terça-feira, 14 de maio de 2019

Marlê Beatriz Jardim Araújo (Jardim de Trovas)


Acredito que a existência
seja um circo onde ninguém
escapa da experiência
de ser vaiado também...

“Águas de março” fizeram
um temporal de verão,
com mágoas que não couberam
na paz do meu coração.

A imaginação flutua,
dando à vida mais sabor:
– Que a Lua é muito mais lua,
nos versos de um trovador!...

Alegria, se eu te sinto,
não obstante os sermões,
é que em todo o labirinto
Deus me aponta as direções.

Alvorada, se eu pudesse,
faria, em trovas, um hino
pedindo, a Deus, que fizesse
de alvoradas, meu destino!

Ao desviar da espinheira
que, de espinhos transbordava,
caiu na isca certeira
do ouriço que o espreitava!

Ao pensar num bom presente
que leve alegrias novas,
sempre, o que me vem à mente,
é um belo livro de trovas!

Aquela rima que enfeita
e harmoniza os versos meus,
somente, se faz perfeita
quando é soprada por Deus.

Arroubos de juventude,
sonhos, projetos sem fim,
vem da Usina da inquietude
que trago dentro de mim!...

As estrelas se parecem
com vaga-lumes no céu,
ou serão eles que esquecem
que são estrelas ao léu?

As mágoas, os dissabores,
vê se esquece, segue em frente,
e planta, por onde fores,
do amor e paz, a semente.

As poças d’água da rua
brincam de espelho quebrado,
há em cada poça uma lua
e um belo céu estrelado.

Às vezes, por um momento,
sem que eu saiba definir,
me entristece, esse lamento,
que o vento me faz ouvir.

Bateu-me à porta, eu abri,
não sem antes ver quem era...
E, em pleno inverno, caí
nos braços da primavera.

Bendigo essa luz que, um dia,
em minha estrada brilhou,
e resgatou a alegria,
que o tempo quase apagou.

Cai a neve, mansamente,
e, enquanto não se desfaz,
faz-se altar na alma da gente
com flocos brancos de paz.

Com a água não se deu bem,
o clone de peixe-boi:
- Sem saber quem é de quem,
atrás da vaca ele foi!

Das angústias me desfaço,
ante a fé que se renova,
nestas viagens que faço
no belo mundo da trova!

Destino menino arteiro,
enquanto o mundo rodava,
te tornavas timoneiro
de tudo o quanto eu sonhava.

Desviava a todo instante,
da sogra o genro arredio...
E a coroa “itinerante”
o apelidou de "Desvio"!!!

Diferente e brincalhona,
é a chaminé que inventei:
não polui, pois não funciona,
para o que serve... não sei!...

É na ciranda das horas,
que passam todas as juras.
Passam, também, as demoras
e, até mesmo, as amarguras!

Era tão magro o Domingos
que, enquanto a chuva rolava,
ele passava entre os pingos
e nem sequer se molhava!...

És muito mais que um marido,
és um pai, amigo, irmão.
És, para sempre, querido,
dono do meu coração!

Essa agridoce saudade
que faz da gente refém,
maltratada, é a verdade,
mas nos conforta também.

Faço de conta que a vida
vive a sorrir para mim
e ela, então, descontraída,
me abraça a sorrir enfim.

Fez pose no trampolim
mas, distraído, o Janjão,
só dentro d'água é, que, enfim,
viu que estava sem calção!

Há na beleza selvagem,
que a cascata canta em festa,
emocionante mensagem
de quem criou a floresta!

Lembro a cidade natal
e, eis que meu lado criança
se aninha, inteiro, afinal,
na ternura da lembrança!...

Lembro a família reunida
na infância, já bem distante!
E uma saudade atrevida,
abraça-me nesse instante.

Magia é ver, finalmente,
o tempo a concretizar
aquele sonho, que a gente
passou a vida a sonhar.

Meio tristonho e sozinho,
às vezes me sinto assim...
Quando as pedras do caminho
parecem zombar de mim!...

Mundo mágico onde eu vivo!
Teus versos tão desiguais,
são flores, as quais cultivo,
nas trovas, cada vez mais!

Na estrada que coube a mim,
os entraves não são raros:
mas estradas... são assim...
Cabem a nós, os reparos.

Na primavera, até a chuva
é um festival de harmonia,
caindo feito uma luva
na mão radiosa do dia!

Neste dilúvio de sonhos,
neste mar, de quando em vez,
percebo acenos tristonhos
de um sonho, que se desfez.

Ora é médico, ora é louco...
Filósofo, quando a sós...
No ator, há bem mais que o pouco
que existe em cada um de nós!

O tempo passa veloz,
contudo deixa lembrança;
posso até ouvir a voz
do meu tempo de criança.

O tempo, viajor mutante,
nada o prende, nada o solta;
traz saudade e, num instante,
tem-se a ilusão que ele volta.

Paira ternura infinita
na forma de um Beija-flor.
E a flor se faz mais bonita
num intercâmbio de amor.

Para encontrar um desvio,
oscilou, tanto, o bebum
que, depois de um rodopio,
não quis mais desvio algum!

Peço ao vento cirandeiro,
das madrugadas de outono,
que seja o meu seresteiro,
mas que não me roube o sono!

Quando a distância incomoda
parece, que por maldade,
insiste, em brincar de roda,
com a lembrança, com a saudade!

Quando a dúvida persiste,
eu busco a Fé, simplesmente,
e espanto esse canto triste
dos labirintos da mente!

Quando a neblina persiste
e embaça toda a janela,
ao invés de ficar triste,
eu faço trovas a ela.

Quando a sonhar eu me ponho,
sem pressa de despertar,
a paz, que envolve meu sonho,
faz com que eu volte a sonhar!

Quando o grilo atrapalhado
num desvio se embrenhou,
mostrou-se tão desviado
que o cri-cri desafinou!...

Quando pular a fogueira,
não use de indecisão,
que fogo passa a rasteira
e queima até a distração!...

Resgatei, daqui e dali,
lembranças tantas e tais,
que em meu coração, senti
bater saudades demais.

São palhacinhos bisonhos,
num carrossel de ironia,
os retalhos dos meus sonhos,
que guardei dia após dia.

Seduz-me a luz do luar
que, a versejar, me conduz
e até me leva a pensar
que é feiticeira essa luz!...

Sugiro ao tempo, que passa,
que não corra tanto assim!
E o tempo, só por pirraça,
passa voando por mim!

Tanto arrepio sentia
um fantasma diferente,
que, assombrar, não mais queria,
por medo de virar gente!

Toda a florzinha do campo,
despretensiosa, singela,
tem, por perto, um pirilampo,
tem alguém que goste dela.

Todos os anjos que cantam,
no coral do entardecer,
são trovadores que plantam
sementes no alvorecer!

Um arrepio gelado,
diferente dos demais,
deixa, até mal-assombrado
quem não arrepia mais!...

Um trovador é capaz
de harmonizar universos,
pelas propostas de paz
encontradas em seus versos.

Vejo através da vidraça,
na noite morna de outono,
o vento varrendo a praça,
levando junto o meu sono.

Venho de um tempo em que a vida
era tão descomplicada,
que a Lua, mesmo escondida,
brincava com a criançada!

Vestiu de branco a cascata,
fez a mala, a fauna, as flores,
e uma janela de prata,
nos céus, para os trovadores.

Vez em quando, a fantasia,
nessa praia, veraneia
e acende a luz da poesia
em meus castelos de areia!

Vi passar a mocidade
de braços dados ao vento:
Deixou rastros, que a saudade
me traz a cada momento.

Vinicius de Moraes (Dia de sábado)


Porque hoje é sábado, comprei um violão para minha filha Susana, a fim de que ela aprenda dó maior e cante um dia, ao pé do leito de morte de seu pai, a valsa "Lágrimas de dor", de Pixinguinha - e seu pai possa assim cerrar para sempre os olhos entre prantos e galgar a eternidade ajudado pela mão negra e fraterna do grande valsista...

Porque hoje é Sábado, desejarei ser de novo jovem e tremer, como outrora, à ideia de encontrar a mulher casada, de pés de açucena; desejarei ser jovem e olhar, como outrora, meus bíceps fortes diante do espelho...

Porque hoje é Sábado, desejarei estar num trem indo de Oxford para Londres, e à passagem da estação de Reading lembrar-me de Oscar Wilde, a escrever na prisão que o homem mata tudo o que ele ama...

Porque hoje é Sábado, desejarei estar de novo num botequim do Leblon, com meu amigo Rubem Braga, ambos negros de sol e com os cabelos, ai, sem brancores; desejarei ser de novo moreno de sol e de amores, eu e meu amigo Rubem Braga, pelas calçadas luminosas da praia atlântica, a pele salgada de mar e de saliva de mulher, ai...

Porque hoje é Sábado, desejarei receber uma carta súbita, contendo sobre uma folha de papel de linho azul a marca em batom de uns grossos lábios femininos, e ver carimbado no timbre o nome Florença...

Porque hoje é Sábado, desejarei que a lua nasça em castidade, e que eu a olhe no céu por longos momentos, e que ela me olhe também com seus grandes olhos brancos cheios de segredo…

Porque hoje é Sábado, desejarei escrever novamente o poema sobre o dia de hoje, sentindo a antiga perplexidade diante da palavra escrita em poesia e como dantes, levantar-me com medo da coisa escrita e ir olhar-me ao espelho para ver se eu era eu mesmo...

Porque hoje é Sábado, desejarei ouvir cantar minha mãe em velhas canções perdidas, quando a tarde deixava um alto silêncio na casa vazia de tudo que não fosse sua voz infantil...

