domingo, 19 de maio de 2019

Professor Garcia (Trovas que sonhei cantar) 2


As canções dos pescadores
que escuto de volta ao cais...
São ladainhas de dores
dos que não voltam jamais!

Enquanto a tarde serena,
sepulta um sol tão bonito...
O sol tristonho, me acena
da solidão do infinito!

Escrava do teu assédio,
a minha alma com ternura,
faz dele, um santo remédio,
para um mal que não tem cura!

Há na eclosão de uma flor,
e no olhar de uma criança,
lindos caprichos do amor
orvalhados de esperança!

Já sentiste a dor insana,
do canto de um passarinho,
que canta a maldade humana
sobre as cinzas do seu ninho?...

Lembrar momentos risonhos
dos tempos da mocidade,
é torturar velhos sonhos
no por do sol da saudade!

Meu pai... Ao te ver agora,
curvado e contando os passos...
Dói-me ao lembrar, quando outrora,
andava tanto em teus braços!

Meus versos são quais crianças,
dóceis, inocentes, belas...
Que vão pintando esperanças
e emoldurando aquarelas!

No entardecer da cidade,
antes do sol se esconder...
Há mais cinzas de saudade
nas cinzas do entardecer!

O orvalho que não reclama,
é o sentimento profundo,
do pranto que Deus derrama
ante as maldades do mundo!

O tempo, com seus deslizes,
com seus conceitos fatais...
Por pouco, nos fez felizes,
mas quase tarde demais!

Põe na vida mais ternura...
Sê como a luz de candeia:
Quanto a noite mais escura,
mais ela brilha e clareia!

Quando o sol dobra os joelhos,
de rubro a tarde se banha,
para escutar seus conselhos
sobre os braços da montanha!

Quanto mais ouço conversas,
mais eu vejo esforços vãos,
em mãos, incultas, perversas,
escravizando outras mãos!

Saudade - é faca de ponta,
que fere qualquer pessoa...
Toda tarde, dobra a conta
no coração que magoa!

Se acaso a vida te afeta,
não guardes dela, rancor!
Pois, coração de poeta,
é a caixa postal do amor!

Se a tua cruz pesa tanto,
do peso, não faças conta;
que até o terço mais santo,
carrega uma cruz na ponta!

Se a vida é luz e esperança,
riso, alegria, acalanto...
Por que será que a criança
ao vir à luz, chora tanto?!...

Seguindo os teus passos certos,
não temo o peso da cruz!...
Quero em teus braços abertos,
crucificar-me de luz!

Sem teu amor eu não vivo,
sem teus abraços, tampouco.
Sou velho escravo e cativo
desse amor que me fez louco!

Sepultem-se as desavenças!
Se houver paz no coração,
vão-se todas as descrenças,
todas as mágoas se vão!

Se um sonho bom, não te alcança,
fujas da vida vazia,
plantando pés de esperança
na esquina de cada dia!

Teu adeus, triste miragem!
Aos teus sinais, me anteponho:
Porque buscar noutra imagem,
a ilusão de um novo sonho?

Tu tens dois gestos dos sábios,
no teu modo de pensar:
Tens o silêncio em teus lábios
e a humildade em teu olhar!

Fonte:
Livro gentilmente enviado pelo autor:
Professor Garcia. Trovas que sonhei cantar vol. 2. 2.ed. Caicó/RN: Edição do Autor, 2018.

Carlos Drummond de Andrade (Caso de escolha)


O padrinho foi ao colégio, na Muda, e tirou Guilherme para passear. Olhos de inveja do irmão, também interno, mas sem direito a sair, porque seu comportamento era do tipo “deixa muito a desejar”, na linguagem do padre reitor. Desejar o quê — ele não sabia. Sabia que o irmão ia gozar a vida lá fora, ar, ruas, cinemas, tudo aquilo que vale a pena, enquanto ele, Gustavo, continuaria mergulhado no mar-morto do pátio, dos corredores, do nhe-nhe-nhem cotidiano.

Guilherme tinha planos para a emergência, e todos se resumiam em tirar o máximo possível da liberalidade do padrinho.

— O senhor me dá um presente de aniversário?

— Seu aniversário é daqui a oito meses.

— É, mas…

— Bem, eu dou.

O padrinho propôs-lhe um blusão alinhado, mas ele entendia que roupa é obrigação de pai e mãe — não vale. Livro também não. Nas férias aceitaria a coleção de science fiction, mas em pleno ano letivo, para descanso de tanta labuta no campo da ciência e das letras, o que lhe convinha mesmo era um brinquedo bem legal.

— Brinquedo? Mas você pode brincar com essas coisas no colégio?

— Posso.

Talvez não pudesse, mas isso eram outros quinhentos. Foram à loja de brinquedos. O problema era escolher entre o trem elétrico, o foguete cósmico, a caixa de aquarela, o equipamento de Bat Masterson, o cérebro eletrônico e outras infinitas tentações.

— Vamos, escolhe — dizia o padrinho, disposto a tudo, menos a esperar.

Ele comparava, meditava, decidia, arrependia-se. E como era impossível levar todos os brinquedos que o atraíam, pois cada um tinha seu inconveniente, que era não ter as qualidades dos demais, repeliu todos:

— Quero aquela gaitinha. Aquela verde, ali.

O padrinho fez-lhe a vontade, sem compreender. Uma bobagem de oitenta cruzeiros!

No colégio, Gustavo queria saber. E sabendo, escarneceu:

— Você é mesmo uma besta. Tanta coisa bacana para escolher, e vem com essa gaitinha mixa.

Guilherme quis provar que não era mixa coisa nenhuma, tinha um engaste de pedrinhas faiscantes, som espetacular. O irmão voltou-lhe as costas, com desprezo:

— Palhaço!

