domingo, 4 de agosto de 2019

Lima Barreto (Hussein Ben-Áli Al-Bálec e Miquéias Habacu)



Antes da conquista francesa, havia, na Argélia, uma família composta de um velho pai doente e seis filhos varões. Desde muito que o pai, devido aos achaques da idade, não se entregava diretamente aos trabalhos da sua lavoura; mas, sempre que o seu estado de saúde lhe permitia, tinha o cuidado de correr as suas terras com plantações, que eram de tâmaras, alfa, oliveiras, laranjeiras, havendo somente uma parte que era destinada à criação de ovelhas, cabras e bezerros. As plantações e a criação estavam entregues a cinco dos seus filhos, pois o mais velho, ele o tinha mandado ao Cairo, para estudar profundamente, na respectiva universidade, a lei do Profeta e vir a ser um ulemá digno e sábio no Corão.

Áli Bâlec Al-Bâlec era o nome desse filho do velho árabe e esteve de fato no Cairo; mas, bem depressa, abandonou o estudo das santas leis de Alá e do Profeta e procurou a sociedade dos infiéis.

Foi ter nas suas aventuras à Grécia, onde se demorou muito tempo e adquiriu dos gregos muitos hábitos, costumes e vícios. Não se pode em confiança dizer que os atuais sejam bem netos dos antigos; mas são aparentados. A finura e sagacidade dos últimos para abstrações filosóficas, para especulações científicas, para a análise dos sentimentos e paixões, do que dão provas as suas obras de filosofia, as suas criações científicas e as suas grandes obras literárias, empregam nos nossos dias os atuais na mercancia, no tráfico, no escambo, em que sempre procuram, com a máxima habilidade e sabedoria enganar não só os estrangeiros, como os seus próprios patrícios.

No Oriente, só há um traficante que não seja enganado pelo grego: é o armênio. Diz-se mesmo lá: o judeu é enganado pelo grego, mas o armênio engana ambos.

Os turcos, de onde em onde, matam estes últimos aos milheiros, não tanto por motivos religiosos, mas por ódio do comprador cavalheiresco, do homem leal e crédulo, que se vê enganado despudoradamente, e sente que não há, no outro que o ludibriou, nenhum princípio de honra, de lealdade, de honestidade, que as relações entre os homens o exigem.

Ali Bálec AI-Bálec, apesar de ser muçulmano, foi atraído para o meio dos gregos e, com eles, aprendeu as suas espertezas, maroscas e habilidades para enganar os outros.

E assim foi que ele andou fora da casa paterna, fazendo o escambo dos mares do Levante, indo de Alexandria para Constantinopla, dai para Jafa, deste porto para Salônica, desta cidade para Corfu, perlustrando todos aqueles mares azuis, cheios de história, de lenda, de sangue e piratas, comerciando e mesmo pirateando quando a ocasião se lhe oferecia.

Ao saber da morte do pai, vendeu logo a faluca (1) que possuía e correu a receber a herança. Coube-lhe uma grande data de terra, coberta de pés de tâmaras, enquanto os irmãos tinham as suas cultivadas com alfa, com laranjeiras, oliveiras e um mesmo recebeu a sua parte em terrenos de pastagens magras, onde pascentavam rebanhos enfezados de ovelhas e cabras.

Todos, porém, ficaram contentes com a partilha e iam vivendo.

Áli Bálec Al-Bálec trouxera como sua mulher uma israelita que renegara o Talmude pelo Corão, mas, apesar disso, tinha o maior desprezo pelos muçulmanos, aos quais considerava grosseiros, convencendo de tal coisa o marido a ponto dele não dar mais importância aos seus próprios irmãos.

Logo ao voltar ainda os atendia e os visitava; mas a mulher lhe dizia sempre:

— Esses teus irmãos são uns brutos! Parecem mochos! Uns bobos! Que sandálias! O pano das suas chechias (2) é barato e sempre está sujo! Deixa-os lá!

Aos poucos, devido aos conselhos de sua mulher, Salisa, da sua insistência, ele deixou de procurar os irmãos, fez-lhes má cara, embora os filhos deles viessem de quando em quando, à casa do tio, para ver o primo Hussein, que se ia criando mais pérfido que o pai e mais orgulhoso que a mãe.

Em pouco, Ali ficou inteiramente convencido da sua imensa superioridade sobre os seus humildes e resignados irmãos.

Por ter na sua sala um tapete de Esmirna, serem as suas armas de aço de Damasco, tauxiadas de ouro, julgava os seus manos, que se tinham habituado á simplicidade e à modéstia, como inferiores, iguais aos das tribos negras que viviam para além do deserto. Julgando-os assim, esquecia-se que, enquanto ele viajava, enquanto ele aprendia aquelas coisas finais, os irmãos plantavam, ceifavam e colhiam, para ele aprender.

Além disso, Ali, como falasse alguns patoás levantinos, julgava-se muito mais que todos os do vilaiete (3) e também, por possuir joias de ouro e pedras caras, valendo muitas piastras, imaginava que tudo podia.

Por esse tempo, chegaram os franceses e o caid (4) apelou para todos, a fim de socorrer o bei (5) com homens e valores. Ali ofereceu uma das joias do seu tesouro e quase por isso foi empalado. O joalheiro do palácio verificou que as joias eram inteiramente falsas e, vindo o bei a saber disso, tomou a cousa como afronta e mandou castigar severamente o doador.

Salisa, sua mulher, ficou, ao conhecer a notícia, no mais completo desespero, não porque o marido estivesse em risco de vida, mas pelo fato que a fortuna representada por aquelas joias não era mais que fumaça.

Ali foi solto e jurou que havia de enriquecer de novo. Aceitou sem resistência a dominação francesa e, com alegria, viu que essa dominação trazia uma grande alta para as tâmaras que o seu terreno produzia prodigiosamente.

Seus irmãos, a seu exemplo, aceitaram os francos e continuaram na sua modéstia, observando muito religiosamente as leis do Corão. Ali, já habituado, em pouco se misturou com os infiéis a quem vendia as tâmaras por bom preço e gastava o grosso do rendimento que ia tendo em bebidas, apesar da proibição do Corão, em orgias com os oficiais e funcionários franceses. Construiu um palácio que ele pretendia parecido com aquele do grande califa. Harum Al-Rachid, em Bagdá, conforme é descrito no livro de histórias da princesa Sherazade.

Vendo que as tâmaras eram muito procuradas pelos francos que, por elas, pagavam bom dinheiro, por toda a parte começaram a plantar tâmaras; os irmãos de Ali, porém, não quiseram fazer tal, pois sabiam por experiência de seu pai, que, desde que houvesse muitas tâmaras para vender e, não se precisando desse fruto para o nosso comer diário, não era possível que muita gente as quisesse comprar tão caro. Abundando tinham que vendê-las mais barato, para atingir e provocar os compradores mais pobres.

Continuaram com a sua alfa, as suas laranjeiras, a pascentar os seus rebanhos, sem nenhuma inveja do irmão que parecia rico e os desprezava.

Os seus sobrinhos, de quando em quando, iam às terras do tio e ele, por ostentação, por vaidade e para mostrar riqueza, lhes dava uma libra turca e as crianças voltavam para casa dos pais, dizendo:

— Tio Ali é que é gente! Tem tudo! Como ele é rico, por Alá!

Os seus pais respondiam:

— Cada um se deve conformar com o que Alá lhe dá! É bom que prospere, pois tem família… Deus é Deus e Maomé é seu profeta.

Veio a morrer Ali, quando as tâmaras começaram a cair de preço. Herdou-lhe os bens, além da mulher, o seu único filho Hussein Ben-Ali Al-Bálec que tinha todos os defeitos do pai aumentados com os de sua mãe.

Era vaidoso, presunçoso, ávido, desprezando os parentes, para os quais era avaro, desprezando-os como se fossem animais imundos e tidos em maldição pelas Leis do Profeta. Com os franceses, entretanto, era mais pródigo do que o pai e fingia ter as suas maneiras e usos.

Nas gazetas que começaram a aparecer em Argel, Hussein Ben-Áli AI-Bálec era gabado e, apesar das leis do Corão proibirem a reprodução da figura humana, uma delas lhe publicou o retrato. As tâmaras começaram a descer; e, como Hussein tivesse notícias que, duas léguas próximas, um outro muçulmano possuía uma grande plantação delas, começou a pensar que era esta que fazia descer o preço das suas.

Em Argel, sobretudo no vilaiete de Hussein, personificam-se sempre os fenômenos e a sutileza de um plantador de tâmaras não pode bem conhecer, apesar de raça árabe, o filigranado das induções da economia política…

Imaginou logo destruir a plantação e mesmo toda aquela que aparecesse na redondeza. Supôs de bom alvitre ir com alguns homens e queimar os coqueiros. O dono certamente queixar-se-ia ao caide às autoridades francas; e seria uma complicação. Homem de expedientes, lembrou-se de conseguir do capitão francês da guarnição, AL-Durand OU Al-Burhant, a destruição do plantio rival. Habitualmente, fez-se amigo do rume, encheu-o de presentes, de festas, de bebidas, pois seguia o exemplo de seu pai nesse tocante; e o “cão do cristão” se fez afinal seu amigo. Um dia, depois de uma festa, o militar, que pisava indignamente a terra onde estavam os ossos do seu pai, após muitas queixas de Ali, apiedado do árabe, apressou-se em ir à plantação do vizinho e castigá-lo. Assim fez, com os seus soldados e os ferozes serviçais de Hussein. Houve queixa; o capitão foi punido; mas o saás de tâmaras não subiu nem meio gourde (moeda).

As suas finanças iam de mal a pior, a casa magnífica ia dando mostras de ruína e os seus móveis e alfaias deterioravam-se com o tempo. Sua mãe não cessava de censurar-lhe pelas faltas que não lhe cabiam. Ela, com aquela arrogância muito sua e inveja também muito sua, repreendia-o:

— Vês: as tâmaras caem de preço e tu não tomas providência alguma. Os meus não são assim… Mas tens o sangue de teu pai… E verdade que teus tios estão vendendo alfa, oliveiras, gado e laranjas e ganham… Se tu não fizeres esforço algum, ficarás como eles, uns macacos a viver em tocas e a dormir em pelegos de cameiro… Xmed, o teu segundo tio, ganhou duzentas piastras em azeitonas e ficou contente. Queres ser como ele?

— Que hei de fazer, mãe?

— Pensa; e não fiques aí a chorar como mulher. Saul chorou? Davi chorou? Só o Deus dos cristãos chorou: Jeová não ama o choro. Ele ama a guerra e o combate, até o extermínio. Lê os livros, os que foram os meus e os teus que são também agora os meus. Lembra-te de Débora e de Judite e eram mulheres!

Hussein Ben-Ali AI-Bálec não podia dormir com a impressão das palavras de sua mãe. O saás de tâmaras continuava a descer de gourde em gourde, e ele só se lembrava de Áli, de Ornar, de todos aqueles de sua raça que as tinham levado em meio século, do Ganges ao Ebro. Mas o saás de tâmaras parecia não temer aquelas sombras augustas e ferozes. Descia sempre.

Certo dia, apareceu-lhe um homem que queria falar a sua mãe, Salisa. Era o irmão dela, Miquéias Habacuc. A irmã e o sobrinho acolheram muito bem tão próximo parente e lhe falaram na baixa das tâmaras que os atormentava. Miquéias, que era homem esperto em negócios, disse para o sobrinho:

— Filho de minha irmã, tens meu sangue, mas não a minha fé nos livros santos da sinagoga; mas teus avós Isaac, Baruc, Daniel, Azaf, Etã, Zabulon, Neftali e tantos outros mandam que eu te auxilie nesse transe da tua vida que é preciosa a eles e a mim, pois ela é deles e também minha. Portanto, tal forem os presentes que tu me fizeres, eu posso purificar-me de ter socorrido um ente que não é de Israel. Dize-o que o rabino me perdoará.