Porque hoje é Sábado, desejarei ser fiel, ser para sempre fiel; ser com o corpo, com o espírito, com o coração fiel à amiga, àquela que me traz no seu regaço desde as origens do tempo e que, com mãos de pluma, limpa de preocupações e angústia a minha fronte imensa e tormentosa...

Fonte:
Vinicius de Moraes. Para uma menina com uma flor.

Isabel Furini (A Descoberta)


A literatura tem várias funções. Na minha opinião, a função mais importante da literatura é ajudar-nos a compreender e recuperar nosso próprio eu. Nosso eu fragmentado. Nosso eu oculto. Talvez o segredo dos personagens não seja sua aparência, nem verossimilhança, nem seus traços típicos, nem seu retrato detalhado. O mais importante de um personagem é sua capacidade de levar-nos por estradas desconhecidas até nosso próprio eu. Mostrar-nos aspectos de nós mesmos que ignorávamos. Dar-nos a possibilidade de experimentação e compreensão. A descoberta do personagem transforma-se em nossa própria descoberta (aquela epifania de que falava Joyce). O descortinar do personagem nos ajuda a enxergar-nos. Espelhamo-nos neles.

Ao compreendê-los, podemos nos compreender.

E como chegar a esse estado de percepção de nós mesmos e do mundo que nos permita, ao escrever, criar um espelho com as palavras? Um espelho onde os leitores poderão deleitar-se, observar-se e compreender-se?

Entramos em um caminho questionador. O escritor recebe um dom dos deuses ou seus acertos são fruto de trabalho duro? Arte ou técnica? Talento ou esforço? Quando o espírito se expressa na matéria, surge a ordem no mundo. Caos se transforma em cosmos. Na arte da escrita é o próprio autor, como um deus, que projeta sua obra. Plasma seu pensamento. Concretiza suas intuições estéticas. Talvez, por isso, alguns afirmem que não existe técnica para escrever um livro.

continua...


Fonte:
Isabel Furini. O Livro do escritor: técnicas e estratégias de como escrever um livro. Curitiba/PR: Instituto Memória.

segunda-feira, 13 de maio de 2019

30º Concurso Internacional de Poesias, Contos e Crônicas ALPAS 21 (Classificação Final)


Decimar Biagini - Os edificados pela obra pura
 
Decimar Biagini - A necessidade de inimigos e mitos   
 
Decimar Biagini - O que esperar da vida    
 
Fabiane Rodrigues da Silva - Professor   
 
José Feldman - A locomotiva da vida   
 
Marcelo de Oliveira Souza  - Agonia   
 
Carlos Alberto dos Santos (Pedro Victor ) - Amor de capim
 
Carlos Alberto dos Santos (Pedro Victor ) - Cachoeira Adormecida
 
Carlos Alberto dos Santos (Pedro Victor ) - Entre folhas
 
Carlos Alberto dos Santos (Pedro Victor ) - Labaredas   
 
Leandro Campos Alves - Reflexão   

Fonte:
Rozelia Scheifler Rasia
(Alpas 21)

Hildemar Cardoso Moreira (Poemas Avulsos)


CACÓFATOS DO AMOR

A  Neusa

Minha bela e doce amada
Ó querida esposa minha
Tu serás eternamente
A minha meiga rainha,
E o amor que hoje te tenho
Ainda é o mesmo que te tinha.

Hoje é o aniversário
De nossa feliz união,
Receba pois a homenagem
De todo o meu coração
E o amor que deixo patente
Nos versos que por ti são.

Nestes versos, minha amada
Vai a homenagem singela
De quem vislumbra no verso
A mais bonita aquarela
E que tem dentro do peito
Coração que por ti gela.

Querida, com a certeza
Que eu vivo para adora-la
Receba toda a ternura
No suspiro que se exala
Do peito deste poeta
Que não se cansa de ama-la.

FOI ENGANO

                     Querida Neusa

Se me ponho a lembrar os tempos idos,
Se busco reviver o meu passado,
A imagem de meus entes mais queridos
Me vem como a um retrato contemplado.

E folhando meus escritos de outras eras
Vejo poemas de amor impregnados,
Plenos de realismo e de quimeras
Que existe em corações apaixonados.

E relendo meus escritos do passado
Li um soneto que eu compus qual derrotado,
Porque havia perdido minha amada.

Foi engano, meu Deus, pois felizmente.
O amor falou mais alto e num repente,
Nos unimos pra trilhar a mesma estrada.

MEU CHIMARRÃO

Sempre quando me acordo
Louvo a Deus numa prece
Como o filho que agradece
Tantas graças recebidas.
Tão grandes que não se mede
As graças que nos concede
Em todas as nossas vidas.

Me levanto, lavo o rosto,
Ponho a chaleira na chama
Pois o apetite reclama
O sabor de um chimarrão.
Eu penso que sou viciado,
Nesse recurso abençoado
Nessa gostosa infusão.

Certa feita conversando
Declarou uma boticária
Que erva mate LEGENDÁRIA
No falar de muitas crenças
Além de muito gostosa,
É uma seiva milagrosa,
Remédio pra várias doenças.

Não sei se a crença exagera,
Mas sei que o Xande queria
Que fosse pura e sadia
Da fonte a fabricação,
E seus filhos respeitosos
Sempre do pai orgulhosos
Vem mantendo a tradição.

E a tradição dessa erva
Não vem do tempo do Monge.
Mas vem de longe, muito longe,
Já de outra geração,
Sempre mantendo a pureza
Do que vem da natureza
Pra um gostoso chimarrão.

MEU CORPO

Quase um século de vida aqui na terra
Tem o corpo que altivo me sustenta,
E a gene de ancestrais nele descerra
Em várias circunstâncias que ele enfrenta.

Exausto, algumas  vezes se declina,
Mas retorna para a luta cotidiana,
Porque aquilo que eu sou,lhe determina
Cumprir o que, do Alto então se emana.

E relembrando o tempo já vivido
Esse corpo se sente agradecido
Pela alma que dirige os passos seus.

Porque entende que o corpo necessita
De uma alma que o dirija e que reflita
Nos respeitos que devemos para Deus.

NOSSA PROMESSA DE AMOR

Já quando jovem, Deus brindou-me a vida
Com a beleza de mulher prendada
Que então por Ele foi-me concedida
Ante a promessa de ser sempre amada.

Entrelaçamos, por isso, nossas almas
Num “SIM” que então dissemos comovidos,
Para vivermos horas tensas e horas calmas
Deixando o amor guiar nossos sentidos.

E esse amor que é inconcluso e ardente
Sessenta anos vem norteando a gente
Tal como um raio de luminosidade.

Os anos passam, e nós envelhecemos
Mas a promessa sempre manteremos
Se é eterna a vida, pela eternidade.

PRECE PELA COMUNIDADE

Ao Colegio Miguel Franco Filho

Contenda terra querida
Que ao poeta deste guarida,
Dás o teto, dás o pão.
Por isso em versos que faço,
Eu vos concedo um pedaço
De meu grande coração.

Comunidade de bravos,
De brasileiros e eslavos,
Que Deus no mundo criou.
O teu passado distante
Nos lembra o forte emigrante,
Quando em teu solo aportou.

Irmanando-se ao altivo,
Ao brasileiro nativo,
Forma a raça varonil,
Que com luta e braço forte
Exporta ao sul e ao norte,
O cereal para o Brasil.

Contenda, teu nome á luta,
Mas não é guerra, é labuta,
É demanda pela paz.
Se plantar a Deus agrada,
Quer com trator ou enxada,
Teu filho é isso que faz.

Mas o terno e deslumbrante,
É em manhã de sol radiante,
Em uniforme escolar,
Ver teus filhos bem contentes,
Bandos tafuís sorridentes,
O aprendizado a buscar.

É de Deus a criatura,
Buscando beber cultura
Que é na vida um bem precioso.
Eu vejo em ti mocidade,
Marchar a comunidade
Pra um futuro esplendoroso.

Se este poeta merecesse,
Que Deus do céu concedesse,
Por amor ou por piedade,
Uma graça eu pediria:
Que só reinasse alegria
Em nossa comunidade.

QUEM DIRIA

Quem diria, meu Deus, oh quem diria
Que chegássemos a idade que chegamos
Ouvindo o eco do SIM que aquele dia
Há cinquenta anos nervosos pronunciamos.

Éramos dois, então, que se amavam
Há quanto tempo não sei eu, você ignora
Se nossas almas já antes se cruzavam
Ou se talvez o nosso amor nasceu agora.

O que eu sei, querida, é que esse amor é grande
Que junto a ti eu vivo onde quer que eu ande
Seja na terra, no mar ou nos espaços.

Meio século faz que juntos palmilhamos
Vivendo o mesmo amor que na paixão juramos.
Entre brigas de amor, beijos e abraços.

SER MÃE

Quisera homenagear-te minha amada
Pelo fato de ser mãe de minha filha.
Porém  já fostes por Deus homenageada
Ao conceder-te ser mãe, que maravilha!

Já quando planejou povoar a terra,
O Excelso Criador, a Sua semelhança
Criou o homem que no peito encerra
O sonho de ser pai de uma criança.

E criou a mulher com tal ternura
Para nela perpetuar a criatura,
No ventre santo porque é gerador.

Você querida gerou essa menina
Que já é mãe numa missão divina,
Ambas florindo meu jardim do amor.