Ah, se fosse com ele… E Gustavo passou a comportar-se melhor, na esperança de também ir à cidade.

Um dia o padrinho dele apareceu, saíram. Aplicou o golpe do aniversário. O padrinho, igual a todos os padrinhos do mundo, pensou em oferecer-lhe um blusão alinhado. Recusou, e foram parar na loja de brinquedos. Gustavo olhou superiormente para o monte de coisas que derrotara Guilherme. Sabia escolher, e preferiu logo a metralhadora japonesa. Mas pensou que se cansaria depressa do seu pipoco; trocou-a por um marciano com bateria; os marcianos passam de moda; quem sabe se esse laboratório de química? Não, chega a química do programa. Foi escolhendo, refugando, substituindo. O padrinho consultava o relógio: “Escolhe, menino!”. Era preciso escolher para sempre. E nada lhe agradava para sempre, nada valia verdadeiramente a pena.

Com angústia lembrou-se do irmão, procurou aflito uma coisa no milheiro de coisas e, apontando-a, murmurou:

— Quero aquela gaitinha.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

Pedro Nava (Poemas Escolhidos)


ALCAZAR

Para Rachel de Queiroz
Rosa de neve,
estrela expandida
no fim da noite!
Estrela perdida
que tremes no alto
das chapas de vidro
do céu cristalino!
Surges discreta
como os ladrões...

A luz que enlouquece
vem das espiras
que riscam no ar
as cores agudas
do teu espectro!

Tua luz se insinua
nos olhos dos doidos.

— És tu que te infiltras
nas lágrimas turvas
que empastam a cara
dos bêbados tristes.

— És tu que lampejas
no mar que se fecha
ao baque cadente
do corpo silente
dos suicidas.

Como és única e clara
quando cintilas
na franja escura
que o dia dilui,
— no límpido instante
em que te exorbitas
e logo te esvais:
Brilhas tão pouco
no fim da noite
— ciclo irisado,
rosa expandida!
Brilhas tão pouco
que mal consigo...
captar teu lume
num breve segundo
de lucidez,
que presto deslumbra
e também desmaia
como luz perdida
no fim da noite.

VENTANIA

Pro Mário

O vento veio maluco lá do alto do Bonfim
e veio chorando da tristura do cemitério.

Zuniu na praça do mercado
assoviou as mulatas avenida do comércio
e mexeu na saia delas.
Arrancou folha das árvores
poeira sungou do chão
depois virou
                 soprou
                           correu
                                      danou
e entrou feito uma carga na avenida Afonso Pena,

O obelisco cortou ele pelo meio
mas ele foi avoando
e os fios da C.E.V.U. como cordas de viola
vibraram dum som longo
que cobriu Belo Horizonte feito um lamento.

O vento passou desmandado no Cruzeiro
saiu pro campo dobrou a mata
mas de repente
sua disparada para na parede Serra do Curral
e o bicho stopa mas sapeca no morro um sopapo
que estrala que nem jenipapo
que mão raivosa
chispasse num muro curo..

Co-nhe-ceu papudo?

O DEFUNTO

Quando morto estiver meu corpo,
Evitem os inúteis disfarces,
Os disfarces com que os vivos,
Só por piedade consigo,
Procuram apagar no Morto
O grande castigo da Morte.

Não quero caixão de verniz
Nem os ramalhetes distintos,
Os superfinos candelabros
E as discretas decorações.

Quero a morte com mau-gosto!

Deem-me coroas de pano.
Deem-me as flores de roxo pano,
Angustiosas flores de pano,
Enormes coroas maciças,
Como enormes salva-vidas,
Com fitas negras pendentes.

E descubram bem minha cara:
Que a vejam bem os amigos.
Que não a esqueçam os amigos.
Que ela ponha nos seus espíritos
A incerteza, o pavor, o pasmo.
E a cada um leve bem nítida
A ideia da própria morte.

Descubram bem esta cara!

Descubram bem estas mãos.
Não se esqueçam destas mãos!
Meus amigos, olhem as mãos!
Onde andaram, que fizeram,
Em que sexos demoraram
Seus sabidos quirodáctilos?

Foram nelas esboçados
Todos os gestos malditos:
Até os furtos fracassados
E interrompidos assassinatos.

— Meus amigos! olhem as mãos
Que mentiram às vossas mãos...
Não se esqueçam! Elas fugiram
Da suprema purificação
Dos possíveis suicídios.

— Meus amigos, olhem as mãos!
As minhas e as vossas mãos!

Descubram bem minhas mãos!

Descubram todo o meu corpo.
Exibam todo o meu corpo,
E até mesmo do meu corpo
As partes excomungadas,
As sujas partes sem perdão.

— Meus amigos, olhem as partes...
Fujam das partes,
Das punitivas, malditas partes ...

E, eu quero a morte nua e crua,
Terrífica e habitual,
Com o seu velório habitual.

— Ah! o seu velório habitual!

Não me envolvam em lençol:
A franciscana humildade
Bem sabeis que não se casa
Com meu amor da Carne,
Com meu apego ao Mundo.

E quero ir de casimira:
De jaquetão com debrum,
Calça listrada, plastrom...
E os mais altos colarinhos.

Deem-me um terno de Ministro
Ou roupa nova de noivo ...
E assim Solene e sinistro,
Quero ser um tal defunto,
Um morto tão acabado,
Tão aflitivo e pungente,
Que sua lembrança envenene
O que resta aos amigos
De vida sem minha vida.

— Meus, amigos, lembrem de mim.
Se não de mim, deste morto,
Deste pobre terrível morto
Que vai se deitar para sempre
Calçando sapatos novos!
Que se vai como se vão

Os penetras escorraçados,
As prostitutas recusadas,
Os amantes despedidos,
Como os que saem enxotados
E tornariam sem brio
A qualquer gesto de chamada.