Hussein ficou de pensar e, à noite, conferenciou com sua mãe Salisa.

— Filho, dá-lhe alguns cequins turcos e aquelas joias falsas que quase custaram a morte de teu pai. Porque — ouve bem — o conselho dele pode ser falaz.

Despertando Miquéias, logo Hussein foi ter com ele e propôs-lhe o escambo. O israelita, ao ver as joias, nem olhou mais os cequins. Ficou com os olhinhos fosforescentes de tigre na escuridão. Era como se fosse dar um salto de felino. Contou então ao sobrinho como devia proceder.

— Tu que tens o sangue de minhas avós Micaia, que era da tribo de Jeroboão, e de Azarela, que era da casa de Leedã, ouve, comprarás todas as tâmaras que houver na redondeza, mesmo antes de amadurecerem, ficando elas nos pés. Quando for época de colhê-las, colhe-las-ás todas, guardando em surrões nos armazéns de tua casa e não venderás senão quando te oferecerem um lucro que dê a fartar para gastares…

— Tio amado e sábio: elas não apodrecerão?

— Não importa. As poucas “medidas” em que isto acontecer darão prejuízo, mas tu marcarás o lucro de modo que o cubras.

Hussein Ben-Ali Al-Bálec descansou um instante a cabeça sobre o peito, depois a ergueu de repente e exclamou:

— Falas com a sabedoria do Profeta, Miquéias Habacuc. Que Alá seja contigo!

Miquéias Habacuc, filho de Uriel de Sepetai, não se quis demorar mais e partiu despedindo-se da irmã Salisa e do sobrinho Hussein Ben-Áli AI-Bálec com lágrimas nos olhos, canastras pesadas com os cequins turcos e as joias falsas com que o sobrinho lhe pagara o seu profundo conselho de economia política hebraica.

Hussein fez o que lhe foi aconselhado; e as tâmaras começaram a ter mais oferta de preço. Vendeu-as com grande lucro no primeiro ano; no segundo, se sentia uma certa resistência no mercado, ele as reteve em grande parte; mas, no terceiro ano, ele teve que comprar a produção e viu que ia aumentando o estoque do que, se pode chamar de valorização das tâmaras. Viu bem que se continuasse a comprar a produção, ficaria com ele demasiado aumentado, a sua fortuna comprometida e que fez? Cedeu. As tâmaras começaram a descer gourde a gourde. Teve uma ideia que um sargento francês lhe indicou. Vendo que elas encalhavam nos seus armazéns e os pedidos cresciam lentamente; vendo, pouco a pouco, os seus coquinhos perdendo o valor, alugou alguns gritadores que berrassem, nas ruas de Argel, a guerreira:

— Vivam as tâmaras! Não há cousa melhor que as tâmaras de Hussein Ben-Áli Al-Bálec!

Nas gazetas, ele pagava anúncios das suas tâmaras, mas não vendia mais que dantes. Deu-as de graça e, como toda coisa dada de graça, elas só agradavam desse modo.

Em se tratando de vendê-las, nada! Os surrões de tâmaras aumentavam nos seus armazéns, pois teimava em comprá-las e guardá-las, para que elas não viessem afinal a não valer nada.

O tapete de Esmirna que o pai lhe deixara desfiava-se, empenhou as armas preciosas, também a herança do pai, para comprar mais sacas de tâmaras. Comprou um tapete falso e umas armas vagabundas de um cabila (6) mais vagabundo ainda, para pôr no lugar das antigas preciosidades. Os outros plantadores, que se tinham limitado a colher e vender, iam vivendo das suas modestas plantações; ele, Hussein Ben-Áli AI-Bálec, corria para a ruína certa.

Foi por ai que, novamente, lhe apareceu Miquéias Habacuc, seu tio, homem hábil e esperto nos negócios. Hussein ficou espantado, mas o tio lhe disse:

— Rebento da minha querida irmã, pelo Deus de Abraão, de Israel e de Jacó, não te amedrontes: vendi as joias por um bom preço a um grego, com o que ganhei duas coisas: dinheiro e a glória de ter enganado um cão dessa espécie. Mas, pelo Eterno! Esta ideia de pagar-me o conselho em joias falsas não é tua… Isto tem dedo de pessoa inteiramente da minha raça de Mardoc e Malaquias… Isto é de minha irmã! Não foi tua mãe quem…

— Foi. E que fizeste do dinheiro, tio amado da minha alma; socorro da minha vida?

— Emprestei-o aos turcos com bons juros e quando os cobrei, quase me esfolaram. Muito tem sofrido a raça de Israel; mas o que sofri deles, nem contar te posso — ó descendente do grande Al-Bâlec, companheiro de Musa — conquistador das Espanhas!

Acabava de dizer estas palavras, quando entra no aposento em que estavam Salisa, a feroz Judite, a eloquente Débora — que, ao dar com o irmão, se põe em prantos, exclamando:

— Irmão do coração, sábio Miquéias! Tu que descendes como eu de Micaia, da tribo de Jeroboão, e de Azarela, que era da casa de Leedã, salva-me pelo nosso Deus de Abraão, de Israel e de Jacó — salva-me!

E a feroz Judite e eloqüente Débora chorou não a sua dor, nem a dos outros, mas o dinheiro que se sumia.

Contou, então, Hussein ao tio, como a ruína se aproximava; como a valorização das tâmaras, no começo dando tão bom resultado, viera a acabar, no fim, em desastre completo.

O velho Miquéias, filho de Uriel de Sepetai, coçou as barbas hirsutas; os seus olhinhos luziram naquele quadro de pelos cerdosos; depois, faiscando-os malignamente, perguntou ao sobrinho:

— Com que dinheiro tu, sobrinho meu; com que dinheiro fizeste a operação?

Hussein disse-lhe que fora com o dinheiro dele e o da sua mãe. Miquéias Habacuc, judeu de Salônica, homem esperto e hábil em negócios, sorriu com gosto e demora, dizendo após:

— Tolo que és!

— Por quê?

Habacuc assim falou de súbito, logo imediatamente á pergunta:

— Que me darás em troca pela explicação?

— A última bolsa de cequins de ouro que me resta.

— És generoso e grande, sobrinho meu, filho de Salisa, minha irmã, guarda-a. Ganharemos mais. Fizeste mal em empregar o teu dinheiro e o da tua mãe. Devias empregar o dos outros.

— Como, tio Miquéias?

— Tu não sabes, meu sobrinho, essas operações de câmbio e de banco. Eu as sei. Nós agora vamos organizar a defesa das tâmaras, isto é, impedir que especuladores reduzam à miséria e à desolação esta rica região do Magreb, como dizia o teu grande avô, Al-Bálec. Vamos pedir dinheiro aos seus habitantes, para que não morram de fome e não pereçam à míngua por falta de trabalho.

— Não me darão, tio.

— Dar-te-ão, sobrinho do meu coração; dar-te-ão. Chama teus tios, irmãos de teu pai, e os filhos, e convence-os que devem dar as economias que têm, em moeda, para poderes lutar com os que querem acabar com as plantações de tâmaras do vilaiete. Dize-lhes que se não o fizerem as plantações morrerão, os habitantes fugirão, aqui ficará tudo deserto, sem água e sem pastagens; e os bens deles nada valerão e serão também eles obrigados a fugir, perdendo muito, senão tudo.

— E em troca?

— Tu lhes darás vales que vencerão juros e pagarás os vales em certo prazo.

— Mas…

Nada objetes, meio do meu sangue de Sepetai, mas meu sobrinho inteiramente. Não sabes o que é a cobiça; não sabes o que é querer ter dinheiro sem trabalhar. Eles aceitarão na certa e, não sendo ricos em breve precisarão de dinheiro. Eu vou pôr um “bazar” com o saco de cequins d’ouro que te resta e farei saber que desconto esses vales teus, em dinheiro ou em mercadoria. O pouco dinheiro que tens atrairá o deles, tu comprarás tâmaras, mas pagarás em vales que vencerão o juro de dois por cento, mas que eu descontarei a vinte, trinta e mais por cento.

— Se não quiserem descontar, tio que és sábio como o mais sábio dos ulemás, como há de ser?

— Tens o dinheiro dos teus parentes. Em começo, pagarás tudo em dinheiro. Mas teus parentes, precisando de dinheiro, irão, como te disse, procurar-me. Eu os atenderei imediatamente. A fama correrá e ninguém temerá receber os teus vales.

— Compreendo. E as tâmaras?

— Irás vendendo a bom preço e guardando o dinheiro, deixando que uma grande parte apodreça. Tu viverás na pompa, na grandeza, e um belo dia, em vez de eu descontar vales, adquiro-os com ágio. Toda a gente quererá os teus vales e encheremos as arcas de dinheiro.

— E no fim, no pagamento, como será?

— Marcarás um prazo longo, pela festa do Beirão, e daqui até lá teremos tempo de agir.

Hussein Ben-Áli AI-Bálec empregou todas as lábias que lhe ensinou Miquéias Habacuc. Seus tios e primos entregaram-lhe as economias, pois ficaram muito contentes que ele se lembrasse de defendê-los, de impedir a ser completa a miséria. Tio e sobrinho encheram os simplórios homens de todos os afagos, de todas as blandícias, e iniciaram a defesa das tâmaras, que era a própria defesa do vilaiete.

Um único não quis entregar as terras de pastagem. Foi o tio que herdara as terras de pastagem. Dissera o velho:

— As tâmaras não são do gosto de todo o mundo e as que se colhem são de sobra para os que gostam delas. Hão de se as vender barato por força, pois são demais.

Hussein Ben-Áli AI-Bálec, porém, deu inicio à sua obra de grande eficácia para todo o vilaiete, ostentando uma riqueza, um luxo e uma magnificência que reduziram, fascinaram a imaginação do povo do lugar e das circunvizinhanças.

O seu palácio foi aumentado; as suas estrebarias ficaram cheias de soberbos ginetes do Hedjaz, nas suas piscinas só corriam águas perfumadas — tudo ficou sendo um encanto no seu alcáçar e dependências.

A fama de sua riqueza corria por toda a parte e até, em Argel, a branca, a guerreira, seu nome era falado. Dizia a boca do povo:

— Se todos fossem como Hussein Ben-Ali AI-Bâlec conquistaríamos todo o Magreb, expulsando os rumes.

O seu crédito ficou sendo tal que todo o dinheiro que havia naquelas terras entrou para as suas arcas.

As tâmaras subiram de preço, de fato; mas pouco. Entretanto, enquanto vendia um terço, guardava dous. Miquéias Habacuc exultava, com os descontos que fazia e com o dinheiro que era trazido para as mãos do sobrinho. Só a irmã, a feroz Salisa, temia o fim e perguntava ao irmão:

— Como pagaremos tantos vales, se já gastamos o dinheiro deles e temos mais tâmaras guardadas que vendidas?

— Cala-te, irmã que és minha. Ai é que está a minha grande sabedoria.

O dinheiro amoedado desapareceu e os vales de Hussein corriam como moeda. No começo equivaliam ao seu valor em cequins; mas, bem depressa, para se comprar com eles um saás de trigo, tinha-se de gastar o duplo do que se gastava antigamente. O povo começava a desconfiar, quando veio rebentar a guerra de Abdelcáder, emir de Mascara. Andava ele precisando de homens e víveres. O emir, que sabia do prestígio de Hussein naquele vilaiete, oferece-lhe alguns milhares de libras turcas, para que mandasse homens.

Miquéias, que sabe do caso, intervém, e propõe que o sobrinho aceite, contanto que o emir lhe compre as tâmaras. O emir acede, paga as mil libras turcas, compra as tâmaras de que não precisava.

E Hussein convence os parentes que devem partir para os goums. Para isso falou como um santo marabuto.

