terça-feira, 19 de março de 2019

J. G. de Araújo Jorge (Inspirações de Amor) I


A MEU DIÁRIO

Mais que meu companheiro: confidente
dos momentos felizes e infelizes;
meu jardim de palavras, recônditas raízes.

O que penso tu pensas, o que dizes
é o que te diz minha ama, é o que ela sente,
por isso, em ti percebo as cicatrizes
que vão marcando o coração da gente

Em ti me ajoelho: és meu confessionário;
aqui desnudo a minha vida, e sinto
que és o espelho em que posso me rever;

arca de tantos sonhos, meu diário
a ti me entrego sem pudor, não minto,
se és pedaço do meu próprio ser!

AOS MEUS LEITORES

Para você, amigo ou amiga,
que encontraram a minha poesia na rua,
pouca e pobre, e a adotaram,
e a recolheram ao coração...

Todo o meu reconhecimento
por essa louca e nobre ação.
Em nome da minha poesia
agradeço-lhes a pura alegria,
  muito mais que alegria
Comunhão!

Que é Comunhão ou alegria
encontrar quem nos compreenda
quem nos estende a mão
quem partilhe conosco
pão e música na mesma canção.

A DOR MAIOR

Não quis julgar-te fútil nem banal
e chamei-te de criança tão-somente,
- reconheço, no entanto, infelizmente,
que, porque te quis bem, julguei-te mal.

Pensei até, ( e o fiz ingenuamente...)
ter encontrado a companheira ideal...
Quis julgar-te das outras diferente,
e és como as outras todas afinal...

Hoje, uma dor estranha me consome
e um sentimento a que não sei dar nome
faz-me sofrer, se lembro o amor perdido...

A dor maior... A maior dor, no entanto,
vem de pensar de ter-te amado tanto
sem que ao menos tivesses merecido!…

À ESPERA   

      Ela tarda... E eu me sinto inquieto, quando
  julgo  vê-la  surgir,  num  vulto,  adiante,
-  os  lábios  frios,  trêmula  e  ofegante,
os seus olhos nos meus, linda, fitando...

O céu desfaz-se em luar... Um vento brando
nas  folhagens  cicia,  acariciante,
enquanto com o olhar terno de amante
fico à sombra da noite perscrutando...

E ela não vem...Aumenta-me a ansiedade:
- o segundo que passa e me tortura,
é o segundo sem fim da eternidade...

Mas eis que ela aparece de repente!...
- E eu feliz, chego a crer que igual ventura
bem valia esperar-se eternamente!…

A LENDA QUE A BÍBLIA ESQUECEU...

Quando Deus modelou em estátua a mulher
com a argila dos barrancos,
fez seus seios, morenos,
ou brancos,
sem uma mancha sequer...

Esses cumes ousados, cor-de-rosa
dois alvos para o meu beijo,
ficaram como as manchas da primeira boca
faminta de desejo...

Porque o teu corpo (como o de todas as mulheres)
já trazia
muito antes de ser beijado,
as manchas indeléveis do primeiro dia
de pecado...

A LUZ

Ela veio... (E a minha alma tinha a porta
aberta, e ela entrou... Casa vazia
e estranha, esta que em plena luz do dia
lembrava a tumba de uma noite morta...)

Que ela havia chegado, eu nem sabia...
Mas, pouco a pouco, e a data não importa,
minha alma, por encanto, se conforta,
e há risos pela casa...E há alegria...

Quem abrira as janelas? Quem levara
o fantasma da dor sempre ao meu lado?
Os antigos retratos, quem rasgara?

E acabei por fazer a descoberta:
- ela espantara as sombras do passado
e a luz entrara pela porta aberta!

Não quis julgar-te fútil nem banal
e chamei-te de criança tão-somente,
- reconheço, no entanto, infelizmente,
que, porque te quis bem, julguei-te mal.

Pensei até, (e o fiz ingenuamente...)
ter encontrado a companheira ideal...
Quis julgar-te das outras diferente,
e és como as outras todas afinal...

Hoje, uma dor estranha me consome
e um sentimento a que não sei dar nome
faz-me sofrer, se lembro o amor perdido...

A dor maior... A maior dor, no entanto,
vem de pensar de Ter-te amado tanto
sem que ao menos tivesses merecido!...

A OUTRA VOZ...

"Se te pertence a vida, se em verdade
muito mais do que andaste ainda terás,
se com a esponja da tua mocidade
apagas tudo o que deixas atrás,

- esquece essa tristeza e as horas más,
crê na alegria e na felicidade..."

E eu apenas falei:- pensa e verás
que essa tua alegria é falsidade...

Confesso que a tristeza me apavora,
- mas para que de mim se desintegre
só matando a minha alma, onde ela mora...

E... tristeza maior, sei que ainda existe,
é essa tristeza de fingir-se alegre
numa alegria duplamente triste!

A ÚLTIMA ESTRELA

Voltaste as folhas, uma a uma, e agora
vais fechar este livro: a noite é finda...
O "meu céu interior..." já se descora
à luz de um dia que não vive ainda...

Não sei se achaste a minha noite linda,
se sentiste, como eu, o vir da aurora...
Vai a luz aumentando...A noite é finda
O "meu céu interior..." já se descora!...

Cada folha voltada, foi assim
como um raio de luz, a mais, brilhando...
- como uma estrela que encontrou seu fim...

Esta folha - é da noite, o último véu...
E este verso que lês, e vai findando,
a última estrela a se apagar no céu!...

A  VIDA
 
I
"...Mudarás, todos mudam, e os espinhos
com surpresa verás por todo lado,
- são assim nesta vida os seus caminhos
desde que o homem no mundo tem andado...

Não hás de ser o eterno namorado
com as mãos e os lábios cheios de carinho,
- hoje, juntos os dois... tudo encantado!
- amanhã, tudo triste... os dois sozinhos!...

E sentindo o teu braço então vazio,
abatido verás que não resistes
à inclemência do tempo úmido e frio!

Rolarás por escarpas e barrancos:
sobre o epitáfio dos teus olhos tristes
trazendo a campa dos cabelos brancos!"

II
" … Tem sido assim e assim será... Mais tarde
o que hoje pensas chamarás: - quimera!
E esse esplendor que nos teus olhos arde,
será a visão de extinta primavera...

Escondido à traição, como uma fera,
bem em silêncio, e sem fazer alarde,
o Destino que é mau e que é covarde,
naquela sombra adiante já te espera!  

E num requinte de perversidade
faz de cada ilusão, de cada sonho,
a ruína de uma dor... e uma saudade...

E se voltares, notarás então
desesperado, ao teu olhar tristonho
que em vão sonhaste... e que viveste em vão!..."

III
"...A vida é assim, segue e verás, - a vida
é um dia de esperança, um longo poente
de incertezas cruéis, e finalmente
a grande noite estranha e dolorida...

Hoje o sol, hoje a luz, hoje contente
a estrada a percorrer suave e florida...
- amanhã, pela sombra, inutilmente
outra sombra a vagar, triste e perdida...

A vida é assim, é um dia de esperança
uma réstia de luz entre dois ramos
que a noite envolve cedo, sem tardança...

E enquanto as sombras chegam, nós, ao vê-las,
ainda somos felizes e encontramos
a saudade infinita das estrelas!..."

IV
"...A vida é assim, uma ânsia... feito a vaga
que se ergue e rola a espumejar na areia,
- a por esse bem que a tua mão semeia
espera o mal que ainda terás por paga!

A essa hora boa que te agrada e enleia
sucede uma outra torturante e aziaga,
- a vida é assim... um canto de sereia
que à morte nos convida, e nos afaga...

O teu sonho melhor bem pouco dura,
e há sempre "um amanhã" cheio de dor
para "um hoje" nem sempre de ventura...

Toma entre as mãos o búzio da alegria
e surpreso verás que no interior
canta profunda e imensa nostalgia!..."

V
Isso tudo nos dizem, - entretanto
nós dois seguimos braços dados,
creio que se tu sabes que te adore tanto
do que ouviste talvez não tens receio...

A vida, - é o nosso amor, o nosso encanto!
Nem a podemos mais parar no meio...
Chorar? - bem sei que choras, mas teu pranto
é a alegria que canta no teu seio...

O mundo é bom e nós o cremos, basta!
E se um amor tão grande nos enleva
e pela vida unidos nos arrasta,

- que eu te abrace e te apoies sempre em mim,
e desafiando o mundo envolto em treva
sigamos juntos para um mesmo fim !

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. Os Mais Belos Poemas Que O Amor Inspirou. vol. 1. SP: Ed. Theor, 1965.

Mia Couto (A Adivinha)


Tudo é um jogo, brincriável. Há o homem, isso é fato. Custa é haver o humano. A vida descostura, o homem passa a linha, a corrigir os panos do tempo. Mimirosa, a menina, nada sabia desses acertos. Acreditava ser tudo simples como o molhado e água, poeira e chão. E assim, tudo em tamanho não aparado: os senhores em infância, as coisas sem consequência.

Seus pais se preocupavam. Passava a idade e Mimirosa demorava a aprender o regime da realidade. Que há deveres, e as contas do ter e do haver. E o ser é apenas o que resta. Noves fora, novos de fora.