Meus amigos, tenham pena,
Senão do morto, ao menos
Dos dois sapatos do morto!
Dos seus incríveis, patéticos
Sapatos pretos de verniz.
Olhem bem estes sapatos,
E olhai os vossos também.

Fonte:
Jornal de Poesia

Chico Anysio (Frustração)


— Não posso, Míriam. Hoje é impossível. Liga amanhã.

Regina Célia é o seu nome. Está de vestido azul-claro e com os nervos em pandarecos. Toma um copo de água com açúcar, à falta de um tranquilizante alopático. Acredita ter me­lhorado. Precisa dos nervos, hoje, mais do que nunca.

O verão incendeia o subúrbio de Regina Célia. A rua des­calça onde mora avermelha-se pela poeira que o vento joga. Mastiga o almoço sem vontade ou prazer. Belisca, apenas, o que põe no prato.

— Come, menina!

— Tou sem fome, mãe.

— Que sem fome. Come!

Dá mais duas garfadas e repudia o almoço, afastando o prato da sua frente. Nem aceita sobremesa.

— Mais me sobra — diz o pai, puxando pra seu lado a goiabada com queijo de Regina Célia.

Chega a colega. Igualmente de azul, igualmente Regina.

— Vamos?

— É cedo — a colega adverte.

— Lugar de esperar a missa é na igreja.

A colega concorda. Despede-se dos pais com um beijo sem carinho, automático.

— Veja lá a hora que vai chegar.

— Oh, mãe, até parece...

— Antes das onze em casa.

— Tá certo — concorda, aborrecida.

Não gosta de ser tratada como criança na frente das co­legas. Afinal, já tem 17 anos.

Saem de braços dados, sorrindo, felizes, as duas Reginas.

Olavo as espera no ponto do ônibus. Três pontos à frente sobe Reinaldo. Cada um com sua Regina. Viajam em pé até a Praça da Bandeira, onde o ônibus se esvazia da gente que vai para o Maracanã.

— Tá nervosa?

— Hum, hum.

— Bobagem.

Mas está. Não consegue se controlar. Regina Segunda morde e é mordida, no banco de trás.

— Que horas são?

— Quatro horas. É cedo à beça.

— Lugar de esperar a missa é na igreja.

Olavo concorda. Têm as mãos dadas quando o ônibus engole o Aterro.

— Agora estou mais calma.

— Respira fundo três vezes.

Ela respira cinco. É a mesma coisa. Mas diz-se mais calma. De noite estará segura de si, forte, tranquila, como precisa.

Saltam defronte ao cinema. Olavo espia os cartazes de um filme de bangue-bangue, enquanto esperam que o sinal feche para poderem atravessar a rua. Regina Segunda despreza o claro da tarde, preferindo uma atitude de anoitecer, junto com Reinaldo, cabelo liso e penteado para trás.

Há muita gente em volta para que Regina Segunda, agora, continue comportando-se como no ônibus, como em frente ao cinema. Controla-se e controla Reinaldo, impulsivo, faminto.

— Calma. Aqui, não.

— Que que tem?

Reinaldo tem fome, não quer esperar. Regina Célia transpira debaixo do braço, deixando nascer uma mancha antiestética no vestido azul-claro.

— Tá suando às pampas — comenta Olavo.

— Um pouquinho.

O homem ordena que o sigam. Esta ordem não é dirigida a Olavo, Reinaldo, Regina Segunda.

— Tchau, bem.

— Tchau.

Regina Célia desaparece pela porta de vidro. Os três vão ao bar.

— Três cachorros e três laranjadas.

Comem e bebem o que será jantar.

Oito horas.

— Tá na hora.

— Vamos.

Os três se acomodam o melhor que conseguem. Estão, agora, tão nervosos quanto Regina Célia. Agora, sim, entendem o que ela deve estar sentindo.

— Dá um beijinho.

Reinaldo pede, Regina Segunda concede. Olavo repreende aquele comportamento. Ainda mais agora, num momento tão importante. Os dois se controlam. Cada um num canto da poltrona, evitando, principalmente, que as pernas se toquem.

— Trono das cantoras...

Prendem a respiração. O homem de chapéu engraçado faz graça com Regina Célia, tentando acalmá-la.

— O que é que você vai cantar, minha filha?

— "Triste Madrugada".

Na plateia há três respirações presas. O conjunto faz a introdução e ela entra fora do tempo. Escuta-se uma buzina.

— Salve, salve, salve...

O animador muda de assunto, ignorando Regina Célia, que sai chorando do palco.

Na casa da rua descalça, mais do que Regina Célia, mais do que Olavo e do que o casal que se beija, os pais, aborrecidos, desligam a televisão, repudiando o que consideram uma injustiça.

Fonte:
Chico Anysio. O Enterro do Anão.

sábado, 18 de maio de 2019

Aurineide Alencar (1º Colar de Trovas)


Organização: Aurineide Alencar - MS

Tema: *Mulher*

No Colar de Trovas, o trovador seguinte inicia a trova com o último verso da trova do trovador anterior (em negrito o verso que se repete na trova subsequente). O colar fecha com o último trovador encerrando a trova no quarto verso, com o primeiro verso da trova do primeiro trovador.
 