Antes da festa do Beirão, época que era marcada para o vencimento dos vales, fugia, com a mãe, a feroz Salisa, o tio Miquéias Habacuc, homem hábil e esperto em negócios — cheios todos de ouro, ricos de apodrecer.

No vilaiete a população caiu na miséria, menos aquele tio de Hussein Ben-Áli Al-Bálec, que não quis entrar na defesa das tâmaras.

Durante muito tempo, pastoreou as suas ovelhas e tosou os seus carneiros. Os seus netos ainda hoje fazem a mesma coisa naquele lugarejo argelino, onde as inocentes tamareiras, se não constituem objeto de maldição, são tidas como simples árvores de adorno.
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Notas (fonte: wukipedia):
(1) Faluca ou Feluca - é um barco à vela tradicional de madeira usado em águas resguardadas do mar Vermelho e Mediterrâneo Oriental, nomeadamente Malta e particularmente no rio Nilo no Egito, Sudão e também no Iraque e na Sicília.

(2) Chechia - é um chapéu tradicional masculino usado por numerosos povos islamizados. É o chapéu nacional da Tunísia. Aparentada com aboina europeia, a chéchia é basicamente um gorro cilíndrico en forma de barrete. É de cor vermelhão na Tunísia, no leste da Líbia e na região de Bengasi (onde é chamada chenna); no resto da Líbia é negro.

(3) Vilaiete - é uma divisão administrativa existente em diversos países africanos e asiáticos. Corresponde ao que em outros países se chama região, província ou estado.

(4) Caid - Na África, designava um notável que acumulava funções administrativas, judiciárias, financeiras e por vezes um chefe tribal.

(5) Bei – é um título nobiliárquico.

(6) Cabila - Os cabilas ou cabildas são um povo berbere que habita tradicionalmente a região montanhosa da Cabília, no nordeste da Argélia.
 

sábado, 3 de agosto de 2019

Varal de Trovas n. 52


Carolina Ramos (O Assobiador)


Largou o cansaço na poltrona do ônibus. Reclinou o encosto ao máximo, estirando as pernas, que ficavam longe de alcançar o apoio convencional. Conformada, fechou os olhos para o ansiado repouso.

Já o veículo resfolegava, puxando fôlego para a longa travessia, quando Solange tomou sentido de que alguém discretamente assobiava no banco traseiro. Apurou o ouvido. Bom assobiador! Reconheceu, de pronto, a melodia: — "Rapaziada do Brás". Evidente que o assobiador não deveria ser jovem, ou a música, certamente, não seria aquela. Acudiu-lhe o nome do autor — Alberto Marino. Vez ou outra, na função de Inspetor, o conhecido maestro visitava o Conservatório onde ela, em tempos estudantis, cursava Música. Recompôs, carinhosamente, a figura saudosa do velho mestre. Sóbrio, discreto, perfeito cavalheiro! Atributos difíceis de serem ainda encontrados. Nos cabelos rebeldes, no nariz proeminente, os traços inconfundíveis da presença de sangue itálico a lhe fervilhar nas veias.

O assobiador prosseguia em plena função alheado, de tudo, sem suspeitar das lembranças inconscientemente despertadas.

Crescia em Solange a curiosidade... mais do que isso, a vontade irresistível de conhecê-lo. Chegou mesmo a ajeitar os cabelos grisalhos, sem contudo encorajar-se, suficientemente, para um olhar furtivo. Um simples virar de cabeça, um inocente encontro de olhos poderiam ser mal interpretados. A idade, a condição, não lhe permitiam tais confusões. Instintivamente, começou a acompanhar, "boca-chiusa", a melodia assobiada com tanta afinação. Outras músicas vieram, num amplo repertório, sempre na mesma linha seresteira, carreando para a ouvinte um mundo de recordações ternas, docemente saudosistas.

Quando o carro parou, Solange esperou, paciente, que a maioria descesse. Na poltrona traseira, o ocupante preparava-se para sair.

Exultou ao ver passar por ela a esperada cabeça branca, portadora de jovial e gaiato boné. Não teve dúvidas! Por intuição, reconheceu, no ato, aquele que lhe amenizara a viagem, improvisando, na lousa do asfalto, a pauta musical por onde haviam deliciosamente deslizado sonhos antigos e lembranças das mais caras.

Quando os olhos de ambos se encontraram, sorriram um para o outro, ao mesmo tempo; como se adrede planejado o bem sucedido encontro.

Ao toque cortês no boné, seguiu-se a gentil indagação:

— "Posso ajudá-la, senhora?"

Sem hesitar, Solange, lisonjeada, entregou a pequena mala ao cavalheiro, dentro da agradável sensação de conhecê-lo desde sempre.

Talvez fosse um dos remanescentes daquela alegre rapaziada do Brás, que um dia inspirara o famoso maestro. Talvez...

Caminharam, lado a lado, conversando animadamente, como bons e velhos amigos.

Sem saber como, nem por quê, Solange pressentiu que sua vida viúva ganhava ritmo e melodia, a partir daquele instante.

Fonte:
Carolina Ramos. Interlúdio: contos. São Paulo: EditorAção, 1993.

II Concurso Ubt São José dos Campos – 6a. Etapa (Trovas Premiadas)


Projeto De Trovas Para Uma Vida Melhor

Grupo 1 –TROVADORES VETERANOS
Nacional/Internacional

 VENCEDORES


 1°
Surpresas demais na entrada?  
Tenha a cautela devida,
pois, na saída apressada,
surpresa é não ter saída.
Messias da Rocha
Juiz de Fora – MG

 2°
Surpresa com teu regresso,
tomada de insensatez,
as consequências não meço...
e me apaixono... outra vez!
Élbea Priscila de Sousa e Silva
Caçapava – SP

 3°

Com gratidão e surpresa,  
abro-me a cada manhã:
Que em mim renasça a certeza
que a esperança não é vã!
Janilce Simões
Campos dos Goytacazes – RJ

 MENÇÃO HONROSA

 1°
Surpresa será o dia  
em que o planeta, afinal,
tiver sinos, na alegria,
badalando: paz global!
Wanda de Paula Mourthé
Belo Horizonte – MG

 2°

Surpresa está na investida
de cada dobra de esquina,
na caminhada da vida
o destino nos ensina.
Cláudio de Cápua
Santos – SP

 3°

Voltaste!!! – E, em meio à tristeza,
à solidão e à saudade,
tamanha foi a SURPRESA,
que... eu custo a crer que é verdade!!!
Maria Madalena Ferreira
Magé – RJ

 4°

Não foi surpresa o ciúme,
que você mesma gerou,
ao passar o seu perfume,
em meu corpo e não lembrou...
Ailson Cardoso de Oliveira
Magé – RJ

 5°

Lembro a mais bela surpresa
já faz algum tempo, sim...
O envelope sobre a mesa
e um filho dentro de mim.
Silvia Maria Svereda
Irati – PR

MENÇÃO ESPECIAL
 1°

Atitude emocionante,
que encerra tanta beleza,
é a do filho distante,
que chega, assim, de surpresa!
Leonilda Yvonneti Spina
Londrina – PR

 2°

É sempre assim, a certeza,   
que a vida é um constante embate,
em que a Morte, de surpresa,
sempre aplica um Xeque-mate!
Gilvan Carneiro da Silva
São Gonçalo – RJ


Nossa vida vive presa
a acertos e desatinos
e de surpresa em surpresa,
cumprimos nossos destinos!
Carolina Ramos
Santos – SP

 4°

A vida é longa e vagueia
nas venturas e tristezas
que o tempo nos presenteia
numa caixa de surpresas...
Ana Cristina
São Paulo – SP

 5°

Quase sempre é uma surpresa,
quando a trova sai bonita!
De onde vem tanta beleza?
– É a inspiração quem a dita!
Olinda da Silveira
Atibaia – SP

DESTAQUE


Se olharmos a natureza
que nos deu o grande Esteta,
todo dia há uma surpresa
que inspira todo poeta.
Nei Garcez
Curitiba - PR

 2°

Se quiser fazer surpresa, 
quando alguém lhe bate à porta,
divida o que tem à mesa,
seja quem for, não importa!
Romilton Faria
Juiz de Fora – MG

 3°

Maravilhosa surpresa, 
quem sabe um milagre até:
rezando na mesma mesa
fiéis de diversa fé.
A. A. de Assis
Maringá – PR

 4°

Quão agradável surpresa,
sonho acontecer um dia:
todos terem pão na mesa,
todos terem moradia.
Jessé Nascimento
Angra dos Reis - RJ


Não é nenhuma surpresa,
tantos danos naturais…
É a triste mãe natureza
nos revelando os seus ais!…
Edy Soares
Vila Velha – ES


 ~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~

Grupo 2 – NOVOS TROVADORES

Nacional/Internacional

VENCEDORES

 1.º

É quando os bravos se deitam
— descuidando a fortaleza —
que os covardes se aproveitam
para atacar de surpresa.
André Foltran
São José do Rio Preto – SP

 2.º

A vida de todo mundo
é uma caixa de surpresa.
Mas, abrindo-a tem no fundo:
a morte, como certeza.
Maria Dulce  Esteves  da  Carvalheira
Recife – PE

 3.º

Grata surpresa seria        
ver o mundo bem mudado:
os homens em harmonia,
deixando guerras de lado.
Lúcia Edwiges Narbot Ermetice (Lu Narbot)
Campinas – SP

 MENÇÃO HONROSA

 1°

A luz do vencer acesa 
ao lutador sempre diz:
que nunca terá Surpresa,
quem luta pra ser feliz!
Henrique Eduardo Alves Pereira
Ocara – CE

MENÇÃO ESPECIAL


Saia hoje do marasmo,
deixe a surpresa entrar;
Viva a vida de entusiasmo,
pra a alegria se instalar!
Irene Curcelli
São Paulo – SP

 2°

Um pedido e uma flor
de surpresa, num momento,
torna mágico o amor
e termina em casamento.
Caterina Balsano Gaioski
Irati – PR

 DESTAQUE:

 1°

Nada supera na vida 
grata surpresa em saber,
que Deus nos dará a guarida:
na velhice, um neto ter.
Regina Rinaldi
Pariquera-Açu – SP

 2°

Se é surpresa, não se irrite,
boa ou má, inesperada.
É bem pior acredite,
uma vida estagnada!
Silvio Romero Ribeiro Tavares
Campinas - SP

~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~

Grupo 3 – LÍNGUA ESPANHOLA

Nacional/Internacional

 VENCEDORES:



La sorpresa de mi vida
me la brindó mi señora,
fue cosa al fin conseguida,
la gravidez que atesora.
José Héctor Rodríguez

 2º

Jesús divino en tu Gracia
perdonaste mis pecados...
¡De sorpresa a mí me sacia
al mar han sido arrojados.!
Libia Carciofetti

 3º

Hijo:  Dame la sorpresa,
quiero saber que tu vida
crece en esfuerzo y grandeza
porque ya ha sido construida.
Azucena de los Ángeles Farías Hernández.