Quem estragava esse amadurecimento da miúda era sua avó, Ermelinda. A senhora se convertera em parceira de infância, ancorada em irresponsabilidade. Em meia palavra: era companhia a se evitar. Os pais de Mimirosa assim julgavam. A menina devia era evitar os risos, disciplinar arrebatamentos. A escola, em primeiro lugar. A avó, sabia-se, desprezava a escola. Que se aprende mais é fora dela, no calor da família, em redondezas de carinho. Mimirosa estava, por isso, proibida de frequentar a companhia de Ermelinda. Não queriam nem que fosse vista junto, perto do caminho da avó. A menina era conduzida, de mão acompanhada, até às imediações escolares, onde já não poderia desviar a direção. Imaginava-se. Porque ela, mal se soltava das vistas, se internava no atalhozinho que dava na casa da avó. Ali gazeteava dos deveres, entretida nos nenhuns afazeres da velha senhora. Conforme os olhos distraídos da velha ela ajudava, retificando um aqui no além ela. Até que, inevitável, chegava o jogo da adivinhação.

- Qual é um rio que não tem senão uma margem?

- Isso é coisa que não pode, avó! E do outro lado fica o quê?

- Pense, se ensine. Já sabe que o prêmio que há de haver...

Prêmio que haveria era só ao serem as duas, ali, no escondido. A velha deixava o mistério durar, pairada, parada. A pergunta labirintava na cabeça de Mimirosa. Podia um rio assim? Ou já se viu a estrada correr sem o amparo de duas ambas bermas?

- Mas há o prêmio de verdade?

- Se você‚ adivinhar esse mistério, o mundo vai ficar tão admirado que até o tempo há de parar.

- Jura, avozinha? - aberlindavam-se os olhos dela.

E voltavam às lides, sem obrigação de nada. O jardim da casa parecia obra de inventar. Um só arbustozinho nele cabia.

- Vês a sombra? Essa sombra é pequena. Mas existe uma sombra que é da terra toda inteira.

Voltada à casa, a menina era inquirida pelos pais, perguntas sem mistério, coisas de calcular o futuro: quando fores grande já escolheste o que vais ser? Simplesmente, ela não sabia querer ser grande. E, assim, sua ausência na resposta.

- Ela vai ser doutora hospitalar, vaticinava a mãe.

- Ou dessas que faz as contas e faz crescer dinheiro, preferia o pai.

- Tudo serás filha, mas não queremos que sejas como nós.

  A menina se admirava: aqueles não gostavam de si mesmos? Por que razão eles queriam que ela lhes fosse diferente? Só a avó gostava de ser como era, cuidadosamente desarrumadinha. Como deviam ser infelizes, aqueles dois, seus pais.

Até que, uma tarde, veio o alvoroço. A velha Ermelinda se sentira mal, o peito dela se amarrotara. Mimirosa, nesses dias, deixou a escola. Mas não a deixaram entrar na velha casinha. A senhora não reconhecia ninguém, ela se convertera em fundo escuro. Nenhuma luz a trazia à superfície de si mesma. E, assim, somaram-se os dias. Mimirosa, obrigada e vigiada, voltou à escola. A sombra do morcego se desenha no teto? Pois o pensamento da neta não saía do mesmo assunto: saudade de sua avó.

Um dia, enquanto seu olhar fingia percorrer o caderninho, a menina pulou da carteira e se flechou porta afora. Escapou da escola e correu pelos campos. Ninguém a viu penetrar na penumbra da casa, ninguém suspeitava que se anichara, ofegante, na cabeceira da moribunda avó.

- Avó, sei a adivinha!

  No rosto da senhora nenhum sinal, nem uma ruga se alterou. Parecia que Ermelinda já cruzara aquele risco feito na água, fronteira entre a vida e a morte.

- Lembra a adivinha, vó? Aquela do rio de um lado só?

  E os olhos da menina se atabalhoaram de água, sentida sozinha no grande mundo. A mão dela ainda arriscou tocar no braço da avó. Mas teve medo. E se chorou! O caderninho órfão, em suas mãos, sofria a catarata das lágrimas. Até que os braços do pai a puxaram. Primeiro ela cedeu. Mas depois esgueirou-se, por um instante, e depositou o caderninho escolar no leito da água. Estava aberto numa figurinha do oceano, mais suas criaturas profundas. E a voz da menina tombada com um derradeiro lenço:

- É o mar, avó. Esse cujo rio; é o mar.

  Já se retiravam daquele luto, todos mais Mimirosa quando os dedos da avó tatearam o ar e, cegos, chegaram até no caderno. Depois, acariciaram o azul da imagem. E o caderno começou a pingar, como se o papel não mais contivesse aquela água.

Concurso Internacional de Trovas do Panamá 2019 (Resultado Final)




Tema : PONTE 

Vencedores

1° lugar 
Tosca ponte esperançosa
contempla o leito vazio
e aguarda a chuva copiosa
lhe trazer, de volta, o rio...
Élbea Priscila de Sousa e Silva
 Caçapava / SP

2° lugar
Mudanças eu fiz, milhões!...
Tantas pontes transpassei
para quebrar meus grilhões
e buscar o que sonhei!
Dáguima Verônica de Oliveira
Santa Juliana / MG

 3° lugar
Existe um novo horizonte,
onde Deus nos dá guarida,
ao cruzarmos pela ponte
para o outro lado da vida!!
Joaquim Carlos Trovador
Nova Friburgo / RJ

4° lugar
Essa ponte que interliga
dois corações,  em verdade,
é tão forte!...  E forte siga,
a honrar seu nome: - Amizade!
Carolina Ramos
Santos / SP

5° lugar
Perdido em pleno horizonte,
lamento os dias tristonhos,
porque não soube ser ponte
sobre os rios dos meus sonhos.
Francisco Gabriel Ribeiro
Natal / RN

Menção  Honrosa

1° lugar
Quando estendo minha mão,
destruindo meu rancor,
e perdoando o meu irmão,
construo a ponte do amor.
Madalena Ferrante Pizzatto
Curitiba / PR

 2° lugar
Puras em seus burburinhos,
descendo de suas fontes,
as águas cortam caminhos
e a gente as corta com pontes.
Messias da Rocha
Juiz de Fora / MG

3° lugar
A ponte sobre o regato
encerra tanta lembrança,
me faz reviver, de fato...
Os meus tempos de criança!
 Maria Marlene Nascimento Teixeira Pinto
Taubaté / SP

4° lugar
Olhando para o futuro
deste mundo virtual,
tem a ponte no escuro
que nos leva ao irreal.
José Ribeiro Sobrinho
Ibatiba / ES

5° lugar
Doce  ponte  da  lembrança
que  faz  o  tempo  voltar
na  saudade,  na  esperança,
no  sonho  de  te  encontrar...  
Elias Pescador    
São Paulo / SP

Menção Especial

1° lugar
Tal qual ponte que nos leva
a transpor qualquer barreira
a ternura nos enleva
e é dos sonhos mensageira!
Talita Batista
Campos dos Goytacazes / RJ

2°lugar 
A velha ponte em frangalhos
com seus pilares ruídos...
Hoje não passa de atalhos
transportando os tempos idos!
Edy Soares
Vila Velha / ES

3°lugar
Luiz Otávio já previa,
por amor à humanidade,
que a Trova sempre seria
a ponte para a amizade.
Nei Garcez
Curitiba / PR

4°lugar
A vida lembra uma estrada
em comparações singelas:
quando a ponte é interditada
dá-se valor às pinguelas.
Arlindo Tadeu Hagen
Juiz de Fora / MG

5°lugar
A enxurrada de ciúme
que quase afogou nós dois,
impediu com um tapume,
a ponte para um “depois”. 
Lóla Prata
Bragança Paulista / SP 

Comissão Julgadora:

Luis Carlos Abritta
Mifori
Vanda Fagundes Queiróz

Fonte: Maria Luiza Walendowski

segunda-feira, 18 de março de 2019

Virgílio Maia (Poemas Recolhidos)


A CASA DO SAQUINHO
Décima com mote de domínio público

Já não se ouvem as pisadas,
os risos, as brincadeiras
e o cheiro das trepadeiras
hoje são coisas passadas.
Tinha as paredes caiadas,
em volta um jardim florindo.
Pois tudo aquilo está findo,
que do ontem restou um nada,
casa velha abandonada
que o tempo vai demolindo.

ALVENARIA

Sobre pedras se eleva este soneto,
em trabalhosa faina alevantado,
as linhas definidas no traçado
da perfeição do prumo e nível reto.

Dentre tantos eleito, põe-se ereto
rima por rima, embora recatado;
ao martelar do metro faz-se alado,
opondo ao som a luz deste quarteto.

Sobre andaime de verso e de ciência
necessário a erguer prova tão dura,
deixa o pedreiro, alçado, o rés-do-chão.

E sobranceiro ao mundo, àquela altura,
Vai concluir, com brava paciência,
A obra em que balança o coração.

A SENHA
         de uma antiga balada cretense

Amada minha, trago estes limões
neste lenço de seda do Oriente.
Foi tudo o que obtive estando ausente
em tantos anos de navegações.