01
O conceito é de um poeta,
aceite-o, pois, quem quiser:
"Felicidade completa
não pode haver, sem mulher"!
(Carlos Guimarães - RJ+)

02

Não pode haver sem mulher
filho, amor, felicidade.
Sempre dizer, faz mister,
completa a minha metade.
(Francisco Ferreira - MG)


03
Completa a minha metade,
esse presente de Deus,
a mulher, pura bondade,
fez só para os filhos seus.
(Antônio Cabral Filho - RJ)


04
Fez só para os filhos seus,
formando belo casal.
Ela inspira os versos meus
com o odor de um roseiral.
(Oliveira Caruso - RJ)

05
Com odor de um roseiral,
que distava bem além,
homem chora em seu beiral,
porque uma mulher não tem!
(Antônio de Pádua Elias de Souza - MG)

06

Porque uma mulher não tem
defeito que a desmereça.
E o prazer quando ama alguém
sobe dos pés à cabeça.
(Antônio Francisco Pereira - MG)

07
Sobe dos pés à cabeça

aqui tem duplo sentido,
até que o vulcão aqueça
E exploda em doce gemido.
(Gilberto Cardoso dos Santos - RN)

08

Exploda em doce gemido
todo o amor de uma mulher,
que ela tenha garantido
o carinho que quiser.
(Aurineide Alencar - MS)

09
O carinho que quiser

mas dado sob medida,
pois o que a mulher mais quer
é se sentir protegida.
(Gilberto Cardoso dos Santos - RN)

10
É se sentir protegida

no seio do seu amante,
pois a mulher só tem vida
quando amar é o bastante.
(Antônio Cabral Filho - RJ)

11
Quando amar é o bastante,

em noites de cheia lua,
nas confidências de amante,
envoltos na pele nua.
(Antônio de Pádua Elias de Souza - MG)

12
Envoltos na pele nua

sentiram a gostosura,
emanada da cheia lua
e da mente bem impura.
(Prof. Roque - RS)


13
E da mente bem impura,

surge uma trova bendita,
com muito amor e candura,
pra mulher meiga e bonita.
(Luiz Claudio - RN)            

14    
Pra mulher meiga e bonita,
meus cumprimentos de irmã.  
Tal jeito possibilita 
a nobreza da cristã.
(Lola Prata - SP)

15
A nobreza da cristã

doce, feliz, encantada,
fazendo o papel de irmã
até o fim da sua jornada.
(Prof. Roque - RS)

16
Até o fim da sua jornada

a mulher sempre estará,
de luz e amor bem armada
e entre nós triunfará!...
(Luiz Cláudio - RN)

17
E entre nós triunfará

com todo seu esplendor,
não importa aonde vá,
a mulher, fonte do amor.  
(Antônio Francisco Pereira - MG)

18
A mulher, fonte de amor,

fecundadora da vida,
tem seu fio condutor
implantado na guarida.
(Francisco das Chagas Farias - RN)

19
Implantado na guarida

ela é sempre fiel,
ela é minha vida
é dela também o céu.
(Madalena Cordeiro - ES)

20
É dela também o céu,

assim como a terra e o mar.
Homem, tire o seu chapéu
sempre que a dama passar.
(Oliveira Caruso - RJ)

21
Sempre que a dama passar

ela ouvirá um fiu fiu,
é alguém a cortejar
uma dama do Brasil.
(Madalena Cordeiro  - ES)

22
Uma dama do Brasil

agindo como profeta,
planta sonho, juvenil,
o conceito é de um poeta.
(Aurineide Alencar - MS)

Fonte:
Antonio Cabral Filho. Trovadores do Brasil

Luiz Poeta (Azuis)


Elas estavam nos lados opostos da rua. Uma chamava-se Ruth; a outra, Carolina. Precisavam de um nome, entretanto a espontânea maneira como se miravam à distância de uns vinte metros dava-lhes uma especial identidade.

Não havia semáforos e os carros eram mecanicamente vorazes, mas as duas ignoravam suas velocidades; fitavam-se alheias aos flashes de cada veículo a oitenta quilômetros horários sobre a sedutora e lisa excitação do asfalto.

Os sorrisos tornaram-se reciprocamente simultâneos. O de oitenta e cinco anos nunca fora tão inocente; o de três, tão ávido. Ambos, cada qual com sua tema peculiaridade, eram uma agradável e afetuosa conversa sem palavras,

Ruth sorria para um nebuloso tempo do seu passado; Carolina, para um futuro longínquo, ambas magnetizadas pelo inusitado brilho de dois olhares profundamente azuis... azuladamente felizes.

Num átimo, depois que dois últimos carros cruzaram-se oportunamente, não titubearam: atravessaram logo a rua. Uma, vagarosamente apoiada na expressiva nudez de uma bengala de madeira; a outra, aos pulinhos, solta sob o vento realçando os movimentos do vestidinho rosa.

Encontraram-se quase no meio da estrada, sob os implacáveis raios de sol do mês de dezembro... afinal, precisavam de uma data para celebrar aquele momento pleno de embevecimento e excitação.

Não se conheciam, porém não havia necessidade de apresentação; os sorrisos cumprimentavam-se desde a primeira troca de olhares.

Pararam uma frente a outra, numa serenidade contemplativa de cujos azuis emanavam eternidades.

A menininha alongou a frágil mãozinha, puxando carinhosamente a idosa para o lado de onde viera. Era um retorno marcado por cuidadosa precaução, numa silenciosa e lírica perenidade de passos calculados.

Findo o trajeto, num quase derradeiro sorriso de felicidade, retribuído por outro de agradecimento. Carolina simulou retomar.

A velhinha comprimiu sua mãozinha com suavidade, como que pedindo mudamente que aguardasse. A seguir, abriu uma antiga e rota bolsa que levava consigo, retirou dela uma frágil bonequinha de pano c entregou-a para a menina.

O êxtase durou o tempo do embevecimento que eternizaria aquele sublime instante.

A inefável fisionomia de Carolina congregava todos os risos num único sorriso imediatamente correspondido.

Em reverência àquele lírico momento marcado pela leveza de gestos, os carros foram parando... um... a um... para que a menina de três anos avançasse levando, nos seus momentos mais azuis, a realização de um sonho tão grandioso e necessário como a sua aparentemente menor e mais expressiva atitude.