 MENCIÓN HONROSA

 1°

Fue una sorpresa encontrar
el camino verdadero.
Cuando estoy frente al altar
yo le rezo a quien más quiero.
Luis Enrique Fernández Ruiz

 2°

Esa sí que fue sorpresa
por ninguno imaginada.
Sin tu amor me sentí presa
y vuelves como si nada.
Hilda Augusta Schiavoni


La sorpresa del milagro
llenó de sol mis lamentos.   
A Dios entero consagro
maravillosos momentos.
María Cristina Fervier


Vaya sorpresa que tuve
al pensar en mi existencia,
me miré en la triste nube
y así descubrí mi esencia...
Francisco Hernández Zamora


La sorpresa es emoción
sentir que  llega a mi vida,
con sonido de canción
bella ilusión ya perdida.
Consuelo Sánchez Mazzini

MENCIÓN ESPECIAL


Sorpresa es cual tempestad
de dolor o de alegría
que afecta la humanidad
y al vivo ser día, a día.
Héctor José Corredor Cuervo


No es sorpresa que la Tierra,
manifieste descontento.
Ya no quiere sufrir guerra,
ni más daño ni tormento.
Verónica Quezada Varas


Ver a mi amor yo quería
mas la distancia se opuso.
¡Oh! Sorpresa la del día
que volverla a ver dispuso!
Carlos Rodríguez Sánchez


Sorpresa es la musa mía
que con su alegre sonrisa
mi vida, día por día,
me llena de fresca brisa.
Mercedes Eleine González


Con motivo o sin motivo
da una bonita sorpresa,
te sentirás feliz, vivo,
y además, abraza y besa.
Juan Fran Núñez Parreño

MENCIÓN DESTAQUE

 1°

Todo se suma a la vida
atenderla con sorpresa,
si se le ve enriquecida
muchas dichas nos expresa.
Bella Clara Ventura


La vida es un carrusel
que gira entre odio y nobleza
en su oculto carretel
siempre esconde una sorpresa.
Elena Pahl


Poeta sin ser sorpresa
en sus letras hay amor,
a este mundo le profesa
simpatía con ¡honor!
Elio Claro Gómez


Ve la cajita en tu mesa
es chiquita y de latón
si miras bien es sorpresa
dentro está mi corazón.
Violeta Briones Gutiérrez


La jubilosa sorpresa
de tus anhelados besos
cumplen aquella promesa
de dulces sueños traviesos
Livia Josefina Herize
~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~

TROVADORES JULGADORES EM LÍNGUA PORTUGUESA
JUECES CALIFICADORES EN ESPAÑOL


* Arlindo Tadeu Hagen
* Francisco Lopes
*José Ouverney
* Professor Garcia
* Therezinha Brizola
* Talita Batista
* María Sánchez Fernández
* Jaime Hoyos Forero
* Andrik Bannack Alvarez
* Amayel Flores Rosas


Fonte:
Mifori

sexta-feira, 2 de agosto de 2019

Varal de Trovas n. 51


Arthur de Azevedo (Caiporismo)


Naquele dia o Ladislau entrou em casa radiante e alegre. A sua cara-metade, não habituada a isso, perguntou-lhe se tinha visto passarinho verde.

– Não, não vi passarinho verde, mas calcula que… Ainda me parece um sonho!…

– Mas que foi, homem de Deus?…

– Tu sabes que eu sou o maior caipora em tudo quanto é jogo… Em Caxambu – lembras-te? – todos ganhavam, menos eu, e o processo era muito simples: jogavam onde eu não jogava. Bastava que eu pusesse uma fichazinha num número para que ele ficasse abandonado pelos demais pontos! Já toda a gente sabia que o diabo do número não safa nem a cacete!

– Mas que te aconteceu? Estou morta de curiosidade! Tiraste algum prêmio na loteria?

– Oh, a loteria!… a loteria é outra!… Bem sabes que ainda não me foi dada a satisfação de comprar um bilhete e tirar, não a sorte grande,  não um prêmio qualquer, mas o mesmo dinheiro! Não sei o gosto que isso tem!.

– Na realidade és muito caipora.
 
– E os bichos? Se jogo na borboleta, dá o elefante; se arrisco cinco ou dez mil-réis na águia, é contar que sai o burro!… Sempre contrastes!… sempre antíteses!…

– Mas não me dirás?. .

– O Balisa, aquele alfaiate da Rua do Ouvidor, que me fez o terno marrom – sabes? -, organizou um “club de roupas” a cinco mil-réis por semana, e instou comigo para que eu entrasse. Entrei, paguei a primeira prestação, e saiu o meu número! Comprei por cinco mil-réis um terno que vale duzentos!

– Deveras?

– É o que te digo! Já tomei medida! Desta vez não fui caipora!… Ainda bem! O Balisa pediu-me que continuasse, e eu continuei: paguei já a primeira prestação para outro terno.

Três meses depois desse diálogo, o Ladislau já tinha pago integralmente os duzentos mil-réis do segundo terno, e o alfaiate não lhe dera ainda o primeiro: desculpava-se com o mestre da oficina, com a grande quantidade de roupa que tinha a entregar, e hoje-amanhã, hoje-amanhã, passaram-se dias, semanas, e nada…

Um dia o Ladislau saiu de casa disposto a zangar-se com o Balisa: se não tivesse para ali os ternos, ou pelo menos um, faria um tempo quente! Pois se estava tão precisado de roupa!

Mas qual foi a sua surpresa quando, ao chegar à loja, encontrou a porta fechada.

Um vizinho informou-o de que o alfaiate morrera falido e na miséria, sem ter em casa fazenda que chegasse para a terça parte dos ternos que devia.

E o Ladislau se convenceu de que ter apanhado calça, colete e paletó por cinco mil-réis foi ainda uma pirraça do seu medonho caiporismo.

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos.

Antonio Cabral Filho (5. Colar de Trovas)


01
"Mês  de maio chega ao fim
mas a greve continua.
Quem não quer comer capim
solta a voz e vai pra rua."
Antônio Francisco Pereira (MG)

02
Solta a voz e vai pra rua,
dar a contribuição,
fazer a parte que é  sua
para haver transformação.
Antonio Cabral Filho (RJ)

03
Para haver transformação
soltar o pau da barraca,
ir pras ruas com emoção.
Assim ninguém nos aplaca.
Madalena Cordeiro (ES)

04
Assim ninguém nos aplaca
assim ninguém nos atura,
assim ninguém nos ataca,
assim ninguém nos segura.
Antonio Cabral Filho (RJ)

05
Assim ninguém nos segura
ir pra as ruas reivindicar,
termos jogo de cintura
para um país transformar.
Madalena Cordeiro (ES)

06
Para um pais transformar,
preciso da Aparecida,
Evaneide... pra lutar
por tudo que é bom na vida.
Antonio Cabral Filho (RJ)

07
Por tudo que é  bom na vida
eu conto com a Madalena,
pois a mulher decidida
não é medalha pequena.
Antonio Cabral Filho (RJ)

08
Não é medalha pequena:
quem tiver-me em suas mãos,
sabe que sou  Madalena:
fortuna dos cidadãos.
Madalena Cordeiro (ES)

09
Fortuna dos cidadãos
é a paz no coração.
Quem tem amor dos irmãos
tem total abolição.
Antonio Cabral Filho (RJ)

10
Tem total abolição
quem semeia liberdade,
quem vê no outro um irmão
e colhe felicidade.
Antonio Cabral Filho (RJ)

11
E colhe felicidade
aonde você plantou
mãos que semeia  bondade
e chora com quem chorou.
Madalena Cordeiro (ES)

12
E chora com quem chorou
e sorri com quem sorriu
e ao irmão abraçou
é uma pessoa gentil.
Madalena Cordeiro (ES)

13
Uma pessoa gentil
faz o bem sem ver a quem,
Não incendeia o pavio
pois está sempre de bem.
Antonio Cabral Filho (RJ)

14
Ela está sempre de bem
porque cultiva o melhor,
não se troca por vintém,
jamais está na pior.
Antonio Cabral Filho (RJ)
15
Jamais está na pior
e isso seja quem for
esse é seu bem maior
e porque faz com puro amor.
Madalena Cordeiro (ES)
16
E porque faz com puro amor
tudo na vida dá certo
e até vira doutor
e nada ficará incerto.
Madalena Cordeiro (ES)
17
E nada ficará incerto
pra quem tem meta na vida,
não espirra no deserto
nem dá viagem perdida
Antonio Cabral Filho (RJ)

18
Aí dá viagem perdida
porque sabe planejar,
pois pessoa precavida
não acena à beira-mar.
Antonio Cabral Filho (RJ)

19
Não acena à beira- mar
é poesia de amor,
corpo a corpo a se abraçar,
será sempre um esplendor.
Madalena Cordeiro (ES)
20
*Sempre será um esplendor*
Você todinha pra mim,
com o tempo a todo vapor,
mês de maio chega ao fim.
Antonio Cabral Filho (RJ)

Fonte: trovadoresdobrasil.blogspot.com

Francisca Júlia (A Iara)


(Lenda tupi)

Rio abaixo descia a veloz Iara impelida pelo remo. Um moço tapuio, belo como os mais belos da sua tribo, robusto e valente, cantava à proa, a meia voz, uma canção melancólica, em que dizia os combates que ferira contra as tribos inimigas, as mágoas que sofrera longe dos seus, nas perigosas caçadas pelo sertão bravio.

A igara corria. As águas espumavam em torno.

A tarde ia descendo. Uma tristeza crepuscular invadia as várzeas. Pássaros selvagens recolhiam-se em bando, vagarosamente, as asas abertas, cortando o ar em longos e regulares giros.

O sol há muito tinha caído. A lua, do alto, espiava, destacando-se na transparência do azul como uma mancha luminosa.

"Tapuio, tapuio! volta a tua canoa, corta a correnteza das águas, foge e entra na taba dos teus pais antes que a noite chegue.

Durante a noite, sob a claridade pálida da lua, a Iara aparece à flor d'água. Ela tem os cabelos loiros como as barbas do milho; os dentes brancos como o granizo que cai com as grandes tempestades; os olhos azuis como o céu nas madrugadas do estio.

Não te aproximes dela, tapuio! Em seu palácio encontrarás a morte. Foge, tapuio, foge!"

A Iara, à tona do rio, o corpo envolvido na onda dos cabelos de ouro, a cabeça airosa apoiada numa das mãos, tem os olhos fixos no céu, embevecida na contemplação dos astros.

Há um grande silêncio. As folhagens estão mudas; a viração que passa é tão leve, tão branda, que as roça apenas sem as agitar.

A igara continua a correr, rio abaixo, impelida pelo remo.

A Iara canta:

"Nunca olhos humanos fitaram beleza igual à minha. Minha boca é perfumosa como a flor do vale rociada da neblina matinal.

Todas as noites, à flor d'água, acordo o silêncio da mata com as sonoridades do meu canto. E quando o sono me vence e me vai obrigando a fechar as pálpebras, desço ao meu palácio de ouro, que fulgura no fundo do rio, onde se acumulam os maiores encantos da terra."

O tapuio apareceu.

Aproximou-se cada vez mais, os olhos presos na Iara, fascinados de admiração e espanto, deslumbrados de encantamento.

Prevendo o perigo a que se expunha e a morte horrível, tentou, com um movimento rápido do remo, voltar a proa da igara e fugir. Era tarde. Seus músculos estavam frouxos, seus braços pendiam amolecidos de cansaço. E a Iara foi-se chegando a ele, resvalando de onda em onda...

O tapuio resiste. Ela agarra-o, envolve-lhe o corpo na túnica longa dos cabelos, e leva-o para o fundo do rio. As águas abriram-se, espumaram, fecharam-se sobre os dois e foram escorregando pelas várzeas em flor.

Fonte:
Francisca Júlia. Livro da Infância. Revisão ortográfica: Iba Mendes.

quinta-feira, 1 de agosto de 2019

Antonio Carlos de Barros (Nada Supera a Paz que a Natureza Nos Oferece)


Quando criança sonhava morar em uma fazenda, onde pudesse tirar leite da vaca, andar a cavalo, ter e criar meus animais, plantar e cuidar da plantação. Gosto até hoje de ouvir e de falar sobre pássaros, de rio, do mato. Em meu pátio planto somente árvores frutíferas, que além de colher das frutas diretamente nas árvores, servem de alimentos também a toda espécie de pássaros e aves. Como é bom despertar com o canto do sabiá.