Trago-te a mim, te entrego os corações
que flechados e azuis tenho nos braços.
Quero agora guiar-me por teus passos
e no teu corpo haurir loucas lições.

Abre a porta, não vês que sou eu mesmo?
Sei que o tempo passou enquanto a esmo
doido amante dos mares perlustrei-os.

Sou eu, só eu. Abre esta porta, peço,
pois quem mais saberá deste endereço,
daquele sinalzinho entre os teus seios?

AS HORAS SERTANEJAS

Não lhes direi do presente,
mas de um tempo que se foi,
do Sertão-do-nunca-mais,
do couro, de muito boi,
dos aboios, das cantigas
dos velhos carros-de-boi.

Aqui tenho por meu guia
um livro muito afamado,
redigido por grande homem
do nosso vizinho estado.
Luís da Câmara Cascudo,
um potiguar arretado.

Há de ser sempre lembrado,
pelo muito que escreveu.
Qual ele quase ninguém
nossas coisas percorreu,
anotando com carinho
tudo o que viu e o que leu.

Quase uma grosa nos deu
de preciosos estudos
sobre as mais diversas coisas,
até linguagem dos mudos,
obras por todos buscadas,
por mor de seus conteúdos.

Escreveu sobre os escudos,
os que Holandês invasor.
às nossas Capitanias,
sob o lábaro tricolor,
certo dia achou por bem
fazer-se de doador.

O tempo tudo destrói,
coisa alguma lhe resiste.
Passam os anos., passam os homens,
e passa o que mais existe,
e a vida se vai passando,
nos mostra o ponteiro em riste.

Embora não mais se aviste
o Sertão velho, avoengo,
vou lhe falar de um relógio
muito antigo e solarengo,
 se rima Deus me mandar
aqui para o velho quengo.

No tempo do realengo,
o dos nossos bisavós,
era tudo mais tranquilo
não havia quiprocós
sendo as coisas mais de jeito,
as cordas com poucos nós.

Não se tinham tantos prós
e contras como hoje em dia,
a vida passava calma.,
fluíam. sem correria,
as horas sem muita pressa,
bem lentas. sem agonia.

Do aboio fala. Senhores,
este canto em que o Sertão
se acalma, se põe dolente,
e que qualquer barbatão
ouvindo vai pro curral,
os olhos postos no chão.

Cacimba roubada, então,
é capítulo sem ruindade.
Um é bom, dois é melhor,
 três é ruim...  diz a verdade
o lusitano afamado,
Antônio Galvão de Andrade.

Esta obra de qualidade
traz em sua introdução
das horas os antigos nomes,
que se usavam no Sertão
e que agora eu cordelizo,
pedindo muita atenção.

Uma bela ilustração
a cada hora corresponde,
da lavra de mestre Audifax,
artista que não se esconde,
se se exibe um texto a ele
com um desenho responde.

FOTOS

Deste antigo retrato, com firmeza,
meu avô me interroga bem de perto,
com aquela usual branda aspereza
que criança, me punha em desconcerto.

Na lapela, uma flor, que ele por certo
deixou emurchecida sobre a mesa
e do alto colarinho o branco aperto
incomodava-o um pouco, com certeza.

Tendo ao lado meu pai, que é filho seu,
certamente renovam velhos planos
de terra e gado, açudes e destino.

No fervor de seus vinte e tantos anos,
miram-me, mais novos do que eu,
e assim mesmo, para eles sou menino.

ILUMIARA

Quem pintou essas pedras no Sertão,
nessa tinta que nunca mais se apaga?
E para quem nosso ancestral pintava
brutas cenas de caça e aquela mão?

Tais secretos mistérios estarão
insondáveis nas cores dessas aras:
candelabros ou onças avermelhadas,
mais figuras que seguem em procissão.

Contou-me um dia uma mulher velhinha
que numa noite escura ela passou
se benzendo de medo pela Pedra.

E viu, jurou que viu, vinha sozinha,
que o enorme Gavião se desgarrou
da pintura, gritando feito a Fera.

SONETO ALADO COM CAVALO BRANCO

Trovejante trovão troou no céu,
a treva transformando em claro dia;
transumano contraste sucedeu,
transmudando pavor em alegria.

Foi aquilo verdade ou foi um sonho,
realidade vera ou fantasia,
quando inteiro Sertão tremeu medonho,
obedecendo antiga profecia?

Ao perpassar das éguas e das nuvens,
em crescente o cavalo pôs-se alado,
 guerreiro fez-se, ao Norte e no passado.

Mastigando luares de marfim
na tarde foi -se, galopando aléns,
entre talos de doce gergelim.

UM BUJÃO DE GÁS

Prateado, bojudo, gordo, anão,
num escuro recanto relegado,
humilde é Prometeu acorrentado
por plástica corrente a um fogão.

Traz no bojo ancestral ignição
ofertada da chama no azulado,
na memória assoprando inesperado
espeleológico arco de um tição.

Reside nele a flama do carvão,
labareda eternal em combustão,
homenagem de fogo a quem ousou:

homem primevo, rude antepassado,
que acendendo o futuro, desgrenhado,
num gesto só o fogo arrebatou.

UM CATA-VENTO DE BRINQUEDO

De extinto cacimbão o cata-vento
puxa ao meu rosto as águas de outra idade.
Ele é só um brinquedo, mas vale
pelas recordações que guardo dentro

do menino que mora aqui ao lado,
e sabendo de cor a cor dos ventos,
tem na ponta da língua, decorados,
uns gestos infantis de cata-ventos.

Flandre e ferro somados pela solda:
sendo brinquedo, brinca no jardim,
à brisa mais maneira já se alegra.

Brinca sem compromisso, roda e roda,
se fingindo irrigante desta terra,
num faz-de-conta de aguar jasmins.

Inglês de Souza (Tentação)


 Eram monótonos os dias no sítio do furo da Sapucaia. Padre Antônio de Morais acordava ao romper d'alva, quando os japins, no alto da mangueira do terreiro, começavam a executar a ópera - cômica cotidiana, imitando o canto dos outros pássaros e o assovio dos macacos. Erguia-se molemente da macia rede de alvíssimo linho, a que fora outrora do Padre-Santo João da Mata - espreguiçava-se, desarticulava as mandíbulas em lânguidos bocejos, e depois de respirar por algum tempo no copiar a brisa matutina, caminhava para o porto, onde não tardava a chegar a Clarinha, de cabelos soltos e olhos pisados, vestindo uma simples saia de velha chita desmaiada e um cabeção de canícula enxovalhado. Metiam-se ambos no rio, depois de se terem despido pudicamente, ele oculto por uma árvore, ela acocorada ao pé da tosca ponte do porto, resguardando-se da indiscrição do sol com a roupa enrodilhada por sobre a cabeça e o tronco. Depois do banho longo, gostoso, entremeado de apostas alegres, vestiam-se com idênticas precauções de modéstia, e voltavam para a casa, lado a lado, ela falando em mil coisas, ele pensando apenas que o seu colega João da Mata vivera com a Benedita da mesma maneira que ele estava vivendo com a Clarinha. Quando chegavam a casa, ele ficava a passear na varanda, para provocar a reação do calor, preparando um cigarro enquanto ela lhe ia arranjar o café com leite. João Pimenta e Felisberto passavam para o banho, depois de uma volta pelo cacauzal e pela malhada, a ver como ia aquilo. Servido o café com leite, auxiliado de grossas bolachas de carregação ou de farinha-d'água, os dois tapuios saíam para a pesca, para a caça ou iam cuidar da sua lavourazinha. A rapariga entretinha-se em ligeiros arranjos de casa, em companhia de Faustina, a preta velha, e ele, para descansar da escandalosa mandrice, atirava o corpo para o fundo duma excelente maqueira de tucum, armada no copiar - para as sestas do defunto Padre-Santo. A Clarinha desembaraçava-se dos afazeres domésticos, e vinha ter com ele, e então o Padre, deitado a fio comprido, e ela sentada na beira da rede passavam longas horas num abandono de si e num esquecimento do mundo, apenas entrecortado de raros monossílabos, como se se contentassem com o prazer de se sentirem viver um junto do outro, e de se amarem livremente à face daquela esplendorosa natureza, que num concerto harmonioso entoava um epitalâmio eterno.

Às vezes saíam a dar um passeio pelo cacauzal, primeiro teatro dos seus amores, e entretinham-se a ouvir o canto sensual dos passarinhos ocultos na ramagem, chegando-se bem um para o outro, entrelaçando as mãos. Um dia quiseram experimentar se o leito de folhas secas que recebera o seu primeiro abraço lhes daria a mesma hospitalidade daquela manhã de paixão ardente e louca, mas reconheceram com um fastio súbito que a rede e a marquesa, sobretudo a marquesa do Padre-Santo João da Mata, eram mais cômodas e mais asseadas.

Outras vezes vagavam pelo campo, pisando a relva macia que o gado namorava, e assistiam complacentemente a cenas ordinárias de amores bestiais. Queriam, então, à plena luz do sol, desafiando a discrição dos maçaricos e das colhereiras cor-de-rosa, esquecer entre as hastes do capim crescido, nos braços um do outro, o mundo e a vida universal. A Faustina ficara em casa. João Pimenta e o Felisberto pescavam no furo e estariam bem longe. Na vasta solidão do sítio pitoresco só eles e os animais, oferecendo-lhes a cumplicidade do seu silêncio invencível. A intensa claridade do dia excitava-os. O sol mordia-lhes o dorso, fazendo-lhes uma carícia quente que lhes redobrava o prazer buscado no extravagante requinte.