Carolina voava como um passarinho e nem o calor do asfalto incomodava a maciez dos seus pezinhos descalços. Na mão, a bonequinha de pano parecia dizer adeus à úmida lágrima de Ruth, que deslizava afetuosa sobre o melhor dos seus silêncios e o mais sublime dos seus sorrisos... azuis.

(Texto premiado pela União Brasileira de Escritores)

Fonte:
Livro gentilmente entregue pelo autor.
Luiz Gilberto de Barros (Luiz Poeta). Canção de Ninar Estátuas. 1.ed. Ilhéus/BA: Mondrongo, 2014.

J. G. de Araújo Jorge (Inspirações de Amor) XI


INCERTEZA

Desde a manhã tristonha em que partiste
que não posso pensar senão em ti,
tenho a louca impressão que te perdi
que nada mais entre nós dois existe...

Ao te ver a sorrir, como sorriste
no instante da partida, compreendi,
- que talvez, nunca mais voltes aqui...
- que hei de viver eternamente triste...

Por que tu me deixaste a duvidar?
Preferia mil vezes a certeza,
Já que um dia a certeza há de chegar...

Nem sabes a amargura que me invade,
- a vida que hoje levo, é uma tristeza,
um misto de tristeza e de saudades!

INCOERÊNCIA?

Achas-me indiferente... e até crês que há desdém
quando falo de amor em palavras singelas...
- pensas que as juras todas que já ouviste, aquelas
juras, a outras mulheres vou fazer também...

Dizes que não te quero... E eu te pergunto: - a quem
devo tudo o que fiz, as poesias mais belas?
- outras dirão talvez que as fiz pensando nelas,
mas todas te pertencem mais do que a ninguém!

Não vês que o que te cerca é a mentira da vida...
- nem sabes descobrir essa paixão imensa
que o meu orgulho torna egoísta e dolorida...

Não vês que o meu viver é falso, - e se resume
em te amar como um louco em minha indiferença,
e fingir que amo as outras para teu ciúme !

INCONSTÂNCIA

É o meu destino: - hei de seguir assim
como um novo amor por sol, em cada dia...
- o que há pouco era tudo o que queria
já agora não é nada para mim...

Só vive, o que ainda é sonho e fantasia!
O que conquisto encontra logo um fim...
O amor que nasce cheio de alegria
hoje - morre amanhã cheio de esplim...

Inconstante e volúvel, meus desejos
- tem a alma das bolhas de sabão
e a duração efêmera dos beijos...

O amor - é a vida de um perfume no ar,
o encanto de um segundo de ilusão...
- a beleza da espuma sobre o mar!...

INCONSTANTE...

I

Ela partiu... Deixou-me... E em despedida
uma carta ficou em seu lugar,
pois não teve coragem na partida
de cruzar, seu olhar com o meu olhar...

Partiu... Não compreendeu meu sentimento,
desprezou meu amor... minha afeição...
Quis apagá-la, então, do pensamento,
mas foi tudo desejo... tudo vão...

Se ela voltasse, um dia, ainda pensei,
por castigo, jamais, a perdoaria...
e um dia, ela voltou... E nesse dia
eu abri os meus braços, e a perdoei...

II
 
Esqueci minha dor e os meus receios,
reconstruí de novo os meus castelos,
- senti meus olhos novamente cheios
com os meus sonhos mais puros e mais belos...

Cumulei-a de amor e de carinho,
realizei seus mais íntimos desejos,
e as ânsias que guardei, quando sozinho
libertei-as felizes nos meus beijos...

III

Hoje - vivo sozinho novamente...
Ela partiu... Nem disse que ia embora...
Não deixou uma linha, uma somente,
nem uma só, como fizera outrora...

E amanhã, se voltar - ingenuamente
virá pedir perdão do que me fez,
- e hei de esquecer de tudo, novamente,
- e os braços, hei de abrir, mais uma vez!...

INÉDITO...
Relendo o último verso que compus
pouso entre as mãos maquinalmente o rosto,
e o olhar deixo vagar para o sol posto
onde o céu é um borrão de sombra e luz...

Um sossego interior, em mim, produz,
esta tarde fugindo ao mês de agosto...
- nas vitrines do espaço, onde era exposto
o sol, surge uma estrela que transluz...

Alguém põe-se às centenas a acendê-las,
e cada uma que a luz tinha escondido
brilha, e ao brilhar, enche-se o céu de estrelas...

E fitando-as, dispersas, no infinito,
sei, que apesar de nunca ter lido,
nos céus há um poema há muito tempo escrito...

INSATISFEITO

Quem ler os versos meus onde há certa tristeza
e certo desencanto suave e contrafeito,
poderá num momento pensar, com certeza,
que trago inutilmente um coração no peito!...

E que vivo afinal inquieto e insatisfeito
de paixão em paixão... de surpresa em surpresa,
- como um rio a mudar o curso do seu leito
sem saber aonde o arrasta a própria correnteza!

E acertará talvez, - pois falta essa mulher
que consiga escrever seu nome em minha vida
sem deixar no passado outro nome qualquer...

Falta-me um grande amor... Falta-me tudo em suma!
E sinto a alma vazia, estranha e incompreendida
por ter amado tantas sem amar nenhuma!

INUTILIDADE

Tenho vontade, as vezes, de sair da vida,
bato asas sofregamente
até que cansado jogo-me em mim mesmo
e desperto na queda da inutilidade...

Invejo o destino livre da fumaça,
tenho pena de mim,
tenho pena dos homens,
vendo aquele besouro a procurar espaço
e a bater na vidraça...

INUTILMENTE

Há de ser desta vez... Dir-lhe-ei contente
todo este amor que no meu Ser se abriga,
e tomando-lhe as mãos bem docemente
relembrarei a nossa infância antiga...

