dona Araci ficam ali no estado do Rio. Não é precisamente no bairro em que ela mora, mas o casal comprou um carrinho paulista, e o marido de dona Araci é um amor: concordou em ir de lotação para o escritório. Ela pegou os dois garotos, botou-os no carro e tocou para o País da Fartura, Caxias chamado:

- Vocês dão um passeio e me ajudam a carregar os sacos.

O merceeiro de Caxias vendeu a dona Araci umas duas arrobas de magnificente arroz, mas ponderou-lhe, com o saber de experiências feito:

- Madame não passa na barreira com esse sortimento. O máximo permitido são cinco quilos.

- Não seja por isso. Trouxe fronhas em quantidade, e vou transformar meus feijões e meu arroz em travesseiros para os meninos repousarem a cabeça - retrucou-lhe a precavida senhora.

Assim foi feito, e, de novo com o pé na tábua, a família voltou muito feliz para o País do Está-em-Falta, conhecido também por Guanabara.

Junto à barreira, a fila de caminhões e automóveis era longa, e os guardas procediam a uma investigação cabal. A Alfândega de Nova York não seria mais rigorosa, ao farejar entorpecentes ou engenhos nucleares. Alguns veículos retrocediam, e de outros os motoristas retiravam pacotes condenados, que eram entregues à lei, na pessoa de seus agentes implacáveis.

- Qual, não atravesso esse muro de Berlim - suspirou dona Araci, desanimada. - Eles fazem até radiografia da gente.

Nisso apareceu um cortejo fúnebre, que os guardas deixaram passar sem formalidades, dando-lhe preferência, e dona Araci não teve dúvida: incorporou-se a ele, recomendando aos garotos:

- Vocês aí: façam cara triste!

E lá se foi o enterro, enorme. Que defunto seria aquele, tão estimado, a julgar pelo número de acompanhantes, pelas fisionomias compungidas? Eis que aparece o cemitério, na curva da estrada, e de súbito o imenso acompanhamento deixa o carro mortuário quase sozinho, com um ou dois carros na retaguarda, e toca para o Rio. Os motoristas interpelam-se aos gritos:

- Quantos quilos você trouxe?

- E você?

- E você?

Dona Araci não chegou a apurar quem era o morto a que prestara aquela homenagem de emergência. Os outros também não sabiam. E daí, o caixão talvez não contivesse nenhum defunto, quem sabe?

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

Elciana Goedert (Poemas Escolhidos)


BARREIRAS?

Barreiras a vencer,
Ou medos a enfrentar? 
A quem quer convencer? 
Não queira se enganar... 

Se a vontade for real
Encontra-se uma maneira
Mas se a intenção for virtual, 
Persistirá a "cegueira”

CATARSE

É preciso percepção 
É finda uma fase
Mas nada foi em vão... 

Minha última frase:
"Por que te amo tanto"? 
E interrompi a metástase... 

Não me olhe com espanto
A missão foi cumprida
Cada um pro seu canto... 

Inicio uma nova vida
Sem tê-lo do meu lado
Oculto a minha ferida... 

Pronto! Está extirpado…

CONFIANTE

De olhos fechados
e mente aberta, 
mergulho... 
arrisco.... 
dou uma incerta. 
Ouço um barulho... 
Fico alerta. 
Venço o orgulho... 
Espanto o medo... 
Se preciso, espero... 
Dispenso a regra. 
Não sou deste aprisco... 
Ovelha negra, 
sei o que quero.

CONVITE

Toque-me
Sem receios
Entregue-se
Sem titubeios
Liberte-se
Das incertezas
Que te atormentam
Das dores
Que te acompanham
Venha comigo
Confie... 
Te darei abrigo
Aconchego 
Quebro o protocolo
Te dou meu colo
E cedo-te espaço
Em minha vida
E no meu coração.

DESILUDIDA

Ela queria um poeta 
Alma sensível como a sua 
Que enxergasse as mesmas cores
Ainda que em outros tons
Teve a poesia, a alegria...
O amor tocou seu coração. 
Mas como nem tudo são flores 
Com elas vieram dissabores
O amargor da desconfiança 
A sombra da inverdade 
E ela... optou pela solidão.

ENTÃO É NATAL…

São momentos de magia
Tempo de confraternização
Demonstrações de alegria
Dias de paz, amor e união 

Se reclamam de consumismo
Nem me atento, foco na festa
Sou da turma do otimismo
Só o lado bom se manifesta

Pra demonstrar o que se sente
Basta a presença e um abraço 
Dispensa-se aquele presente
Enfeitado com grande laço 

Mas pra ver o riso do menino
Enfeito a árvore com carinho
Abaixo dela, Jesus pequenino
Dorme em paz no seu "bercinho"

Quando vem a "noite feliz" 
Saborear a ceia, que delícia! 
A sobremesa merece bis
Cada presente, uma carícia 

E assim a noite termina
Prometendo continuação 
Esse espírito contamina
É Natal em nosso coração.

LIBERTAÇÃO

Metamorfoses...

Emoções 
Sentimentos 
Sensações

Não mais lamentos
Não mais rotina
Reais envolvimentos 
Injeção de adrenalina

Transmutação! 
De ruína a monumento
De teorias à ação 
De ingrediente a alimento

Eis o resultado! 
Chega de ilusão 
Chega de futilidades
Organiza teu coração 
E realiza tuas vontades.

NA ESTAÇÃO

Decida... 
Qual bagagem quer levar? 
A que está arrumada à sua frente, 
Ou aquela que ficou pra trás 
Espalhada pelo caminho? 

Pense bem... 
Perceba qual não pesa
E a que dificulta seus passos. 

Só não se distraia com a dúvida, 
Com os vendedores de ilusões... 
Ou perderá a viagem. 

SILÊNCIO

Essa alma anda calada... 
Dizem que foi a decepção: 
Roubou-lhe toda inspiração. 
Ou está apenas cansada... 
A vida anda uma confusão! 
Em breve, talvez, exprima
Medos, sonhos, desilusão 
Amores, humores ou... nada. 
Essa alma perdeu a rima... 
Essa alma precisa ser amada.