Mas esses passeios e diversões eram raros. De ordinário quando João Pimenta e o neto voltavam ao cair da tarde, ainda os encontravam na maqueira, embalando-se de leve e entregando-se à doce embriagues dum isolamento a dois.

Findo o jantar, fechavam-se as janelas e as portas da casa, para que não entrassem os mosquitos. Reuniam-se todos no quarto do Padre, à luz vacilante de um candeia de azeite de andiroba. Ela fazia renda de bico, numa grande almofada, trocando com agilidade os bilros de tucumã com haste de cedro envolvida em linha branca. João Pimenta, sentado sobre a tampa de uma arca velha, mascava silenciosamente o seu tabaco negro. Felisberto, sempre de bom humor, repetia as histórias de Maués e os episódios da vida do Padre-Santo João da Mata dizendo que o seu maior orgulho eram essas recordações dos tempos gloriosos em que ajudara a missa de opa encarnada e turíbulo na mão. Padre Antônio de Morais, deitado na marquesa de peito para o ar, com a cabeça oca e as carnes satisfeitas, nos intervalos da prosa soporífera de Felisberto assoviava ladainhas e cânticos de igreja.

Pouco mais de uma hora durava o serão. A Faustina trazia o café num velho bule de louça azul, e logo depois, com lacônico e anêpetuna - boa-noite, se retirava o velho tapuio. Felisberto ainda se demorava alguma coisa a caçoar com a irmã, jogando-lhe graçolas pesadas que a obrigavam a arregaçar os lábios num aborrecimento desdenhoso. Depois o rapaz saía, puxando a porta e dizendo numa bonomia alegre e complacente:

- Ara Deus dê bás noites pra vuncês.

Isto fora assim dia por dia, noite por noite, durante três meses. Uma tarde, ao por-do-sol, o Felisberto voltara de uma das suas costumadas viagens a Maués, trazendo aquela notícia em que jazia. Encontrara em Maués um regatão de Silves, um tal Costa e Silva - talvez o dono do estabelecimento - Modas e Novidades de Paris - que lhe contara que a morte de Padre Antônio de Morais, em missão na Mundurucânia, passara como certa naquela vida, e tanto que se tratava de lhe dar sucessor, acrescentando que a escolha de S. Exma. Revma. já estava feita. Foi quanto bastou ao vigário para o tirar do delicioso torpor em que mergulhara toda a sua energia moral, na saturação de deleites infinitos, despertando-lhe as recordações de um passado digno. E com o olhar perdido, imóvel, sentado junto à mesa de jantar, uma ideia irritante o perseguia. Teria o Felisberto, trocando confidência por confidência, revelado ao Costa e Silva a sua longa permanência na casa de João Pimenta? Esta ideia lhe dava um ciúme áspero da sua vida passada, avivando-lhe o zelo da reputação tão custosamente adquirida; e que agora se evaporaria como fumo tênue, pela indiscrição de um palerma, incapaz de conservar um segredo que tanto importava guardar.

O primeiro movimento do seu espírito, acordado, por aquela brusca evocação do passado, do marasmo em que o haviam sepultado três meses de prazeres, era o cuidado do seu nome. Não podia fugir à admissão daquela dolorosa hipótese que a conhecida loquacidade do rapaz lhe sugeria. A sua vida presente teria sido revelada aos paroquianos, acostumados a venerá-lo como a um santo e a admirar a rara virtude com que resistia a todas as tentações do demônio. A consciência, educada no sofisma, acomodara-se àquela vilegiatura da ininterrompidos prazeres, gozados à sombra das mangueiras do sítio. A rápida degradação dos sentimentos, que o rebaixara de confessor da fé à mesquinha condição de mancebo de uma mameluca bonita, fizera-lhe esquecer os deveres sagrados do sacerdócio, a fé jurada ao altar, a virtude de que tanto se orgulhava. Mas na luta de sentimentos pessoais e egoísticos que lhe moviam e determinavam a conduta, mais poderosas do que o apetite carnal, agora enfraquecido pelo gozo de três meses de volúpias ardentes, punham-se em campo a vaidade do Seminarista, honrado com os elogios do seu Bispo, e a ambição de glória e renome que essa mesma vaidade alimentava. Confessava-o sem vergonha alguma, analisando friamente o seu passado: caíra no momento em que, limitado a um meio que não podia dar teatro à ambição nem aplausos às virtudes, isolado, privado do estímulo da opinião pública, o ardor do seu temperamento de matuto criado à lei da natureza, mas longamente refreado pela disciplina da profissão, ateara um verdadeiro incêndio dos sentidos. A mameluca era bela, admirável, provocadora, a empresa fácil, não exigia o mínimo esforço. E agora que para ele o amor já não tinha o encanto do mistério, agora que sorvera longa e gostosamente o mel da taça tão ardentemente desejada, os sentidos satisfeitos cediam o passo a instintos mais elevados, posto que igualmente pessoais.

Mas vinha o pateta do Felisberto com a sua habitual tagarelice, e desmoronava aquele tão bem arquitetado edifício da reputação do Padre Antônio de Morais, precioso tesouro guardado no meio da abjeção em que caíra. O missionário ia ser abatido do pedestal que erguera sobre as circunstâncias da vida e a credulidade dos homens, e, angústia incomparável que lhe causava o triste clarão da condenação eterna surgindo de novo quando se rasgava o véu da consciência - a inconfidência de Felisberto vinha até impossibilitar ao Padre o arrependimento, com que sempre contara como o náufrago que não deixa a tábua que o pode levar à praia. Como arrepender-se agora que a falta era conhecida, que o prestígio estava reduzido a fumo? Iria buscar a morte às aldeias Mundurucoas? Ninguém acreditaria que um Padre devasso e preguiçoso pudesse sinceramente fazer-se confessor da Fé e mártir de Cristo, e se viesse a morrer naquelas aldeias, não celebrariam o seu nome como o de um missionário católico que a caridade levara a catequizar selvagens, mas todos atribuiriam a tentativa a uma curiosidade torpe, se não vissem no passo uma mistificação nova, encobrindo a continuação da vida desregrada do sítio da Sapucaia.

sábado, 16 de março de 2019

Francisco José Pessoa (BRASILIDADE - Um canto de amor à Pátria)


(poema classificado no Concurso do Café Patriota)

Idolatrada Pátria abençoada
por Deus, nosso magnânimo arquiteto,
que pôs beleza no teu chão e teto
e fez ramagens para a passarada.
Se feio fez, foi pouco, quase nada,
de belo Ele fez muito, estando às provas,
o sobe e desce de belas corcovas
o choramingo das tuas cascatas
o sopro alegre do vento nas matas
e o vaivém de um mar que se renova.

És tudo isso, Brasil, e muito mais...
o teu perfil de mãe me dá direito
de sentir-me afagado no teu peito
pois ouvir teu ninar me deixa em paz...
isso torna teu filho mais capaz
de lutar com amor e temperança,
hasteando a bandeira da esperança
honrar o dizer Ordem e Progresso
junto a ti, meu Brasil, sou réu confesso
quero  estar preso a ti, sem ter fiança.

Fonte:
Poema enviado pelo poeta

Trovas sobre Ciúme I


Estranha dor, que persiste
teimosa como um perfume:
já cicatriza a saudade
- e dói-me ainda o ciúme.
Anderson Braga Horta
Brasília/DF


O amor me fez tresloucado,
a saudade me fez triste.       
Mas foi com as farpas do ciúme
que mais fundo me feriste.
Anderson Braga Horta
Brasília/DF


Guarda este pranto, sê forte,
foi pra morrer que nasci.
Ou tens ciúme da morte
que quer levar-me de ti?
Anis Murad   
Rio de Janeiro/RJ, 1904 - 1962   

No vazio dos meus dias,
fico a pensar no meu bem:
as suas horas vazias
são preenchidas por quem?
Anis Murad   
Rio de Janeiro/RJ, 1904 - 1962


O ciúme, sem exagero,
tempera o amor com seu sal...
Mas também, sendo tempero,
em demasia faz mal !       
Archimimo Lapagesse 
Florianópolis/SC, 1897 – 1966, Rio de Janeiro/RJ   


Se o Amor é cego, o Ciúme
índa é mais cego, porque,
não vendo nada, presume
que vê bem o que não vê!
Archimimo Lapagesse 
Florianópolis/SC, 1897 – 1966, Rio de Janeiro/RJ   

Despertei sobressaltada
ouvindo-o dizer: "meu bem!"
Pus-me a escutá-lo intrigada,
ele sonha... mas com quem?
Carolina Azevedo Castro
Recife/PE, 1909 - ????, Curitiba/PR


Não é quando vais embora
que tenho ciúmes assim,
é quando estás como agora,       
pensativo, junto a mim.        
Carolina Azevedo Castro
Recife/PE, 1909 - ????, Curitiba/PR

A vida às vezes resume
contrastes deste teor:      
só se morre de ciúme       
quando se vive de amor.
Colbert Rangel Coelho
Pitangui/MG, 1925 - 1975, Rio de Janeiro/RJ

Quando o ciúme deu fim
do nosso amor, duvidei.    
Não supunha que cupim
desse em madeira de lei.     
Colbert Rangel Coelho
Pitangui/MG, 1925 - 1975, Rio de Janeiro/RJ

Amor que não tem ciúme           
lembra a guitarra sem fado;
lareira fria, sem lume;
um verso de pé quebrado      
Durval Mendonça  
Rio de Janeiro , 1906 – 2001


Dizes que sou ciumento.        
Não posso contradizer-te
se vivo a todo momento
o momento de perder-te.
Durval Mendonça  
Rio de Janeiro , 1906 – 2001


Duas vidas separadas,
dois amores... Dois queixumes...
Duas saudades... Dois nadas...
Somos nós dois, - dois ciúmes!...
Edgard Barcelos Cerqueira
Rio de Janeiro/RJ, 1913 - ????