Fonte:

Sophia de Mello Breyner Andresen (O Silêncio)


Era complicado. Primeiro deitou os restos de comida no caixote do lixo. Depois passou os pratos e os talheres por água corrente debaixo da torneira. Depois mergulhou­-os numa bacia com sabão e água quente e, com um esfregão, limpou tudo muito bem. Depois tornou a aquecer água e deitou-a no lava-louças com duas medidas de sonasol (detergente) e de novo lavou pratos, colheres, garfos e facas. Em seguida passou a louça e os talheres por água limpa e os pôs a escorrer na banca de pedra.

As suas mãos tinham ficado ásperas, estava cansada de estar de pé e doíam-lhe um pouco as costas. Mas sentia dentro de si uma grande limpeza como se em vez de estar a lavar a louça estivesse a lavar a sua alma.

A luz sem abajur da cozinha fazia brilhar os azulejos brancos. Lá fora, na doce noite de Verão, um cipreste ondulava brandamente.

O pão estava no cesto, a roupa na gaveta, os copos no armário. O vaivém, a agitação e o tumulto do dia repousavam.

Havia um grande sossego. Tudo estava arrumado e o dia estava pronto.

E Joana atravessou devagar a sua casa.

Ia abrindo e fechando as portas, abrindo e fechando as luzes. Os quartos desapareciam no escuro e surgiam do escuro na claridade.

Um doce silêncio pairava como uma sede estendida.

O silêncio desenhava as paredes, cobria as mesas, emoldurava os retratos. O silêncio esculpia os volumes, recortava as linhas, aprofundava os espaços. Tudo era plástico e vibrante, denso da própria realidade. O silêncio como um estremecer profundo percorria a casa.

As coisas conhecidas - o muro, a porta, o espelho - mostravam uma por uma a sua beleza e a sua serenidade. E nas janelas abertas a noite de Junho mostrava o seu rosto constelado e suspenso.

Joana deu lentamente a volta à sala. Tocou o vidro, a cal, a madeira. Há muito já que cada coisa tinha encontrado ali o seu lugar. E era como se esse lugar, como se a relação entre a mesa, o espelho, a porta, fossem a expressão de uma ordem que ultrapassava a casa.

As coisas pareciam atentas. E a mulher que lavara a louça procurava o centro dessa atenção. Sempre o procurara, mas quem o pode captar?

O silêncio agora era maior. Era como uma flor que tivesse desabrochado inteiramente e alisasse todas as suas pétalas.

E em roda deste silêncio os astros da noite exterior giravam lentamente e o seu movimento imperceptível tornava em si a ordem e o silêncio da casa.

Com as mãos tocando a parede branca, Joana respirou docemente. Era ali o seu reino, ali na paz da contemplação noturna. Da ordem e do silêncio do universo erguia-se uma infinita liberdade. Ela respirava essa liberdade que era a lei da sua vida, o alimento do seu ser.

A paz que a cercava era aberta e transparente.

A forma das coisas era uma grafia, uma escrita. Uma escrita que ela não entendia, mas reconhecia.

Atravessou a sala e debruçou-se na janela aberta em frente do puro instante azul da noite.

As estrelas brilhavam, íntimas e distantes. E pareceu-lhe que entre ela e a casa e as estrelas fora estabelecida desde sempre uma aliança. Era como se o peso da sua consciência fosse necessário ao equilíbrio das constelações, como se uma intensa unidade atravessasse o universo inteiro.

E ela habitava essa unidade, estava presente e viva na relação das coisas e a própria realidade atenta a abrigava em sua imensa e aguda presença. A felicidade e essa felicidade era no seu centro unidade.

Debruçou-se na janela e apoiou os braços na pedra fresca do parapeito.

Uma leve brisa agitou os ramos dos cedros. No rio, rouca, apitou uma sereia. Na torre o sino bateu duas badaladas.

Foi então que se ouviu o grito.

Um longo grito agudo, desmedido. Um grito que atravessava as paredes, as portas, a sala, os ramos do cedro.

Joana virou-se na janela. Houve uma pausa. Um pequeno momento imóvel, suspenso, hesitante. Mas logo novos gritos se ergueram, trespassando a noite. Estavam a gritar na rua, do outro lado da casa. Era uma voz de mulher. Uma voz nua, desgarrada, solitária. Uma voz que de grito em grito se ia deformando, desfigurando até ficar transformada em uivo. , Uivo rouco e cego. Depois a voz enfraqueceu, baixou, tomou um ritmo de soluço, um tom de lamentação. Mas logo voltou a crescer, com fúria, raiva, desespero, violência.

Na paz da noite, de cima a baixo, os gritos abriram uma grande fenda, uma ferida. E assim como a água começa a invadir o interior enxuto quando se abre um rombo no casco de um navio, assim agora, pela fenda que os gritos tinham aberto, o terror, a desordem, a divisão, o pânico penetravam no interior da casa, do mundo, da noite.

Joana afastou-se da janela que dava para o jardim, atravessou a sala, o corredor e o quarto e, no outro lado da casa, debruçou-se na janela que dava para a rua.

A mulher via-se mal, agarrada à parede, na meia-luz, do outro lado do passeio. Os seus gritos nus, próximos, desmedidos enchiam a penumbra. Na sua voz a terra e a vida tinham despido os seus véus, o seu pudor e mostravam o seu abismo, revelavam a sua desordem, a sua treva. De uma ponta à outra da rua os gritos corriam batendo contra as portas fechadas.

Era uma rua estreita, apertada entre edifícios sem cor, pesados e tristes. Ali a noite era cinzenta, o ar baço parado e pegajoso.

Cães vadios farejavam o chão dos passeios e rebuscavam os caixotes do lixo tentando agarrar sob as tampas os restos, as cascas, o pescoço da galinha degolada.

O edifício enorme da prisão enchia todo o lado esquerdo da rua com as altas paredes cortadas por pequenas janelas de grades. A essa parede estava encostada a mulher. Ás vezes erguia a cara e então via-se o rosto torcido e desfigurado pelo grito. Ao seu lado desenhava-se o vulto de um homem.

Era tarde. As portas e as janelas estavam fechadas sobre gente adormecida e na rua não passava mais ninguém. Só de longe a longe se ouvia um chiar de carros na viragem das esquinas.

O homem procurava arrastar a mulher e, quando os gritos diminuíam um instante, implorava-lhe que se calasse, pedia:

- Vamos embora.

Mas ela não o ouvia. Gritava como se estivesse só no mundo, como se tivesse ultrapassado toda a companhia e toda a razão e tivesse encontrado a pura solidão. Gritava contra as paredes, contra as pedras, contra a sombra da noite. Erguia a sua voz como se a arrancasse do chão, como se o seu desespero e a sua dor brotassem do próprio chão que a suportava. Erguia a sua voz como se quisesse atingir com ela os confins do universo e, aí, tocar alguém, acordar alguém, obrigar alguém a responder. Gritava contra o silêncio.

Às vezes calava-se um momento e inclinava a cabeça para trás como quem espera ouvir uma resposta.

Então, de novo, o homem implorava:

- Cala-te, cala-te. Vamos embora daqui.

Mas ela recomeçava a gritar e batia com os punhos na parede da prisão como se quisesse forçar a pedra a responder. Gritava como se quisesse atingir um ausente, acordar um adormecido, abalar uma consciência impassível e, alheada, tocar o coração de um morto.

Através das paredes, das portas, das ruas, da cidade, gritava para o fundo do universo, para o fundo do espaço, para o fundo da ocultação da noite, para o fundo do silêncio.

De repente calou-se, curvou a cabeça, tapou o rosto com as mãos. Então o homem cobriu­-lhe os cabelos com o xale, afastou-a da parede, passou-lhe um braço em roda dos ombros, e, devagar, juntos, desceram a rua e viraram a esquina.

Durante algum tempo flutuou no ar pesado da rua um eco de soluços e de passos que se afastavam e diminuíam. Depois voltou o silêncio.

Um silêncio opaco e sinistro onde se ouvia o esgravatar dos cães.

Joana voltou para a sala. Tudo agora, desde o fogo da estrela até ao brilho polido da mesa, se tinha tornado desconhecido. Tudo se tinha tornado acidente absurdo, sem ligação, sem reino. As coisas não eram dela, nem eram ela, nem estavam com ela. Tudo se tornara alheio, tudo se tornara ruína irreconhecível.

E, tocando sem os sentir o vidro, a madeira, a cal, Joana atravessou como estrangeira a sua casa.

Fonte:
Sophia de Mello Breyner Andresen. Histórias da Terra e do Mar.

Arthur de Azevedo (Às Escuras)


Havia baile naquela noite em casa do Cachapão, o famoso mestre de dança, que alugara um belo sobrado na Rua Formosa, onde todos os meses oferecia uma partida aos seus discípulos, sob condição de entrar cada um com dez mil réis.

D. Maricota e sua sobrinha, a Alice, eram infalíveis nesses bailes do Cachapão.

D. Maricota era a velha mais ridícula daquela cidadezinha da província; muito asneirona, mas metida a literata, sexagenária, mas pintando os cabelos a cosmético preto, e dizendo a toda a gente contar apenas trinta e cinco primaveras – feia de meter medo e tendo-se em conta de bonita, era D. Maricota o divertimento da rapaziada.

Em compensação, a sobrinha, a Alice, era linda como os amores e muito mais criteriosa que a tia.

O Lírio, moço da moda, que fazia sempre um extraordinário sucesso nos bailes de Cachapão, namorava a Alice, e no baile anterior lhe havia pedido… um beijo.

– Um beijo?! Você está doido, seu Lírio?! Onde? Como? Quando?

– Ora! Assina você queira…

– Eu não dou; furte-o você se quiser ou se puder. Isto dizia ela porque bem sabia que as salas estavam sempre cheias de gente, e a ocasião não poderia fazer o ladrão.