TEIMOSIA

Droga de coração!!! 
Não aprende nunca... 
Mal sai d'uma fria
Entra numa gelada... 
Bem te avisou a razão
"Sai fora, que é cilada!"
Pode ser covardia, 
Mas... melhor dar fim
Seguir outra estrada...

Elciana Goedert (Cadeira n. 20 da AVIPAF)

Patronesse: Florbela Espanca


Elciana Goedert (Ciça) nasceu em Ivaiporã/PR, mas radicou-se em Curitiba em 1996.

Graduada em Biologia, pela UEPG (Universidade Estadual de Ponta Grossa), com especialização em Tecnologias Educacionais, exerce a profissão de professora. 

Participa de diversos movimentos literários curitibanos, como o Coletivo Marianas; CuTUCando a Inspiração, grupo Escritibas na Rua e Sarau Popular (evento organizado pela Fundação Cultural de Curitiba).

Tem 3 livros publicados: 
Eu e a Poesia (2014), uma coletânea de momentos que marcaram uma fase de profunda transformação na vida pessoal da escritora. São poesias que expressam a alegria, o romantismo, as reflexões entre tantas emoções que são compartilhadas por seus leitores.

Sob a Ótica de Eros (2016) e 

Nutrisia (2017) 

Participação em diversas antologias nacionais: Concurso Nacional Novos poetas - Prêmio Sarau Brasil; I Antologia da Confraria da Poesia Informal ; II Antologia da Confraria da Poesia Informal; Poesias Escolhidas Vol. II: O Melhor de Mim;- Mulheres Sem Censura; Folhetim dos Poetas Malditos (2015); Conexão: Feira do Poeta (2015, 2016 e 2017), Parnaso Poético (2017 e 2018), entre outras.

Seu poema "Ofício: Poeta", recebeu Menção Honrosa em Buenos Aires, Argentina.

Recebeu Medalha Mérito Cultural outorgada pelo Projeto Poetizar o Mundo.

Fontes:

Contos e Lendas do Mundo (A Minhoca e o João de Barro )


Ao pé de uma frondosa paineira vivia uma minhoquinha chamada Milena. Ali vivia com a família desde que nascera. Sua infância foi muito feliz. Sempre a brincar com os irmãozinhos, parentes e demais crianças da redondeza. Tomava parte nas cantigas de roda, jogos de Amarelinha, para os quais ela não tinha lá muito jeito, mas sempre se alegrava nesses folguedos. Sim, porque a sua turma era tão unida que até chegou a criar um teatrinho para se divertir e melhor e mais depressa passar o tempo. No teatro ela fazia o papel de uma cobrinha que dançava muito bem, numa coreografia em círculos, muito aplaudida por aquele auditório ao ar livre. 

Milena, como a maioria das crianças de sua idade, vivia sempre transbordando felicidade porque vivia intensamente o presente sem se preocupar com o futuro. Era aplicada nos estudos . Seus professores eram os seus próprios pais, pois ninguém melhor do que o minhoco Mimi e mamãe minhoca Tetê para ensinar-lhe a profissão familiar e prepará-la para o convívio na sociedade. À medida que foi crescendo, no entanto, nossa amiguinha passou por uma transformação. Já não era mais aquela menina alegre, sorridente e saltitante de alguns anos atrás. A bem da verdade, se ela não fosse minhoca, poderíamos dizer que Milena estava colocando minhocas na cabeça. Sabem o que aconteceu com Milena? O mesmo que acontece, infelizmente com frequência, a um grande número de seres humanos: começou a comparar-se aos outros. 

Ora, isto não pode acontecer para ninguém, porque não existe atitude mais prejudicial do que julgar as coisas, pessoas e situações pelas aparências. Principalmente quando ao assim fazer começamos a perder o nosso senso do valor próprio, que é único. Assim procedendo ficamos com a auto-estima em baixa, que a Psicologia define como complexo de inferioridade. O desabafo de Milena à medida que o tempo passava, aqueles seus companheiros de infância, assim como ela, cresceram e constituíram famílias. 

O Sapo Jorjão nunca deixava de convidá-la para as festas de aniversário ou casamento de seus filhos. Nas Festas Juninas até aparecia o vagalume e familiares para dar um colorido luminoso aos bailes. Não só aos forrós de Jorjão, mas do Tatu Alcides, da Tartaruga Silvana ou de quem os convidasse. Os filhos de Jorjão, enquanto ele batucava, davam seus espetáculos de nado livre e eram hábeis também em terra-firme, em saltos à distância e outros números. Afinal, festejos não faltavam na Fazenda Brilhante. Esse era o nome daquele lugar que podia ser comparado a um paraíso. Mas a pobre minhoquinha começou a se sentir em nível inferior aos demais animais, pequenos e grandes com os quais convivia. 

Assim foi que, certo dia, Milena se surpreendeu falando sozinha, em voz alta, sobre o seu desconforto pessoal em não passar de uma simples minhoca. 

– Não sei saltar como o Sapo Jorjão, onde todos os de sua família são lépidos e ágeis, tanto na água como no seco. Não tenho asas como o compadre João de Barro e sua esposa Joana. Muito menos a habilidade que o consagra como o pedreiro da floresta, ou arquiteto silvestre. Não sei gorjear como o canário, nem tenho penas bonitas como o beija-flor, tão elogiado pelos poetas. O macaco, então, não precisa nem abrir a boca e todos caem na risada com suas micagens. E o papagaio com suas piadas, muitas delas até sem graça nenhuma, faz com que mesmo os animais mais sérios como o Leão, e os próprios homens deem lá suas gargalhadas. É tão carismático que, assim como os cães e os gatos, até virou animal de estimação de Dona Lúcia, dona da fazenda. E eu? Moro num buraco. Na verdade, eu trabalho em casa, porque abro brechas no solo onde resido e… 

Neste momento, o papagaio que ouvia essas lamúrias da minhoca Milena, agora mãe de família, não perdeu a deixa: 

– Escuta aqui sua chorona, pare com essa conversa mole como você, antes que o Seu Paulo Sérgio resolva espetar seu corpinho num anzol, fazer dele uma isca e você ir parar na boca de uma traíra. Eu, hein? 