Vou confessar a verdade:
o meu amor se resume,
de longe, - em sentir saudade...
de perto, - em sentir ciúme!
Edgard Barcelos Cerqueira
Rio de Janeiro/RJ, 1913 - ????


Sou ciumenta e não minto,
é bom que saibas, meu bem:
o que for meu, não consinto
que seja de mais ninguém.
Iraci do Nascimento e Silva
Natividade/RJ, 1913 - ????, Rio de Janeiro/RJ


Nas lindas noites de lua
que ciúme sofre o mar
vendo a rocha, toda nua
sob os beijos do luar.
Jesy Barbosa
Campos/RJ, 1902 - 1987, Rio de Janeiro/RJ


Quanto mais teu corpo enlaço
mais padeço o meu tormento,
por saber que o meu abraço
não prende o teu pensamento!
Jesy Barbosa
Campos/RJ, 1902 - 1987, Rio de Janeiro/RJ


Não condenes, por favor,
os meus ciúmes, Maria.
Olha que os cegos de amor
também precisam de guia!   
José Maria Machado de Araújo 
Vila Nova de Famalicão/Portugal, 1922 – 2004, Rio de Janeiro/RJ   

Disse: "Que trova bonita!"
Mas tu não ouviste bem
e logo indagaste aflita:
"Quem é que é bonita, quem?"
José Maria Machado de Araújo 
Vila Nova de Famalicão/Portugal, 1922 – 2004, Rio de Janeiro/RJ   

Nisto afinal se resume
teu sofrimento sem fim:       
só por não ter eu ciúme,     
tens tu ciúme de mim.        
Paulo Emílio Pinto 
Conselheiro Lafaiete, 1906 – ????, Belo Horizonte/MG


Fonte:
Luiz Otávio e J.G. de Araujo Jorge (org.). Coleção “Trovadores Brasileiros”. Editora Vecchi, 1959.

Chico Anísio (Não se põe Amendoim nos Ouvidos)


   Com tantos lugares maiores e mais práticos, o menino achou de enfiar o amendoim exatamente no ouvido. Ouvido esquerdo, que foi o escolhido por comodidade, visto tratar-se de um menino canhoto.

   A família, na Tijuca, em meio ao ajantarado do domingo, mesmo na hora em que o pai procurava uma sintonia melhor para escutar as corridas, ficou em pânico por causa de uma frase.

   — Mãe — disse o menino que enfiara o amendoim no ouvido —, não estou ouvindo direito.

   — Não está ouvindo direito, como? — indagou a mãe.

   — Como? — inquiriu o menino dando uma inflexão diferente ao advérbio.

   — Tua mãe está perguntando — intrometeu-se o pai abandonando, durante o que dizia, a sintonia no rádio — como é que você não está ouvindo direito. Entendeu?

   — O senhor está perguntando se eu entendi? — voltou o menino, sentado no lugar ao lado da cabeceira.

   — É, entendeu? — tornou o pai, levando à boca, com um ligeiro auxílio indicador-polegar, um pedaço de rabada.

   — Entendeu o quê? — desentendeu o menino.

   — Você está surdo? — gritou a irmã da outra cabeceira que ficava sob a Ceia do Senhor.

   — Será que ninguém compreende o que eu falo? — vociferou o menino, já se pondo de pé. — Eu estou dizendo que não estou ouvindo direito.

   — Você não está ouvindo direito? — insistiu a mãe, já tão aflita, que nem ligava mais para a rabada que esfriava no prato.

   — O que foi que a senhora disse? — questionou o menino, retornando mais calmo ao seu assento.

   — Esse menino está doido — admitiu o pai, voltando a tentar captar a narrativa dos páreos.

   — Doido, não — contestou a mãe —, que ele não é maluco. Você é louco?

   — Um pouco, mãe — respondeu o menino, pensando que a mãe lhe perguntara ser mouco.

   — Não estou entendendo coisa nenhuma — reagiu a irmã numa irritação que mostrava que ela não entendia coisa nenhuma. — Fala comigo, Geraldinho. O que é que há?

   — Falou comigo? — quis saber o menino que enfiara um amendoim no ouvido.

   — Ele está crecré — resolveu a irmã, voltando ao caqui, que era muito mais interessante do que aquele diálogo absurdo.

   Por alguns momentos, sem falar, todos comeram. Rabada ou caqui, feijão ou melancia. O silêncio era tão absoluto que o pai quase conseguiu achar a estação que procurava. Aí, o menino falou.

   — Mãe, não estou ouvindo quase nada.

   — Você já disse isso.

   — O que foi que a senhora disse? — perguntou o menino que não estava ouvindo quase nada.

   — Eu disse que você já disse que não está escutando direito! — irritou-se a mãe com a boca cheia de rabada.

   — Como? — arguiu o menino com o ouvido cheio de amendoim.

   — Eu acho melhor botar esse garoto de castigo — sugeriu o pai, com um dedo no dial, outro na polenta.

   — Foi você quem falou, Terezinha? — perguntou o menino quase surdo ao ouvir a voz do pai.

   — Foi o pai — volveu a irmã de cabelos longos e paciência cortada rente.

   — O quê? — era o menino quem perguntava.

   — Geraldinho! — bradou o pai, deixando o rádio de lado numa atitude tão absurda quanto esta estória. — Presta atenção. Olha para mim. Está escutando o que eu estou falando?

   — O senhor está falando? — sussurrou o menino, preso entre as mãos do pai que lhe deixavam resquícios de rabada e polenta nos ombros.

   — Estou! — gritou o pai, com um soco tão forte na mesa que fez a concha mergulhar no feijão.

   — Não adianta. Eu não estou escutando quase nada — monocordiou o menino Geraldinho.

   — Sabe o que é que eu acho? — ponderou a irmã. — Eu acho que o Geraldinho não está escutando direito.

   — Se ele não está escutando direito — ponderou de novo a mãe — por que não avisa? Está escutando agora, Geraldinho?

   — O quê?

   — Está escutando agora? — repetiu mais alto o pai.

   — Ãh?

   — Está escutando? — esganiçou-se a irmã da cabeceira.

   — Olhem. Eu já disse, e vocês não entendem. Eu não estou escutando direito — falou Geraldinho, já irritado.

   — Ele não está escutando direito — traduziu a mãe, tomando uma visível atitude de defesa do filho que tinha colocado amendoim no ouvido.

   — Mas por quê? — indagou o pai apoplético.

   — Como? — murmurou o menino, numa pergunta a medo, pela notória apoplexia paterna que geralmente dava motivo a surras homéricas.

   O pai esqueceu as corridas de Pernambuco, que tentava escutar, e pediu um lápis que lhe foi entregue pela filha, em meio às folhas de um caderno escolar. O pai escreveu, com letras de imprensa, a pergunta:

— DESDE QUANDO VOCÊ NÃO ESTÁ ESCUTANDO DIREITO?

   Empurrou, com má vontade, o caderno para o lado do menino.

   — Quer saber desde quando eu não estou escutando direito? — quis assegurar-se o menino de ter lido certo.

   — É, Geraldinho — disse a mãe muito maternal —, desde quando?

   — Como? — perguntou Geraldinho muito trêmulo.

   O pai respondeu passando o dedo sob a frase que esfregava na cara do menino.

   — Desde que eu enfiei um amendoim no ouvido.

   Tiraram o amendoim, deram-lhe uma surra e o mandaram para fora da sala, em sinal de protesto.

   O menino foi e voltou chorando, para se sentar na cadeira em frente à tevê.

   — Fazendo a gente ficar doida, esse moleque! — comentou a mãe, tirando a mesa do ajantarado.

   — Como? — perguntou o menino, que acabara de enfiar um amendoim no ouvido direito.

Fonte:
Chico Anysio. O Batizado da Vaca.

sexta-feira, 15 de março de 2019

Trova 344 - José Feldman (Maringá/PR)


Clarisse da Costa (Eu me livro com livro)


As cartas de certa forma desenvolvem a escrita, a criatividade, os pensamentos e os sentimentos, tais como os livros. Os livros têm uma particularidade, nos trazem conhecimento e nos fazem viajar por diversos temas e personagens. Normalmente o cenário é a vida. O que mais aprecio é o lado humano que muitos autores abordam. Alguns até nos fazem questionar quem somos. Um olhar para dentro de si.