Demais, D. Maricota, a velha desfrutável, que andava um tanto apaixonada pelo moço, que aliás podia ser seu neto, tinha ciúmes e não os perdia de vista.

Mas o Lírio, que era fértil em ideias extraordinárias, combinou com um camarada, o Galvão, que este entrasse no corredor do sobrado às 10 horas em ponto, e fechasse o registro do gás.

Se o Lírio bem o disse, melhor o fez o Galvão; mas ao namorado saiu-lhe o trunfo às avessas, como vão ver.

Faltavam dois ou três minutos para as 10 horas, quando ele se aproximou
de Alice e murmurou-lhe ao ouvido:

– Aquela autorização está de pé?

– Que autorização?

– Posso furtar o beijo?

– Quando quiser.

– Bom; vamos dançar esta quadrilha.

Mas a velha D. Maricota levantou-se prontamente da cadeira em que estava sentada e enfiou o braço no braço do moço, dizendo:

- Perdão, seu Lírio! Esta quadrilha é minha! O senhor já dançou uma quadrilha e uma valsa com Alice!

E arrastou o Lírio para o meio da sala.

De repente, ficou tudo às escuras.

Passado um momento de pasmo, D. Maricota agarrou-se ao pescoço do Lírio e encheu-o de beijos, dizendo muito baixinho:

– Ingrato! Ingrato! Foi o meu bom amigo que apagou as luzes!

E aqui está como ao Lírio saiu o trunfo às avessas.

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos.

domingo, 12 de maio de 2019

Trova 350 - Nei Garcez


Carolina Ramos (Interlúdio)


Porta aberta. Entrou. Nunca fora chegada a templos. Porta aberta é convite. Os pés, lacerados pela caminhada sem pressa e sem destino, esmolavam repouso. Maltratados pelo pranto, os olhos abençoaram a penumbra suave de um misticismo acolhedor.

Sequer dobrou os joelhos. Largou o corpo moído num dos bancos. Duro, e de encosto reto, mas, sempre um banco. O olhar inexpressivo percorreu, vagarosa e desinteressadamente, o interior da Basílica. Cheia de santos. Vazia de fiéis. Hora não propícia para rezas. Só os infelizes se lembram de Deus nas horas não propícias, ou não convencionais.

Pincéis de luz, através da paleta dos vitrais, criavam, no piso austero, abstrações coloridas. Tentou descobrir formas. Não deu. Ergueu a cabeça. Reencontrou os mesmos altares. Os mesmos santos. A mesma nave por ela mesma percorrida, vinte anos antes, levada pelo braço do pai… o longo véu arrastado atrás de si — alva nuvem de sonhos ingênuos e de ilusões, as mais puras. Os mesmos vasos floridos de branco… rendas, laços de cetim. Outra noiva deveria chegar, ainda naquela tarde. Tudo o sugeria. Nem o tapete parecia outro. Talvez fosse o mesmo. Deveria ser o mesmo: noivas não pisam... flutuam... não desgastam. Sim, seria a mesma passadeira rubra que guiara seus passos até o portal da "felicidade"! Sorriu com amargura. Ainda conseguia sorrir! Mais uma noiva a pisaria, levando nas mãos, trêmulas e frias, o poético ramalhete de sonhos. Seriam trêmulas e frias, ainda, as mãos das noivas de agora? Esta, a chegar, talvez não usasse véu tão longo. Talvez, nem usasse véu. Quem sabe, apenas uma grinalda florida lhe ornasse os cabelos. Ou nem isso! Os costumes mudam. Os sonhos, estes sim, seriam iguais. Os sonhos não mudam nunca! — Toda mulher só tem um único objetivo, quando chega ao templo nupcial: — oficializar um direito. O direito de continuar a sonhar com a felicidade. Depois… bem, depois... somente a vida decide os rumos de um depois.

— "Meus Deus... e agora?" Vinte anos compunham o seu depois e rompia-se o vínculo.

— "E agora, meu Deus?!" — Quase inconscientemente, deixou-se escorregar, caindo de joelhos e ocultando o rosto entre as mãos nervosas.

Muita luta, muita amargura, muita angústia calada e o desquite, finalmente, assinado. — "Livre! Livre!" Tinha vontade de gritar a Deus e a todo mundo, para que todos se conscientizassem da verdade que custava a aceitar. Livre afinal! Aguentara demasiado! Suportara o máximo!

— "E agora?!" — Olhou a Virgem, no altar mor. Era mulher e santa, compreenderia. Queria pedir... precisava pedir... pedir o quê?!

Queria uma esperança... precisava de uma esperança... mas, esperança de quê?! Sentia-se só. Só e minúscula, dentro de um mundo enorme e repleto de gente estranha e adversa. Sentia-se indefesa! Não só isto, indefesa e, acima de tudo, aterrorizada!

Tentou rezar —"Ave Maria"… Palavras… palavras que nada lhe diziam de especial. Por que não — "Salve Maria?" — Saudação e pedido de socorro, a um tempo. E era de socorro, urgente, que carecia! Completou: — "Salve, Maria, a minha fé em Deus. Minha fé nas criaturas. Minha fé na vida!"

Ouviu pios e bater de asas aflitas, perto do púlpito.

Chegou-se para a ponta do banco, procurando melhor visão. Uma filhote de andorinha debatia-se, desastradamente, ensaiando o primeiro voo. Caíra do ninho, do telhado, ou de algum nicho. Junto, o carinho materno estimulando esforços; mostrando como a coisa deveria ser feita; depositando no bico faminto, ávido, a força indispensável para não ser vencido. Andorinhas, certamente, têm vocação religiosa, gostam de igrejas e vestem batina preta, de peito branco. Alguém já teria dito isto. Esquecida dos próprios problemas, a mulher solitária, ligou-se, com emoção, ao esforço aflitivo das duas avezinhas. O afã de arrancar ao solo o filhote indefeso, emprestava vigor sobrenatural ao empenho materno. No chão, o perigo, a morte, ou, pior que ela, o cativeiro.

No espaço, a amplitude, a vida, a liberdade! Inúmeras tentativas falhas. Saltos e quedas frequentes. E, afinal, o voo gratificante da vitória!

Respirou, aliviada, retornando a si mesma.

Há quanto tempo ali estava?! As horas também têm asas, voam!

Não rezara uma Ave Maria, sequer! Tornou a fitar a Virgem. Também mulher. Também mãe. Também amarga conhecedora do mundo, de suas infâmias e cruezas.

Desistiu das fórmulas. Quase num suspiro, balbuciou:

— "Senhora, estou aqui. Peço forças. Preciso, urgentemente, de forças!"

Duas lágrimas mornas, deslizaram devagarinho, acariciando a face ainda jovem, mas, sofrida. Ergueu-se, atirando um beijo à Virgem, com as pontas dos dedos.

Fora, o sol ainda queimava. Do mar, logo à frente, vinha uma canção travessa. Cruzou a avenida. Descalçou as sandálias, antes de pisar a areia. Praia deserta. Após o ardor natural, os pés feridos agradeceram o beijo salgado das ondas. Caminhou ao longo da orla, chapinhando espumas, catando búzios e conchas rosadas.

Lavou a alma. O mar tem sabor de pranto, ou o pranto tem sabor de mar?

No azul, gaivotas, ou albatrozes, planavam aparentemente descompromissados, flechando, de imprevisto, o dorso arrepiado das águas, em busca de alimento. A velha luta pela sobrevivência! O galope do pensamento trouxe, na garupa, a realidade de volta. Essa mesma luta, também era agora, sua. Só, e inteiramente sua!

Lembrou-se do templo. Da avezinha e seu filhote.

Sentiu-se um pouco andorinha, Não um, mas, três irrequietos filhotes a esperavam no lar. Lar que pedia continuidade e reconstrução.

Encheu o peito de decisão. Sacudiu as "penas" e, sem mais delongas... "voou" para o ninho.

Fonte:
Carolina Ramos. Interlúdio: contos. São Paulo: EditorAção, 1993.

J. G. de Araújo Jorge (Inspirações de Amor) X


FATALISMO

 Se eu for contar, hão de sorrir talvez...
- é o fim de um grande amor sereno e nobre
que um fatalismo estranho já desfez
com razões torpes que este mundo encobre...

Morreu... e que se apague de uma vez,
- que dele nada subsista ou sobre...  
- onde a pureza e o amor?... se a vida fez
um nascer rico e o outro nascer pobre.

Que guardem esse amor. Eu o desconheço!
Não tenho em moedas o seu alto preço
e sou feliz por ser tão desgraçado !

Que o guardem!.. . Para os ricos! Para os reis!
- o amor que eu quero não tem preço ao lado,
não tem correntes, nem conhece leis!

FIM...

Nem foi mesmo preciso que você falasse,
era um pressentimento antigo dentro de mim,
há muito, na expressão que havia em sua face
via que o nosso amor ia chegando ao fim...

Hoje, para encontrá-la, eu quase que não vim...
Era o medo covarde deste desenlace...
E tudo terminou... e foi melhor assim
talvez, para você, que tudo terminasse...

Nosso amor, - e ninguém há de saber por que,
morreu (bem que o sentimos pelo nosso olhar),
e não somos culpados nem eu, nem você...

E o que é estranho afinal é que tudo acabasse,
sem que nenhum de nós falasse em terminar,
- e assim como se tudo ainda continuasse...

FRAQUEZA

Espero-te... E sei bem que eu só que te espero...
Aqui me tens... Constante e eterna é a expectativa!
Por que hei de ser assim sempre ingênuo e sincero
por mais que experiência eu tenha, e a vida eu viva?