Minhoca Milena sentiu arrepios por todo o corpo. As palavras do Louro Manoel atingiram-na em cheio. Afinal, quer ela admitisse ou não, o papagaio estava dizendo a pura verdade. Então a minhoca acabou por dizer-lhe: 

– Eh, Louro Manoel, você sempre brincalhão! Mas agora está parecendo uma ave de mau agouro. 

– Calma, Milena, quem está se diminuindo é você mesma. Além disso, com esse seu desprezo por si mesma e esse pessimismo, sabe o que vai lhe acontecer? 

– Manoel, eu estou sendo realista – respondeu Milena. Ou você quer que eu me compare ao meu compadre João de Barro? Um dia poderei ousar construir uma casa como a dele? Lá em cima, perto do céu, com ar fresco e o perfume das flores exalando do bosque? 

– Ah, sua boba – replicou o Papagaio Manoel – eu acho que os cientistas quando usam a palavra meio ambiente, talvez seja para que ninguém bata no peito e diga que é o ambiente inteiro. Todos dependemos uns dos outros. É a Associação Biológica, da qual nem o homem, esse presunçoso, pode esquecer e ir fazendo o que bem entender. 

– Ué! Olha só quem está falando! - disse Milena em tom irônico - Outro dia você entrou na sua casinha, ficou lá e se escondeu do Gavião Penacho, sem dar um pio. 

– E daí? Acha que eu iria contar uma piada de gavião pra ele. O que você queria que eu fizesse? 

– Seja sincero, Manoel, acho que se dependesse de você os gaviões não existiriam, ou pelo menos, teriam um outro comportamento, senão esse de aterrorizar todas as aves, a começar dos galos que, quando ele grita lá em cima, eles calam a boca aqui embaixo. Até deixam o Seu Paulo Sérgio e Dona Lúcia perderem a hora de se levantar, com medo de anunciar a alvorada. 

Responde o Papagaio, virando as asas em volta, sem esconder sua sábia ironia: 

– Currupaco, você está dizendo bobagem, minhoca Milena. Há uma grande utilidade nessas ameaças do Penacho: – foi assim que aprendi a rezar. Cruz Credo!!! Além disso, dou um descanso para as minhas cordas vocais e para a minha língua e garganta. Até tiro um cochilo enquanto aquele paspalho faz aquele alvoroço como se o céu estivesse desabando. 

O João de Barro, lá de sua casinha no alto da paineira, ouviu o desabafo da minhonquinha e ficou muito penalizado. Até comentou com sua esposa: 

– Joana, nós precisamos fazer algo pela Milena. 

– Você tem razão, João. Embora Milena não tenha motivos reais para reclamar da vida, encontra-se muito infeliz porque perdeu um dos bens mais preciosos de qualquer criatura na face da terra. Ela não tem mais estima por si mesma. Sua auto-estima está a zero por conta da sua forma errada de avaliar a si mesma e ao seu próprio trabalho. 

– Sim, Joana, respondeu o pássaro marido. Que tal se a convidássemos para passar uma tarde conosco e a gente bater um bico com ela? 

– Combinado, João. Se você quiser, dou um voo até lá embaixo e faço o convite. 

Assim falou e assim fez, descendo com leveza o seu corpo em movimentos graciosos até o espaço onde vivia a Minhoquinha. E gritou pelas imediações: 

– Ô de casa ! Ô de casa! 

Uma voz bem aguda, de tom mole e preguiçoso, respondeu não escondendo uma leve ponta de irritação. 

– Que casa, comadre Joana ?! Eu não tenho casa coisa nenhuma. Vivo com a minha família ao rés da terra ! A senhora e seu marido, sim, têm uma mansão lá na paineira que vale a pena. Eu hein ? Pobre de mim ! 

– Falando em casa – disse Joana Passarinho para Milena Minhoca, vim fazer-lhe um convite para ir conhecer nossa moradia. 

– Outra piada da comadre!… Como posso, na condição de simples operária da terra, custear uma viagem aérea para chegar lá em cima da paineira? 

– Ora, Milena – disse a passarinha Joana protestando calmamente – basta você grudar em minhas asas que a levarei em menos de um minuto para nossa casa. E prometo trazê-la sã e salva no momento que você desejar. 

– É…comadre. Eu sempre tive a curiosidade de conhecer a casa de vocês. O que a senhora diz me parece um sonho… 

– Parecia um sonho, mas vamos subir então, comadre Milena. Você vai comprovar, nesta oportunidade, que tudo aquilo que a gente acredita que vai acontecer em nossa vida, sempre acaba se sucedendo. E o que é melhor: há vezes em que a felicidade que nos chega supera aquela felicidade que a gente imaginou… 

– Nossa! Mas como a comadre é otimista! Até criei coragem de fazer esse meu primeiro voo para o céu a bordo de suas asas. 

Milena a custo elevou-se sobre um cupinzeiro para facilitar sua subida nas asas da solícita passarinha. Zás! Num segundo Joana decolou rumo ao céu com a minhoca às costas empenadas. Milena ficou extasiada ao ver a paisagem lá de cima. Bem que ela tinha razão ao pensar que os João de Barro dispunham de uma visão privilegiada por disporem de asas para voar e uma casa tão no alto, acima da mina, do pasto crivado de arvoredo e animais. Em questão de segundos a passarinha Joana alcançou a paineira, dando um grito para que o marido João de Barro viesse receber Milena com todas as honras. Milena desceu sobre o galho, num movimento meio desajeitado e um pouco acanhada diante da (para ela) enorme casa do anfitrião que ali se postava à sua espera. 

– João! gritou Joana. Venha ver quem está aqui! 

– Eu sei quem está aí! E fico muito feliz em receber nossa comadre Milena. Hoje está um dia propício para ela ouvir também o que diz aquele ecologista… 

– Ah! – atalhou Joana – é mesmo, comadre Milena! Mora aqui por perto um senhor, o Seu Geraldo Machado, que senta aqui embaixo da paineira todas as tardes para conversar com a netinha sobre as maravilhas da Natureza. 

– Chi, comadre! Tenho certeza que ele vai falar sobre o mico leão dourado, que até virou ilustração de cédulas de dinheiro, e com essa história de estar em extinção só dá ele nos assuntos desses tais ecologistas. 