É como passear por dentro de si, abrir asas e se libertar de tudo aquilo que nos faz mal. Tipo eu me livro. Uma das obras populares brasileiras da literatura que particularmente eu curto e que se enquadra nesse contexto se chama "Tempo de Esperas", do Padre Fábio de Melo. A obra mostra todas as vertentes da vida em meio a uma desilusão amorosa. É como uma reflexão que nos salva.

O tempo vai passando e aquela dor rompe uma barreira. Por mais difícil que seja a dor, fortalece. Aprendemos a lidar com ela. De um jeito, ou de outro adquirimos aprendizado. A dor da perda me fez ver que a vida não acaba porque achamos que é o fim. Ela segue. O tempo passa. Não é porque erramos que não devemos mais viver. A vida é como um livro, vire a sua página e comece tudo de novo.

Sempre há tempo para recomeçar. O amor vive somente a sua espera. Ele se aprisiona à medida que nós ficamos alimentando algo que perdemos. Enquanto não se viram as páginas do livro da sua vida, ficamos ali amando o que nunca nos pertenceu. E que, de certa forma, nós mesmos podemos ter estragado tudo.

Talvez seja a hora de formarmos laços com o tempo e saber esperar. Mais que um dom, a espera é sabedoria e requer paciência. Desde cedo aprendi que o amor transforma. Mas sempre tive a certeza que tudo parte de um querer. Nos últimos anos, o amor tem sido um brinquedo nas mãos de algumas pessoas. Ao invés de fazer o bem, tem feito o mal. Mas a culpa é de quem brinca com o sentimento das pessoas. O afeto não parte da ilusão e sim daquilo que é verdadeiro. Não abra o livro dos sentimentos se não for para fazer e sentir com verdade. Nós somos os autores de nossa história, a libertação parte da nossa vontade. Os livros são apenas o início de tudo.

Fonte:
A autora


Mifori (Pantuns e Poemas Livres)


Pantum 1   
O TREM DO NOVO TEMPO


Neste trem do novo tempo
embarco com esperança,
um suave passatempo
eu fortaleço a confiança.

Embarco com esperança
nas amizades que faço.
Eu fortaleço a confiança,
seguindo o comboio de aço.

Nas amizades que faço
a clarear minha visão,
seguindo o comboio de aço,
sinto o amor no coração.

A clarear minha visão
sem ter nenhum contratempo,
sinto o amor no coração
neste trem do novo tempo.

Pantum 2
NOSSOS CAMINHOS


Nossos caminhos... De novo
se cruzaram no além-mar
numa festa de ano novo...
Mais que um sonho a proclamar!

Se cruzaram no além-mar
num caminhar renovado,
mais que um sonho a proclamar
um encontro inusitado.

Num caminhar renovado
não se detém na estrada;
um encontro inusitado
deixa a cruz menos pesada.

Não se detém na estrada
quando o amor é verdadeiro;
deixa a cruz menos pesada
o abraço companheiro.

Quando o amor é verdadeiro
a felicidade é rima;
e o abraço companheiro
afagando se aproxima.

A felicidade é rima
no caminho que promovo,
afagando se aproxima
nossos caminhos... De novo.
______________________
Poemas livres
______________________

AMOR INFINITO

Amor infinito...
É o Incondicional,
aquele que é...
Eterno, sem fim!...
Não depende do real,
nem de você, nem de mim!

Amor infinito...
É vida que borbulha,
fonte que jamais seca
acolhedor qual divina “tulha",
surge e permanece
e envolve legal.
Vive aqui, ali, além...
Sem ser sentimental.
E envolvente... Na sua infinitude!
É transcendental!
É o amor que eleva, não ilude.
Esse amor infinito...
Só o meu Deus tem
com sua onipotência
a todos mostra
e nós o vemos
só como nos convém.

POEIRA DE SONHO

Foi uma poeira de sonho
sob a lua acetinada,
que tristonha
trouxe-me a brisa.
Nessa poeira descobri
o Sol dormindo no poente.
Numa atitude comovente
ela o despertou.
Minha alma se abriu
para uma nova vida.
A vida de sonhos e poesias!
 
Fonte: A poetisa

Lima Barreto (A Barganha)


as palavras com *, ver o vocabulário ao final do texto
____________________________________________
E o “turco”, desde muito cedo, andava pelos subúrbios a mercar aqueles coloridos registros de santos. Havia um são João Batista, com a sua tanga, o seu bordão de pastor e o seu inocente carneiro que olhava doce tudo o que via fora da estampa; havia um Cristo com o coração muito rubro à mostra, coroado de espinhos, e os olhos revirados para o Céu que naquele dia estava lindo, de um profundo azul-cobalto; havia uma Ceia em que Jesus presidia, mansueto e resignado, apesar de se saber traído, e havia muitos outros santos e santas que o “turco” levava, alguns enrolados, mas outros diante do seu peito arquejante das suas caminhadas de humilde bufarinheiro*, daquelas modestas paragens da cidade.

E ele ia:

— Compra, sinhor! Muita bonita!

Das casas, às vezes, lá saía uma mulher ou outra, de cores as mais variadas, e indagava com desprezo:

— Olá! O que é que você leva aí?

Miguel José parava, aproximava-se da porteira e respondia:

— Santa, sinhora! Muita bonita!

— Que santos tem?

— Muitas, sinhora. Tuda bonita.

Desenrolava os registros e a rapariga começava a examinar. De repente, à vista de uma daquelas oleo-gravuras, ela gritava:

— Leocádia! Leocádia!

Lá do interior da casa respondiam:

— Que é?

A outra acudia:

— Vem cá. Vem ver uma coisa.

Vinha uma outra rapariga e a que estava, recomendava, mostrando um dos quadros do “turco”:

— Vê só como é lindo este Menino Jesus.

A outra examinava e concordava. O “turco” se animava e perguntava:

— Não quer compra ele?

Uma delas ia ao encontro da pergunta do bufarinheiro:

— Quanto é?

— Barata, sinhora.

— Quanto?

— Dois mil-réis.

— Chi, meu Deus! É caro, muito mesmo.

O pobre ambulante não fazia negócio algum; e continuava com a sua carga sagrada a palmilhar aquelas ruas que são mais propriamente veredas.

Ainda se houvesse árvores, sombra que amaciasse aquela manhã quente, embora linda e cristalina, o seu ofício seria suportável; mas não as havia. Tudo era descampado e as ruas eram batidas pelo sol em chapa. Lá ia ele. As calças ficavam-lhe pelos tornozelos; o chapéu era de feltro, mas não se sabia se era preto, azul, cinzento. Tinha todas as cores próprias a chapéus dessa espécie. Em um pé calçava uma botina amarela; em outro, um sapato preto.

— Cumpra, sinhor! Coisa bonita de Deus! Cumpra.

Foi dizendo isto a um petulante crioulo, muito preto, de um preto fosco e desagradável, cabeleira grande, gordurosa, repartida ao alto, e o chapéu a dançar-lhe em cima dela; foi dizendo isto a ele que lhe ia acontecendo urna grande desgraça naquela manhã. O negro, ao ouvi-lo, chegou-se muito junto ao “turco” e indagou com um ar autoritário:

— Que é que você está dizendo?

O humilde armênio pensou logo que tratava com um soldado de polícia à paisana, pois lhe parecia que, na terra em que estava, todos os pretos são soldados e podem prender todos os armênios.

Com essa convicção, Miguel José respondeu cheio de respeito e acatamento:

— Dizia, sinhor: cumpra santo muita bonita.

O negro perfilou-se todo, tomou uns ares judiciais ou policiais, chegou o chapéu de palha para a testa e disse:

— Você parece que não é civilizado.

— Cumo, sinhor?

— Sim, você é herege, inimigo de Nosso Senhor.

— Não, sinhor.

O preto desarmou-se um pouco de seus ares judiciais ou policiais, tomou-se mais suave, quis fazer de penetrante e sagaz. Perguntou:

— Você come carne de porco?

E Miguel José olhou as montanhas pedregosas que ele via lá, longe, esbatidas* no azul profundo da manhã, ressaltando quase inteiramente na ambiência translúcida do dia, e lembrou-se da sua aldeia armênia, das suas cabras, das suas ovelhas, dos seus porcos.

A sua fisionomia dura contraiu-se um pouco e os seus olhos de carneiro quiseram chorar de recordação, de sofrimento, de mágoa. Ele se encheu todo de uma pesada tristeza; mas pôde responder:

— Sim, senhor, eu coma.

— Então você é cristão? insistiu o preto.

— Sim, sinhor; diga a sinhor sou cristão.

— Admira.

— Por quê, sinhor?

— Porque você diz “vender” “comprar” santos.

— Cuma se diz então?

— Troca-se. Aprenda — está ouvindo! É falta de respeito, é sacrilégio dizer comprar ou vender santos. Aprendeu?

— Sim, sinhor. Obrigada, sinhor.

E o crioulo se foi, deixando o pobre armênio arrasado por mais aquele déspota que passava sobre a sua pobre raça; mas mesmo assim, continuou na sua mercancia*.