E a dúvida que guardo e que a alma sente
hei de acabar dizendo:- "minha amiga,
quero, ouvi-la afinal sinceramente
sem recear ferir com que me diga..."

Penso assim... E no entanto, quantas vezes
tenho-a encontrando, e inutilmente os meses
e os anos vão passando entre nós dois...

Basta vê-la e em minha alma acovardada,
- já não sei nada, nem me lembro nada
e deixo tudo pra dizer depois !

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. Os Mais Belos Poemas Que O Amor Inspirou. vol. 1. SP: Ed. Theor, 1965.

Alcântara Machado (O Patriota Washington)


O sol ilumina o Brasil na manhã escandalosa e o Doutor Washington Coelho Penteado no rosto varonil. Há trinta e oito anos Deodoro da Fonseca fundou a República sem querer. O doutor pensa bem no acontecimento e grita no ouvido do chofer:

- Toca pra Mogi das Cruzes!

Minutos antes arrancara da folhinha do EMPÓRIO UCRANIANO a folha do dia 14. Cercado pelos filhos escrevera a lápis azul na do dia 15: Viva o Brasil! E obrigara o Juquinha a tirar o gorro marinheiro porque ainda não sabia fazer continência.

Muitíssimo bem. Agora segue de Chevrolet aberto para Mogi das Cruzes. Algum dia no mundo ia se viu uma manhã tão linda assim?

Êta Brasil.

Êta.

Na lapela uma bandeirinha nacional. Conservada ali desde a entrada do Brasil na grande conflagração. Ou bem que somos ou bem que não somos. O doutor é de fato: brasileiro graças a Deus. Onde desejava nascer? No Brasil está claro.

Ao lado dele a mulher é assim assim. Os filhos sabem de cor o hino nacional. Só que ainda não pegaram bem a música. Em todo o caso cantam às vezes durante a sobremesa para o doutor ouvir. A bandeira se balançando na sacada do Teatro Nacional lembra ao doutor os admiráveis versos do poeta dos Escravos.

- Sim senhor! É bem a brisa de que fala Castro Alves.

- Que brisa, Nenê?

- Nada. Você não entende.

Ele entende. E goza a brisa que beija e balança.

- O Capitão Melo me afirmou que não há parque europeu que se compare com este do Anhangabaú.

- Exagero...

- Já vem você com a sua eterna mania de avacalhar o que é nosso! Pois fique sabendo...

Fique sabendo, Dona Balbina. Fique a senhora sabendo que o que é nosso é nosso. E vale muito. E vale mais que tudo. Vá escutando. Vá escutando em silêncio. E convença-se de uma vez para não dizer mais bobagens.

- Veja o movimento. E hoje é feriado, hein! Não se esqueça! Paris que é Paris não tem movimento igual. Nem parecido.

- Você nunca foi a Paris...

Isso também é demais. O melhor é não responder. Homem: o melhor é estourar.

- Meu Deus do céu! Não fui mas sei! Toda a gente sabe! Os próprios franceses confessam! Mas você já sabe: é a única pessoa no mundo que não reconhece nada, não sabe nada!

Guiados pelo fura-bolos do doutor todos os olhares se fixam na catedral em começo.

- Vai ser a maior do mundo! E gótica, compreenderam? Catedral gótica!

Na cabeça.

Gostosura de descer a toda a Ladeira do Carmo e cair no plano do Parque D. Pedro II.

- Seu professor, Juquinha, não lhe ensinou que D. Pedro era amicíssimo, do peito mesmo, de Victor Hugo, gênio francês?

Juquinha nem se dá ao trabalho de responder.

- Pois se não ensinou fez muito mal. Amizades como essa honram o pais.

O chofer não deixa escapar um só buraco e Dona Balbina põe a mão no coração. Washington Coelho Penteado toma conta do cláxon (buzina).

- São um incentivo para as crianças. Quando maiores procurarão cultivá-las também.

O vento desvia as palavras do doutor, dos ouvidos da família. O Chevrolet não respeita bonde nem nada. Pomba só levanta o voo quando o automóvel parece que já está em cima dela.

- Este Brás! Este Brás! Não lhes digo nada!

Dez fósforos para acender um cigarro.

Dona Balbina olha a paineira. Mesma coisa que não olhasse. Juquinha vê um negócio verde. Washington Júnior um negócio alto. O doutor mais uma prova da pujança primeira-do-mundo da natureza pátria.

Interjeição de admiração. Depois:

- Reparem só na quantidade de automóveis. Dez desde São Miguel! E nenhum carro de boi!

60 por hora.

O Chevrolet perde-se na poeira. Dona Balbina se queixa. Juquinha coça os olhos.

- Pó quer dizer progresso!

Palavras assim são ditas para a gente saborear baixinho, repetindo muitas vezes. Pó quer dizer progresso. Logo surge uma variante: Pó, meus senhores, quer dizer tão simplesmente progresso. Na antiga Grécia... Mas uma dúvida preocupa o espírito do doutor: a frase é dele mesmo ou ele leu num discurso, num artigo, numa plataforma política? Talvez fosse do Rui até. Querem ver que é do bichão mesmo? Engano. Do Rui não é. Do Epitácio, do Epitácio também não. Não é nem do Rui nem do Epitácio então é dele mesmo. É dele.

Washington Júnior com o dedo no cláxon está torcendo para que apareça uma curva.

Velocidade.

- O Brasil é um gigante que se levanta. Dentro em breve...

Era uma vez um pneumático.

- Aquele telhado vermelho que vocês estão vendo é o Leprosário de Santo Ângelo.

É preciso ser bacharel e ter alguns anos de júri para descrever assim tão bem os horrores da morfeia também cognominada mal de Hansen, esse flagelo da humanidade desde os mais remotos tempos.

