segunda-feira, 22 de julho de 2019

Couto de Magalhães (Como a Noite Apareceu)


No princípio não havia noite; havia dia somente, em todo o tempo. A noite estava adormecida no fundo das águas. Não havia animais; todas as coisas falavam. A filha da Cobra Grande, contam, casara-se com um moço. Este moço tinha três fâmulos fiéis. Um dia chamou ele os três fâmulos e lhes disse: "Ide passear, porque minha mulher não quer dormir comigo."

Os fâmulos foram-se, e então ele chamou sua mulher para dormir com ele. A filha da Cobra Grande respondeu-lhe: "Ainda não é noite". O moço disse-lhe: "Não há noite, somente há dia". A moça falou: "Meu pai tem a noite. Se queres dormir comigo, manda buscá-la, lá pelo grande rio".

O moço chamou os três fâmulos; a moça mandou-os à casa de seu pai para trazerem um caroço de tucumã. Os fâmulos foram, chegaram em casa da Cobra Grande, esta lhes entregou um caroço de tucumã muito bem fechado, e disse-lhes: "Aqui está; levai-o. Eia! Não os abrais, senão todas as coisas se perderão".

Os fâmulos foram-se, estavam ouvindo barulho dentro do coco de tucumã, assim: ten, ten, len… xi… era o barulho dos grilos e dos sapinhos que cantam de noite. Quando já estavam longe, um dos fâmulos disse a seus companheiros: "Vamos ver que barulho será este". O piloto disse: "Não, do contrário nos perderemos. Vamos embora, eia, rema!" Eles foram-se e continuaram a ouvir aquele barulho dentro do coco de tucumã, e não sabiam que barulho era.

Quando já estavam muito longe, ajuntaram-se no meio da canoa, acenderam fogo, derreteram o breu que fechava o coco, e o abriram. De repente tudo escureceu. O piloto então disse: "Nós estamos perdidos; e a moça, em sua casa, já sabe que abrimos o coco de tucumã!" Eles seguiram viagem. A moça, em sua casa, disse então a seu marido: "Eles soltaram a noite; vamos esperar a manhã".

Então todas as coisas que estavam espalhadas pelo bosque, se transformaram em animais e em pássaros. As coisas que estavam espalhadas pelo rio, se transformaram em patos e peixes. Do paneiro gerou-se a onça; o pescador e a sua canoa se transformaram em pato; de sua cabeça nasceram a cabeça e bico do pato. A filha da Cobra Grande, quando viu a estrela d'alva, disse a seu marido: "A madrugada vem rompendo, vou dividir o dia da noite". Então ela enrolou um fio, e disse-lhe: "Tu serás cujubim". Assim, ela fez o cujubim, pintou a cabeça do cujubim de branco, com tabatinga, pintou-lhe as pernas de vermelho com urucum, e então disse-lhe: "Cantarás para todo sempre, quando a manhã vier raiando". Ela enrolou o fio, sacudiu cinza em riba dele, e disse: "Tu serás inambu, para cantar nos diversos tempos da noite, e de madrugada".

De então para cá todos os pássaros cantaram em seus tempos, e de madrugada para alegrar o princípio do dia.

Quando os três fâmulos chegaram, o moço disse-lhes: "Não fostes fiéis; abristes o caroço de tucumã, soltastes a noite e todas as coisas se perderam, e vós também que vos metamorfoseastes em macacos, andareis para todo o sempre pelos galhos dos paus". A boca preta, e a risca amarela que eles têm no braço, dizem que é ainda o sinal do breu que fechava o caroço de tucumã, que escorreu sobre eles quando o derreteram.

Fonte:  

domingo, 21 de julho de 2019

Trova 356 - Sonia Regina Rocha Rodrigues


Carlos Drummond de Andrade (Ladrões no Terraço)


— Tem paciência, filhinha, já decidi. Hoje vamos ao cinema de qualquer maneira.

— Mas, Dago, ainda não preparei os sanduíches para o aniversário do Guilherme…

— O Guilherme que pare de fazer anos e de dar festa com sanduíches divinos-maravilhosos. Ao cinema!

— E o Barriga? A gente vai deixar o garoto sozinho em casa? Ele é de morte.

— Chame o Italianinho do 301 para fazer companhia a ele. Assim o Barriga sossega. Ao ci-ne-ma!

D. Neusa sempre achando razões para ficar em casa, trabalhando. Cinema ali pertinho, inaugurado há um mês, filme de Buñuel chamando, marido insistindo. E quando marido escande sílabas, mesmo sendo ótimo como aquele, paira ameaça sobre o casamento. Ela cedeu.

Italianinho acudiu pressuroso ao chamado. No 301, também os pais haviam saído, e a patota de adolescentes curtia uma festinha à base de som incrementado e luzes psicodélicas, de que, obviamente, estavam excluídos os menores de doze anos.

— Que que a gente vai fazer?

— Atirar setas e bolinhas na rua. Bolinhas nos carecas, e setas nas perucas das coroas.

— Só nos carecas e nas coroas, não. Em todo mundo.

— Tá.

Subiram os dois, de mansinho, pela escada de serviço, munidos de zarabatanas, bolinhas, setas e muita disposição. A chuvinha ranzinza peneirava, eles nem sentiam. E começou o ataque silencioso na noite. Não tão silencioso, pois corriam de um lado para outro, esbarrando aqui e ali, emitindo ruídos abafados de prazer quando atingiam o alvo — dava para perceber que alguma coisa de estranho se passava no terraço.

Juju, de ouvido afiado, num instante em que o som amortecia na festa, correu ao apartamento de seu Ivo:

— Está na hora da batida.

— Que batida? Vocês prometeram que só haveria chopinho. E o síndico não permite festa de brotos com batida.

— O senhor não morou. Batida para pegar ladrão. Tem gente mexendo no terraço. Escute.

Escutou. Mexiam e paravam. Mexiam e paravam. Ladrões, na certa. Havia dias que vinham frequentando os terraços de edifícios daquele trecho de rua, “limpando” antenas, canos, torneiras, roupas, tudo. Alertados, síndicos e condôminos planejaram um serviço de vigilância. Ao menor sinal suspeito, os próprios moradores de cobertura dariam caça aos larápios, já que os vigias noturnos, como se sabe, têm sono pesado.

Seu Ivo achou prudente telefonar para os moradores das coberturas vizinhas, que compareceram imediatamente. Subiram os três, cada um de calibre 45 em punho. Entreaberta a porta do terraço, detiveram-se no penúltimo degrau, à espreita. Sentindo aproximação de gente (ladrões, sem dúvida), Barriga e Italianinho, tomados de pânico, meteram-se na casa de máquinas. Ladrões avançando, ladrões se escondendo dos outros ladrões — era a situação, debaixo de chuva mansa, durante um silêncio de dez minutos.

— Não vão ficar a noite inteira na casa de máquinas — ponderou seu Ivo. — Esperemos.

E continuaram os três, respiração suspensa, mão no gatilho, aguardando.

Concluindo que se tratava de alarme falso, Italianinho e Barriga foram saindo de leve, pé ante pé, agachados junto à mureta.

— É agora — comandou baixinho seu Ivo. — Vamos atirar pra valer, mas nos pés.

As armas foram baixando lentamente, para a pontaria. Súbito, seu Ivo exclamou, trêmulo, gago:

— Não atirem! Não é o que nós pensamos!

— Está doido, seu…?

— Doido nada. São os moleques!

Seu Ivo reconhecera o Barriga, pelo volume abdominal característico. Entraram rápido no terraço, em direção contrária à dos meninos, para pegá-los desprevenidos. Os dois tentaram fugir, no passo de ema selvagem. Mas Italianinho sentiu uma coisa úmida e cálida escorrer-lhe pelo short, e quedou-se, desamparado, enquanto Barriga dava no pé.

Os homens estavam pálidos.

— Quase que nós matávamos esses diabos!

Voltando do cinema, d. Neusa comentou:

— Viu, Dago? Viu no que dá essa mania de ir ao cinema? A gente paga para ver Catherine Deneuve de perna cortada, e na volta, por pouco, encontra nosso filhinho defunto!

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas.

José Albano (Sonetos e Trovas Avulsas)


SONETO

Poeta fui e do áspero destino
Senti bem cedo a mão pesada e dura.
Conheci mais tristeza que ventura
E sempre andei errante e peregrino.

Vivi sujeito ao doce desatino
Que tanto engana mas tão pouco dura;
E inda choro o rigor da sorte escura,
Se nas dores passadas imagino.

Porém, como me agora vejo isento
Dos sonhos que sonhava noite e dia
E só com saudades me atormento;

Entendo que não tive outra alegria
Nem nunca outro qualquer contentamento
Senão de ter cantado o que sofria.