Lá se foi ele por aquelas ruas de tão caprichoso nivelamento que permite as carroças que por lá se arriscam andarem no ar com burros e tudo. Lá ia ele:

— Cumpra, sinhor! Muita bonita.

Subia, descia ladeiras; parava nas portas; mas não fazia negócio algum.

Num pequeno campo, encontrou uma porção de crianças a empinar papagaios. Parou um pouco para ver aquele divertimento interessante que as crianças da sua terra não conheciam. Veio um pequenote:

— Ó Zê! O que é que você leva aí?

— Santo, menina. Pede mamãe compra uma.

— Ora, esta! Lá em casa tem tanto santo — para que mais um? Vende ali, aos “bíblias”.

Miguel José percebeu bem a malícia da criança, pois de uma feita caíra na tolice de oferecer um registro a essa espécie de religiosos e se vira atrapalhado. Não que o tivessem maltratado, mas um deles, baixinho, com um pincenez* muito puro de vidros cristalinos, o levara para o interior da casa, lera-lhe uma porção de coisas de um livro e depois quisera que ele se ajoelhasse e abandonasse os registros. Noutra não cairia ele…

Continuou o caminho, mas estava cansado. Ansiava por uma sombra, onde repousasse um pouco. Havia muitas árvores, mas todas no interior das casas, nas chácaras, nos quintais ou nos jardins. Uma assim pública, na margem da rua, em terreno abandonado que o abrigasse aí, por uns dez minutos, ele não encontrava.

E seria tão bom descansar assim fazendo o seu minguado almoço, para continuar até à tarde a sua faina, vendo se ganhava pelo menos uns dez ou cinco tostões de comissão com a venda daquelas coisas sagradas.

E continuou o seu caminho, tendo sempre exposta diante do peito a imagem de Cristo, coroado de espinhos, a mostrar o coração muito rubro, com os seus misericordiosos olhos a procurar o Céu, naquela manhã muito linda, de um profundo azul-cobalto…

Afinal, achou uma mangueira, maltratada, cheia de ervas parasitas, a crescer na borda do cominho, num terreno desocupado. Sentou-se, tirou da algibeira um naco de pão dormido, uma cebola e pôs-se a comer, olhando as montanhas pedroucentas* que assomavam ao longe e lhe faziam lembrar a terra natal. Ele não tinha nenhum nítido pensamento sobre a vida, a natureza e a sociedade…

Não tardou que se lhe viesse juntar um companheiro. Era também um “volante” como ele; mas a sua mercancia era outra, menos espiritual. Vendia sardinhas, de que trazia um cesto cheio. Era um português, cheio de saúde, de força, de audácia. Vinha suado, mais do que o armênio; entretanto, não dava mostras de ter ressentimentos nem do sol nem da dureza do seu ofício. O armênio olhou-o com inveja e pensou de si para si:

— Como é que esse homem pode ser alegre, pode ter esperanças?

O português, sem auxílio, arriou o grande cesto na sombra e sentou-se também cheio de confiança e desembaraço.

Foi logo dizendo:

— Bons dias, patrício.

Miguel José fez uma voz sumida:

— Bom dia, sinhor.

O português, sem mais aquela, observou:

— Qual senhor! Qual nada! Cá entre nós, é você pra baixo. Isto de senhor é lá pros doutores, não é para nós que andamos aqui aos tombos.

E emendou comunicativo:

— Que diabo — ó patrício! — que tu comes pra aí?

O “turco” disse-lhe e o Manuel da Silva considerou:

— Lá na minha terra, há quem goste disto; mas eu nunca me acostumei. Cebola pra mim, só na comida. Numa bacalhoada, ah!…

Miguel José continuava a mastigar sua cebola com pão, enquanto Manuel da Silva contava a féria. Contada que ela foi, disse bem alto:

— Pela hora que é, as coisas não vão mal. Até o meio-dia vendo tudo…

Guardou o dinheiro na bolsa que tinha a tiracolo e perguntou subitamente ao companheiro de acaso:

— Você já vendeu muito hoje, patrício?

— Nada, sinhor.

— Está você a dar com o tal de senhor! Pergunto se você já vendeu alguma coisa hoje, homem!

— Nada.

— O que é que você vende?

— Santo, sinhor.

— Santo?

— Sim; santo.

— Deixa ver isto, como é? fez o português curioso.

O armênio passou-lhe os registros coloridos e o vendedor de sardinhas pôs-se a olhá-los com espanto e deslumbramento artístico de aldeão simplório. Achou tudo aquilo bonito: aquele Jesus, mostrando o coração; são João, com o carneirinho; o Menino Jesus — tudo muito lindo aos seus olhos maravilhados de camponês cândido e enfeitiçado pelas coisas do senhor vigário.

Refletiu de si para si: “Coisas tão bonitas, se não as vendeu, é porque este ‘turco’ é mesmo burro. Comigo, já as tinha vendido, ganhado dinheiro e ficado com algumas, pra pôr lá no quarto”.

Veio-lhe uma ideia.

— Patrício! Você quer fazer um negócio?

Os olhos de carneiro do armênio luziram mais forte e com mais esperança.

— Qual é? perguntou ele.

— Tenho ali na cesta cerca de vinte mil-réis de sardinhas, vendidas a duas por um vintém. Se você vendê-las a vinte, ganha o dobro. Quer você trocar estes santos pelo cesto de sardinhas?

Miguel José rapidamente pesou os prós e contras da operação comercial. Sabia bem, por experiência própria, que a população, até as crianças, se mostrava refratária à mercadoria espiritual de que ele era portador; e, pelo que lhe vira ainda agora nas mãos, a do seu companheiro não se portava da mesma forma.

Em se tratando de sardinhas, as coisas não corriam da mesma maneira como no tocante a santos. Considerou bem e logo respondeu:

— Tá feita, sinhor.

Os dois se despediram e trocaram de carga. Miguel José voltou a passar pelos mesmos lugares em que oferecera os registros, sem nenhum resultado; mas, quando apregoou as sardinhas, não teve mãos a medir. Vendeu-as a vintém, então fez escambos de compensação e, de tal forma correram-lhe as coisas que, dentro de três horas, tinha vendido tudo, podia pagar os registros à loja e lucrava cinco mil e tanto.

Manuel da Silva, o alegre português das sardinhas, saiu muito ancho com os seus registros; mas não foi logo vendê-los.

A frugalidade do “turco” tinha-lhe dado uma fome extraordinária. Procurou uma casa de pasto e comeu a fartar, acompanhado de um bom martelo de verdasco.

Bem alimentado, satisfeito, dispôs-se a “trocar” o são João Batista, Menino Jesus, correndo a sua freguesia de peixes e crustáceos.

Batia as portas:

— Mamãe, dizia uma criança, está aí o seu Manuel.

A mãe perguntava lá de dentro:

— Ele traz camarão?

— Não, mamãe; quer vender santos.

— Para que deu agora, seu Manuel! Ora, vejam só! Vender santos. Diga a ele que não quero.

Dessa e de outra maneira, ele foi percorrendo em vão sua freguesia das sardinhas, sem mercar uma única estampa religiosa.

A sua alegria matinal se ia e todo o seu desgosto se voltava terrível contra ele mesmo. Não fora o “turco” que o embrulhara; fora ele mesmo que propusera aquele negócio. Era castigo. Ia tão bem com as sardinhas, para que fizera aquela barganha?

Andou até quase a noitinha e nada vendeu. Ao recolher-se, ainda quis ver as oleo-gravuras que o haviam deslumbrado.

Mirou uma, mirou outra e, olhando-as firmemente, refletiu:

— Se não fosse por faltar o respeito devido a Nosso Senhor Jesus Cristo, que ai está, eu havia de dizer que tudo isso são coisas do diabo que aquele “turco” me impingiu. Nunca mais! Tarrenego*!
_____________________
vocabulário:
Bufarinheiro = vendedor ambulante de bugigangas
Esbatidas = de tom ou colorido pálido
Mercancia = ato de mercanciar, mercadejar, primeira palavra para mercado, negociação.
Pincenez = modelo de óculos que não apresenta hastes. A fixação se dá fixando o óculos sobre o nariz.
Pedroucentas = com um montão de pedras.
Tarrenego! - interjeição. exprime desagrado, repulsa ou censura; tesconjuro.

quarta-feira, 13 de março de 2019

J. G. de Araújo Jorge (12 Trovas Marias)


1
A essa Maria que passa
minha oração já compus:
- Maria cheia de graça !
- Maria cheia de luz!

2
Deus pôs no céu três Marias
na mesma constelação,
e na noite de meus dias
mais três, no meu coração...

3
Há tantas Marias, tantas,
que quantas há eu nem sei. . .
Sei que há belas, feias, santas, . . .
...e a Maria que eu amei. . .

4
Há tantas Marias, tantas,
quantas são as aves no ar,
as nuvens no céu, e as plantas
na terra, e as ondas do mar...

5
Mar adoçado com mel,
dia de luz, claro dia,
misto de mar, terra e céu,
eis o teu nome: Maria.

6
Maria , nome tão doce
que nos sugere outro mar,
mar que salgado não fosse...
... doce até de pronunciar...

7
Maria Clara, Maria
dos Anjos, da Conceição...
E aquela que eu chamaria
Maria do coração. . .

8
Marias que não tem fim ...
. . . das Dores, do Ó, do Socorro . . .
A que diz morrer por mim
e a Maria por quem morro . . .