Chegarás... e terás uma resposta esquiva
ao que te perguntar... E eu que tanto te quero
renderei novamente a minha alma cativa,
enquanto sorrirás feliz... e eu desespero...

Há um imenso poder nessa tua humildade,
e esse teu ar de mansa ternura e meiguice
estraçalha aos teus pés toda a minha vontade...

Que fazer? Hei de sempre perdoar o que fazes...
E se choras, nem sei... Esquecendo o que disse
sou eu que enxugo o pranto e ainda proponho as pazes!

FREIRA

Em teu calmo semblante e em teu olhar parado
há perdido -  bem sei - um mistério qualquer...
- quem sabe se pecaste... e se foi teu pecado
quem te fez esquecer que és bela e que é mulher...

Hoje és santa... O passado passou --- é passado...
- dele já não terás uma ilusão sequer,
e o amor que se tornou funesto e amargurado,
sepultas no silêncio... e em teu árduo mister...

Mais à frente está a vida... a vida humana e bela!
- teu presente é uma prece; teu passado: um poema;
teu futuro: um rosário, um altar, uma cela...

Evadida do mundo - ao ver-te, à luz do dia
- não sei se te admiro a renúncia suprema,
ou se lastimo a tua imensa covardia!

FUGA

Amo um lugar assim, amo os lugares
onde há montanhas, selvas, passarinhos...
- onde o giz alvacento dos luares,
à noite, faz rabiscos de caminhos...

Que bom ficarmos sempre assim, sozinhos...
quantas coisas depois, para lembrares!
Esta calma varanda... os meus carinhos...
Um silêncio... que é música, nos ares...

A porteira lá embaixo... a estrada, o fim...
Ah! Se pudéssemos nos esquecer
para onde segue aquela estrada, assim...

Ah! Se pudéssemos pensar que aquela
estrada , ali adiante vai morrer...
- Como a vida, meu Deus, seria bela!

GATA ANGORÁ

Sobre a almofada rica e em veludo estofada
caprichosa e indolente como uma odalisca
ela estira seu corpo de pelúcia, - e risca
um estranho bordado ao centro da almofada...

Mal eu chego, ela vem... ( nunca a encontrei arisca)
-sempre essa ar de amorosa; a cauda abandonada
como uma pluma solta, pelo chão deixada,
e o olhar, feito uma brasa acesa que faísca!

Mal eu chego, ela vem... lânguida, preguiçosa,
Roçar pelos meus pés a pelúcia prata,
como a implorar carícias, tímida e medrosa...

E tem tal expressão, e um tal jeito qualquer,
- que às vezes, chego mesmo a pensar que essa gata
traz no corpo escondida uma alma de mulher!

IDEAL DE AMOR

Odeio aquelas almas onde encontro escrita
uma história que um outro antes de mim viveu...
Dentro de um grande amor, o amor-próprio se irrita
encontrando um romance que não seja o seu ...

Quero uma alma que seja inteiramente pura,
simples, e onde não haja escrita uma só linha,
onde possa ir deixar um poema de ventura
aquela que procuro e que há de ser só minha...

Quero um amor de egoísta todo meu, inteiro,
que não traga um vestígio de afeição sequer...
- se para ele eu não for o seu sonho primeiro
desde já renuncio a outro lugar qualquer...

Somente assim desejo e quero ser amado
e um grande amor somente assim posso sentir...
- hei de ser seu presente... hei de ser seu passado
e a esperança feliz que doure o seu porvir...

Para um perfeito ideal... para encher a minha vida
ser toda a minha crença em meu viver de ateu,
não quero a alma que foi por outro amor possuída
nem quero aquele amor que um dia não foi meu!

Quero o amor em botão... fechado, pequenino,
e ao calor do meu beijo há de florir então,
- para ser a razão do meu próprio destino
e a grandeza imortal da minha inspiração!…

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. Os Mais Belos Poemas Que O Amor Inspirou. vol. 1. SP: Ed. Theor, 1965.

Leonardo Boff (A Águia e a Galinha)


Certa vez, um camponês andando pela floresta, encontra caído ao chão um ninho de águia, com um filhote bastante machucado, que havia caído junto com o ninho do galho mais alto, de uma das árvores mais altas do local.

Com pena da ave, levou-a para sua casa e tratou-a dia a dia. Aos poucos foi se recuperando, e o nosso camponês, sem ter onde deixá-la, acabou colocou-a no galinheiro, junto com as suas galinhas.

E, assim, a aguiazinha foi crescendo e aprendeu a se comportar exatamente como as galinhas.

Os anos se passaram. Certo dia, o camponês recebeu a visita de um naturalista que, ao ver a águia no galinheiro, afirmou:

"Este pássaro não é uma galinha, é uma águia, a rainha das aves, aquela que voa mais alto e que mais perto chega do céu e do sol. A maior de todas as aves".

O camponês confirmou o que ouviu, mas retrucou:

"Não. Ela já foi uma águia. Ela foi águia quando nasceu, mas hoje é uma galinha. Veja, ela se comporta exatamente igual às galinhas".

O naturalista não se conformou e pediu ao camponês para deixá-lo libertar a águia. O camponês não tinha nada a opor, mas advertiu:

"Não adianta. Você verá que ela não é mais uma águia, pois eu não sei há quanto tempo ela já está aqui e durante todos esses anos ela sempre se comportou como uma galinha".

O naturalista pegou a águia e disse:

"Você sempre foi, é e sempre será uma águia. Você nasceu para voar muito alto, para ser a maior de todas as aves, a mais poderosa. Você não é uma simples galinha. Vamos, voe em direção ao céu e ao sol, pois é o seu destino".

A águia olhou para baixo, viu as galinhas e pulou para o chão, ficando entre elas. O camponês comentou:

"Não lhe disse? Ela perdeu o espírito de águia e agora é uma simples galinha".

O naturalista não se conformou e retrucou:

"Não. A natureza dela não é essa. Amanhã vamos levá-la para o alto da montanha mais alta, lá ela verá o sol e voará como uma águia que é".

E assim fizeram. No dia seguinte levaram a águia até o alto da montanha mais alta e o naturalista repetiu:

"Vamos! Você é uma águia, uma das mais belas criações de Deus. Você foi feita para vencer, não pode continuar agindo como uma simples galinha. Voe. Observe o céu e o sol, eles são os seus objetivos, e não a terra, o chão de um galinheiro".

A princípio a águia, de forma muito medrosa, procurou as galinhas, mas como não as encontrou por perto, passou nervosamente a bater as suas enormes asas, com quase 3 metros de envergadura; aos poucos foi criando coragem e depois de algumas tentativas frustradas e de muito medo conseguiu alçar pequenos voos. Mais um pouco e ela se sentiu com a coragem necessária para voar em direção ao sol e ao céu; e lá foi ela, galhardamente, realizar o seu projeto de vida, para o qual havia sido criada.
_________________________

Nós, seres humanos, também viemos ao mundo para realizar todos os nossos projetos e sonhos...

Ao longo da vida, entretanto, alguns perdem essa coragem e desistem de buscar a sua própria realização, desfigurando-se completamente.

Acomodam-se e se deixam levar pelos obstáculos e dificuldades que a vida apresenta. Não conseguem reter o espírito de luta que faz de alguns os grandes vencedores, mas que nasceu com todos nós.

A águia é uma ave de rapina e nisto ela é exatamente o oposto do que temos de ser ao longo da nossa vida e da nossa profissão, porque não nascemos para viver de "expedientes de rapina", mas sim da nossa maravilhosa capacidade de construir sempre um mundo melhor para todos, sejam eles nossos familiares, clientes ou empresas, pois ao produzir, seja o que for, estamos melhorando a vida de todas as pessoas.

Mas, assim como a águia, viemos ao mundo para realizar grandes e bonitos "voos ao longo da vida", transformar os nossos sonhos em realidade e . . . vencer.

Às vezes, a vida nos apresenta situações em que é difícil ser águia e sairmos "voando" em direção ao céu dos nossos sonhos e ao sol das nossas realizações, mas temos de ACREDITAR SEMPRE que isto é uma situação passageira e que logo voltaremos a ter o espírito de vitória com que nascemos, lutando para buscar sempre a plena realização de todos os nossos sonhos.

Assim como a águia, viemos ao mundo com a missão de superar todos os obstáculos que se apresentarem, pois temos de, todos os dias, começar sempre tudo de novo -- não adiantará absolutamente nada o sucesso ou o fracasso...de ontem -- e não importa o que já aconteceu, tenha sito ótimo ou péssimo, pois o que importa mesmo é ... o que você fará acontecer hoje !!!

Semelhante à águia, busque ser a realização da obra maior de Deus e lute sempre, pois é isso que diferencia os que vencem... dos que se lamentam..

Fonte:
Leonardo Boff. A Águia e a Galinha.

sábado, 11 de maio de 2019

Silmar Bohrer (Lampejos Poéticos) XII


Luís de Camões (A B C em motes)


AAAA
 
Ana quisestes que fosse
o vosso nome da pia,
para mor minha agonia.
 
Apeles, se fora vivo
e a ver-vos alcançara,
por vós retratos tirara.
 
Aquiles morreu no templo,
contemplando de giolhos;
eu, quando vejo esses olhos.
 
Artemisa sepultou
a seu irmão e marido;
vós a mim, e a meu sentido.

B
 
Bem vejo que sois, Senhora,
extremo de formosura,
para minha sepultura.

CC
 
Cleópatra se matou
vendo morto a seu amante;
e eu por vós, em ser constante.
 