SONETO V

Senhor, assim pregado ao duro lenho,
Não negas a ninguém o teu socorro;
A mim, pois, que de mágoa vivo e morro,
Dá-me o brando sossego que não tenho.

Em te amar sempre ponho todo o empenho,
Vendo do puro sangue o frio jorro,
E com suspiros aos teus braços corro
E ao pé da santa cruz deitar-me venho.

Olha como foi triste o meu destino,
Sem esperanças quase e sem venturas,
Apenas com os sonhos que imagino.

Lembra-te destas dores tão escuras,
De que tu és o meu Pastor divino
E de que eu sou a ovelha que procuras.

SONETO DA DOR

Mata-me, puro Amor, mas docemente,
Para que eu sinta as dores que sentiste
Naquele dia tenebroso e triste
De suplício implacável e inclemente.

Faze que a dura pena me atormente
E de todo me vença e me conquiste,
Que o peito saudoso não resiste
E o coração cansado já consente.

E como te amei e sempre te amo,
Deixa-me agora padecer contigo
E depois alcançar o eterno ramo.

E, abrindo as asas para o etéreo abrigo,
Divino Amor, escuta que eu te chamo,
Divino Amor, espera que eu te sigo.

SONETO DA SAUDADE

Trato só da perpétua saudade
Que mora neste peito desditoso
Mas o queixume derramar não ouso
Com medo de que aos outros desagrade.

Se entanto de gemer me dissuade
O coração, tão cedo desgostoso,
Ordena e manda Amor que sem repouso
Tudo que sofro em canto se traslade.

Oh! triste verso meu, pois vais partindo
Por este baixo e escuro em que ando
Para espalhar o meu tormento infindo.

Ah! seja o teu destino manso e brando.
Porém, se te alguém ler acaso rindo,
Dize-lhe então que te escrevi chorando!

SONETO DO AMOR

Amar é desejar o sofrimento
E contentar-se só de ter sofrido,
Sem um suspiro vão, sem um gemido,
No mal mais doloroso e mais cruento.

É vagar desta vida tão isento,
É deste mundo enfim tão esquecido,
É pôr o seu cuidar num só sentido,
É todo o seu sentir num só tormento.

É nascer qual humilde carpinteiro,
De rudes pescadores rodeado,
Caminhando ao suplício derradeiro.

É viver sem carinho nem agrado,
É ser enfim vendido, por dinheiro,
E entre ladrões morrer crucificado.

SONETO DO SONHO

Doce me foi viver, quando sonhava
E entre esperanças e ilusões sorria,
Antes de conhecer a dor sombria
Cuja lembrança na alma inda se grava.

Naquele tempo não adivinhava
A pena sem igual que dura um dia
Mas sempre faz surgir a fonte fria
Que os saudosos olhos banha e lava.

Cansado coração, tu nunca viste
Outro que tanto gozo e mágoa sente,
Outro que a tanto bem e mal resiste.

Amor te castigou severamente,
Pois foste, uma só vez apenas, triste
E nunca mais tornaste a ser contente.

Trovas
(o poeta denominou Cantigas)

VIII

As estrelas no alto abrigo,
mais alegres, fico a vê-las
todas as vezes que digo
que os teus olhos são estrelas.

X

A pensar-me às vezes ponho,
e não posso compreender,
porque sempre acaba o sonho
quando começa o prazer.

XII

Há no coração sombrio
um eco brando e sonoro
que adormece quando rio
e desperta quando choro.

XIII

Disto enfim já não duvido,
no mundo o maior cuidado
vem do bem que foi perdido
antes de ser alcançado.

Monteiro Lobato (Um Suplício Moderno)


Todas as crueldades de que foi useira a Inquisição para reduzir heréticos, as torturas requintadas da “questão” medieval, o empalamento otomano, o suplício chinês dos mil pedaços, o chumbo em fusão metido a funil gorgomilos adentro — toda a velha ciência de martirizar subsiste ainda hoje encapotada sob hábeis disfarces. A humanidade é sempre a mesma cruel chacinadora de si própria, numerem-se os séculos anterior ou posteriormente a Cristo. Mudam de forma as coisas; a essência nunca muda. Como prova denuncia-se aqui um avatar moderno das antigas torturas: o estafetamento.

Este suplício vale o torniquete, a fogueira, o garrote, a polé, o touro de bronze, a empalação, o bacalhau, o tronco, a roda hidráulica de surrar. A diferença é que estas engenharias matavam com certa rapidez, ao passo que o estafetamento prolonga por anos a agonia do paciente.

Estafeta-se um homem da seguinte maneira: o Governo, por malévola indicação dum chefe político, hodierno sucedâneo do “familiar” do Santo Ofício, nomeia um cidadão estafeta do correio entre duas cidades convizinhas não ligadas por via férrea.

O ingênuo vê no caso honraria e negócio. É honra penetrar na falange gorda dos carrapatos orçamentívoros que pacientemente devoram o país; é negócio lambiscar ao termo de cada mês um ordenado fixo, tendo arrumadinha, no futuro, a cama fofa da aposentadoria.

Note-se aqui a diferença entre os ominosos tempos medievos e os sobre-excelentes da democracia de hoje. O absolutismo agarrava às brutas a vítima e, sem ter-te nem hábeas corpus, trucidava-a; a democracia opera com manhas de Tartufo, arma arapucas, mete dentro rodelas de laranja e espera aleivosamente que, aponte sua, caia no laço o passarinho. Quer vítimas ao acaso, não escolhe. Chama-se a isto — arte pela arte...

Nomeado que é o homem, não percebe a princípio a sua desgraça. Só ao cabo de um mês ou dois é que entra a desconfiar; desconfiança que por graus se vai fazendo certeza, certeza horrível de que o empalaram no lombilho duro do pior matungo das redondezas, com, pela frente, cinco, seis, sete léguas de tortura a engolir por dia, de mala postal à garupa.

Eis as puas do aparelho de tormento, as tais léguas! Para o comum dos mortais, uma légua é uma légua; é a medida duma distância que principia aqui e acaba lá. Quem viaja, feito o percurso, chega e é feliz.

As léguas do estafeta, porém, mal acabam voltam “da capo”, como nas músicas. Vencidas as seis (suponhamos um caso em que sejam só seis) renascem na sua frente de volta. É fazê-las e desfazê-las. Teia de Penélope, rochedo de Sísifo, há de permeio entre o ir e o vir a má digestão do jantar requentado e a noite maldormida; e assim um mês, um ano, dois, três, cinco, enquanto lhes restarem, a ele nádegas e ao sendeiro lombo.

Quando cruza um viandante a jornadear, morde-o a inveja: aquele breve “chegará”, ao passo que para o estafeta tal verbo é uma irrisão. Mal apeia, derreado, com o coranchim em fogo, ao termo dos trinta e seis mil metros da caminheira, come lá o mau feijão, dorme lá a má soneca e a aurora do dia seguinte estira-lhe à frente, à guisa de “Bom dia!”, os mesmos trinta e seis mil metros da véspera, agora espichados ao contrário...

Breve o animal, pisado, dá de si, fraqueia. Já os topes o cavaleiro galga a pé. Não possui meios de adquirir outra montada. O ordenado vai-se-lhe em milho e “rapador” para a alimária, água de sal para os semicúpios e mais remédios às pisaduras de ambos, cavalgante e cavalgado. Não sobeja sequer para roupa.

Dá-lhe o Estado — o mesmo que custeia enxundiosas taturanas burocráticas

a contos por mês, e baitacas parlamentares a duzentos mil-réis por dia —, dá-lhe o generoso Estado... cem mil-réis mensais. Quer dizer, “um real” por nove braças de tormento. Com um vintém paga-lhe trezentos e trinta metros de suplício. Vem a sair a sessenta réis o quilômetro de martírio. Dor mais barata é impossível.

O estafeta entra a definhar de canseira e fome. Vão-se-lhe as carnes, as bochechas encovam, as pernas viram parênteses dentro dos quais mora a barriga do desventurado rocim.

Além das calamidades fisiológicas, econômicas e sociais, chovem-lhe em cima as meteorológicas. O tempo inclemente não lhe poupa judiarias.

No verão não se dói o sol de assá-lo como se assam pinhões nas cinzas. Se chove, de nenhuma gota se livra. Pelos fins de maio, à entrada do frio, é entanguido como um súdito de Nicolau exilado nas Sibérias que devora as léguas infernais. No dia de são Bartolomeu, agarrado de unhas à crina da escanzelada égua, é por milagre que não os despeja a ambos, perambeiras abaixo, o endemoninhado vento.