– Ó, comadre Milena. Deixe de lado esse pessimismo, levante a sua cabeça e acredite mais em si mesma. Você é tão importante quanto qualquer outro animal, seja doméstico ou selvagem. 

– Tem razão, comadre Joana. Eu sou uma privilegiada por merecer a sua amizade e confesso que estou muito feliz em estar aqui…nas alturas. 

– Mas vamos entrar, disse João de Barro. Venha conhecer a nossa casa. Além disso, daqui dá para ouvir as lições do Seu Geraldo Machado. Ele tem um bom timbre de voz. 

Nesse momento os três ouviram o ponteio de uma viola, que de repente silenciou para dar lugar ao leve ruído de passos sobre a relva, lá embaixo, nas proximidades da mina d’água. Era o velho ecologista, cabeça branca, mas ainda forte e ágil, em seus oitenta e tantos anos de idade. Descansou a viola sobre o mourão da porteira e iniciou sua lição de ecologia para a netinha Bianca. A menina era toda olhos e ouvidos, e ansiava por ouvir as sábias lições de vovô Geraldo. Adivinhem só qual foi o tema do ecologista? 

A FUNÇÃO DA MINHOCA NA NATUREZA – O diálogo teve início com uma pergunta de Bianca ao ancião: 

– Vovô, por acaso a minhoca é parente da cobra? 

– Não, minha querida netinha. Não tem nada a ver. As cobras são répteis. As minhocas são vermes – ensinou o velho. 

– Então quando se diz que alguém que está com verme, poderia ser dito que está com minhoca na barriga? – atalhou Bianca. 

– De modo algum, Bianca. É outra espécie de verme. As minhocas são anelídeos. Não habitam o organismo humano como os vermes parasitas do intestino. Elas são operárias do solo. Sua utilidade é muito grande e hoje é bem conhecida pelos cientistas. 

De lá de cima da casa do casal de pássaros, Minhoca Milena aguçou ainda mais a atenção, torcendo para que o Sr.Machado continuasse a falar sobre a sua importância na vida terrestre. Assim, continuou o naturalista a sua aula ao ar livre: 

– O nome anelídeo é porque o corpo da minhoca é formado de anéis. Graças a ela a terra se fertiliza e hidrata, isto é, ela vai fazendo furos no solo e isto permite que a água da superfície penetre nas camadas de terra mais abaixo. Não sei o que seria da vida na Terra se não fossem as minhocas com sua ação silenciosa e sem aplausos, mas indispensáveis à Natureza – concluiu o Sr.Machado. 

– Vovô,é verdade que na Califórnia há até criação de minhocas? 

– Sim, Bianca. Há fazendeiros que recebem muito dinheiro com seus minhocários e até exportam para outros países. 

– Olha, Vovô, o mais interessante é que elas trabalham em silêncio, sem barulho e, pelo que o senhor diz, são muito úteis. 

– Sim, Bianca. São úteis para a lavoura, porque permitem a melhoria das colheitas e ajudam a respiração do solo. São, sim, muito modestas, como sempre são humildes aquelas criaturas que verdadeiramente trabalham em favor dos outros. 

– Sem as minhocas seria difícil viver, Vô? – perguntou Bianca com os olhinhos arregalados. 

– Seria impraticável viver sem elas. Nem mesmo o João de Barro teria feito aquela casinha tão bonita se não fosse o trabalho das minhocas em favor do solo. 

Milena sorriu. Olhou para as paredes da casa e sentiu saudades de seu próprio ninho. Agora, consciente de seu valor próprio, com a auto-estima recuperada, pediu encarecidamente aos donos da casa: 

– Aqui está muito bom, comadre Joana e compadre João. Mas preciso ir. Estou com saudades de casa e o trabalho me espera. 

Minhoca Milena voltou para as suas atividades com alma renovada e passou a produzir muito mais, agora na alegria de sentir-se útil na sua vida e no seu trabalho.

Fonte:

sábado, 8 de dezembro de 2018

José Feldman (Sonetilho Atestado de Pobreza)

Montagem sobre pintura de Alexandre Antigna (Orleans/França, 1817 - 1878, Paris/França)

Isabel Furini (Sombras)


Eduarda levanta a espada e as sombras retrocedem. 

Ela desce um pouco a espada até ficar horizontal em relação a seu próprio ombro. Só isso, e as sombras pulam do mostrador dispostas a atacá-la.

Encaram-na. Eduarda, outra vez, aponta a espada para o lugar do coração da sombra maior (a sombra rainha). A sombra rapidamente pula e se esconde no chapéu de feltro do homem de bigode, que está sozinho, sentado à mesa do canto direito diante de uma garrafa de cerveja olhando ao redor em busca de um amigo. O homem mexe um pouco a cabeça, o chapéu fica de lado e a sombra aproveita para entrar. Eduarda a persegue. O homem e o chapéu mudam de mesa. O homem cumprimenta um senhor obeso da mesa junto à janela. As sombras barrigudas rodeiam o gordo, mas ele não se importa, nem nota.

Eduarda avança. Lutar contra sombras é sempre uma tarefa perigosa e desgastante. Sombras são fortes, escondem-se na luz e fortalecem-se na escuridão. Sombras são seres sem dimensão, podem esconder-se em qualquer lugar. Atrás do chapéu, na etiqueta de uma garrafa, na asa da xícara de café, na borda da mesa. Sombras são poderosas e sapecas, como crianças mimadas, dispostas sempre a fazer seus gostos.

O tempo passou e Eduarda continua na tarefa de lutar. As sombras se multiplicam, mas Eduarda resiste firme. Os homens continuam a beber. Os dias sucedem as noites e vice-versa. O mundo rodopia numa máquina de ilusões guiada por uma grande bola dourada chamada Sol.

Eduarda tenta dar uma estocada mortal em uma sombra que procurava esconder-se na borda do copo de cachaça e consegue. A cachaça é amiga das sombras, esconde-as para que os homens não as vejam.

Eduarda persegue a sombra barriguda. Amigos invisíveis a ajudam, alguns atacam as sombras curvas, outros, as sombras retas e outros ainda, as sombras magras. Nessa noite, Eduarda decidiu perseguir a sombra barriguda quando o dono do bar aproximou-se com um copo dizendo: Olhe, velha louca, é para você. Descanse e beba.