À noite, o céu todo estrelado, quantos cometas incandescentes eu vi, e muitos pedidos fiz, não sei quantos foram realizados, mas até hoje, quando vejo, continuo a pedir. Acho essa tradição, fantástica, jamais abandonarei o desejo de um pedido repontar.

Às vezes me pergunto: “Será que existem pessoas que ainda sonham?” Será que esse homem perdeu a razão de ser, de sonhar? Devemos ouvir mais o nosso coração, guiar-nos pela nossa consciência e não pelos outros. Devemos ser fortes o suficientes para conservar e preservar nossos princípios espirituais em defesa da natureza, do mundo e da vida.

Como seria lindo se pudéssemos nos visitar como antigamente, reunir-se seguidamente, contar causos, piadas, dar risadas, churrasquear, comemorar a vida. Como seria bom que “nesse lugar” se respirasse amor, a confiança, a sinceridade, por toda parte encontrarmos corações bondosos e amigos caridosos.

Ainda restam esperanças. Soltem as crianças que ainda habitam em vocês, dê vez e voz, cantem, dancem, libertem essas crianças para que possam pisar na grama, escalar árvores, comer frutas direto do pé, se sujar de lama, nadar nos rios, brincar areia do mar, cuidar das plantas e dos bichos, brincar com outras crianças, falarem sozinhas, possuírem a inocência de um mundo livre e sem preconceitos, e que tudo isso existe e que pode fazer parte do seu imaginário.

Se garantirmos, às crianças, o brincar livre e espontâneo, abriremos a roda da ciranda do amanhã, para uma sociedade mais justa, fraterna, de pessoas livres, alegres e criativas, que saberão ousar, criticar, reconstruir e descobrir formas inéditas de se viver e ser feliz.

Gostaria de falar mais sobre essas maravilhas da natureza. Da paz que sentimos aqui, do verde das árvores e das gramíneas.  De dizer que ainda existe um lugar e que esse lugar, existe, e hoje, faz parte da minha própria vivência.

O poeta Ivo Bairros Brum escreveu esse poema maravilhoso, e o cantor e compositor Miguel Marques fez a melodia que para nós é um Hino: Ainda Existe um Lugar. Música de grande sucesso em todo o Rio Grande do Sul e em outros Estados. Tive o prazer e muito orgulho de escrever na contracapa do LP do Miguel Marques, onde consta essa linda melodia. Vejam a letra e na internet vários cantores interpretam essa música. Recomendo ouvirem na própria voz do Miguel Marques.

Ainda Existe um Lugar
(Ivo Bairros Brum e Miguel Marques)

Venha sentir a paz que existe aqui no campo
O ar é puro e a violência não chegou
O céu bem limpo e muito verde pela frente
E uma vertente que ainda não se contaminou.
Pela manhã o sol nascente vem sorrindo
E os passarinhos cantam hinos no pomar
O chimarrão tem um sabor de esperança
E a criança traz um futuro no olhar.
De tardezita tem os banhos no riacho
Jogo de truco junto à sombra do galpão
Uma purinha que faz rima com outro mate
E um cão que late contra o guacho no oitão.
O anoitecer nos apresenta mais estrelas
Entre o silêncio que da paz para o luar
De vez em quando um cometa incandescente
Se faz presente pra um pedido repontar.
Aqui a verdade ainda reside em cada alma
Se aperta firme quando alguém estende a mão
Se dá exemplo de amor, fraternidade
Aos da cidade que não sabem pra onde vão.

Fonte:
Colaboração do autor

II Concurso Internacional de Trovas da Guatemala 2019 (Resultado Final)



Troféu Flavio Herrera Hernandez
Tema: BENFEITOR

VENCEDORES

1º Lugar
Não há nobreza nos gestos
de quem se diz benfeitor,
e joga aos pobres os restos
fingindo espalhar o amor.
Edweine Loureiro da Silva
Saitama/Japão

= = = = = = =

2º Lugar
Pela brilhante missão
que executa o professor,
no "crescer" de uma nação
ele é o maior benfeitor.
Mário Moura Marinho
Sorriso/MT

= = = = = = =

3° Lugar
Se o que basta ao benfeitor
bastasse ao mundo também,
haveria mais amor,
vencendo o mal com o Bem !
Ana Maria Guerrize Gouveia
Santos/SP

= = = = = = =

4º Lugar
Quem se doa pela paz,
pelo amor, pela verdade,
é, por tudo que ele faz,
benfeitor da humanidade.
Jessé Fernandes do Nascimento
Angra dos Reis/RJ

= = = = = = =

5º Lugar:
O plantio mais fecundo
vem das mãos do benfeitor
que esparrama pelo mundo
sementes cheias de amor.
Maurício Cavalheiro
Pindamonhangaba/SP

= = = = = = =

MENÇÃO HONROSA
1º Lugar:

Quando o benfeitor reparte
as sementes de grandeza;
aos irmãos devolve a parte,
que os liberta da pobreza!
Luiza Nelma Fillus
Irati/PR

= = = = = = =

2º Lugar:
Deus pôs no amor tanta essência,
que, o seu grande Benfeitor,
não permite que a ciência
ponha limites no amor!
Professor Garcia
Caicó/RN

= = = = = = =

3º Lugar:
A mão amiga revela,
o que um benfeitor produz.
Vela que acende outra vela,
expande o facho de luz.
José Almir Loures
Astolfo Dutra/MG

= = = = = = =

4º Lugar:
Gutenberg, o inventor,
 benfeitor de seus irmãos,
 deu vida ao Homem Leitor,
 pondo o livro em suas mãos.
César Augusto Ribas Sovinski
Curitiba/PR

= = = = = = =

5º Lugar
Em troca nada pedindo
 nem recompensa de alguém;
 o benfeitor vai seguindo
 adiante,fazendo o bem !
Mariângela da Silva Santos
Saquarema/RJ

= = = = = = =

MENÇÃO ESPECIAL

1º Lugar

Será sempre o professor
a formar um cidadão.
Ele é o maior benfeitor
de toda grande nação !
Maria Aparecida Ferreira de Vasconcelos
Santos/SP

= = = = = = =

2º Lugar
O poeta trovador,
muito mais que ser poeta,
é do mundo um benfeitor
com as trovas que arquiteta!
José Manuel Veloso Galvão
São Paulo/SP
= = = = = = =


3º Lugar
Com sua penicilina,
achada, com acuidade,
Fleming foi, na medicina,
benfeitor da humanidade.
Nei Garcez
Curitiba/PR
= = = = = = =

4º Lugar:

O Benfeitor agradece,
 o sorrir de quem ajuda
Não cobra e faz uma prece,
 quando uma vida ele muda!
Edite Rocha Capelo Cidade
Santos/SP
= = = = = = =

5º Lugar:
 Benfeitor, defende os pobres,
não importa a cor de alguém,
com amor e gestos nobres,
só pensa em fazer o bem!
Ailson Cardoso de Oliveira
Magé/RJ

_________________________________

Comissão Julgadora
A. A. de Assis
Clenir Neves Ribeiro
Clênio Borges

Fonte:
Maria Luíza Walendowski

Caldeirão Poético XXIX



ALPHONSUS DE GUIMARAENS
(1870-1921)

CAVALEIRO FERIDO


O pesar de não tê-la encontrado mais cedo,
De não ter visto o sol quando havia esperança!
Som flébil, ástreo som da alma de um citaredo,
Porque vos não ouvi quando ainda era criança?

Quantas vezes o luar me sorria em segredo,
Quantas vezes a tarde era serena e mansa!
E o horizonte ante mim ressurgia tão ledo,
Que eu dizia: "Mas que anjo entre as nuvens avança?"

Hoje, depois de velho, e tão velho, mais velho
Que uma figura antiga e doce do Evangelho,
É que entre astros, trilhando o azul claro, a encontrei...

E pude, contemplando o sol da sua face,
Atirar a seus pés, para que ela os pisasse,
Meus andrajos de pobre e meu manto de rei...
_________________________________________

ANÍBAL TEÓFILO
(1873-1915)

A CEGONHA


Em solitária, plácida cegonha,
Imersa num cismar ignoto e vago,
Num fim de ocaso, à beira azul de um lago,
Sem tristeza, quem há que os olhos ponha?

Vendo-a, Senhora, vossa mente sonha
Talvez, que o conde de um palácio mago
Loura fada perversa, em tredo afago,
Mudou nessa pernalta erma e tristonha.

Mas eu, que em prol da luz, do pétreo, denso
Véu do Ser ou Não-Ser tento a escalada,
Qual morosa, tenaz, paciente lesma,

Ao vê-la assim mirar-se n'água, penso
Ver a Dúvida Humana debruçada
Sobre a angústia infinita de si mesma.
_________________________________________

ANTÔNIO SALES
(1868-1940)

A GARÇA


Vede-a tão alva, tão esbelta e pura!
Há qualquer coisa de melancolia
Na grave e abandonada compostura
Com que do lago a linfa clara espia.

Um peixinho, decerto, não procura
Para matar a fome, pois dir-se-ia
Que intenta apenas refletir a alvura
Da formosa plumagem na água fria.

Mas talvez que não seja por vaidade
Que contempla o seu vulto, atentamente,
Com esse olhar de infinda suavidade...

Quem sabe se, ao mirar-se, a garça albente
Não pensa, num transporte de saudade,
Em outra garça desejada e ausente?
_________________________________________

EMÍLIO DE MENESES
(1867-1918)

O VIOLINO


São, às vezes, as surdinas
Dos peitos apaixonados
Aquelas notas divinas
Que ele desprende aos bocados...

Tem, ora os prantos magoados
Dessas crianças franzinas,
Ora os risos debochados
Das mulheres libertinas...

Quando o ouço vem-me à mente
Um prazer intermitente...
A harmonia, que desata,

Geme, chora... e de repente
Dá uma risada estridente
Nos "allegros" da Traviata.
_________________________________________

FRANÇA PEREIRA
(1870-1925)

NO HARÉM


Como um broche de púrpura e de opala,
O sol fuzila na Sublime Porta,
E, à luz do dia, murmura, trescala,
No alto, o perfume da Bizâncio morta.

Cem odaliscas, que o sultão transporta
Da Circássia, do Egito e de Bengala,
Entram nuas no banho, à vista absorta
De cem núbios que, em armas, fazem ala.

Pompeia o harém na lúbrica loucura
Dos torsos nus, dos colos e das ancas
Hirtas, na febre das lascivas mágoas.

Somente Djáli, a indiana altiva e pura,
Salta, velando as rijas pomas brancas,
No âmbar gelado das cheirosas águas.
_________________________________________

JÚLIA CORTINES
(1868-1948)

O LAGO


Um pouco d'água só e, ao fundo, areia ou lama,
Um pouco d'água em que, no entanto, se retrata
O pássaro que o voo aos ares arrebata
E o rubro e infindo céu do crepúsculo em chama.

Água que se transmuta em reluzente prata,
Quando, no bosque em flor, que as brisas embalsama,
A lua, como uma áurea e finíssima trama,
Pelos ombros da noite a sua luz desata.

Poeta, como esse lago adormecido e mudo,
Onde não há, sequer, um frêmito de vida,
Onde tudo é ilusório, e passageiro é tudo,

Existem, sobre um fundo, ou de lama ou de areia,
Almas em que tu vês, apenas, refletida
A tua alma, onde o sonho astros de ouro semeia!
_________________________________________

JÚLIO SALUSSE
(1872-1948)

CISNES


A vida, manso lago azul, algumas
Vezes, algumas vezes mar fremente,
Tem sido para nós, constantemente,
Um lago azul sem ondas, sem espumas.

Sobre ele, quando, desfazendo as brumas
Matinais, rompe um sol vermelho e quente,
Nós dois vagamos indolentemente,
Como dois cisnes de alvacentas plumas.