O patrão-Governo pressupõe que ele é de ferro e suas nádegas são de aço; que o tempo é um permanente céu com “brisas fagueiras” ocupadas em soprar sobre os caminhantes os olores da “balsamina em flor”.

Pressupõe ainda que os cem mil-réis do salário são uma paga real de lamber as unhas. E, nestas angelicais pressuposições, quando há crises financeiras e lhe lembram economias, corta seus cinco, seus dez mil-réis no pingue ordenado, para que haja sobras permitidoras de ir à Europa um genro em comissão de estudos sobre “a influência zigomática do periélio solar no regime zaratústrico das democracias latinas”.

E assim o exército dos estafetas, dia a dia mais encanifrado, encalacrado de dívidas, enchagado de pisaduras, ao sol de dezembro ou à garoa entanguente de junho, trota, trota sem cessar, morro acima, morro abaixo, por atoleiros e areões, caldeirões e escorregadouros, sacudido pela miseranda cavalgadura que de tanto padecer, coitada, já nem jeito de cavalo tem.

O lombo delas é todo uma chaga viva; as costelas, um ripado. Caricaturas contristadoras do nobre Equus, um dia rebentam de fome, exaustas, a meio de viagem.

O estafeta toma às costas os arreios, a mala, e conclui a caminheira a pé. Nesse dia chega fora de horas, e o agente do correio oficia ao centro sobre a “irregularidade”.

O centro move-se; faz correr um papelório através de várias salas onde, comodamente espapaçada em poltronas caras, a burocracia gorda palestra sobre espiões alemães. Depois de demorada viagem o papelório chega a um gabinete onde impa em secretária de imbuia, fumegando o seu charuto, um sujeito de boas carnes e ótimas cores. Este vence dois contos de réis por mês; é filho de algo; é cunhado, sogro ou genro de algo; entra às onze e sai às três, com folga de permeio para uma “batida” no frege da esquina.

O canastrão corre os olhos mortiços de lombeira por sobre o papel e grunhe:

— Estes estafetas, que malandros!

E assina a demissão daquele a bem do serviço público.

(E se isso não acontece, acontece pior. Certa vez o agente do correio duma cidadezinha paulista oficiou ao centro queixando-se do estafeta. O centro respondeu autorizando-o a “punir com severidade o faltoso”. O agente medita a sério sobre o caso; depois, mostrando o ofício ao estafeta, e com muita dor de coração, ferra-lhe em nome do Governo a maior sova de chicote de que há memória no lugar. Em seguida oficia ao centro dando conta do desempenho da missão e declarando que o serviço ficaria interrompido por uma quinzena, visto o paciente estar de cama, a curar-se com salmoura...)

O supliciado, posto no olho da rua, sem saúde, sem cavalo, sem nádegas, coberto de dívidas, com o fígado e mais vísceras fora do lugar em virtude do muito que “chacoalharam”, vê-se logo rodeado pela chusma de credores, ávidos como urubus de charqueada. Como está nu, mais nu que Jó, não pode pagar a nenhum — e ganha fama de caloteiro.

— Parecia um homem sério, e no entanto roubou-me cinco alqueires de milho — diz o da venda, calabrês gordo, enricado no passamento de notas falsas.

— Tomou-me emprestados 100 mil-réis para a compra de um cavalo, a jurinho de amigo (cinco por cento ao mês), já lá vão cinco anos, e por muito favor pagou-me o premiozinho e deu os arreios por conta. Que ladrão! — diz o onzeneiro, sócio do outro na nota falsa.

A loja de fazenda chora umas calças de algodão mineiro que lhe fiou em tempo. A farmácia, um quilo de sal-amargo falsificado. Abeberado de insultos, o mártir só vê pela frente uma saída: fincar o pé na estrada e fugir... fugir para uma terra qualquer onde o desconheçam e o deixem morrer em paz.

Destarte, o moderno suplício do estafetamento, além de charquear as carnes duma criatura humana limpa de crimes, dá-lhe ainda de lambuja uma bela mortezinha moral. Tudo isto a fim de que não falte aos soletradores de tais e tais bibocas do sertão o pábulo diário da graxa preta em fundo branco, por meio do qual se estampam em língua bunda as facadas que Pé Espalhado deu em Camisa Preta, o queijo que furtou Baianinho ao Manoel da Venda, o romance traduzido de Jorge Ohnet, o salvamento da pátria pela alta volataria nacional, o palavreado gordo das ligas disto e daquilo, a descoberta de espiões onde nada há que espiar, a policultura, o zebu, o analfabetismo, o aliadismo, o germanismo, as potocas da Havas e quanta papalvice grela por massapês e terras roxas deste país das arábias.

A política do coronel Evandro em Itaoca deu com o rabo na cerca desde que em tal pleito o competidor Fidêncio, também coronel, guindou a cotação dos votos de gravata a quinhentos mil-réis, e a dos votos de pé no chão a dois parelhos de roupa, mais um chapéu.

O primeiro ato do vencedor foi correr a vassoura do Olho da Rua em tudo quanto era olhodarruável em matéria de funcionalismo público. Entre os varridos estava a gente do correio, inclusive o estafeta, para cuja substituição inculcou-se ao Governo o Izé Biriba.

Era este Biriba um caranguejo humano, lerdo de maneiras e atolambado de ideias, com dois percalços tremendos na vida — a política e o topete.

O topete consistia num palmo de grenha teimosa em lhe cair sobre a testa, e tão insistente nisto que gastava ele metade do dia erguendo a mão esquerda à altura da fronte para, num movimento maquinal, botar pra arriba a crina rebelde. A política escusa dizer o que é.

Coligados ambos, topete e política comiam-lhe o tempo inteiro, de jeito a não lhe deixar folga nenhuma para o amanho do sítio, que, afinal, roído pelo cupim da hipoteca, lá foi parar nas unhas dum onzeneiro ladrão.

Montou em seguida botequim mas faliu. Enquanto Biriba arrumava o topete os fregueses surrupiavam-lhe os mata-bichos; e nas cavaqueiras políticas os correligionários, de passo que expeliam diatribes contra o governo, sorviam capilés refrescantes e mascavam bolinhos de peixe por conta da vitória futura.

Além do topete tinha Biriba o sestro do “sim senhor” alçado às funções de vírgula, ponto e vírgula, dois-pontos e ponto final de todas as parvoiçadas emitidas pelo parceiro; e às vezes, pelo hábito, quando o freguês parando de falar entrava a comer, continuava ele escandindo a “sim senhores” a mastigação do bolinho filado.

Ao tempo da queda do outro e subida de sua gente, andava Biriba reduzido à conspícua posição de “fósforo” eleitoral. No pleito trabalhara como nenhum. Deram-lhe as piores missões — acuar eleitores tabaréus embibocados nos socavões das serras, negociar-lhes a consciência, debater preço de votos, barganhá-los com éguas lazarentas e provar aos desconfiados, com argumentos de cochicho ao ouvido, que o Governo estava com eles.

Após a vitória sentiu pela primeira vez um gozo integral de coração, cabeça e estômago.

Vencer! Oh, néctar! Oh, ambrosia incomparável!

O nosso homem regalou as vísceras com o petisco dos deuses. Até que enfim os negrores da vida de misérias lhe alvorejavam em aurora. Comer à farta, serrar de cima... Delícias do triunfo!

Que lhe daria o chefe?

No antegozo da pepineira iminente, viveu a rebolar-se em cama de rosas até que rebentou sua nomeação para o cargo de estafeta.

Sem queda para aquilo, quis relutar, pedir mais; na conferência que teve com o chefe, entretanto, as objeções que lhe vinham à boca transmutavam-se no habitual “sim senhor”, de modo a convencer o coronel de que era aquilo o seu ideal.

— Veja, Biriba, quanto vale a felicidade! Pilha um empregão! Vai Regino para agente e você para estafeta.

O mais que ele pôde alegar foi que não tinha cavalgadura.

— Arranja-se — resolveu de pronto o coronel. — Tenho lá uma égua moura legítima, de passo picado, que vale duzentos mil-réis. Por ser para você, dou-a por metade. O dinheiro? É o de menos. Você toma-o de empréstimo a Leandrinho. Arranja-se tudo, homem.

O arranjo foi adquirir Biriba uma égua trotona pelo dobro do valor, com dinheiro tomado a três por cento ao tal Leandro, que outra coisa não era senão o testa de ferro do próprio Fidêncio. Destarte, carambolando, o matreiro chefe punha a juros o pior sendeiro da fazenda, além de conservar pelo cabresto da gratidão ao idiota estafetado.

Iniciou Biriba o serviço: seis léguas diárias a fazer hoje e a desfazer amanhã, sem outra folga além do último dia dos meses ímpares.