Cassandra disse de Tróia
que havia ser destruída;
e eu por vós, d'alma e da vida.

DD
 
Dido morreu por Enéas,
e vós matais quem vos ama;
julgai se sois cruel dama!
 
Dianira, inocente,
da má morte causadora;
vós, da minha, sabedora.

E
 
Eurídice foi a causa
de Orfeu ir ao Inferno;
vós, de ser meu mal eterno.

FF
 
Fedra, só de puro amor,
morreu por seu enteado;
eu, morro de desamado.
 
Febo vai escurecendo
ante vossa claridade;
e eu, sem ter liberdade.

GG
 
Galatéia sois, Senhora,
Da formosura extremo;
e eu, perdido Polifemo.
 
Genebra, que foi rainha,
se perdeu por Lançarote;
e vós, por me dar a morte.

HH
 
Hércules, uma camisa
de chamas o consumiu;
minha alma, dês que vos viu.
 
Hébis e Dido morreram
com o rigor da mudança;
eu, vendo vossa esquivança.

JJJJ
 
Judit, que o duro Holofernes
degolou, se viva fora,
mate lhe dereis, Senhora.
 
Júlio César conquistou
o mundo com fortaleza;
vós a mim com gentileza.
 
Júlio César se livrou
dos inimigos com abrolhos;
eu, não posso desses olhos.
 
Jazia-se o Minotauro
preso no seu labirinto;
mas eu mais preso me sinto.

LL
 
Leandro se afogou
e foi sua causa Hero;
e a mim o que vos quero.
 
Leandro se afogou
no mar de sua bonança;
eu, no de vossa esperança.

MM
 
Minerva dizem que foi,
e Palas, deusas da guerra:
e vós, Senhora, da terra.
 
Medeia foi mui cruel,
mas não chegou a metade
de vossa grã crueldade.

NN
 
Narciso o siso perdeu
em vendo a sua figura;
eu, por vossa formosura;
 
Ninfas enganam mil Faunos
com seu ar e formosura;
e, a mim, vossa figura.

OO
 
Os olhos choram o dano
que em vos verem sentiram,
mas eu pago o que eles viram.
 
Orfeu com a doce harpa
venceu o reino de Plutão;
vós a mim, com perfeição.

PP
 
Páris a Helena roubou,
por quem Tróia foi perdida;
e vós a mim, alma e vida.
 
Pirro matou Policena,
perfeita em todos sinais;
e vós a mim me matais.

QQ
 
Quanto mais desejo ver-vos,
menos vos vejo, Senhora:
não vos ver melhor me fora.
 
Querendo ver a Diana,
Actéon perdeu a vida,
que eu por vós trago perdida.

RR
 
Remédio nenhum não vejo
que remedeie meu mal;
nem crueza à vossa igual.
 
Roma o mundo sujeita
com armas, saber, temor
vós a mim só por amor.

S
 
Sirena, na mor fortuna
com enganos vai cantando;
e vós, sempre a mim matando.

TT
 
Tisbe morreu por Píramo,
a ambos matou o Amor;
a mim, vosso desfavor.
 
Tisbe pelo seu amante
morreu com amor sobejo;
mas eu mais morto me vejo.

VV
 
Vênus, que por mais formosa
lhe deu Páris a maçã,
não foi quanto vós louçã.
 
Vênus levou a maçã
por vós não serdes, Senhora,
nascida naquela hora.

XX
 
Xpõ vos acabe em graça,
e vos faça piedosa
tanto, quanto sois formosa.
 
Xantopea tornou atrás
por Apônio a invocar;
e vós não, a meu chamar.

Fonte:
Luís Vaz de Camões. Redondilhas.

Alberto Braga (A Guerra)


Logo abaixo dos açudes, ficava de uma banda do rio a azenha (
moinho movido a água) do Euzebio moleiro, e da margem oposta, um pouco mais abaixo, a azenha do tio Anselmo.

Eram dois velhotes viúvos, de bons sessenta anos, e amigos desde crianças. Para contradição do anexim popular, estes dois moleiros queriam-se como dois irmãos, a despeito de serem do mesmo oficio.

Parece que o rio, naquele sitio, era até mais pitoresco! Por detrás das azenhas descia a enfesta de uma cerrada devesa (
caminho orlado de árvores que limita um terreno) de carvalhos e sobreiros, com o atalho aberto ao meio, que era por onde seguiam os machos carregados com os taleigos (saquinhos estreitos e compridos) da fornada. Mesmo á orla havia alguns amieiros e choupos, que se debruçavam sobre o rio. As águas caídas nos açudes, vinham costeando uma gândara (charneca), escondiam-se em meio de um canavial, e surgiam depois mais límpidas até às rodas do moinho, que as marulhavam e batiam constantemente.

No verão, quando a levada era minguada, os dois velhotes visitavam-se amiúde, atravessando destemidamente pelas poldras; mas, quando as chuvas do outono principiavam a tornar o rio caudaloso, limitavam-se então a falar de um lado para o outro. Era triste! Já tão velhotes! E depois dizia o Euzebio:

- Anselmo, fala mais alto, que te não ouço.

- O que é? - perguntava o outro, inclinando o pavilhão da orelha.

O Euzebio fazia um porta-voz com as mãos, e gritava:

- Não te entendo.

Quando chegavam a falar, concordavam sempre que era o barulho das rodas do moinho, que os não deixava ouvir. Isso sim! Era o peso dos anos que os tinha quase surdos de todo. Pobres velhos!

O Euzebio tinha um filho, que era um rapagão de vinte e dois anos, como um castelo! Ainda o dia vinha longe, já ele estava a trabalhar, que era um regalo a gente vê-lo.

- Lida como um mouro! - diziam os conhecidos.

E se havia esfolhada, ou espadelada, quem lá não faltava era ele.

O pai, que, noutros tempos, tinha sido um folião, dizia-lhe, à boca da noite:

- Simão, se tens de ir a algures, parte, que eu cá fico, para aviar os fregueses.

- Estava arranjado! - respondia o moço a rir. - Vosmecê já deu o que tinha a dar. Agora coma e beba, e deixe-me cá com a vida!

Primeiro que tudo estava a sua obrigação. O rapaz assim que não tinha mais fregueses a aviar, fechava a ucha do moinho, e partia então para a brincadeira.

E o velhote do pai, quando alguém lhe contava as diabruras do filho, parece que até a alma se lhe ria na menina dos olhos.

O Anselmo tinha uma filha. Chamava-se ela Margarida, e era formosa, daquela formosura campesina, sem artificio, jovial e expansiva. Em dotes do coração - que é a principal beleza! - nem as mais virtuosas a excediam.

Desde pequenina foi Margarida criada com Simão. Se não ficasse mal estabelecer agora paralelos já sabidos e repetidos, estava em dizer que os dois se queriam e estimavam como "Paulo e Virgínia".

Quando os quinze anos de Margarida, que era mais nova dois do que Simão, vieram pôr termo aos brinquedos de infância, então principiou ele a olha-la com aquele respeito com que se olha para uma irmã mais velha.

Mas vá-se desde já sabendo que esse respeito não estorvava, antes acrisolava um outro sentimento, que principiava a exercer e a avultar no generoso coração do rapaz.

Margarida, quando Simão lhe falava na sua tristeza e no seu amor, fingia-se contrariada, carregava o sobrolho e mudava de conversa. Destas esquivas repetidas ateou-se o fogo da paixão na alma do moleiro.

- Margarida - dizia-lhe ele duma vez - se não quiseres casar comigo, hei de morrer solteiro.

- Não te faltam mulheres, Simão.

- E se te vejo ser d'outro - protestava o rapaz com as lágrimas nos olhos - não sei que faça, que me não mate.

E Margarida era tão cruel, que assim desprezasse o seu amigo e companheiro de infância?!

Nós veremos já até onde vai a dedicação de uma mulher.

       *       *       *       *       *

Isto passava-se no tempo em que se guerreavam os partidos de D. Pedro e de D. Miguel.

Quando ás aldeias chegavam noticias aterradoras, as mães estremeciam ao contemplar os filhos afadigados na lavoura.

 - De mortos nem a conta se sabe!- diziam os mensageiros. Vai por aí até o fim do mundo!

- Jesus, Senhor! E então diz que é guerra de irmão contra irmão! Valha-nos Deus!

De uma vez, oito soldados e um furriel (
antigo posto militar correspondente ao atual terceiro-sargento) pararam á porta da azenha do Euzebio. Passado um instante, a gente da aldeia chorava com brados aflitivos, vendo o Simão do moleiro atravessar no meio da escolta com os braços presos, como um degredado! O velho, assim que lhe arrebataram o filho, ainda tentou abraça--lo; mas, coitadinho!--como já lhe custava a andar, quando chegou à porta, ia o rapaz a subir a encosta.

Aos gritos da vizinhança acudiu Margarida ao postigo da azenha. Perguntou o que tinha acontecido da outra banda; e, quando lhe disseram que o Simão tinha sido levado para a guerra, a pobre rapariga soltou um grito agonizante e caiu desfalecida nos braços do pai.

As águas tinham engrossado com as últimas chuvas, e os dois velhos, quando se avistavam de longe, desatavam a chorar, como duas criancinhas!

Decorridos oito dias, a gente da aldeia acordou sobressaltada com o tiroteio, com o rufo das caixas e o som dos clarins. Feria-se uma batalha a pequena distancia.

Quando a tropa ali passou, todos viram o Simão moleiro, que parecia outro! Ia magro, esfalfado, com os sapatos rotos, coberto de pó, a espingarda ao ombro, a mochila ás costas e a chorar! Ao passar rente das casas ia saudando os conhecidos, e dizia ás raparigas que pedissem a Deus por ele.