 Nesse momento Eduarda abriu os olhos, já havia rugas nos cantos dos olhos, nas bochechas, perto dos lábios. Rugas e mais rugas... E não havia conseguido nada, absolutamente nada. As sombras continuavam sendo sombras, brincavam nas paredes, riam do pranto dos bêbados, escondiam-se em botões, chapéus e cadarços de sapatos. Os homens bebiam no bar por diversão ou para esquecer os problemas. Alguns falavam. Outros estavam silenciosos. Alguns jogavam sinuca. Outros observavam, mas ninguém percebia o poder das sombras.

Eduarda pegou o copo de vinho e bebeu lentamente.

Fonte:

Gislaine Canales (Glosas Diversas) 10



FANTASIA

MOTE:

Vez em quando a fantasia,
nesta praia...veraneia
e, acende a luz da poesia,
em meus castelos de areia.
Marlê Beatriz Araújo
Viamão/RS

GLOSA

Vez em quando a fantasia,
vem inteira, pra ficar,
com a canga da alegria,
alegrando o nosso mar!

Chega, então, em tom de festa,
nesta praia...veraneia
e num Luau , faz seresta
sob a luz da Lua cheia!

Faz-se brisa e acaricia
a tudo com doces beijos,
e, acende a luz da poesia,
que faz explodir desejos!

Segue assim, acarinhando,
com ternuras a mancheia,
vigas de amor, colocando
em meus castelos de areia.
______________________

MAR SEM EMOÇÃO...

MOTE:

Na praia, a areia se esconde
ante uma onda incontida...
- Parece a ilusão, por onde
se derrama a própria vida!
Eduardo A O Toledo
Pouso Alegre/RS

GLOSA:

Na praia, a areia se esconde
embaixo da onda mansa
e é esse o lugar aonde,
a areia, afinal, descansa!

Vez por outra, titubeia,
ante uma onda incontida...
e sentindo medo, a areia
se esconde e chora escondida!

Teme, então, que a onda estronde,
estremece de pavor!
- Parece a ilusão, por onde
escapam sonhos de amor!

Sem sonhos, o coração
lembrando a ilusão perdida,
sente que, sem emoção
se derrama a própria vida!
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GEMIDO DO MAR...

MOTE:

O mar, num gemer sentido,
à praia abraçar-se vem;
e, eu sinto que o seu gemido,
geme em meu peito também!...
José Tavares de Lima
Juiz de Fora/MG

GLOSA:

O mar, num gemer sentido,
parece chorar ao léu,
feito um pássaro ferido
querendo voar ao céu!

Chorando um pranto tão triste
à praia abraçar-se vem;
parece que nada existe,
na solidão, sem ninguém!

Tenho o coração partido,
ao ouvir o seu lamento,
e, eu sinto que o seu gemido,
chega a mim, na voz do vento!

Eu sofro com sua dor.
Sinto no eterno vai-e-vem
que esse gemido de amor
geme em meu peito também!...
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PERTENÇO AO MAR

MOTE:

Ó Senhor! Com teu poder,
deixa na praia eu sonhar,
pois as ondas irão ver
que eu também pertenço ao mar.
Sarah Castelo Branco M. Rodrigues
Belém/PA

GLOSA:

Ó Senhor! Com teu poder,
eu te peço com carinho
que deixes eu poder ter,
este mar, em meu caminho!

Peço quase em oração.
Deixa na praia eu sonhar,
é lá que o meu coração
quer ser amado e amar!

O mar é meu bem – querer,
sinto-me contente, então,
pois as ondas irão ver
pulsar o meu coração!

Sou feliz, a cada dia.
Num novo recomeçar,
todos verão, com alegria,
que eu também pertenço ao mar.

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas. Glosas Virtuais de Trovas XXII. 
In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. 
http://www.portalcen.org. novembro de 2004.

Contos e Lendas do Mundo (Irlanda: O Filho do Rei da Irlanda e o Rei da Ilha Verde)


Há muito tempo, existiu na Irlanda um rei que só teve um filho, ao qual dispensava tanto carinho que não o deixava afastar-se da sua vista nem do castelo, fosse de noite ou de dia.

Finalmente, quando cresceu e completou vinte e um anos, o filho disse ao pai:

— Chegou o momento de me deixares ir a algum lugar.

— Se é exercício que pretendes, ofereço-te uma bola e um taco de hurling*  — respondeu o monarca.

No dia seguinte, deu ao jovem uma bola e um taco e ele foi praticar no prado. Havia um ano que se dedicava a essa atividade, quando, um dia, surgiu um homenzinho cinzento por cima do fosso, dirigindo-se-lhe:

— Suponho que já deves estar bem preparado. Se quiseres, jogo uma partida contigo.

— Que vamos disputar? — perguntou o filho do rei.

— Quem ganhar receberá tudo o que desejar. O outro terá de lhe dar.

Começaram a jogar e prosseguiram todo o dia, até que o Sol principiava a pôr-se quando o filho do rei conseguiu ganhar.

— E agora, que desejas? — quis saber o homenzinho cinzento.

— Que o prado do meu pai se encha de cavalos para mim, amanhã de manhã.

Na manhã seguinte, o relvado apresentava-se cheio de cavalos, que foram levados para os estábulos e tratados. 

O filho do rei começou de novo a praticar e continuou durante um ano e um dia. O homenzinho cinzento tornou então a aparecer e jogaram durante todo o dia. Ao anoitecer, quando o Sol principiava a descer para o horizonte, o filho do rei alcançou a vitória.

— Agora, que desejas? — perguntou o homenzinho cinzento.

— Possuir um castelo suntuoso no prado do meu pai, amanhã de manhã, com servidores e tudo o que deve haver num lugar desses.

O castelo apareceu na manhã seguinte, com serviçais e riquezas de toda a espécie.

De novo o filho do rei praticou durante um ano e um dia, após o que o homenzinho cinzento o abordou pela terceira vez.

— Bem, filho do rei, agora que já praticaste três anos e três dias, jogarei contigo pela terceira vez.

Assim fizeram e, quando o Sol se punha ao entardecer, o homenzinho cinzento conquistou a vitória.

— Que desejas? — perguntou o filho do rei.