Um dia, um cisne morrerá, por certo.
Quando chegar esse momento incerto,
No lago, onde talvez a água se tisne,

Que o cisne vivo, cheio de saudade,
Nunca mais cante nem sozinho nade,
Nem nade nunca ao lado de outro cisne!
_________________________________________

PADRE ANTÔNIO TOMÁS
(1868-1941)

EVA


Cantam-lhe n'alma ainda as sedutoras
Finais palavras do inimigo astuto:
- "Se o houveras provado um só minuto,
Deusa, decerto, e não mulher tu foras",

E desprezando as iras vingadoras
Do céu, estende o braço resoluto
E colhe o belo, rubicundo fruto
De estranho cheiro e formas tentadoras.

Nas mãos o preme e, quando o vai partindo,
Se lhe esguicha da polpa sumarenta
O róseo mosto sobre o seio lindo.

E em cada poma fica-lhe estampado
Um vivo timbre dessa cor sangrenta,
Como as insígnias rubras do pecado.

Carlos Drummond de Andrade (Caso de Menino)


— Quer esse menininho para o senhor? Pode levar.

Aconteceu no Rio, como acontecem tantas coisas. O rapaz entrou no café da rua Luís de Camões e começou a oferecer o filho de seis meses. Em voz baixa, ao pé do ouvido, como esses vendedores clandestinos que nos propõem um relógio submersível. Com esta diferença: era dado, de presente. Uns não o levaram a sério, outros não acharam interessante a doação. Que iriam fazer com aquela coisinha exigente, boca aberta para mamar e devorar a escassa comida, corpo a vestir, pés a calçar, e mais dentista e médico e farmácia e colégio e tudo que custa um novo ser, em dinheiro e aflição?

— Fique com ele. É muito bonzinho, não chora nem reclama. Não lhe cobro nada…

Podia ser que fizesse aquilo para o bem do menino, um desses atos de renúncia que significam amor absoluto. O tom era sério, e a cara, angustiada. O rapaz era pobre, visivelmente. Mas todos ali o eram também, em graus diferentes. E a ninguém apetecia ganhar um bebê, ou, senão, quem nutria esse desejo o sofreava. Mesmo sem jamais ter folheado o Código Penal, toda gente sabe que carregar com filho dos outros dá cadeia, muita. Mas o pai insistia, com bons modos e boas razões: desempregado, abandonado pela mulher. O bebê, de olhinhos tranquilos, olhava sem reprovação para tudo. De fato, não era de reclamar, parecia que ele próprio queria ser dado.

Até que apareceu uma senhora gorda e topou o oferecimento:

— Já tenho seis lá em casa, que mal faz inteirar sete? Moço, eu fico com ele.

Disse mais que morava em Senador Camará, num sobradão assim assim, e lá se foi com o presente. O pai se esquecera de perguntar-lhe o nome, ou preferia não saber. Nenhum papel escrito selara o ajuste; nem havia ajuste. Havia um bebê que mudou de mãos e agora começa a fazer falta ao pai.

— Praquê fui dar esse menino? — interroga-se ele. Chega em casa e não sabe como explicar à mulher o que fizera. Porque não fora abandonado por ela; os dois tinham apenas brigado, e o marido, no vermelho da raiva, saíra com o filho para dá-lo a quem quisesse.

A mulher nem teve tempo de brigar outra vez. Correram os dois em busca do menino dado, foram ao vago endereço, perguntaram pela vaga senhora. Não há notícia. No estirão do subúrbio, no estirão maior deste Rio, como pode um bebê fazer-se notar? E logo esse, manso de natureza, pronto a aceitar quaisquer pais que lhe deem, talvez na pré-consciência mágica de que pais deixaram de ter importância.

E o pai volta ao café da rua Luís de Camões, interroga um e outro, nada: ninguém mais viu aquela senhora. Disposto a procurá-la por toda parte, ele anuncia:

— Fico sem camisa, mas compro o menino pelo preço que ela quiser.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 historinhas.

terça-feira, 30 de julho de 2019

Varal de Trovas n. 50


Alba Krishna Topan Feldman (O Que Perdemos na Cidade Grande)


Há belezas que perdemos quando estamos longe da natureza. Algo que muitos poucos percebem e muito menos ainda valorizam.    '

Perdemos o som doce dos riachos, o canto dos pássaros durante o dia, o pio da coruja, o bater das asas dos morcegos e o coaxar dos sapos no beira dos charcos à noite. Tudo isso perdemos.

Nossa vida é cinza porque perdemos o verde das matas, o azul dos rios ou o dourado dos lagos quando o sol se põe, no final de mais um dia abençoado, Perdemos o azul do céu, mais límpido e das nuvens de algodão, com suas formas tão diversas e agradáveis que poderíamos dizer que elfos descuidados brincam de criar e destruir figuras de animais s pessoas no céu.

Perdemos a noite com sua lua majestosa, tão cantada em prosa e verso, com seus milhares de estrelas, a Via-Láctea, caminho que se estende para os sonhadores, enamorados e estudiosos por ele caminharem.

Perdemos os animais em seu habitat, livres como todos devem ser. Cada qual com seu grupo ou sozinho, com seus amigos e inimigos. Alguns que convivem com o homem. Outros sobrevivem no meio das matas, teimando ainda em superar a ganância e o egoísmo tão humanos.

Perdemos a beleza e o valor das plantas, o perfume que emana das flores, com sua explosão de cores e formas variadas,

Perdemos o sabor de uma fruta colhida na árvore que lhe deu origem, na época certa de sua produção e colheita, o que confere à ela uma doçura incomparável.

Perdemos a sabedoria de pessoas que vivem perto da natureza, numa verdadeira comunhão, que conhecem o segredo de cura das plantas, do clima, das estrelas e da filosofia de vida que contraria o modo egoístico da maioria das pessoas de hoje em dia.

Pessoas que vivem em comunhão com a natureza, ouvindo seus segredos, amando-a e compreendendo-a. Essas pessoas seguem mesmo sem saber, mesmo sem jamais ter ouvido falar deles, os ensinamentos dos grandes avatares da humanidade, como Buda, Jesus, Krishna, e outros, porque vemos em seus ensinamentos o amor pelo natural, pelos seres vivos e, principalmente pela humanidade.

E todos quantos compreenderem que o destino do ser humano depende do destino na terra e dos seres que nela habitam saberão viver em harmonia com o universo, conseguindo a tão sonhada harmonia consigo mesmos, que é a felicidade.

Nossos destinos são interligados. Tudo o que perdemos    em uma cidade grande torna-se uma falta imensa a toda a humanidade.

Fonte:
Alba Krishna Topan Feldman e José Feldman. Cavalgada de sonhos: antologia poética. Ubiratã/PR, 2002.

Renata Paccola (Cristais Poéticos) 2


A ESPERA ANGUSTIA

A espera angustia.
Você pára,
a mente se esvazia.
Aí você acende um cigarro,
começa uma poesia,
e alguém,
que você nunca viu,
começa a encará-lo.
Aí você perde o embalo,
fica sem graça,
coça o braço,
e olha para o outro lado.

A saudade angustia.

LIMITE

Por que adiarmos tanto
a felicidade que nos aguarda?
Por que esperarmos tanto
pelo que sempre foi nosso?
Anos eu te esperei,
amor,
mas agora,
cada segundo a mais
já se torna insuportável.

LUA-DE-MEL

Eu e você, deitados lado-a-lado,
vamos chegando à mesma conclusão:
não existe futuro nem passado,
apenas um momento de ilusão.

Respirando uma só respiração,
não existindo certo nem errado,
compartilhamos de uma só emoção:
o casamento, em seu mais puro estado!

Em nosso momento único e infinito,
vamos lendo o que nunca foi escrito,
e cada qual cumprindo o seu papel.

Envolto pelo laço mais profundo,
vou penetrando aos poucos em teu mundo,
e o mundo cabe num quarto de hotel!

Cada instante do dia-a dia,
doce ou amargo,
recheado de fatos e sensações,
coberto com feitos,
é a vida ou a vivência
de uma história à parte.

QUERO

Quero um dia inteiro de sol.
Quero toda a força da chuva
caindo no coração.

Quero saciar meu corpo e esgotar minha alma,
para depois
esgotar meu corpo e saciar minh'alma.

Quero saciar o insaciável,
esgotar o inesgotável,
atingir o inatingível.

Quero esconder minha face,
e revelar ao mundo meus segredos.

Quero o êxtase poético,
livrando-me das correntes
que prendem meu pensamento.

Quero aquele resto de gim
que deixei no copo por cautela.

Quero a paz,
eterna esperança
que a chuva traz.

REVOLTA

O tempo não falta
pelo excesso de compromissos,
por chefes e submissos,
pela luta de cada dia,
pela dura realidade.
Tempo não é oportunidade.
O tempo só falta
pela ausência do desejo.

SAUDADE

Ah, se eu pudesse desenhar teus olhos,
ou se soubesse esculpir teu corpo,
modelando tua face, até encontrar teus gestos...
e se eu pudesse te abraçar,
sem aquela sensação
de que teu corpo é de barro
ou se desmancha em areia,
talvez eu fosse capaz
de construir tua presença
no mais profundo dos sonhos
e de matar a lembrança
perene de tua ausência.

TUAS PALAVRAS

Tuas palavras
continuam em meu peito.

Teu perfume
continua na minha cabeça.

Teu sorriso
continua em meus olhos.

Teu presente
continua em meu passado.

Vinicius de Moraes (Namorados públicos)


Da mesma forma que os monumentos históricos ou artísticos, as belezas naturais, os bailes e cafés, os parques e jardins - os casais de namorados são coisa que pertencem ao patrimônio de uma cidade. Uma cidade sem namorados públicos não é uma verdadeira cidade. Os cicerones de Paris costumam mostrá-los aos turistas, inteiramente despreocupados em suas ternuras, como típicas curiosidades locais. No Hyde Park, em Londres, é possível vê-los às centenas, sobre o gramado esmeralda desse parque inexcedível como se estivessem em casa. O transeunte margeia beijos intermináveis, abraços infinitos, olhares abissais, namorados que leem romances, namorados que dormem, namorados que brigam, a um passo uns dos outros, perfeitamente indiferentes ao que lhes vai em torno, - e o que é formidável - guardados da curiosidade, ou malícia alheias, por um passante constável, cuja função é zelar pela perfeita consecução de seus carinhos, com uma imparticipação e fidelidade dignas de todos os aplausos. É claro que os namorados não abusam. Mas nessa questão de carinhos de superfície eles se permitem um uso inumerável. Eles trafegam-se em beijos que fariam a inveja de John Gilbert ao tempo da sua paixão por Greta Garbo. Dão-se abraços de não se saber mais quem é o outro. Fazem-se cafunés maravilhosos, esfregam-se os narizes, acarinham-se os rostos, enfim: tudo isso que faz a deliciosa cozinha dos que se amam e que vem sendo a mesma desde os tempos mais recuados no tempo.

Ninguém pode dizer que o Rio não seja uma cidade de namorados: ela o é. Seria difícil, aliás, compreender-se uma cidade tão pródiga em beleza, sem namorados. Mas são namorados, meu Deus, ou tão ousados ou tão tímidos que parecem uma contrafação da natureza humana diante da Natureza. Grande culpada disso foi, até certo tempo, a nossa polícia de costumes, que arrolava todas as carícias de namorados dentro de um mesmo código moral, chegando até ao abuso de prender gente casada que saía para namorar fora de casa. Não. Há carícias e carícias. Que mal existe em se beijarem os namorados em praça pública ou nos cantos de rua? Em que uma coisa dessas ofende a moral? Por que não se poderão eles abraçar ternamente, quando tiverem vontade? Pois parece incrível: outro dia um amigo meu contou que foi "apitado" várias vezes por um guarda do Jardim Botânico, por estar dando um "peguinha" na namorada. De fato: é justo, mais do que justo, que se moralizem os costumes. Nada mais certo. Mas perseguir os namorados, da mesma forma que arrancar as plantas dos parques, ou maltratar os animais, é indício de mau caráter. Que os namorados se beijem à vontade nesta linda Rio de Janeiro. Nada há de mal no beijo dos namorados, como no amor dos pássaros. Deixai-os nos seus parques, nas suas ruas escuras, nos seus portões de casa. Deixai-os namorar, Senhor Prefeito, Senhor Diretor do Jardim Botânico, deixai-os namorar, porque eles têm cada dia menos lugares onde ir esconder seus anseios. Deixai-os se beijarem à vontade, porque o que em seus beijos irrita os burgueses moralizantes é justamente essa liberdade, essa beleza, essa poesia, esse voo que há num beijo de amor. Tréguas aos namorados!