Inda bem se fora devorar as léguas na só companhia da chupada mala postal. Mas não lhe saiu serena assim a empresa. Como Itaoca não passasse de mesquinho lugarejo empoleirado no espinhaço da serra e desprovido de tudo, não transcorria vez sem que os amigos políticos não viessem com encomendas a aviar na cidade. À hora de partir surgiam aproveitadores com listinhas de miudezas, ou negras com recados.

— Sinhá disse assim pra suncê comprar três carretéis de linha cinquenta, um papel de agulhas, uma peça de cadarço branco, cinco maços de grampo miúdo e, se sobejar um tostão, pra trazer uma bala de apito pro seu Juquinha.

Todos aqueles artigos existiam em Itaoca, um tantinho mais caros, porém; o encomendá-los fora visava apenas à economia do tostão da bala de apito.

— Sim senhor, sim senhor!...

Não lhe escapava da boca outro som, embora o exasperasse a contínua repetição do abuso.

Além das pequenas encomendas, pouco trabalhosas, surgiam outras de vulto, como levar um cavalo arreado ao senhor Fulano que vinha em tal dia, acompanhar a mulher de Etcetrano, e que tais. Tibúrcia, cozinheira preta do coletor, cada vez que ia de férias descansar à cidade, era Biriba o indicado para conduzi-la.

Foi como o conheci, guardando cesta às amazonas. De viagem para Itaoca, a meio caminho topo num homem encavalgado na mais avariada égua que jamais meus olhos viram. À garupa iam malas do correio e vários picuás; no santo-antônio, mais picuás além duma vassoura nova enganchada nos arreios com a palha para cima. Estava parado, em atitude idiotizada, segurando pelo cabresto um cavalinho de silhão. Abordei-o, pedindo fogo. Aceso o cigarro, indaguei de quem montava a cavalgadura vazia.

— “Não vê” que estou acompanhando a dona Engrácia, que é parteira em Itaoca. Ela apeou um bocadinho e...

Ouvi rumor atrás: saía do mato uma mulheraça rúbida, de saias tufadas de goma, tendo na cabeça um toucadinho coevo de Sua Majestade Fidelíssima... Para não vexá-la pus-me a caminho, não sem, voltando a cara de soslaio, regular-me com os apuros do estafeta para entalar nas andilhas as cinco arrobas da parteira aliviada.

E descomposturas...

— Seu Biriba, não foi linha quarenta que eu encomendei. O senhor parece bobo!

Quando a fazenda era má:

— Não viu que a chita desbotava? Que moda!

Doía-lhe, sobretudo, carretear para a execrável gente da oposição. O coronel contrário não se pejava de por intromissão de terceiro, neutro ou oposicionista encapotado, abusar da boa-fé do mártir. Lembrava-se Biriba, com dor de alma, de um bode de raça que lhe dera grandes trabalhos pelo caminho — e várias marradas de lambuja; afinal, chegando, verificou que vinha para o inimigo.

Toda gente gozou do caso, entre espirros de riso e galhofa.

— É um pax-vóbis Biriba! Trazer o bode da oposição! Quiá! quiá! quiá! Estas e outras foram-lhe azedando os fígados e as vísceras circunvizinhas.

Biriba emagreceu. Biriba amarelou.

A égua, coitada, perdeu a feição cavalar. Seu lombo selara em meia-lua, de modo que por um nadinha não raspavam o chão os pés do cavaleiro. Montado, Biriba afundava. Sua cabeça caía quase ao nível duma linha tirada da anca às orelhas da égua. Horrendamente pisada, trazia a bicha nos olhos permanentes lágrimas de dor; mas em vez de tanta mazela mover ao dó o coração dos itaoquenses, regalava-os, e eram chufas sem fim e piadas idiotas acerca do “Estafeta da Triste Figura mais a sua Bucéfala”, como os batizou um engraçado local.

Lazarento como eles, só o Cunegundes, cão sem dono, coberto de sarna, que perambulava a esmo pela cidade, fugindo a moscas e pontapés. Pois não lhe mudaram o nome para Biribinha? Cachorrada!

Não tardou muito viesse o Governo dar sua volta ao torniquete, cortando dez mil-réis no ordenado dos estafetas — para salvar-se em certa ocasião de apuros financeiros. E salvou-se, esta é que é!...

A roupa no fio. À entrada das chuvas uma alma caridosa deu-lhe uma velha capa de borracha; mas no primeiro aguaceiro verificou Biriba que tal capote vazava como peneira, de modo a piorar-lhe a situação com a sobrecarga dum panejamento absorvedor de litros de água.

Biriba, perdida a paciência, murmurou.

Ai! Soube-o logo o chefe e fê-lo vir a contas.

— É certo que o senhor me anda arrenegando do emprego que lhe demos? Queria, acaso, ser eleito senador ou vice-presidente? Um pedaço de porcalhão que andava aí lambendo embira, morre não morre de fome, passa, por generosidade nossa, a ocupar um cargo federal com ordenado relativamente bom (aqui Biriba tossiu um... “Sim senhor”), encontra todas as facilidades, recebe um bom animal e ainda se queixa? Que quer então Vossa Excelência?

Biriba entumeceu-se de coragem e declarou querer uma coisa só: a demissão. Estava doente, surradíssimo, ameaçado de perder de um momento para outro a égua e as nádegas. Queria mudar de vida.

— Muda-se, então, de vida assim do pé pra mão? Quer abandonar os amigos? E a disciplina partidária onde fica, meu caro palerma?

Não convinha a ninguém a saída do Biriba. Quem mais serviçal? Lembravam-se dos estafetas anteriores, malcriados, inimigos de trazer um papel de agulha fosse para quem fosse. Não sairia. Itaoca impunha-lhe o sacrifício de ficar.

Mas a tortura do diário chocalhar por sete léguas das vísceras de Biriba acabou por desconjuntar nele o cimento da lealdade partidária. O mártir abriu os olhos. Lembrou-se com saudades dos ominosos tempos do coronel Evandro, das delícias do botequim e até do calamitoso período da degradação “fosfórica”. Piorara após o triunfo, não havia dúvida.

Este livre exame de consciência — crede-me — foi o início da queda do coronel Fidêncio em Itaoca. Biriba, o firme esteio, apodrecia pelo nabo; viria abaixo, e com ele a cumeeira do pardieiro político. A víbora da traição armara ninho em sua alma.

Como o novo pleito se aproximasse, nova vitória lhe seria novo termo de martírio. Biriba ponderou de si para sua égua que a salvação de ambos estava na derrota. Demitiam-no, e ele, veterano e mártir do fidencismo, continuaria com jus ao apoio do partido, sem padecer por via coccigiana o contato odioso das sete horas diárias de socado.

Deliberou trair.

Na véspera da eleição incumbiu-o Fidêncio de trazer da cidade um papel importantíssimo para o tribofe das urnas. Sei lá o que era! Um “papel”. A palavra “papel” dita assim em tom de mistério traz no bojo “coisas”...

Fidêncio frisou a gravidade da incumbência — a maior prova de confiança jamais dada por ele a um cabo eleitoral.

— Veja lá! A nossa sorte está nas suas mãos. Isto é que é confiança, hein? Partiu Biriba. Recebeu na cidade o “papel” e rodou para trás. A meio caminho, porém, tomou por uma errada, foi ter à biboca dum negro velho, soltou a égua, pegou de prosa com o gorila. Caiu a noite: Biriba deixou-se ficar. Alvoreceu o dia seguinte: Biriba quieto. Dez dias se passaram assim. Ao cabo, arreou a égua, montou e botou-se para Itaoca como se nada houvera acontecido.

Foi um assombro a sua aparição. Baldadas as tentativas para apanhá-lo no dia do pleito e nos posteriores, deram-no como papado pelas onças, ele, égua, mala postal e “papel”. Vê-lo agora surgir sãozinho da silva foi um abrir de boca e um pasmar à vila inteira. Que houve? Que não houve?

A todas as perguntas Biriba armava na cara a suprema expressão da idiotia. Nada explicava. Não sabia de nada. Sono cataléptico? Feitiço? Não compreendia o sucedido. Afigurava-se-lhe ter partido na véspera e estar de volta no dia certo.

Ficaram todos maravilhados, com asníssimas caras.

Fidêncio delirava na cama, com febre cerebral. Perdera a eleição redondamente.

— Derrota fedida — arrotavam os vencedores, atochando foguetes de assobio.

Em consequência do inexplicável eclipse do estafeta senhoreou-se do rebenque o ex-ominoso Evandro. Começou a derrubada. O olho da rua recebeu em seu seio tudo quanto cheirava a fidencismo. A vassoura da demissão, porém, poupou a... Biriba.