- A ilha verde — Que precisamente um ano e um dia a contar de hoje, estejas na ilha Verde.

— Onde fica essa ilha?

— Procura-a, que talvez a encontres.

Naquela noite, quando regressou ao castelo, o filho do rei estava desanimado e triste.

— Que te aflige? — perguntou o rei. — Qual é a tua mágoa, meu filho?

— Desta vez, perdi a partida e tenho de procurar a ilha Verde.

— Se o deves fazer, não há outro remédio. Vou dar-te dinheiro para a viagem.

O filho do rei viajou até que chegou à casa de um gigante, que o recebeu com cordialidade.

— Onde te conduz o teu caminho? — perguntou.

— Procuro a ilha Verde — informou o filho do rei.

O gigante admitiu-o no castelo e ofereceu-lhe ceia e alojamento.

— Consultarei os meus livros durante a noite — anunciou. - Se descobrir onde se situa, dir-te-ei pela manhã.

— Descobriste onde é? — quis saber o filho do rei, na manhã seguinte.

— Não, mas tenho um irmão que vive a alguma distância daqui e talvez te possa elucidar.

E o gigante deu-lhe dois pães para o caminho.

O filho do rei exprimiu a sua gratidão e empreendeu a marcha, viajando até que chegou ao castelo do segundo gigante, o qual surgiu a correr, enfurecido, com a intenção de o matar. O filho do rei apressou-se a dar-lhe um dos pães. Quando o teve nas mãos, o gigante disse:

— Isto vem da fornada da minha mãe.

O filho do rei recebeu ceia e alojamento, e o gigante perguntou-lhe:

— Onde te leva o teu caminho?

— Procuro a ilha Verde.

— Tentarei encontrar nos meus livros alguma indicação sobre ela. Se o conseguir, informar-te-ei pela manhã — comunicou, quando o filho do rei ia deitar-se.

— Descobriste alguma coisa? — perguntou este último, na manhã seguinte.

— Não — respondeu o gigante -, mas segue em frente por este caminho até chegares ao castelo de outro meu irmão, que vive longe daqui. Nada receies. Dá-lhe o pão e compreenderá.

O jovem andou até que chegou ao castelo do terceiro gigante, que se enfureceu ao avistar um desconhecido e surgiu a correr, disposto a matá-lo. Mas, quando o filho do rei lhe mostrou o pão, disse:

— Isto saiu do forno da minha mãe.

Deixou então o filho do rei entrar no castelo e deu-lhe ceia e alojamento.

— De manhã, dir-te-ei onde fica a ilha Verde — prometeu.

Quando amanheceu, o filho do rei perguntou-lhe:

— Dizes-me agora onde fica a ilha Verde?

O gigante, que era o senhor do ar, indicou:

— Acompanha-me lá fora. Vou chamar todos os pássaros do céu, para lhes perguntar onde se encontra a ilha Verde. — Com estas palavras, conduziu o filho do rei ao exterior do castelo e, uma vez diante da entrada, disse: — Esqueci-me do chifre em cima da mesa.

— Vou buscá-lo — declarou o filho do rei.

Correu para o local indicado, mas não conseguiu levantar o chifre, pelo que teve de ser o próprio gigante a fazê-lo. Soprou-o, e todas as aves do mundo acudiram à sua volta.

— Falta uma — observou o gigante. — A águia-dourada.

Tornou a soprar o chifre, para ver se a águia aparecia. Esperou um quarto de hora e soprou mais uma vez. Pouco depois, viu-a voar ao longe. Quando pousou no prado quase não podia falar, de tão cansada que estava.

— Não desanimes, nem te sintas amargurado — aconselhou ela. — E come só o que eu te trouxer.

Ele pôs de parte o que o rei lhe tinha enviado e o jovem serviu-lhe uma porção do seu próprio pequeno-almoço. O jovem tragou tudo e aguardou que o rei aparecesse.

— Que te pareceu o pequeno-almoço? — perguntou.

— Gostei muito — disse o filho do rei da Irlanda.

O monarca retirou-se e, à hora combinada, surgiu a filha mais jovem com a comida e ele deitou-a fora. Mais tarde, ela reapareceu com metade do seu próprio almoço e o filho do rei comeu tudo. À noite, o rei tornou a visitar a cela e anunciou:

— De manhã, tenho um trabalho para ti. Prepara-te.

Mais tarde, a filha mais jovem do rei conduziu-o aos seus aposentos, onde conversaram demoradamente. Por fim, ela advertiu-o:

— Tens de estar lá em baixo, antes que o meu pai te vá buscar, de manhã.

Com efeito, ele já regressara à cela quando o rei entrou e explicou:

— Há um estábulo para vacas, que não foi limpo uma única vez nos últimos cento e vinte e cinco anos, onde se encontra um broche que pertencia à minha bisavó. Vai proceder à limpeza e encontra-o.

O filho do rei da Irlanda pegou numa pá e dirigiu-se ao estábulo, o qual era tão grande que tinha quarenta janelas. Começou a trabalhar, mas cada vez que retirava uma pá cheia de lixo, entrava o correspondente a três através das janelas, pelo que se viu obrigado a abandonar precipitadamente o local para não ficar sepultado.

A jovem levou-lhe o pequeno-almoço e ele chorou de desespero.

— Que te aflige, agora? — perguntou ela.

— Trabalhei muito, mas passou a haver mais para limpar no estábulo do que quando comecei.

— Não chores mais, que farei a limpeza por ti.

Ato contínuo, ela principiou a trabalhar e, por cada uma das suas pazadas saía a voar pelas janelas o lixo correspondente a vinte e uma. Por fim, encontrou o broche, entregou-o ao filho do rei da Irlanda e recomendou:

— Não vás ao castelo até passar uma hora desde o meu afastamento. Quando o meu pai te pedir o broche, não lhe deves entregar. Alegas que não podes renunciar ao que a sorte te concedeu.

Quando ele chegou ao castelo, o rei perguntou-lhe:

— Encontraste o broche?

— Encontrei.