 Dona Balbina se impressiona por qualquer coisa. Mas agora tem sua razão.

 Altamente patriótica e benemérita a campanha de Belisário Pena. A ação dos governos paulistas igualmente. Amanhã não haverá mais leprosos no Brasil. Por enquanto ainda há mas isso de ter morfeia não é privilégio brasileiro. Não pensem não. O mundo inteiro tem. A Argentina então nem se fala. Morfético até debaixo d`água. E não cuida seriamente do problema não. Está se desleixando.

 É. Está. Daqui a pouco não há mais brasileiro morfético. Só argentino. Povo muito antipático. Invejoso, meu Deus. Não se meta que se arrepende. Em dois tempos... Bom. Bom. Bom. Silêncio que a espionagem é brava.

 As casas brancas de Mogi das Cruzes.

- Qual é o número mesmo daquele automóvel que está parado ali?

- P. 925.

- Veja você! P. 925!

Uma volta no largo da igreja. Parada na confeitaria para as crianças se refrescarem com Mocinha. Olhadela disfarçada em quatro pernas de anjo. Saudação vibrante ao progresso local.

Chevrolet de novo.

- Toca pra São Paulo!

Primeira. Solavanco. Segunda. Arranco. Terceira. Aquela macieza.

- Não! Pare!

- Pra quê, Nenê?

- Uma coisa. Onde será o telégrafo?

Onde será? Que tem, tem.

- O patrício pode me informar onde fica o telégrafo?

Muito fácil. Seguir pela mesma rua. Tomar a primeira travessa à direita. Passar o largo. Passar o sobradão vermelho. Virar na primeira rua à direita.

- Primeira á direita?

Primeira à direita. Depois da terceira é o prédio onde tem um pau de bandeira.

- Pau, não senhor. Bandeira desfraldada porque hoje é 15 de Novembro. Muito agradecido.

Faz a família descer também. Puxa da caneta-tinteiro, floreiozinho no ar, começa: Ex. Sr. Dr. Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil. Palácio do Catete. Vale a pena pôr a rua também? Não. O homem tem que ser conhecido por força. Bem. Rio de Janeiro. Desta adiantada cidade tendo vindo Capital Estado uma hora dezessete minutos magnífica rodovia enviamos data tão grata corações patrióticos efusivos quão respeitosos cumprimentos erguendo viva República V. Ex.a. Que tal?

 Ótimo, não? Só isso de República V. Ex.a é que está meio ambíguo. Parece que a República é de S. Ex.a. Não está certo. A República é de todos. Assim exige sua essência democrática. Assim sim fica perfeito: República e V. Ex.a Bravo. Dr. Washington Coelho Penteado, senhora e filhos.

- Quinze e novecentos.

- E eu que ainda queria pôr uma citação!

Não precisa. Como está está muito bonito.

- É bondade sua. Uma coisinha ligeira, feita às pressas...

Enquanto o telegrafista declama os dizeres mais uma vez Washington Coelho Penteado passa os quinze mil e novecentos réis.

Em plena rodovia de repente o doutor murcha. Emudece. Dona Balbina que estava dorme-não-dorme despertou com o silêncio. O doutor quieto. Mau sinal. Procurando adivinhar arrisca:

- Que é que deu em você? O preço do telegrama?

O gesto deixa bem claro que isso de dinheiro não tem a mínima importância.

Dona Balbina pensa um pouquinho (o doutor quieto) e arrisca de novo:

- Medo que o chefe saiba que você usa o automóvel de serviço todos os domingos? Domingos e dias feriados?

O gesto manda o chefe bugiar no inferno.

O Chevrolet corre atrás dos marcos quilométricos.

Só ao entrar em casa o doutor se decide a falar.

- Esqueci-me de pôr o endereço para a resposta!...

- I-DI-O-TA!

Olhem só o gozo das crianças.

Fonte:
Alcântara Machado. Laranja-da-China.

sexta-feira, 17 de maio de 2019

Vanice Zimerman (Poemas Escolhidos) 2


CASULO DE VIDRO

Ofusca-me a visão
Esses encontros com o espelho
A dualidade entre o passado
E o  presente, repleto de ausências,
Dos traços envoltos em brumas
O doloroso mergulho:
Quebrar o espelho
Sem fragmentar a essência
Sentir na pele, a lâmina que corta
E recorta - cura -
Desfalecer de dor
No silenciar da alma,
Na solidão do "casulo de vidro"
Buscando respostas
Na sequência de pétalas eternas-
“Flor da Vida”-
Aroma de bálsamo –
Aquietando meu coração.

GÉLIDOS CAMINHOS

Apaixona-se o tempo
Ao olhar os veios do mármore
Gélidos caminhos...

Apaixona-se o vento
Ao desenhar círculos no lago,
Movendo a breve bolha de sabão-

Apaixonam-se os ramos
De camomila à caneca de ágata
Ao sentirem a água desaguando,

Contidos no tempo, no vento
E no aroma de camomila
Momentos de amor –
Sincronicidade,

Poemas ao alcance
Das pontas dos dedos...

HÁ UM ENCANTO NA MELANCOLIA

E a chuva continua...
Do vidro do carro
Observo a
A paisagem líquida
Que em tons de verde e cinza
Passa depressa...
Há um encanto na melancolia,
Dividindo o cristal da taça
Fazendo-me companhia
Nesta tua ausência,
E, na lembrança dos teus beijos
Com gosto e aroma do chá de morangos
Despedindo-se aos poucos,
Há um encanto na melancolia
Que dilacera a alma,
Repleta de uma saudade,
Das tuas poesias,
E mensagens de amor
Que, ainda navegam  em imagens
De sonhos...
Há um encanto na melancolia
Qual uma tela com pontilhismo,
Pincelando em  meu coração
Um amor tão intenso e impossível,
Repleto de inquietos e alegres
Pontinhos de cores,
Ah, a melancolia encanta-se
Com esse lento passar das horas,
Em que a imobilidade dos sinos de vento
E a ponta quebrada do lápis
Adiam um ponto final

OUTONO EM TAÇA

Do ombro de vidro desliza
Sem pressa, uma gota de vinho
E  chega  envolvente e arrepia
O rótulo com cachos de uva,
Sob, o olhar sedutor da taça vazia-
À espera do aroma encorpado,
Suavemente, adocicado...