O novo cacique aproximou-se dele e disse:

— Demiti toda a canalha, Biriba, menos a você. Você é a única coisa que se salva da quadrilha de Fidêncio. Fique sossegado, que do seu lugarzinho ninguém o arranca, nem que o céu chova torqueses.

Pela derradeira vez em Itaoca Biriba balbuciou o “Sim senhor”. À noite deu um beijo no focinho da égua e saiu de casa pé ante pé. Ganhou a estrada e sumiu.

E nunca mais ninguém lhe pôs a vista em cima...

Fonte:
Monteiro Lobato. Urupês. atualização ortográfica: Iba Mendes.

sábado, 20 de julho de 2019

J. G. de Araújo Jorge (Inspirações de Amor) XIX


CAMINHO MONÓTONO

 E por que hei de negar?...Ah! o encanto da estrada
 abrindo em cada curva um leque de paisagem,
 e o mistério da casa escondida e encantada
 que mora sob a sombra amiga da folhagem

 E por que hei de negar?  Se isso é a vida passada;
 se o fastio espantou o encanto da miragem
 Hoje - o olhar distraído, e a alma já cansada
 repetem todo dia e sempre a mesma viagem

 E por que hei de negar?  Ah! Aquelas ânsias loucas
 dos beijos que cantavam sempre em nossas bocas
 e das mãos, não sabendo nunca onde pousar...

 Hoje... por mais que venhas, sempre estou sozinho...
 E por que hei de negar?  Se teu corpo é um caminho
 onde de olhos fechados posso caminhar?…

CANTO BANAL

Não te quero dizer palavras difíceis e deformantes
nem inventar imagens que embelezam talvez
mas que não reconheces.

Não tocarei música para os teus ouvidos
nem criarei poesia para a tua imaginação,
nem nada esculpirei que já não estejas em ti...

Nesse instante serei banal,
não respeitarei nem mesmo o silêncio,
nada que nos eleve além do plano em que estamos,
não serás estrela, não serás a nuvem, não serás a flor...

Quando chegares, e eu tomar teu corpo
em meus braços nervosos, te direi apenas:
- meu amor!

CANTO DE ONTEM

Vamos, põe teu braço no meu braço, vamos recordar
os velhos tempos
do nosso amor.
Passeávamos assim, e que frias eram as tuas mãos
no momento do encontro,
e que dóceis teus lábios depois da rendição.

Muitas vezes perdi-me em teus lábios e não soube voltar.

Que era o mundo senão um punhado de perspectivas
que saíam do ponto coração
e se perdiam nos teus olhos?

Tanta coisa esperamos e alguma coisa colhemos
mas que triste, amor, este todo-o-dia matando
o que esperávamos jamais ser tocado pelo tempo.

Tu me queres ainda, eu sei que te aninhas, por habito ou por frio
junto ao meu corpo, e esperas.

E eu te quero ainda, muito mais pelo que deixaste
nas raízes mergulhadas
e pelo que representas nas nuvens que se acumulam
do que pelo momento de tédio e ternura, elementos
do nosso coquetel cotidiano...

Vamos, põe teu braço no meu braço, como antigamente,
entrega-me docilmente os teus lábios, e pensa
que eu te beijo há mil anos, num tempo em que seremos
sempre os mesmos
e o nosso amor imortal.

CANTO E ELEGIA

Sejam as palavras a forma da minha dor
ou da minha alegria.

Que este é o destino real dos que trouxeram
a poesia,
existirem apenas no canto,
como a chama no fogo,
como a forma na flor!

Canto e elegia...
aonde eu for.

CANTO EFÊMERO
   
Feliz no mundo eu só!... Ninguém mais é feliz!
Ninguém mais é feliz!... Eu só, sorrio e canto!
Enfim o teu amor!... Quanta coisa! Quem diz,
- quem poderia crer que eu merecesse tanto!  

Esplendor! a paisagem mudou por encanto! 
No negro da minha alma há rabiscos de giz  
    traçando ante meus olhos trêmulos de espanto.
          - "Feliz no mundo, eu só !... Ninguém mais é feliz!"

Certo do teu amor, tudo ao redor se anima,
em ouro se transforma a fuligem do pó    
    e a minha alma, a beleza das coisas sublima!

Enfim o teu amor!... E o teu amor primeiro!
       Meu Deus! eu sou feliz!... Feliz no mundo eu só!
              Ninguém mais é feliz, ninguém!... no mundo inteiro!

CANTO INTEGRAL DO AMOR

Cegos os olhos, continuarias de qualquer forma,. presente,
surdos os ouvidos, e tua voz seria ainda a minha música, 
e eu mudo, ainda assim, seriam tuas as minhas palavras. 

Sem pés, te alcançaria a arrastar-me como as águas,
sem braços, te envolveria invisível, como a aragem, 
sem sentidos, te sentiria recolhida ao coração            
como o rumor do oceano nas grutas e nas conchas.  

Sem coração, circularias como a cor em meu sangue,
e sem corpo, estarias nas formas do pensamento        
como o perfume no ar.
        
E eu morto, ainda assim por certo te encontrarias
no arbusto que tivesse suas raízes em meu ser,    
- e a flor que desabrochasse murmuraria teu nome.

CANTO PRETENSIOSO

Exilado num tempo de perfídias,
de misérias, de lutas, de torpezas,
- pergunto em vão, nesse clamor de insídias
onde vivem as almas e as belezas?

Trago as asas e as ânsias sempre presas
se o mundo é um choque eterno de dissídias...
- onde andarão aquelas naturezas
do século de Péricles e Fídias ?

No meu destino singular de eleito
subo à procura do alto da montanha,
onde o ar é mais puro e o céu perfeito!

- Que as montanhas, as eras não consomem,
e nessa ânsia em que avanço, sinto a estranha
vocação de ser deus dentro de um homem !

CANTO PURO

Como se fosse uma árvore me sinto
a bracejar a luz desta manhã:
do azul dos céus, azul puro e retinto,
embebedo a minha alma livre e sã.

Há uma alegria esplêndida e pagã!
Cheiro de terra a provocar o instinto!
O dia, é um bago rubro de romã
e o Sol renasce de um incêndio extinto

Que gosto bom esse de andar no chão
de pés descalços, tal como as raízes,
a ouvir cantar no peito o coração

Como as aves nas ramas enfloradas
ou como as águas claras e felizes
que cantam pelo chão, despreocupadas…

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. Os Mais Belos Poemas Que O Amor Inspirou. vol. 2. SP: Ed. Theor, 1965.

Vinicius de Moraes (Susana, flor de agosto)


A redação seria a coisa mais triste do mundo, não fosse a presença inesperada de Susana. Susana com seus 13 anos em flor, sua sábia beleza, seu doce e triste olhar castanho e sua perfeita desenvoltura encheram a redação de uma vida inesperada, fazendo-me por alguns instantes esquecer a mesquinhez do cotidiano. Ela entrou nos amplos espaços do meu tédio com passos graciosos de dançarina e ficou a girar por ali, balançando os cabelos longos sobre os ombros firmes de adolescente. Pus-me a adorá-la como nunca dantes, àquela menina a quem dei vida, e nunca senti mais forte, doce, secreto, o elo que a ela me prende.

Talvez para os outros sua jovem figura trouxesse apenas o encanto uma flor em desabrochamento. Para mim, seu pai, trouxe uma sensação de indizível amor, de um triste, fatal e pacífico amor sem remédio. Revia-a pequenina em meus braços diante de um branco céu crepuscular olhar para o alto anunciando-me que as estrelinhas estavam acordando. Revi-a a me olhar do seu modo sério quando lhe contava histórias, longas histórias por vezes inventadas e que nunca eram bastantes para a sua imaginação insone. Revi-a crescendo diante de mim qual planta misteriosa, estirando o caule, distendendo os ramos numa ânsia saudável de crescer. Agora ali estava ela a dançar sua maravilhosa dança ritual só para mim, nos infinitos espaços do meu silêncio - Susana, uma vida tirada de mim, uma menina que eu fiz para amar com a maior doçura do mundo: Susana, flor de agosto, filha minha muito amada, para quem eu cantei meus mais sentidos cantos e sobre cujo pequenino rosto adormecido despetalei as mais lindas pétalas do meu carinho.