O rei pediu-lhe, mas o jovem disse que não lhe cederia, pois não podia renunciar ao que a sorte lhe tinha proporcionado. Por conseguinte, ficou com ele. O monarca voltou a mandá-lo para a cela e deixou o broche em seu poder. A sua filha mais jovem levou-lhe pão e água, que o jovem deitou fora. Mais tarde, cedeu-lhe metade da sua própria refeição. Ele comeu tudo, e a princesa disse que o levaria para o seu quarto à noite, mas devia regressar à cela antes que o pai aparecesse, de manhã cedo. Assim, à noite, conduziu-o aos seus aposentos no castelo, porém o jovem encontrava-se de novo na cela antes de o velho rei se apresentar.

— Hoje, tenho outra tarefa para ti.

— Não me podes encarregar de qualquer tipo de trabalho que não seja capaz de executar — declarou o filho do rei da Irlanda.

— Tenho um lago onde a minha bisavó perdeu um anel de ouro. Vais, pois, extrair toda a água e recuperar o anel.

O jovem pegou num balde e começou a retirar água do lago, mas, à medida que o fazia, tornava-se cada vez mais profundo. Finalmente, desanimado, sentou-se numa rocha e pôs-se a chorar. Ao meio-dia, a filha do rei levou-lhe metade do seu almoço e disse:

— Não deves pôr-te assim. Senta-te e come.

Em seguida, puxou do lenço e atirou-o ao lago, que começou imediatamente a secar, até que a água se extinguiu por completo. Ela encontrou o anel e entregou-o ao filho do rei da Irlanda, que se dirigiu para o castelo uma hora depois de se separar da princesa.

— Encontraste o anel que te mandei procurar, esta manhã? — perguntou o monarca.

— Encontrei.

— Dá-me.

— Não posso renunciar ao que a sorte me proporcionou — declarou o jovem, e ficou com o anel.

O rei mandou-o recolher à cela e enviou lá a filha mais jovem com pão e água, que o filho do rei da Irlanda deitou fora, como sempre. Mais tarde, ela levou-lhe metade do seu jantar e conduziu-o aos seus aposentos no castelo. Depois, disse:

— Agora, tens de voltar para a cela, antes que apareça o meu pai.

Ele correu para lá e acabava de chegar quando o rei fez a sua aparição.

— Como passaste a noite? — inquiriu.

— Na verdade, muito agradavelmente — respondeu o jovem.

— Tenho mais uma tarefa para ti.

— De que se trata?

— Há uma espada na copa de uma árvore e quero que me tragas.

O filho do rei pegou no seu machado e traçou uma linha em volta do tronco da árvore, para verificar se crescia, como acontecera ao lago e ao lixo do estábulo. Em seguida, começou a cortar a árvore, mas, a cada golpe que lhe aplicava, o tronco tornava-se cada vez mais grosso. Por fim, sentou-se e começou a chorar. A filha do rei apareceu então e disse-lhe:

— Não estejas triste, nem abatido. Eu própria derrubarei a árvore.

Com uma única machadada, fê-la tombar no chão, após o que retirou a espada da copa, entregou-a ao filho do rei da Irlanda e indicou-lhe:

— Volta ao castelo uma hora depois de mim. Se o meu pai te pedir a espada, não lhe entregues. Diz que não podes renunciar ao que a sorte te ofereceu.

Afastou-se e, uma hora mais tarde, o jovem seguiu o mesmo caminho.

— Derrubaste a árvore? — perguntou o monarca.

— Derrubei.

— Dá-me a espada.

— Não, porque não quero renunciar ao que a sorte me proporcionou.

Mandou-o voltar para a cela, depois de lhe dizer:

— Sei que todos os nativos da Irlanda sabem narrar contos. Esta noite, levar-te-ei aos meus aposentos. Quero que me contes alguns.

Assim fez. Entretanto, a filha mais jovem tinha disposto uma cama em cada lado do quarto — uma para o pai e a outra para o filho do rei da Irlanda. Providenciou para que as lanternas iluminassem pouco, pelo que o aposento estava imerso na penumbra. Depois, levou três pães grandes que ela própria tinha confeccionado, deixou um na cama do jovem, outro no chão, no meio do quarto, e o terceiro junto da porta. Por último, a princesa e o filho do rei da Irlanda puseram-se apressadamente em fuga.

— Muito bem, filho de um rei, começa o teu conto — disse o monarca.

O pão que se encontrava na cama iniciou a narração, a qual se prolongou tanto que ocupou grande parte da noite. No final, o rei reconheceu:

— É um bom conto. Agora, conta-me outro.

O pão que estava no chão, no meio do quarto, encetou a segunda narração e alongou-se tanto que, quando terminou, já quase era dia.

— Este conto também é muito bom — admitiu o rei. — Conta-me um terceiro.

O pão junto da porta disse:

— Vou contar um que te despertará a atenção, rei da ilha Verde. A tua filha fugiu esta noite com o filho do rei da Irlanda. Neste momento, encontram-se longe daqui e compete-te persegui-los.

O monarca levantou-se de um salto e, ao aproximar-se da cama onde supunha que se encontrava deitado o filho do rei da Irlanda, deparou-se-lhe o pão. Compreendeu que tinha sido obra da filha mais jovem, chamou as outras duas e partiram os três em perseguição dos fugitivos.

A filha mais jovem tinha a certeza de que o pai e as irmãs os perseguiriam, pelo que recomendou ao filho do rei da Irlanda que olhasse para trás e verificasse se vinha alguém no seu encalço.

Ele obedeceu e disse:

— Vejo três pássaros que nos seguem ao longe.

— Torna a olhar.

— Parecem três montões de feno.

— Olha mais uma vez.

Ele assim fez e anunciou:

— Parecem três montanhas.

— Atira o broche para trás de ti.

Atirou-o e, naquele momento, todo o campo se cobriu de enormes agulhões de aço, eretos como um bosque denso e sem ramos, perante o rei da ilha Verde e as suas duas filhas.

— Vão rapidamente a casa e tragam-me o martelo que deixei debaixo da cama — ordenou o monarca.

Elas não tardaram a reaparecer com o martelo, que era grande e pesado e com o qual o pai abriu caminho através dos agulhões de aço, pelo que puderam continuar em frente.

Pouco depois, a filha do rei indicou ao filho do rei:

— Olha para trás e verifica se consegues vê-los.