Entre a verde garrafa
E transparência do cristal
O silêncio e recato
Da folha de plátano.

PRELÚDIO DO ANOITECER

Esmaece o fim de tarde
Quase, posso tocar
As nuvens, em degrade
Ah, esse silêncio encantado
Do outono em gotas
À beira do lago beijando as folhas,
Sussurrando às flores
Um poema de amor,
Enquanto  embala
A despedida do dia
Na cadeira de balanço
E nesse amenizar da respiração
Da saudade tão intensa,
Mas calada - disfarçada - lágrima
Deixo as lembranças
De cada detalhe
Do teu corpo junto ao meu
Mesclarem-se, unificando-nos
Nesse terno e apaixonante
Prelúdio do anoitecer...

TUDO DÁ SAUDADE...

De madrugada,
Deixei as dobras
Da camisa de seda,
Feito
Pequenas ondas acariciarem
Meus seios, colo e braços...
Hoje de madrugada,
Entreguei-me às lembranças
Da maciez dos teus lábios
Doce invasão - permitida -
Do gosto delicioso e único
Dos teus beijos –
Deixei que as notas mescladas
Dos nossos perfumes me envolvessem,
Intensamente...
Hoje de manhãzinha,
Deixei as gotas de orvalho
Umedecerem meu corpo,
Banharem minh'alma
E senti  a presença do teu vento,
Do toque Sutil – incandescente
Das tuas mãos, desvendando
Com as pontas dos dedos
Caminhos em mim -
Tudo dá saudade...

VIDA EM VERDES VERSOS

Na imobilidade dos seus gestos
O Olhar intenso, atento.
Em total cumplicidade com a folha
Torna-se parte delas
Num mágico entrelaçar de vidas:
Louva-a- deus e folha
Ele, na solidão e expectativa de seus breves dias,
Uma vida plena...
Ela, a folha observa e o admira.
O mágico dos disfarces
Imita as cores à sua volta,
E, assim inspira poemas:
Vida em verdes versos...

Fonte:
Recanto das Letras
Facebook da Poetisa

Carolina Ramos (A Cadeira Velha)


Pela segunda vez, passou pela calçada oposta. Agora, em sentido contrário.

Aquela cadeira velha, abandonada à porta do casarão, atraia-o, irresistivelmente. Jogada fora, não havia dúvida. E o que é jogado fora, não é de ninguém. E o que era de ninguém, bem que poderia vir a ser seu.

Cruzou a rua. Não em linha reta. Faltou-lhe coragem.

Andou um pouco para adiante do objeto da sua fascinação e, então, atravessou. Voltou, sem pressa, em direção à cadeira. Pisava macio, como quem não quer nada.

Parou diante dela. Namorou-a. Linda! Forro de veludo cor de ouro. Desbotado. E o que importava? Quantos dias de glória já teria tido! Tocou-a com carinho. Só tinha um braço. A cadeira, naturalmente. E para que mais? Pernas finas, torneadas com requinte. Uma delas rachada. Este, possivelmente, o estigma da condenação. Prometia um tombo de surpresa. Rico não conserta. Remediado, sim. Pobre, como ele, não despreza sobras. A cadeira tinha estirpe. Vinha, por certo, de família abastada. Tomou a acariciá-la. Experimentou-lhe o peso. Não seria difícil carregá-la. Acomodou-a sobre os ombros. Chegou a assobiar, enquanto caminhava.

Ao pé do morro, a coisa complicou-se. O peso e a ladeira podem tornar-se aliados temíveis.

Engoliu a vontade de assobiar. O suor a escorrer em bagas. Os ombros a reclamar do peso. Entrar no barraco, pela porta estreita, também não foi fácil. Venceram o jeito e a determinação.

A visão da cadeira à cabeceira da tosca mesa, compensou qualquer esforço. Desbotada, rachada, sem um braço, mas, sua! A sua cadeira. O trono de um rei! Nem ousou experimentá-la. Antes, um bom banho. Caprichou na aparência, como nunca o fizera. Só então, sentiu-se digno de ocupar tão nobre assento.

Sentou-se com extremo cuidado. Divina!

Sentiu-se um rei! Um rei sem coroa, sem súditos, mas, em pleno domínio de sua propriedade.

Lembrou-se da "coroa". Aquela "coroa" bonita, que não lhe saía da cabeça... a viúva do vizinho.

Era só: — Oi, bom dia... ou: — Oi, boa tarde...

Nunca lhe dissera nada de mais íntimo, nem mesmo quando sentia dois olhos tigrados, procurando os seus.

Gostaria de convidá-la para conhecer o barraco. Perdia a coragem, tão logo a via.

E lá estava ela, com toda a exuberante graça de mulher vívida, a acarinhar a cabeça do cachorro pulguento. Chegou a invejá-lo!

— Ei, dona, quer ver o que eu trouxe, lá de baixo?

Ela sorriu. Pela primeira vez, via o vizinho lavado, penteado e de roupa limpa. Com um misto de malícia e brejeirice, cruzou a porta do barraco.

Orgulhoso, ele mostrou-lhe a cadeira, o seu trono.

E, por toda uma noite, foi verdadeiramente um rei!

Fonte:
Carolina Ramos. Interlúdio: contos. São Paulo: EditorAção, 1993.