Fonte:
Vinicius de Moraes. Para uma menina com uma flor.

sexta-feira, 19 de julho de 2019

I Concurso de Trovas “Singrando Horizontes” (Resultado Final)


TEMAS:
Veteranos: Horizonte/s
Novos Trovadores: Poesia/s



VETERANOS

ACADEMIA BRASILEIRA DE TROVA

VENCEDOR
    Paulo Roberto de Oliveira Caruso
Niterói/RJ


Por mais que o destino apronte,
te levando a novos ares,
sigo fitando o horizonte,
esperando regressares.
_________________________________________________

ESTADUAL (PARANÁ)
VETERANOS

VENCEDORES
 
1.
Nilsa Alves de Melo
Maringá


Outros são meus horizontes...
Não tracem o meu caminho,
quero beber de outras fontes,
acertar e errar sozinho.
--------------------

2.
Luiza Nelma Fillus
Irati


Meus olhos tristonhos buscam
no horizonte o ser amado,
mas as miragens ofuscam
esse deleite sonhado!
--------------------

 3.
Leonilda Yvonneti Spina
Londrina


Que novo líder desponte,
com vocação verdadeira,
trazendo um áureo horizonte
para a pátria brasileira!
-------------------- 

4.
Nilsa Alves de Melo
Maringá


Belo futuro me acena,
de horizontes promissores...
Sei que valerá a pena
ser fiel aos meus pendores.
--------------------
   
5.
Odenir Follador
Ponta Grossa


Chora junto àquela fonte
a bela moça donzela...
Raios de sol do horizonte
brilham nas lágrimas dela.
_______________________________________

ESTADUAL (PARANÁ)
 NOVOS TROVADORES

1.
César Augusto Ribas Sovinski
Curitiba
 
Por certo eu não viveria
sem a poesia, meu sal.
É que o mundo da poesia
sustenta o mundo real.
 
--------------------
   
2.
César Augusto Ribas Sovinski
Curitiba


Escute a voz da poesia:
Que belos versos declama!
Desafia a fantasia,
nossos sentidos inflama.
____________________________________________

NACIONAL / INTERNACIONAL
NOVOS TROVADORES

VENCEDORES
 
1.
João Roberto Vasco Gonçalves
Vitória / ES


Poesia, bálsamo d’alma,
que transpira num poema!
Raros momentos de calma,
enlevo da arte suprema!
--------------------  

2.
João Roberto Vasco Gonçalves
Vitória / ES   

Ela é todo o meu amor!
Penso nela todo dia,
com carinho e com ardor...
razão da minha poesia!
-------------------- 

3.
Silmar Bohrer
Caçador / SC


Quantos viventes na vida
choram a vida vazia...
Devem curar a ferida
com a essência da Poesia.
--------------------  

4.
Jaíra Presa
Santos / SP   


Esta noite enluarada
cria em nós a fantasia,
ao dizer à nossa amada
versos, rimas e poesia...
--------------------  

5.
José Airton Mellega
Piracicaba / SP

Num recanto do universo,
poesia eu vou escrever.
É meu sentimento em verso,
para alegrar seu viver.
____________________________________________

NACIONAL / INTERNACIONAL
VETERANOS

VENCEDORES


1.
Arlindo Tadeu Hagen
Juiz de Fora / MG


Destino, desde criança,
por mais que me desapontes,
mantenho o olhar de esperança
pousado em meus horizontes.
--------------------  

2.
Alba Helena Corrêa
Niterói / RJ

Olhe, de frente, a amplidão,
estude e não se amedronte,
pois a luz da educação
abrirá seu horizonte!
-------------------- 

3.
Jessé Fernandes do Nascimento
Angra dos Reis / RJ

Avisto já no horizonte,
em pleno declínio, o sol;
mas não me abato, ergo a fronte
e aguardo um novo arrebol.
--------------------  

4.   
Carolina Ramos
Santos / SP

Melhor o mundo seria,
se no horizonte se lesse
a palavra AMOR... E, um dia,
nesse AMOR ... o mundo cresse!
--------------------  

5.
Relva do Egypto Rezende Silveira
Belo Horizonte / MG

Sinto a névoa do poente,
envolvendo os meus agoras,
mas renasço, sigo em frente,
no horizonte das auroras.
____________________________________

MENÇÃO HONROSA

1.
Edweine Loureiro da Silva
Souka-shi / Saitama / Japão


No horizonte, o sol brilhando
é Deus, que vem permitir
a quem estiver chorando
nova chance de sorrir.
--------------------  

2.
Arlindo Tadeu Hagen
Juiz de Fora / MG

Com seu brilho extraordinário,
surge o sol, atrás do monte,
feito um deus incendiário
pondo fogo no horizonte.
--------------------  

3.
Antônio Francisco Pereira
Belo Horizonte / MG

Quem olha para o futuro
e vê além do horizonte,
em vez de levantar muro,          
prefere construir ponte.    
-------------------- 

4.
Glória Tabet Marson
São José dos Campos / SP


Vê o céu, quem se apaixona,
e as estrelas, há quem conte;
é o amor que vem à tona,
abrindo um novo horizonte!
--------------------  

5.
Jerson Lima de Brito
Porto Velho / RO

O horizonte de um menino
será rude e pardacento,
se lhe negarem ensino
e a luz do conhecimento.    
________________________________________________

MENÇÃO ESPECIAL

1.
Mara Melinni
Caicó / RN

Nos ocasos, é que a gente,
sem cobrança e sem medida,
vê que a vida é diferente
nos horizontes da vida!...
--------------------  

2.
Valter Rodrigues Mota
Taubaté / SP

No horizonte, lá distante,
vejo o céu tocando o mar.
Mergulha o sol flamejante,
surge a lua em seu lugar.
--------------------  

3.
Maria Aparecida Ferreira de Vasconcelos
Santos / SP

Navegando entre os abrolhos,
no horizonte irei buscar
o verde mar dos teus olhos,
onde eu quero navegar !
--------------------  

4.
Mariangela da Silva Santos
Saquarema / RJ

Em busca dos horizontes,
valores da minha vida,
ultrapassei grandes pontes,
sempre de cabeça erguida!--------------------  

5.
Wanda de Paula Mourthé
Belo Horizonte / MG

Feito folha solta ao vento,
horizontes eu transponho
e me alteio ao firmamento,
porque vivo ao léu do sonho...
_____________________________________
 
DESTAQUE

Wanda de Paula Mourthé
Belo Horizonte/MG


De beleza, eternas fontes,
em voos de sonho eu parto,
lendo “Singrando Horizontes”,
nem mesmo saio do quarto!
________________________________________
 
Comissão Julgadora
Flávio Roberto Stefani (Porto Alegre/RS)
Therezinha Dieguez Brisolla (São Paulo/SP)
A. A. de Assis (Maringá/PR)
Vanda Fagundes Queiroz (Curitiba/PR)

Coordenador/Organizador/Fiel Depositário email
José Feldman

Coordenador Envelopes
André Ricardo Rogério

Parceria:
Academia Brasileira de Trova
Tertúlia Luso-Brasileira de Trovadores
Academia Virtual Internacional de Poesia, Arte e Filosofia
Academia de Letras do Brasil / Paraná
Academia de Letras e Artes de Paranapuã
____________________________________________________

NOTA AOS PREMIADOS:
Os diplomas estão sendo confeccionados e breve serão enviados a seus respectivos emails assim como o Caderno de Trovas Premiadas.

Elciana Goedert e Sonia Andrea Mazza (Exposição de Poesia neste domingo)


quarta-feira, 17 de julho de 2019

Jaime Vieira (Nas Asas da Poesia) 2


CHATICE

por este mundo ser chato
por todo mundo estar chato
quero mesmo ser um chato
e me agarrar
na cabeleira
do tempo.

CONSPIRAÇÃO

enquanto
brincam com o tempo,
os teus cabelos
em mutirão,
a todo momento,
trabalham sérios
mudando de cor
quando não,
vão embora.

DESCANSO

a velha
palavra
rui o tempo,
em descanso
vira
epitáfio.

DESPETALAR

O espinho
é o segurança da flor
em espetáculo.
Apenas fere,
que pena,
não é obstáculo.

DESPOEMA

No calote da linguagem
com dupla imagem,
a poesia ganha passagem
e não diz nada.
Aí, o engano
é único.

HISTÓRICO

Há séculos
(desde toda eternidade)
o sol e a lua
são os mesmos.
Gerações desaparecem
e eles indiferentes
no palco do céu
continuam o espetáculo.

POSSIBILIDADE

o impossível
é sempre possível
basta querer
impossivelmente
querendo.

POTENCIAL

no coração pequenino
do passarinho
cabe a vastidão do céu
e a decisão do voo.

QUERO MAIS

no poço das palavras
que não mentem
tomo posse
e não mato a sede.

RELUZIR

bem atrás,
lá no azul negro
do infinito
algumas estrelas pequenas
brincam de esconde-esconde,
as mais afoitas
dizem: boa-noite!