Saiu do povoado sem ter visto o pai, nem Margarida. Levava o coração retalhado!

Assim que a filha do Anselmo o soube, quis logo ir ter aonde pudesse falar-lhe.

- Isso, Deus te livre! - disse-lhe do lado uma vizinha. - Se lá vais, lá ficas! E, de mais a mais, terás de falar com soldados! credo!

- Lá isso - atalhou a moça - também o Simão é soldado, tia Joaquina!

Ao fim da tarde principiaram a chegar as ambulâncias dos mortos e feridos. Vinham apinhados, uns com as cabeças ligadas, com as faces empastadas de sangue, outros com os braços ao peito, mutilados, outros com as pernas partidas, quase todos moribundos!

Nunca se tinha visto uma coisa assim! Aos gemidos dos feridos reuniam-se os clamores da gente que se aglomerava para os ver. Destacavam-se algumas frases das ambulâncias:

- Ai! minha pobre mãe!

- Ai! meus ricos filhos!

E as mulheres, quando isto ouviam, de cada vez choravam mais.

Alguém dentre o povo ouviu gemer de uma das carretas da ambulância:

- Meu... pai! Marga... rida! Eu morro!

E viu-se que um dos feridos, que ia reclinado, deixou pender a cabeça sobre o peito, e descair um braço fora do carro.

Os artilheiros que levavam pela camba dos freios os cavalos insofridos, voltaram-se para uma formosa rapariga que os interrogava aflita. O retinir das molas da carreta, rodando nas lajes irregulares de uma vereda, não os deixou ouvir. Mas, de repente, a moça aproximou-se mais de um carro, pegou no braço que bamboleava, estendido fora da ambulância, à mercê dos solavancos, reparou atentamente num anel que o morto levava, e principiou a gritar:

- O Simão! Morreu! morreu!

E debatia-se angustiada nos braços das amigas que a seguravam.

Quando um vizinho entrou na azenha do Euzebio, para lhe dar a notícia da morte do filho, encontrou o moleiro sentado na ilharga da cama, a rezar, com os olhos postos num crucifixo, e um rosário entre os dedos.

- Reze-lhe por alma!- disse o vizinho a chorar.

O velhote, que estava muito mais surdo, ergueu-se, e perguntou espantado:

- O que é? - e aplicou os quatro dedos da mão direita ao ouvido correspondente.

- Morreu! - gritou-lhe o outro.

O Euzebio empalideceu subitamente, aprumou-se, fitou os olhos no vizinho; e, sem pestanejar, dirigiu-se apressadamente á cabeceira da cama, e tirou de trás uma espingarda.

- Isso para que é, tio Euzebio? - perguntou-lhe o outro ao ouvido.

- Vou mata-los! - respondeu o moleiro com uma voz convulsa. - Vou mata-los!

Mas quando ia, com a espingarda ao ombro, a transpor a soleira da porta, cambaleou, e caiu fulminado para a outra banda...

Na madrugada do dia seguinte, um moço de lavoura chegou aflito a casa, esbaforido, dizendo que, pouco abaixo da azenha, vira um corpo de mulher levado na corrente do rio, a fugir, a fugir!...

       *       *       *       *       *

Ainda conheci, há muitos anos, o pai de Margarida.

Era por uma formosa manhã de abril.

O velho estava fora da azenha, sentado numa cadeira de entrevado, com os pés estendidos a uma réstia de sol. Em volta dele, chilreavam os passarinhos na ramaria frondosa do arvoredo.

Referia-me, ao certo, a morte do Simão e do seu amigo Euzebio; e, depois, quando chegava ao lance de ter perdido a filha, voltava a cabeça para o rio, e perguntava baixo, de si para si:

- E a Margarida?!...

E ficava como mentecapto, com os olhos turvos a contemplar as águas do rio, que derivavam mansamente entre os salgueiros!

Fonte:
Alberto Braga. Contos d'Aldeia. Porto/Portugal: Cia. Portugueza Ed.,  1880.

quinta-feira, 9 de maio de 2019

Vinicius de Moraes (Conversa com Caymmi)


Sábado - o dia da Criação - cheguei ao Zum-Zum para fazer meu show com Caymmi e fui encontrar o baiano, como sempre, aboletado na copa, de papo com seus amigos, os garçons da boate. Paulinho Soledade, que eu desconfio fez o Zum-Zum (a dois passos de seu apartamento) muito mais para deleite próprio que do alheio (o que constitui um certificado de garantia) tem neste momento a melhor equipe de serviço da noite carioca: um pessoal que, desde o maitre até o último garçom, é simpático, eficiente e devotado à casa. Adolfo, o porteiro, por exemplo, que acaba de perder o irmão e quatro sobrinhos no rolamento da pedra da rua Euclides da Rocha, está lá firme no seu posto, imerso em sofrimento mas nunca desatento: uma instituição da noite!

Caymmi anda no auge da forma. Com a chegada de Nana, a sua "oncinha", e dos netinhos, da Venezuela, o baiano está nos seus quintais. Tudo nele respira saúde moral e realização. Não fosse a ausência de seu caçula Danilo, o flautista, a quem Caymmi mandou numa excursão à Europa, e sua felicidade seria integral. Dori está se firmando cada, vez mais como um dos jovens compositores mais importantes da última safra. E Stela, sua mulher, é aquele baluarte. De que mais precisa um homem?

Pedimos cada um um uisquinho, e eu disse a Caymmi:

- Você sabe, meu Caymmi, o que um bombeiro disse a meu filho Pedro? Simplesmente o seguinte: que tem uma pedra ali em cima do túnel da Barata Ribeiro, que pela sua tonelagem, se cair vai até a Nossa Senhora de Copacabana, fácil.

- Não me diga...

- Isso não é nada. Atrás de onde eu moro, ali na rua Diamantina, ao sopé do Corcovado, tem uma outra pedra, que, essa, vai cair mesmo. Os bombeiros estiveram lá e já fizeram evacuar três edifícios de apartamentos que ficam na trajetória de sua queda. Ela deve pesar umas dez toneladas.

Caymmi considerou seu uísque.

- Pois é, seu poeta... Veja você... Tudo por causa disto.

E apontou com os olhos um jarro de água à sua frente. Depois, seu olhar baixou um instante e ele se deixou estar, pensando...

- Ela tem um ar tão inocente, mas não é? Tão fresca, tão clarinha... No entanto, ninguém sabe o mal que isso faz!

Olhou-me de soslaio, num sestro muito seu:

- É capaz de devastar uma cidade...

Novo olhar:

- Dá tifo...

Mais outro:

- É por essas e outras que Dorival Caymmi nunca põe água no uísque…

E bebendo uma golada do seu, puro e sem gelo:

- É, meu irmão... Água é fogo!

Fonte:
Vinicius de Moraes. Para uma menina com uma flor. Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 1966.

Arthur de Azevedo (As Cerejas)


– Que fazes tu aí parado? Estás a comer com os olhos aquelas magníficas cerejas?

– Estou simplesmente a namorá-las, ou antes, a resolver-me… Os cobres são tão curtos!.

– Gostas realmente de cerejas?

– Eu? Nem por isso! Prefiro qualquer outra fruta do nosso país! Mas minha mulher dá o cavaquinho por elas, e não se me dava de lhe levar aquelas, que têm boa cara.

– Pois compra-as, que diabo! Não são as cerejas que nos arruinam.

– Tens razão.

Esse ligeiro diálogo foi travado em frente ao mostrador de uma loja de frutas, na Avenida, entre o Antunes e o seu velho amigo Martiniano.

O Antunes comprou as cerejas. O Martiniano despediu-se e foi tomar o bonde.

Aquele dispunha-se a fazer o mesmo, e já estava num ponto de parada, esperando o elétrico de Vila Isabel, quando passou a Pintinha, um diabo de uma mulher que ele não podia ver sem sentir imediatamente o imperioso desejo de acompanhá-la, para reatar o fio de uma conversação agradável que se interrompia de meses a meses.

Acompanhou-a.

Ela, quando o viu, disse-lhe com toda a franqueza:

– Que fortuna encontrar-te! Estava com muitas saudades tuas. Jantas hoje comigo. Não admito desculpas, tanto mais que leio nos teus olhos que estás morto por isso. Vou esperar-te em casa.

Meia hora depois, o Antunes subia as escadas da Pintinha. Esta, a primeira coisa que fez foi tirar-lhe das mãos o embrulho que ele trouxera da loja de frutas e desamarrá-lo.

– Que é isso? Cerejas? Como és amável! Não te esqueceste da minha sobremesa predileta!

O Antunes pensou consigo: – guardado está o bocado para quem o come – e pediu mentalmente perdão a dona Leopoldina, sua legítima esposa.

Isto passava-se à tardinha, e era noite fechada quando as cerejas foram alegremente comidas.

A hora em que o Antunes entrou no lar doméstico, já D. Leopoldina estava deitada, mas não dormia ainda.

– Com efeito, Antunes! Já lhe tenho pedido um milhão de vezes que não jante fora sem me prevenir! Esperei-o até às 7 horas!

– Perdoa, benzinho, fui desencaminhado por um amigo que me levou ao Pão
de Açúcar.

– Ao Pão de Açúcar?

– Sim, o Pão de Açúcar é um restaurante da Exposição. Come-se ali muito bem, e o lugar é aprazível.

– Demais, eu estava doida por que você chegasse; nunca o esperei com tanta impaciência!

– Por quê?

– Por causa das cerejas.