Fonte:
Vinicius de Moraes. Para viver um grande amor.

segunda-feira, 29 de julho de 2019

Trova 358 - Odenir Follador (Ponta Grossa/PR)


Marina Colasanti (Um Espinho de Marfim)


Amanhecia o sol e lá estava o unicórnio pastando no jardim da Princesa. Por entre flores olhava a janela do quarto onde ela vinha cumprimentar o dia. Depois esperava vê-la no balcão, e, quando o pezinho pequeno pisava no primeiro degrau da escadaria descendo ao jardim, fugia o unicórnio para o escuro da floresta.

Um dia, indo o Rei de manhã cedo visitar a filha em seus aposentos, viu o unicórnio na moita de lírios.
 
 – Quero esse animal para mim.

E imediatamente ordenou a caçada.

Durante dias o Rei e seus cavaleiros caçaram o unicórnio nas florestas e nas campinas. Galopavam os cavalos, corriam os cães e, quando todos estavam certos de tê-lo encurralado, perdiam sua pista, confundiam-se no rastro.

Durante noites o rei e seus cavaleiros acamparam ao redor das fogueiras ouvindo no escuro o relincho cristalino do unicórnio.

Um dia, mais nada. Nenhuma pegada, nenhum sinal da sua presença. E silêncio nas noites.

Desapontado, o rei ordenou a volta ao castelo.

E logo ao chegar foi ao quarto da filha contar o acontecido. A princesa, penalizada com a derrota do pai, prometeu que dentro de três luas lhe daria o unicórnio de presente. Durante três noites trançou com os fios de seus cabelos uma rede de ouro. De manhã vigiava a moita de lírios do jardim. E no nascer do quarto dia, quando o sol encheu com a primeira luz os cálices brancos, ela lançou a rede aprisionando o unicórnio.

Preso nas malhas de ouro, olhava o unicórnio aquela que mais amava, agora sua dona, e que dele nada sabia.

A princesa aproximou-se. Que animal era aquele de olhos tão mansos retido pela artimanha de suas tranças? Veludo do pelo, lacre dos cascos, e desabrochando no meio da testa, espinho de marfim, o chifre único que apontava ao céu.

Doce língua de unicórnio lambeu a mão que o retinha. A princesa estremeceu, afrouxou os laços da rede, o unicórnio ergueu-se nas patas finas.

Quanto tempo demorou a princesa para conhecer o unicórnio? Quantos dias foram precisos para amá-lo?

Na maré das horas banhavam-se de orvalho, corriam com as borboletas, cavalgavam abraçados. Ou apenas conversavam em silêncio de amor, ela na grama, ele deitado a seus pés, esquecidos do prazo.

As três luas, porém já se esgotavam. Na noite antes da data marcada o rei foi ao quarto da filha lembrar-lhe a promessa. Desconfiado, olhou nos cantos, farejou o ar. Mas o unicórnio que comia lírios tinha cheiro de flor, e escondido entre os vestidos da princesa confundia-se com os veludos, confundia-se com os perfumes.

Amanhã é o dia. Quero sua palavra cumprida, disse o rei - virei buscar o unicórnio ao cair do sol.

Saído o rei, as lágrimas da princesa deslizaram no pelo do unicórnio. Era preciso obedecer ao pai, era preciso manter a promessa. Salvar o amor era preciso. Sem saber o que fazer, a princesa pegou o alaúde, e a noite inteira cantou sua tristeza. A lua apagou-se. O sol mais uma vez encheu de luz as corolas. E como no primeiro dia em que se haviam encontrado a princesa aproximou-se do unicórnio. E como no segundo dia olhou-o procurando o fundo dos seus olhos. E como no terceiro dia segurou- lhe a cabeça com as mãos. E nesse último dia aproximou a cabeça do seu peito, com suave força, com força de amor empurrando, cravando o espinho de marfim no coração, enfim florido.

Quando o rei veio em cobrança de promessa, foi isso que o sol morrente lhe entregou, a rosa de sangue e um feixe de lírios.

Fonte:
Marina Colasanti. Um espinho de marfim e outras histórias.

J. G. de Araújo Jorge (Inspirações de Amor) XX


CLASSICISMO
   
Longínquo  descendente dos helenos
pelo espírito claro, a alma panteísta,
- amo a beleza esplêndida de Vênus
com uma alegria singular de artista !

Amo a aventura e o belo, amo a conquista !
Nem receio os traidores e os venenos...
- Trago na alma engastada uma ametista,
- meus olhos de esmeraldas são serenos !

Com os pés na terra tenho o olhar no céu;
a alma, pura e irrequieta como as linfas
soltas no chão; nos lábios, tenho mel...

Meu culto é a liberdade e a vida sã.
E ainda hoje sigo e persigo as ninfas
com a minha flauta mágica de Pã !

CONSELHOS DE AMOR…

Incoerência talvez, mas verdades da Vida,
é um mal, um grande mal, amar-se em demasia,
a mulher que se sente adorada e querida
e é pelo teu amor cercada e protegida
é aquela que terás em teus braços mais fria.

Faz-lhe, mil carícias, sim, mas vez em quando
deixa uma frase vaga e indiferente no ar...
Assim, - ela terá com que ficar pensando,
e enquanto desconfia ou fica te esperando
por tanto te querer, talvez chegue a chorar.

O pranto é a chuvarada que prepara a terra
onde lançaste um dia a semente do amor.
O ciúme é o sol que a flor em pétalas descerra,
e o teu carinho, a aragem que nos ramos erra
e conforta as raízes apagando a dor.

E' a mulher que o exige ... Ela te adora e te ama
se souberes ser bom sendo às vezes cruel.
Não te iludas porém, te arrastará na lama
se a rodeares de luxo e a envolveres na chama
de um extremoso amor constantemente fiel!

Sabe sempre pesar sobre ela o teu domínio
não cedas teu lugar nem por mal nem por bem,
se um dia descobrir que tem força e fascínio
datará deste dia o teu fatal declínio
e verás como o amor se transformou também.

Sé perdulário sempre em teu amor, procura
no entanto não perder de vista os teus carinhos.
O amor que se oferece é amor que pouco dura,
- e que a rosa macia da tua ternura
tenha pétalas... sim... mas também tenha espinhos...

Marca na vida dela o rumo dos teus passos
deixando sempre um traço de altivez, viril.
A mulher quer que o homem caia nos seus braços
quer vê-lo - o coração pulsando, os olhos baços,
tendo a vaga impressão de que ele não caiu!

CONTO PERDULÁRIO

Hei de gastar minha alma – a alma dos poetas
é como a luz do Sol ou como o luar,
deve espalhar-se, para embelezar
e iluminar as sombras mais discretas...

Como as águas que cantam, irrequietas,
deve o silêncio, um pouco, musicar,
ou como a onda que se ergue, - a alma dos poetas
deve de espumas enfeitar o mar!

Cumpro assim o meu destino, e neste bando
de versos, perdulário a vou gastando,
e quanto tenho de alma já nem sei...

E hei de esbanjá-la mais, de instante a instante,
e morto – hão de encontrá-la ainda estuante
nos versos onde a vida a desperdicei !

CORAÇÃO SOLITÁRIO

A noite esta fechada na janela aberta.
Uma rua perdeu-se na sombra lá embaixo.
Não existe esta rua - é um beco surrealista
que fugiu de algum quadro louco que não vi.

Ouço meu coração ardente e solitário
com sua música estranha de piano bêbado.
No espelho, meu olhar: duas chamas de estrelas.
Não  sei  se é o vento,  sei que  há  música  na   noite.

Há música no quarto, nas cortinas, música
nos meus cabelos despenteados, nos meus dedos,
no meu rosto, entra e sai pela janela.

Música indefinida a encher a solidão:
- estou no ventre da noite a mexer com os meus sonhos,
ouço o meu coração ardente e solitário.

COVARDIA

O que me falta é a coragem para fazer como Gauguin
e ir pintar as ilhas e as mulheres dos mares do Sul.

Não cair em Jack London
mas pintar pelo menos céus amarelos como os de Van Gogh
e beber absinto como Rimbaud.

O que me falta é a coragem para ir encontro que
marquei comigo mesmo
numa esquina do mundo
para encontrar o destino…

DESCULPA

Me desculpem, amigos, se não consigo sujar o sonho,
torná-lo indecifrável e apocalíptico,
se não consigo lambuzar o símbolo,
se não posso turvar a imaginação.

Me desculpem, amigos, meu jeito é este mesmo de ser poeta,
e a água da minha onda, por mais profundo que seja o mar,
é azul e transparente,
e os peixes tem suas formas, e as algas não tem suas formas,
e as estrelas do mar florescem cinco pontas,
como as palavras que luzem.

Me desculpem, amigos, se venho assim transparente como o  fundo de aquário
num parque para crianças e curiosos,
e se vos ofereço estes velhos símbolos de uma velha e  primitiva poesia
que chegou com os peixes à terra, talvez antes da presença  do homem.

DESEJOS... NA MANHÃ DE SOL

Na manhã de sol
bela e serena,
depois de um dia de chuva
depois que à noite ventou,
- tive desejos de apanhar aquela mulher morena
que passou . . .

Devia ter na boca rubra
um gosto de uva
um gosto bom de vinho,
e quando ela me olhou,
- pensei na fruta madura que o vento da noite derrubou
à margem do caminho...

Ah! o garoto que fui!  Ah! o garoto que sou!
Na inquietação da minha vida,
nas voltas do meu caminho,
sempre a vontade incontida
de desejar as frutas do quintal vizinho!

Na manhã de sol
bela e serena,
- depois de um dia de chuva,
- ah! o garoto que sou!
tive desejos de apanhar aquela mulher morena
que passou!

DESOLAÇÃO
   
Na profunda tristeza deste instante,
em que o irremediável
abalou a minha sorte,
na certeza de que te ausentaste definitivamente,
- eu pensei pela primeira vez na morte ...

Tudo desapareceu aos meus olhos atônitos
e eu me senti sozinho...
- já não há finalidade na minha criação
nem desejo na minha vida...

Só não abro em meu peito o coração, e o ponho na lapela
como rubra papoula em flor,
- porque sei que ainda te encontras dentro dele,
e nem mesmo a tua lembrança eu ousaria ferir
oh! meu amor!

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. Os Mais Belos Poemas Que O Amor Inspirou. vol. 2. SP: Ed. Theor, 1965.

Mário de Andrade (Caim, Caim e o Resto)


Belazarte me contou:

Talvez ninguém reparasse, nem eles mesmo, porém foi sim, foi depois daquela noite, que os dois começaram brigando por um nada. Dois manos brigando desse jeito, onde se viu! E dantes tão amigos... Pois foi naquela noite. Sentados um a par do outro, olhavam a quermesse.

O leilão estava engraçado. O Sadresky dera três mil réis por um cravo da Flora, êta mulatinha esperta! Também com cada olhão de jabuticaba rachada, branco e preto luzindo melado, ver suco de jabuticaba mesmo... onde estará ela agora? até com seu doutor Cerquinho!...

– Você foi pagar a conta pra ele, Aldo?