RISOS

O mar se agitou
e ondas rolaram seixos
dando gargalhadas.
Também, pô!
O voo rasante das gaivotas
faziam cócegas na sua superfície.

Fonte:
Jaime Vieira. Asas. São Paulo/SP: Edicon, 1989.

Antonio Brás Constante (O trabalho se transformou em vício)


Sim, eu confesso, me viciei totalmente no trabalho. No início comecei com coisas leves. “Umas seis horas por dia no serviço já está bom”, eu pensava. Mas aos poucos fui necessitando de mais e mais tarefas. Passando a consumir dez, doze, até dezesseis horas de minha vida. Não saía mais com amigos. Já não comia direito. Mal conseguia dormir, ou simplesmente dormia mal (não é fácil dormir em cima de uma mesa de escritório).

Os sintomas foram se agravando, comecei a atender ao telefone utilizando o slogan da companhia (inclusive aos domingos), identificando-me e perguntando em que poderia ser útil. Depois de um tempo, passei a ter mais intimidade com a secretária eletrônica do que com pessoas de carne e osso. Agendava reuniões com minha própria mãe quando queria visitá-la. Mesmo nas raras ocasiões em que saía para jogar futebol, parava no meio do jogo, deixando minha posição descoberta, dizendo que era minha hora de intervalo, e isso deixava meus companheiros de time horrorizados, pois eu era o goleiro.

Minha esposa me abandonou pouco depois que deixei de chamá-la de amorzinho (para não ser acusado de assédio, era a explicação que eu dava), passando a me dirigir a ela utilizando seu primeiro nome, sempre precedido de “dona”. A gota d’água, porém, foi quando me recusei a deitar com ela, alegando que aquilo poderia ser interpretado como um erro de conduta moral. A coitada teve uma crise histérica. Tentei acalmá-la dizendo que ela poderia tirar o resto do dia de folga se quisesse, desde que fosse ao médico e me apresentasse um atestado de saúde. Nesse episódio, Dona Er... digo... minha mulher foi embora de casa, levando nossos filhos de cinco e oito anos junto com ela; fiquei muito triste com aquilo, visto que eles já estavam se acostumando a usar o uniforme com o logotipo da empresa.

Só notei que realmente havia algo errado comigo quando demiti meu cachorro por não estar usando crachá. Eu queria realmente procurar ajuda, mas era tão difícil encontrar algum médico que quisesse enviar seu currículo para avaliação, e que aceitasse fazer uma entrevista prévia, para somente então assinar um contrato de prestação de serviços (registrado em cartório), e enfim me examinar!

Para minha surpresa, meus familiares me recomendaram um consultor de empresas muito competente (que eles mesmos contrataram), o doutor Leopoldo, que iria auxiliar nos meus afazeres. Ele me convenceu a ir trabalhar no mesmo prédio de seu escritório. Inicialmente estranhei a localização do lugar, pois ficava numa clínica psiquiátrica, mas ele me tranquilizou afirmando que estava apenas sublocando uma sala ali, e que o lugar era bem localizado.

O Doutor Leopoldo também insistiu para que eu passasse a utilizar um novo tipo de uniforme, que segundo ele era muito mais moderno e arrojado. Infelizmente o traje era um pouco desconfortável, já que meus braços ficavam imobilizados depois de vesti-lo. Em contrapartida, ganhei uma sala muito confortável para trabalhar, toda acolchoada, apesar de não ter janelas e estar completamente vazia (me avisaram que os móveis ainda não haviam chegado da fábrica). Passei a tomar remédios que, conforme informações do bom doutor, ajudariam a aumentar o meu desempenho profissional. Estranhamente os tais medicamentos também me deixavam com muita sonolência. Depois entendi que aquilo tudo fazia parte de um tratamento para curar minha compulsão.

Hoje sou um novo homem: superei o vício de trabalhar. Agora, se você que está lendo este texto me der licença, vou encerrando estas poucas linhas, pois meus colegas do time de futebol estão gritando desesperados comigo para que eu pare de escrever e volte para o gol. E você? Qual é o seu vício?

Fonte:
Antonio Brás Constante.  Hoje é o seu aniversário! “Prepare-se” : e outras histórias. Porto Alegre, RS : AGE, 2009.

Caldeirão Poético XXVIII


AFONSO CELSO
(1860-1938)

ANJO ENFERMO


Geme no berço, enferma, a criancinha,
Que não fala, não anda e já padece...
Penas assim cruéis porque as merece
Quem mal entrando na existência vinha?

Ó melindroso ser, ó filha minha,
Se os céus me ouvissem a paterna prece,
E a mim o teu sofrer passar pudesse,
Gozo me fora a dor que te espezinha...

Como te aperta a angústia o frágil peito!
E Deus, que tudo vê, não te extermina,
Deus que é bom, Deus que é pai, Deus que é perfeito.

Sim... é pai, mas, a crença no-lo ensina:
- Se viu morrer Jesus, quando homem feito,
Nunca teve uma filha pequenina!

AUGUSTO DE LIMA
(1860-1934)

NOSTALGIA PANTEÍSTA

Um dia, interrogando o níveo seio
de uma concha voltada contra o ouvido,
um longínquo rumor, como um gemido,
ouvi plangente e de saudades cheio.

Esse rumor tristíssimo, escutei-o:
é a música das ondas, é o bramido
que ela guarda por tempo indefinido,
das solidões marinhas donde veio.

Homem, concha exilada, igual lamento
em ti mesmo ouvirás, se ouvido atento
aos recessos do espírito volveres.

É de saudade, esse lamento humano,
de uma vida anterior, pátrio oceano
da unidade concêntrica dos seres.

CRUZ E SOUSA
(1861-1898)

CAMINHO DA GLÓRIA


Este caminho é cor de rosa e é de ouro.
Estranhos roseirais nele florescem,
Folhas augustas, nobres reverdecem
De acanto, mirto e sempiterno louro.

Neste caminho encontra-se o tesouro
Pelo qual tantas almas estremecem;
É por aqui que tantas almas descem
Ao divino e fremente sorvedouro.

É por aqui que passam meditando,
Que cruzam, descem, trêmulos, sonhando,
Neste celeste, límpido caminho,

Os seres virginais que vêm da Terra,
Ensanguentados da tremenda guerra,
Embebedados do sinistro vinho.

EMÍLIO DE MENESES
(1867-1918)

TRAPO


Esta que outrora o linho da cambraia
Na pompa da ostentosa lençaria,
- Folhos* e rendas que à secreta alfaia
Ornavam com capricho e bizarria -

Era camisa - e que hoje a nostalgia
Sofre do tempo em que entre a pele e a saia
O perfumado corpo lhe cingia, -
Era ao possuí-la, a última atalaia.

Trapo que encerras o ebriante aroma
Do seu colo moreno, poma a poma**,
Ora em tiras te vejo desprezado.

E mais te quero, e mais te achego ao peito
Trapo divino! símbolo perfeito
De um coração por Ela espedaçado.
______________________
* folhos =  babados franzidos ou pregueados
** poma = seio de mulher

GUIMARÃES PASSOS
(1867-1909)

GUARDA E PASSA


"...Non me destar, deh! parla basso." (Michel Angelo)
Figuremos: tu vais (é curta a viagem),
Tu vais e, de repente, na tortuosa
Estrada vês, sob árvore frondosa,
Alguém dormindo à beira da passagem.

Alguém, cuja fadiga angustiosa
Cedeu ao sono, em meio da romagem,
E exausto dorme... Tinhas tu coragem
De acordá-lo? responde-me, formosa.

Quem dorme esquece... Pode ser medonho
O pesadelo que entre o horror nos fecha;
Mas sofre menos o que sofre em sonho.

Ó, tu, que turvas o palor da neve,
Tu, que as estrelas escureces, deixa
Meu coração dormir... Pisa de leve.

JOÃO RIBEIRO
(1860-1934)

MONGE


É forçoso que por um louco tomem
Quem de perfeito juízo se mostrava?
Louco, dizeis vós! mas onde estava
A apregoada loucura daquele homem?

Quem pode ver as dores que se somem
Dentro no peito e ver a ignota lava?
Loucos sois vós que as pústulas consomem,
E tendes a alma das paixões escrava.

Louco o dizeis, porque deixara o mundo
Pelo abismo do claustro hórrido* e fundo!
Insensatos, sabei! para a alegria,

É talvez pouca luz a luz do dia,
Mas a quem fere do infortúnio o açoite
Essa noite do claustro é pouca noite.
____________
* Hórrido - horrendo, pavoroso
_________________________
 
OLAVO BILAC
(1865-1918)

INANIA VERBA


Ah! quem há de exprimir, alma impotente e escrava,
O que a boca não diz, o que a mão não escreve?
- Ardes, sangras, pregada à tua cruz, e, em breve,
Olhas, desfeito em lodo, o que te deslumbrava...