– Que cerejas?

– As tais que você comprou na Avenida para me trazer; você bem podia tê-las mandado pelo "rápido" com o aviso de que não vinha jantar. Onde estão elas?

– As cerejas?

– Sim, as cerejas!

– Mas como soubeste que eu…?

– Muito simplesmente. Saí para ir ao dentista, e quando voltava para casa encontrei no bonde aquele teu amigo Martiniano, que me disse: "A senhora vai ter hoje magníficas cerejas ao jantar; vi seu marido comprá-las na Avenida. Ele disse-me que a senhora dá o cavaquinho por elas." Onde as puseste? Na sala de jantar?

Já o Antunes tinha arranjado a mentira:

– Oh! diabo! E se não me falas não me lembrava! Deixei no bonde o embrulho das cerejas!.

– Eu logo vi!…

D. Leopoldina voltou-se para o outro lado e não disse mais palavra.

No dia seguinte esteve amuada todo o dia, e só voltou às boas quando o Antunes, entrando em casa às horas de jantar, lhe entregou um embrulho de cerejas, dizendo:

– Estavam na estação.

Pobre D. Leopoldina! Se soubesse que a Pintinha…

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos.

quarta-feira, 8 de maio de 2019

Silmar Bohrer (Lampejos Semanais) XI


Consiglieri Pedroso (A Menina e o Bicho)


 Era uma vez um homem que tinha três filhas.

 Eram todas muito amigas dele, mas havia uma que ele estimava mais.

 Foi um dia à feira e perguntou às filhas o que é que elas queriam de lá. Uma delas disse:

– Um chapéu e umas botas!

 A outra disse também:

– Um vestido e um xale!

Mas a que ele estimava mais não lhe disse nada.

 O homem, muito admirado, perguntou:

– Ó minha filha, tu não queres nada?

– Não quero nada, disse ela. Quero que meu pai tenha saúde!

– Tu hás de também pedir uma coisa, seja o que for, que eu trago-te! - respondeu o pai.

Ela, para que o pai a deixasse, disse então:

– Quero que meu pai me traga um corte de goraz em campo verde.

O homem foi para a feira, comprou todas as coisas que as filhas lhe tinham pedido, e não fazia senão procurar o corte de goraz em campo verde. Mas não o encontrou. Era coisa que não havia. Por isso vinha muito triste para casa, porque era a filha que ele mais estimava.

 Quando vinha andando, aconteceu-lhe ver luzir uma luz no caminho, porque já era noite.

 Foi andando, andando, até chegar àquela luz.

 Era um pastor, que estava ali numa cabana. O homem chegou-se a ele e perguntou:

– Sabe-me dizer que palácio é aquele, e se me podiam dar agasalho!

O pastor respondeu muito admirado:

– Oh!, senhor, mas... naquele palácio não habita ninguém; aparece lá uma coisa, e todos têm medo de lá estar!

– Deixá-lo, disse o homem, não me hão de comer, e como não tem ninguém, vou lá dormir esta noite!

Foi. Encontrou tudo iluminado e muito rico e, entrando mais para dentro, viu uma mesa posta. Quando se ia a chegar à mesa, ouviu uma voz dizer:

– Come e vai-te deitar naquela cama que ali está, e pela manhã levanta-te e leva o que está em cima daquela mesa, que é o que a tua filha te pediu, mas, ao fim de três dias, hás de me trazer ela aqui.

O homem ficou muito contente por levar à filha o que ela tinha pedido, mas ao mesmo tempo ficou triste pelo que a voz lhe tinha dito.

 Deitou-se e ao outro dia levantou-se, foi direito à mesa e viu o corte de goraz em campo verde; agarrou nele e foi para casa.

 Apenas chegou, começaram as filhas de roda dele:

– Meu pai, que é que nos trouxe? Deixe ver.

O pai deu-lhes tudo quanto trazia.

 A outra filha, a que ele estimava mais, perguntou-lhe só se ele tinha saúde. O pai respondeu-lhe:

– Minha filha, venho contente e ao mesmo tempo triste! Aqui tens o teu pedido.

A filha respondeu-lhe:

– Oh! meu pai, eu tinha-lhe pedido isto, porque era coisa que não havia. Mas porque é que vem tão triste?

– Porque tenho de levar-te ao fim de três dias aonde me deram isto!

E contou tudo o que lhe tinha acontecido no palácio e o que a voz lhe tinha dito. A filha, quando ouviu tudo, respondeu:

– Não esteja triste, meu pai, que eu vou, e há de ser o que Deus quiser!

Assim foi. Ao fim de três dias o pai levou-a ao palácio encantado.

 Estava tudo iluminado, a mesa posta e duas camas feitas.

 Quando entraram, ouviram uma voz dizer:

– Come e deixa-te estar três dias com a tua filha, para ela não ter medo.

O homem esteve os três dias no palácio. No fim, foi-se embora, ficando a filha só.

 A voz falava com ela todos os dias, mas não se via ninguém.

 Ao fim de uns poucos dias, a menina ouviu cantar um passarinho no jardim. A voz disse-lhe:

– Tu ouves o passarinho a cantar?

– Ouço, sim! - disse a menina - É alguma novidade?

– É tua irmã mais velha que está para casar. E tu queres ir? - perguntou a voz.

A menina, muito contente, disse:

– Eu quero, sim. E tu deixas-me ir?

– Eu deixo - tornou a voz - mas tu não voltas!

– Volto, sim! – disse a menina.

A voz deu-lhe então um anel, para ela se não esquecer, e disse-lhe:

– Olha que ao fim de três dias vai um cavalo branco buscar-te; há de bater três pancadas: a primeira é para te vestires, a segunda é para te despedires e a terceira é para te montares. Se às três não estiveres em cima do cavalo, ele vem-se embora e deixa-te lá!

A menina foi. Houve uma grande festa, e a irmã casou-se. Ao fim de três dias, foi o cavalo branco bater três pancadas. A primeira a menina começou a vestir-se, à segunda despediu-se e à terceira montou a cavalo.

 A voz tinha dado à menina um caixote de dinheiro para levar ao pai e às irmãs, e por isso elas não queriam que ela tornasse para o palácio encantado, porque já estava multo rica.

 Mas a menina lembrou-se do que tinha prometido, e apenas se viu em cima do cavalo foi-se embora.

 No fim de certo tempo tornou o passarinho a cantar muito contente no jardim. A voz disse-lhe:

– Tu ouves o passarinho a cantar?

– Ouço, sim! - disse a menina - É alguma novidade?

– É a outra tua irmã que está para casar. E tu queres ir? perguntou a voz.

A menina, muito contente, disse:

– Eu quero, sim! E tu deixas-me ir?

– Eu deixo. - tornou a voz - Mas tu não voltas!

 – Volto, sim! - disse a menina.

  A voz disse, então:

 – Olha que se ao fim de três dias não vieres, ficas lá, e serás a rapariga mais desgraçada que há no mundo!

A menina foi. Houve uma grande festa, e a irmã casou-se. Ao fim de três dias veio o cavalo branco. Deu a primeira pancada, e a menina vestiu-se; deu a segunda, e a menina despediu-se; deu a terceira, e montou a cavalo e foi para o palácio.

 Passados tempos tornou o passarinho a cantar no jardim, mas muito triste, muito triste.

 A voz disse-lhe:

 – Tu ouves o passarinho?

 – Ouço, sim! - disse a menina - É alguma novidade?

- É, sim, é o teu pai que está para morrer, e não morre sem se despedir de ti!

– E tu deixa-me ir? - perguntou a menina, muito triste.

– Deixo, sim, mas desta vez é que tu não voltas!

– Volto, sim! - disse a menina.

A voz disse-lhe:

– Não voltas, não, que as tuas irmãs não te deixam vir! E tu e mais elas, serão as raparigas mais desgraçadas deste mundo, se não voltares ao fim de três dias!

A menina foi, o pai estava muito mal e não podia morrer, mas apenas se despediu dela, morreu.

 As irmãs, como ela tinha perdido a noite, deram-lhe dormideiras e deixaram-na dormir.

 A menina pediu muito que a acordassem antes de vir o cavalo branco.

 As irmãs que fizeram? Não a acordaram e tiraram-lhe o anel do dedo.

 Ao fim de três dias veio o cavalo. Bateu a primeira pancada, bateu a segunda, bateu a terceira e foi-se embora, e a menina ficou.

 Ela andava muito satisfeita com as irmãs, porque não tinha o anel e já não se lembrava de coisa nenhuma.

 Daí a uns poucos dias, começou a fortuna a andar para trás, a ela e às irmãs.

 Até que uma vez as duas disseram-lhe:

 – Mana, tu não te lembras do cavalo branco?

  A menina lembrou-se, então, de tudo e disse a chorar:

 – Ai. que desgraça a minha! Ai, que me desgraçaram! Que é do meu anel?

  As irmãs deram-lhe o anel, e a menina, com muita pena, foi-se logo embora. Chegou ao palácio encantado, mas viu tudo muito triste, muito escuro e muito fechado.

 Foi direta ao jardim e encontrou um bicho muito grande, estendido no chão. O bicho, apenas a viu, disse-lhe:

 – Retira-te, tirana, que me dobraste o meu encanto! Agora serás a rapariga mais desgraçada do mundo, tu e as tuas irmãs!

  O bicho estava a acabar e, assim que disse isto, morreu. A menina voltou para as irmãs, muito triste e a chorar multo, meteu-se em casa sem comer nem beber, e dali a dias morreu também.

 As irmãs, essas ficaram cada vez mais pobres, por terem sido a causa disto tudo.