9
Ó Maria concebida
para ser o meu pecado...
Nos teu braços, minha vida
é um barco desarvorado.

10
Ó Marias . . . Repetidas
simbolizais a mulher,
se há sempre nas nossas vidas
uma Maria qualquer . . .

11
Ó Marias, que eu agora
junto na mesma quadrinha:
- Do céu, a Nossa Senhora,
- da Terra, a senhora minha...

12
Por duas Marias erra
meu viver de déu em déu:
- a que me perde na terra,
- a que me salva, no céu.

Fonte:
J.G. de Araujo Jorge. Os Mais Belos Poemas Que O Amor Inspirou. vol. IV, 1965.


Leon Eliachar (Dicionário de Bolso) Letras N até S

N

Namoro
— passatempo a quatro mãos.

Noivado — período de desajustamento antes do casamento.

O

Oba — palavra que todo revistógrafo brasileiro usa para encerrar o seu show musicado. Na Espanha se usa OLÉ e nos Estados Unidos, IUHU.

Ópera — conjunto de pessoas que praticam os maiores desatinos cantando.

Orador — sujeito que quando abre a boca faz todo mundo fechar os olhos.

P

Palavrão — equipamento mais importante do motorista.

Patrocinador — único sujeito que paga para ouvir seus programas.

Perdão — melhor maneira de esquecer o erro do próximo até a primeira oportunidade.

Pêsames — palavras de gentileza sempre recebidas com a cara fechada.

Plágio — outro sujeito ter tido a nossa ideia primeiro.

Pontualidade — coincidência de duas pessoas chegarem com o mesmo atraso.

Problema — é isso que a gente tem e pede pros outros resolver mas os outros também têm e pedem pra gente resolver.

Procurador — é esse sujeito que passa o dia inteiro nos procurando para saber qual a atitude que deve tomar em nosso lugar.

Promissória — intervalo entre uma assinatura e um milhão de desculpas.

Q

Quadro-negro
— é esse quadro que sempre sai branco nos desenhos.

Quarto de hora — são esses quarenta minutos que a namorada nos pede para retocar a pintura no toalete.

Quinta-feira — dia em que percebemos que não fizemos esta semana tudo o que vamos deixar para a semana que vem.

R

Rascunho
— é o que a gente escreve cinco vezes de forma diferente em cima do mesmo papel e quando vai passar a limpo não entende mais o que escreveu.

Recibo — comprovante que a gente guarda toda a vida pra provar que pagou e só dão de duvidar que não pagamos no dia em que resolvemos rasgá-lo.

Rede — coisa que só para de balançar quando a gente dorme.

Regente — sujeito que só enfrenta o público de costas.

Relógio de pulso — algema que nos prende apenas por um pulso.

Renúncia — gesto que se torna nobre porque não há outro jeito.

Reta — uma curva cortando caminho.

Retrato — isso que a gente fica por conta quando não sai parecido e mais por conta quando sai.

Retrocesso — tecla que não entra no curso de datilografia mas que os datilógrafos acabam usando mais.

Rotina — é esse esforço que a gente faz diariamente para sair da rotina.

S

Sacrifício
— pequena cota do nosso "eu" que depositamos na boa fé alheia para sacar com juros.

Saldo — grande estoque que encalha e o comerciante resolve vender uma peça de cada vez.

Sapato — condução de pobre.

Saudade — retrocesso do pensamento.

Secretária — moça que arruma a vida do patrão e desarruma a da patroa.

Segredo — isso que vai rolando de ouvido em ouvido e volta sempre com mais detalhes.

Sexo — coisa que antes de Freud era indecência; depois, psicanálise.

Sinal luminoso — é isso que abre precisamente com a buzina do carro que está atrás do nosso.

Striptease — uma mulher vestida de olhos.

Suéter — é essa peça de lã que as mulheres usam para fazer os homens suarem.

terça-feira, 12 de março de 2019

Lavínio Gomes de Almeida (Canteiro de Trovas)


A densa treva a cobrir
a montanha do calvário
faz a gente concluir:
- Sombra é uma luz ao contrário.

Ah, Santos! Com que egoísmo
tomas o meu coração!
Teu solo é meu catecismo;
Teu amor, minha oração...

Carnaval!... Tantas folias...
Pagodes doidos de insano!
Cai a máscara três dias
da face que a usou um ano!...

Conceitos, no livro breve
da vida, em página vaga,
vem nosso sonhos, e os escreve;
chega o destino, e, os apaga...

Cruz nas velas, cruz nas luzes
deste céu, brilhante joia...
Mas, por que Deus, tantas cruzes
nas montanhas de Pistóia?

Da História, no vasto trilho,
deixando impressos meus passos,
bem quisera ser teu filho
e erguer-te, Santos, no braço!

Da ternura faço o tema,
das desditas, minha prosa...
De cada dor, um poema,
de cada espinho, uma rosa!

Descalços pelo gramado,
teus pés mansamente vão...
Pões, no pisar, tanto agrado
que eu tenho inveja do chão...

De tudo o que for deleite,
Deus, só deixou, para mim,
a candeia sem azeite,
da vida que chega ao mim...

Deus fez Eva num segundo,
Mas teve um choque, parou!
O seu barro vagabundo
era tão mau que rachou.

Deus que deu ao mar as águas
e às matas deu as graúnas,
pôs, em minh’alma, mais mágoas
que grãos de areia nas dunas...

Durante as longas esperas
de reabrir-se o mosteiro,
a teimosia da heras
já cobre um mural inteiro...

Enquanto choro os fracassos
que a vida me tem imposto,
o tempo imprime seus passos
sobre as rugas do meu rosto!

Envolvido em meus lençóis,
ouço a chuva sobre as hortas
solfejando si bemóis
na clave das horas mortas!

Ergue-te, povo oprimido,
toma tua decisão!
Querem manter-te entretido,
mesmo sem circo e sem pão!

Evolando após a infância,
a juventude é fumaça
tão fugaz, como a fragrância
de um bom perfume que passa...

Faz tanto frio lá fora,
não te vás, detém teus passos!
Eu quero despir-te agora
para vestir-te de abraços...

Já tendo a morte defronte,
nem da vida teve pena:
para não gastar com ponte
quis “pinguela” de safena...

Mais aumentas meu desejo
se colocas, sem ressábios,
a nota “sol” do teu beijo
sobre a flauta dos meus lábios.

Meu sonho bom, tu me bastas,
mas, perto do amargo fim,
se por acaso te afastas,
morre um pedaço de mim!

Meus sentimentos ressalto,
ouvindo do céu conselhos:
sinto-me muito mais alto
quando fico de joelhos.

Na estrada sem estações
do tempo, que, insano, corre,
o amor, cheio de emoções,
nasce... cresce... e depois morre...

Na estrada sem estações,
onde jamais há demoras,
minutos são os vagões
do “trem-sem-volta” das horas.

Na inquietação que se aguça,
carrego na alma dorida
a grande montanha-russa
do sobe-e-desce da vida.

Nas fantasias douradas
da minha imaginação,
fui herói, fiz cavalgadas
sem tirar os pés do chão.

Neste silêncio, as demoras,
em noite escura, sem fim,
eu sinto aceno de auroras,
se acaso estás junto a mim.

No curso de minha vida
foi a tua aparição
a comédia mais fingida
de um Carnaval de ilusão.

No seu viver temerário,
que a nenhum lugar conduz,
quem passa por um calvário
leva vestígios da Cruz!...

Num ato de bom agouro,
se o véu da história descerro,
vislumbro uma pena de ouro
quebrando grilhões de ferro...

Pobre menino vadio,
triste pária pequenino,
és um grande desafio,
sem infância, sem destino...

Presente! Tens frágil glória...
És barco a vagar no escuro!
Fração de tempo, irrisória,
entre o passado e o futuro...

Qual vaqueiro de esperanças,
aboio, com emoção,
a manda das lembranças
nos pastos do coração.

Sei que todo salafrário
que deixa o credor às tontas,
detesta sempre o rosário,
que é feito também de contas.

Sempre só e abandonado
nos teus momentos de ausência,
eu sou segundo parado
no mostrador da existência...

Sofredor sempre se esquiva
de mostrar a dor por fora...
Quando a lágrima é furtiva,
maior é a dor de quem chora...

Sonhando novas auroras,
no meu viver sem ninguém,
me embala a dança das horas
pelo amanhã que não vem...

Vai findar-se a mocidade!
Com ela os sonhos se vão...
Fico noivo da saudade
e viúvo da ilusão...

Veleiro que ao vendo avanças,
a demandar outras plagas,
tu vais cheio de esperanças
sobre a esperança das vagas!

Velhas cartas... meu degredo...
Com pranto as pude escrever.
Há no seu bojo um segredo
que o mundo não vai saber!

Vi, morando em teu rosto,
ao buscar sinais de amor,
pantomimas de mau gosto,
comédia escondendo a dor...

Voltei... a rua, em verdade,
em quase nada mudou...
Mas tinha agora a saudade,
que em cada esquina brotou...