O Pensamento ferve, e é um turbilhão de lava:
A Forma, fria e espessa, é um sepulcro de neve...
E a Palavra pesada abafa a Ideia leve,
Que, perfume e clarão, refulgia e voava.

Quem o molde achará para a expressão de tudo?
Ai! quem há de dizer as ânsias infinitas
Do sonho? e o céu que foge à mão que se levanta?

E a ira muda? e o asco mudo? e o desespero mudo?
E as palavras de fé que nunca foram ditas?
E as confissões de amor que morrem na garganta?!

VICENTE DE CARVALHO
(1866-1924)

ESPERANÇA

Só a leve esperança, em toda a vida,
Disfarça a pena de viver, mais nada;
Nem é mais a existência, resumida,
Que uma grande esperança malograda.

O eterno sonho da alma desterrada,
Sonho que a traz ansiosa e embevecida,
É uma hora feliz, sempre adiada
E que não chega nunca em toda a vida.

Essa felicidade que supomos,
Árvore milagrosa que sonhamos
Toda arreada de dourados pomos,

Existe, sim: mas nós não a alcançamos
Porque está sempre apenas onde a pomos
E nunca a pomos onde nós estamos.

terça-feira, 16 de julho de 2019

Carolina Ramos (Velha Vó)


Olhou, com pena, as mãos enrugadas e trêmulas... quanto haviam dado!

E quem se lembrava disso? Quanto carinho saído daquelas pobres e velhas mãos, tão operosas no passado, tão inúteis agora... Quanto carinho, quanto desvelo esquecido... e quanta ternura ainda poderiam dar! Mas, dar a quem? Ninguém... ninguém, mesmo, parecia interessado em sua ternura…

A solidão do seu quarto, chegava o eco da algazarra dos netos. O toca-discos, a pleno volume, violentava os ouvidos sensíveis, com a desesperante agressividade dos metais e das guitarras elétricas. Até as louças e cristais vibravam, dentro dos móveis, ao som, (som?!), do rock alucinante!

Com a palma das mãos, protegeu os ouvidos. Diziam que estava ficando surda. Como, surda, se não conseguia conviver com a metade do barulho que a maioria suportava?! Os demais, sim, seriam surdos, ou quase!

À penumbra, o pequenino quarto era como que uma sala de espera. Sala de espera do Paraíso... Reunira lá, tudo o que lhe restava de mais caro: — as fotos amareladas pelo tempo; os velhos lençóis de linho, bordados com monogramas, que não interessavam a ninguém; os livros que não mais lia e que os netos chamavam de água com açúcar; as agulhas de tricô, entortadas pelo uso, pelas quais haviam passado, ponto por ponto, os enxovalzinhos dos filhos, dos netos… chegariam aos bisnetos? Talvez... o neto mais velho já andava raspando o buço e ensaiando as primeiras investidas. Qualquer dia, não seria de estranhar se aparecesse em casa, com mulher e filho a tiracolo. Não é assim que andavam as coisas?

Passou as mãos pela cabeça branca, alisando, lentamente, os cabelos. Não olhou o espelho, fiel amigo das mulheres jovens, inimigo das maduras. As idosas, preferiam ignorá-lo. Melhor que não existisse. Sorte, é que a vista curta amenizava a obra nefasta do tempo. Deus é sábio! Vela os olhos dos velhinhos, de caso pensado, para que não vejam as maldades do mundo e, principalmente, para que sofram menos, ignorando a progressiva decadência.

Alisou novamente os cabelos. Gostava deles mais longos, presos num coque, como sempre usara, mas, fora convencida de que curtos eram mais práticos, mais higiênicos, menos trabalhosos de pentear. Encolheu os ombros, em concordância.

Abriu, cautelosa, a porta do quarto. Deu um passo à frente, tentando enfrentar a balbúrdia. Um bafo ardido de nicotina agrediu-lhe as narinas, avançando pelos brônquios calcificados, pela idade, e chegando aos pulmões indefesos. Tossiu, recuando. Através da fumarada, viu a neta que comandava o grupo. Como estava linda! Boa menina!

E a boa menina vendo a avó e acercou-se pressurosa:

— "Entra, vó, entra... fica no teu quarto, que a gente está dando uma festinha."

A velhinha tentou falar: — "Você está tão bonita..." mas, ninguém a ouvia. Já a neta, copo na mão, e sorriso nos lábios, girava noutra direção.

Sentiu saudades dos netos, quando ainda pequeninos. Anjinhos… verdadeiros anjinhos irrequietos e encaracolados! Anjos, desde a ternura dos carinhos, até a inocência das travessuras. Agora... ah! os jovens... tão frios… tão distantes... tão agressivos! Pareciam não ter, no seu mundo, um lugar para os velhos! Nem um cantinho sequer... e bastaria apenas um tiquinho de nada, onde coubessem migalhas de amor.

Fechou a porta com cuidado. Respirou mais fundo. Ao menos lá dentro, o ar era mais puro. Cheirava a talco. Velhos gostam de talco. Por isso, vivem ganhando caixas e caixas de talco, de presente. Ou será que, de tanto ganharem talco de presente, acabavam por gostar dele?

A tarde morria. Só a tarde?!

A noite chegava. Há muito, já a trazia dentro da alma. Não gostava da noite. À noite as saudades falavam tão alto, que a insônia vinha dialogar com elas. Abriu o álbum de retratos. Quantas vezes o folheara? Seria capaz de descrever cada página, foto por foto. Não conseguia lembrar-se, na maioria das vezes, de coisas recentes. Mas, naquele álbum, tudo era presente! A foto do casamento. Quanto lhe dizia! Ela, tão jovem, de pé. Ele, posudo, sentado. Por que, a noiva de pé e o noivo sentado? Ninguém tentara explicar. Costume da época. A foto lembrava amor. Será que o amor ainda existia? Tudo agora parecia tão estranho... tão esquisito... tão chocante!

A princípio, tentara questionar. Ninguém parecia ouvi-la. E se a ouviam, era pior: — "Lá vem a velha com palpites!" “Não enche, vó!"

Aprendera a calar. Aceitação? Melhor dizer: — comodismo.

Doía demais aquele: "Não enche, vó!" Aprendera a não "encher", para viver era paz.

"Deixa disso, vó!", ''Não faz aquilo, vó!", "Olha só o que a vó fez!" "Tomou o remédio, vó?" — "Vó", era apenas o que ouvia, a torto e a direito. Até parecia que não tinha nome! Mesmo os filhos, solidários aos netos, a chamavam "vó"! E até os estranhos! Só porque tinha a cabeça branca, os ombros curvos e arrastados os passos, tinha de ser a "vó" de todo o mundo?! Talvez houvesse um pouco de carinho escondido nessas duas letras. Então, não custava nada bisar esse carinho: — Vovó! — tão simples de se dizer, e, tão gostoso de se ouvir! A questão, é que gente jovem tem pressa... prefere os monossílabos e os adultos se aceleram? por imitação.

Só mesmo gente da sua idade a chamava pelo nome: "Dona Maria Adelaide." Tinha saudade de ser Dona Maria Adelaide! Onde andava a gente da sua idade? Nunca mais vira a "vó" do Renatinho... nem o "vô" da Selminha... como é que se chamavam? Como é? Essa história de "vô" e "vó" pega mesmo! Conteve-se: — "Se me pegam falando sozinha, vão dizer que estou mesmo caduca..."

Fechou o álbum de fotografias. Meu Deus, a história de uma vida! Da sua vida! História fragmentada de inúmeros capítulos. Já era hora de pingar o ponto final. Já era hora de encerrar o livro. Olhou a folhinha — 29 de junho, dia de São Pedro. O Santo das chaves, porteiro do céu. Pegou o terço. "Ave Maria, cheia de graça". "Que mundo sem graça, Maria, o de agora!"

Penitenciou-se: "Perdão, meu Deus, estou mudando o sentido das palavras..." Bebeu uma lágrima, sentindo gosto de sal.

Deixou interrompida a Ave Maria, e passou a falar com São Pedro:

"Meu Santo, abra a porta... por favor... não aguento mais esta sala de espera... sou Maria Adelaide, sabe? Deixe-me entrar... Olhe, São Pedro, sou só uma "vó"... uma velha "vó", cansada de viver... só quero um cantinho, "pequenininho", pode ser até menor que o meu quarto... com muitos anjinhos por perto e que caiba nele um tiquinho de amor..."

Fonte:
Carolina Ramos. Interlúdio: contos. São Paulo: EditorAção, 1993.