— Vejo três coisas do tamanho de pássaros a seguirem-nos.

— Torna a olhar — volveu ela, passado algum tempo.

— Agora, parecem três montões de feno.

— Olha mais uma vez.

— Parecem três montanhas.

— Atira o anel para trás de ti.

No momento em que ele obedeceu, todo o campo atrás deles se converteu num lago. O rei da ilha Verde não o podia atravessar, mas ordenou às duas filhas mais velhas:

— Vão a casa e tragam o balde que está no meu quarto.

Elas partiram apressadamente e não tardaram a voltar com o balde.

O monarca pegou nele e utilizou-o para secar o lago, após o que reataram apressadamente a marcha.

A filha mais jovem do rei ordenou ao filho do rei da Irlanda:

— Olha para trás e verifica se eles nos seguem.

— Parecem de novo três pássaros.

— Toma a olhar.

— São como três montões de feno.

— Olha mais uma vez.

— Parecem três montanhas.

— Atira a espada para trás de ti.

O jovem assim fez e todo o campo atrás deles se cobriu de um bosque tão denso, que ninguém o poderia atravessar.

O rei ordenou às filhas:

— Vão a casa buscar o machado.

Quando lhe entregaram, abriu caminho através do mato e reataram a perseguição a toda a velocidade.

Os dois fugitivos chegaram a um rio de quase dois quilômetros de largura. Saltaram para dentro de uma embarcação que havia na margem e remaram com todo o vigor. O rei da ilha Verde podia alcançar, de um salto, mais de um quilometro. A embarcação encontrava-se exatamente a essa distância, quando os perseguidores chegaram à margem. Ele deu um salto para a frente e foi pousar precisamente atrás dela. Naquele momento, o filho do rei da Irlanda atingiu-o na cabeça com o remo e o monarca morreu. Por conseguinte, ele e a princesa chegaram sem problemas à outra margem e seguiram em frente calmamente.

— Agora, já não temos de recear ninguém — reconheceram.

O filho do rei da Irlanda viajou com a filha do rei da ilha Verde, até que chegaram às proximidades do castelo do pai do primeiro.

— Aguarda aqui um momento — indicou ele. — Venho já buscar-te.

— Entretanto, não beijes ninguém, nem permitas que te beijem — advertiu a princesa. — De contrário, esqueces-me no mesmo instante.

O jovem entrou no castelo. Não beijou ninguém, nem consentiu que o beijassem, mas o seu cão, que estava deitado a um canto, levantou-se de um salto e beijou-o. Ato contínuo, esqueceu-se da princesa. Ela cansou-se de esperar e, como ele não aparecia, internou-se num bosque.

Havia aí um ferreiro, com a sua forja. Quando começou a anoitecer, a jovem trepou à copa de uma das árvores, junto da qual se encontrava um poço. A noite estava iluminada pelo luar e a serviçal do ferreiro aproximou-se para levar água. Ao ver o reflexo da jovem, julgou que era do seu rosto e exclamou:

— Que sorte a minha! Com uma cara assim tão bela e tenho de servir na cabana de um ferreiro!

Largou o balde, afastou-se, e o ferreiro não voltou a saber dela. A esposa esperava o regresso da moça e, receando que tivesse caído ao poço, foi procurá-la. Ao ver o reflexo na água, pensou que era o seu próprio rosto e lastimou-se:

— É vergonhoso para mim ser a mulher e escrava de um ferreiro, com os atributos físicos que possuo!

Por conseguinte, não voltou à casa do marido. Este foi procurar a serviçal e a esposa e, chegado ao poço, olhou para dentro, viu o reflexo, apercebeu-se de que era de uma mulher, voltou a cabeça para cima e avistou uma jovem na árvore.

— Desce daí — ordenou-lhe. — Por tua culpa, fiquei sem serviçal nem esposa. Agora, tens de vir comigo e cuidar da minha casa.

A princesa acompanhou-o e cozinhou para ele, até que, um dia, inteirou-se de que o filho do rei ia casar, e o ferreiro disse-lhe.

— Se fosses ao casamento, podias encontrar trabalho e ganhar algum dinheiro.

E ela foi. Na véspera da boda, tinha de se confeccionar um bolo enorme.

— Posso encarregar-me disso? — perguntou ao chefe de cozinha.

Este irritou-se e replicou:

— Não serias capaz.

Ela deu-lhe cinco moedas de ouro e o homem deixou-a preparar o bolo. Apressou-se a começar e incluiu nele o castelo do pai, o estábulo e o lago, para que o filho do rei os pudesse ver.

Quando apresentou o resultado, todos disseram:

— Há uma estranha no castelo.

Chamaram o chefe de cozinha, o qual explicou que tinha sido feito por uma jovem.

— Vai chamá-la — ordenou o rei.

Ela compareceu e ficou na sua comitiva. A noite, todos narraram contos e, no final, o monarca indicou-lhe:

— Agora, é a tua vez.

— Não sei nenhum — alegou ela -, mas, se me permitires, ensinar-lhes-ei um truque.

— Com certeza — disse o rei.

Lançou ao solo dois grãos de aveia, dos quais surgiram um galo e uma galinha. Em seguida, lançou outro entre ambos. A galinha apanhou-o e o galo picou-a.

— Não me terias feito isso no dia em que limpavas o estábulo e fui obrigada a ajudar-te — queixou-se a galinha.

A jovem lançou novo grão, com idêntico resultado: a galinha apanhou-o e o galo picou-a.

— Não me terias feito isso no dia em que esvaziavas o lago para encontrar um anel — lembrou a galinha.

A jovem lançou um terceiro grão, a galinha recolheu-o e o galo picou-a.

— Não me terias feito isso no dia em que derrubavas a árvore enorme para recuperar a espada do meu pai, nem quando cozi três pães grandes e fugimos.

De repente, o filho do rei recordou-se dela e reconheceu-a imediatamente, pelo que se voltou para o pai e anunciou:

— Não terei outra esposa que não seja esta mulher.

O filho do rei da Irlanda desposou a filha do rei da ilha Verde e viveram eternamente felizes.
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* Antigo desporte irlandês, semelhante ao hóquei moderno

Fonte:
http://guida.querido.net/contos/irlanda.htm