– Já.

Contemplavam o povo entrançado no largo. Seguiam um, seguiam outro, pensando só com os olhos. Nem trocavam palavra, não era preciso mais: se conheciam bem por dentro. De repente viraram-se um pro outro como pra espiar onde que o mano olhava. Aldo fixou Tino. Tino não quis retirar primeiro os olhos. Olho que não pestaneja cansa logo, fica ardendo que nem com areia e pega a relampear. Quatro fuzis, meu caro, quatro fuzis de raiva. Nem raiva, era ódio já. Aldo fez assim um jeito de muxoxo pro magricela do irmão, riu com desprezo.

Tino arreganhou o focinho como gato assanhado.

Se separaram. Aldo foi falar com uns rapazes, Tino foi falar com outros. Às vinte e duas horas tudo se acabava mesmo... voltaram pra casa. Mas cada qual vinha numa calçada. Braço a torcer é que nenhum não dava, não vê! Dentro do quarto brigaram. Por um nadinha, questão de roupa na guarda da cama. Dona Maria veio saber o que era aquilo espantada. Foi uma discussão temível.

Da discussão aos murros não levou três dias. E por quê? Ninguém sabia. A verdade é que a vida mudou pra aqueles três. Inútil a mãe chorar, se lamentar, até insultando os filhos. Quê! nem se o defunto marido estivesse inda vivo!... Pegou fogo e a vida antiga não voltava mais. E dantes tão irmãos um do outro!... Aldo até protegia Tino que era enfezado, cor escura.

Herdara o brasileiro do pai, aquela cor cainha que não dava nada de si e uns musculinhos que nem o trabalho vivo de pedreiro consertava. Quando tirava fora a camisa pra se lavar no sábado, qual! mesmo de camisa e paletó, as espáduas pousavam sobre o dorso curvo como duas asas fechadas.

E era mesmo um anjo o Tino, tão quietinho! humilde, talhado pra sacristão. Cantava com
voz fraca muito bonita, principalmente a Mamma mia num napolitano duvidoso de bairro da Lapa. Quando depois da janta, fazendo algum trabalhinho, lá dentro ele cantava, Aldo junto da janela sentia-se orgulhoso si algum passante parava escutando. Se o tal não parava, Aldo punha este pensamento na cachola: “Esse não gosta de música... estúpido.” Que alguém não apreciasse a voz do Tino, isso Aldo não podia pensar porque adorava o mano. Era bem forte, puxara mais a mãe que o pai. Só que a gordura materna se transformava em músculos no corpo vermelho dele. Pois então, percebendo que os outros abusavam do Tino, não deixava mais que o irmão se empregasse isolado, estavam sempre juntos na construção da mesma casa. Ganhavam bem.

Naquela casinha do bairro da Lapa, a vida era de paraíso. Dona Maria lavava o que não dava o dia. O defunto marido, uma pena morrer tão cedo! fora assinzinho... Homem, até fora bom, porque isso de beber no sábado, quem que não bebe!... Paciência, lavando também se ganha. Além disso, logo os filhos tão bonzinhos principiaram trabalhando. Se a Lina fosse viva... que bonita!... Felizmente os filhos a consolavam. Lhe entregavam todo o dinheiro ganho. Gente pobre e assim é raro.

– Meus filhos, mas vocês podem precisar... Então tomem.

Aqueles dois dez mil réis duravam quase o mês inteirinho. Fumar não fumavam. Uma guaraná no domingo, de vez em quando a entrada no Recreio ou no Carlos Gomes recentemente inaugurado, nos dias dos filmes com muito anúncio. Mas no geral os manos passavam os descansos junto da mãe. No verão iam pra porta, aquelas noites mansas, imensas da Lapa... Plão, tlão, tralharão, tão, plão, plãorrrrr... bonde passava. E o silêncio. A casa ficava um pouco apartada, sem vizinhos paredes-meias.

Na frente, do outro lado da rua, era o muro da fábrica, tal-e-qual uma cinta de couro separando a terra da noite esbranquiçada pela neblina. Chaminés. A cinquenta metros outras casas. O cachorro latia, uau, uau... uau...

– Pedro diz que vai deixar o emprego.

Silêncio.

– Vamos no jogo domingo, Tino?

– Não vale a pena, o Palestra vai perder. Bianco não joga.

– Mas Amílcar.

– Você com seu Amílcar!

Silêncio. Tino não queria ir.

– E tanto pessoal, Aldo...

– Você quer, a gente vai cedo.

Silêncio. Aldo acabava fazendo a vontade do irmão.

Às vezes também algum camarada vinha conversar.

Agora? até já se comenta. Mãe que descomponha, que insulte... Mais chora que descompõe, a coitada! Lá estão os dois discutindo, ninguém sabe por quê. De repente, tapas. E Tino não apanha mais que o outro, não pense, é duma perversidade inventiva extraordinária. O irmão acaba sempre sofrendo mais do que ele. Aldo é mais forte e por isso naturalmente mais saranga. Porém paciência se esgota um dia, e quando se esgotava era cada surra no irmão!

Tino ficava com a cara vermelha de tanta bofetada. Um pouco tonto dos socos. Aldo porém tinha sempre uma mordida, uma alfinetada, coisa assim com perigo de arruinar. Os estragos da briga duravam mais tempo nele.

Não se falavam mais. E agora cada qual andava num emprego diferente. O mais engraçado é que quando um ia no cinema o outro ia também. Sempre era o Tino que espiava Aldo sair, saía atrás.

Nunca iam à missa. De religião só tirar o chapéu quando passavam pela porta das igrejas.
Por que tiravam não sabiam, tinham visto o pai fazer assim e muita gente fazia assim, faziam também, costume. Isso mesmo quando não estavam com algum companheiro que era fascista e anticlerical porque lera no Fanfulla. Então passavam muito indiferentes, mãos nos bolsos talvez. E não sentiam remorso algum.

Pois nesse domingo foram à N. S. da Lapa outra vez. Agora que estavam maus filhos, maus irmãos, enfim maus homens, davam pra ir na missa! Quando a reza acabou ficaram ali, no adro da igreja meia construída, cada um do seu lado, já sabe. Tino à esquerda da porta, Aldo à direita. Toda a gente foi saindo e afinal tudo acabou. Ficaram apenas alguns rapazes proseando.

Aldo voltou pra casa com uma tristeza, Tino com outra que, você vai ver, era a mesma. Até se sentiram mais irmãos por um minuto. Minuto e meio. Desejos de voltar à vida antiga... Era só cada um chegar até no meio da rua, pronto: se abraçavam chorando, “Fratello!...” Que paz viria depois! Mas, e o desespero, então? onde que leva? Reagiram contra o sentimento bom. Uma raiva do irmão... Uma raiva iminente do irmão. Dali, iam só procurar o primeiro motivo e agora que tinham mais essa tristeza por descarregar, temos tapa na certa.

Chegaram em casa e dito-e-feito: brigaram medonhamente. Porca la miséria, dava medo! Se engalfinharam mudos. Aldo, subia o sangue no rosto dele, tinha os olhos que nem fogaréu. Derrubou o mano, agarrou o corpo do outro entre os joelhos e páa! Tino se ajeitando, rilhava os dentes, muito pálido, engolindo tunda numa conta. A janela estava aberta... Dona Maria no quintal, não sei si ouviu, pressentiu com certeza, coitada! era mãe... ia entrar. Porém teve que saudar primeiro a conhecida que vinha passando no outro lado da rua. Até quis botar um riso na boca pra outra não desconfiar.

– Sabe, dona Maria, a conhecida gritava de lá, a Teresinha vai casar! Com o Alfredo.

– Ahn...

– Pois é. De repente. Bom, até logo.

– Té-logo.

O soco parou no ar, inútil, os dois manos se olharam. Viram muito bem que não havia mais razão pra brigas agora. Não havia mesmo, deviam ser irmãos outra vez. A felicidade voltava na certa e aquele sossego antigo... O soco seguiu na trajetória, foi martelar na testa do Tino, peim! seco, seco. Tino com um jeito rápido, histérico, não sei como, virou um bocado entre as pernas de Aldo. Conseguiu com as mãos livres agarrar o pulso do outro. Encolheu-se todinho em bola e mordeu onde pôde, que dentada! Aldo puxou a mão desesperado, pleque! Sofreu com o estralo do dedo que não foi vida. Mas por ver sangue é que cegou.

– Morde agora, filho-da-mãe!

Na garganta. Apertou. Dona Maria entrava.

– Meu filho!

– Morde agora!

Tino desesperado buscava com as mãos alargar aquele nó, sufocava. Encontrou no caminho a mão do outro e uma coisa pendente, meia solta, molhada, agarrou. E num esforço de última vida, puxou pra ver se abria a tenaz que o enforcava. Dona Maria não conseguia separar ninguém. Tino puxou, que eu disse, e de repente a mão dele sem mais resistência riscou um semicírculo no ar. Foi bater no chão aberta ensanguentada, atirando pra longe o dedo arrancado de Aldo.

– Morde agora!

Tino se inteiriçando. Abriu com os dentes uma risada lateral, até corara um pouco. Dona Maria chegava só ao portãozinho, gritando. Não podia ir mais além, lhe dava aquela curiosidade amorosa, entrava de novo. Tino se inteiriçando. Ela saía outra vez:

– Socorro! meu filho!

Meu Deus, era domingo! entrava de novo. Batia com os punhos na cabeça. Pois batesse forte com um pau na cabeça do Aldo! Mas quem disse que ela se lembrava de bater!

– Socorro! meu filho morre!

Entrava. Saía. Às vezes dava umas viravoltas, até parecia que estava dançando... Balancez, tour, era horrível. O primeiro homem que acorreu já chegou tarde. E só três juntos afinal conseguiram livrar o morto das mãos do irmão. Aldo como que enlouquecera, olho parado no meio da testa, boca aberta com uns resmungos ofegantes.

Levaram ele preso. Dona Maria é que nem sei como não enlouqueceu de verdade. Berrava atirada sobre o cadáver do filho, porém quando o outro foi-se embora na ambulância, até bateu nos soldados. Foram brutos com ela. Esses soldados da Polícia são assim mesmo, gente mais ordinária que há! uma mãe... compreende-se que tivesse atos inconscientes! pois tivessem paciência com ela! Que paciência nem mané paciência! em vez, davam cada empurrão na pobre...

– Fique quieta, mulher, senão levo você também!

Fecharam a portinhola e a sereia cantou numa fermata de “Addio” rumo da correção. Seguiu-se toda a miséria do aparelho judiciário. Solidão. Raciocínio. O julgamento. Aldo saiu livre. Pra que vale um dedo perdido? Caso de legítima defesa complicada com perturbação de sentidos, é lógico, art. 32, art. 27 § 4º... A medicina do advogadinho salvou o réu.

Recomeçou no trabalho. Muito silencioso sempre, sossegado, parecia bom. Às vezes parava um pouco o gesto como que refletindo. Afinal todos na obra acabaram esquecendo o passado e Aldo encontrou simpatias. Camaradagens até. Não: camaradagem não, porque não dava mais que duas palavras pra cada um. Mas muitos operários simpatizavam com ele. São coisas que acontecem, falavam, e a culpa fora do mano, a prova é que Aldo saíra livre. E o dedo.

Mas o caso não terminou. Um dia Aldo desapareceu e nem semana depois encontraram ele morto, já bem podrezinho, num campo. Quem seria? Procura daqui, procura dali, a Polícia de São Paulo, você sabe, às vezes é feliz, acabaram descobrindo que o assassino era o marido da Teresinha.

E por que, agora? Ninguém não sabia. A pobre da Teresinha é que chorava agarrada nos dois filhinhos imaginando por que seria que o marido matara esse outro. De que se lembrava muito vagamente, é capaz que dancei com ele numa festa? Mas não lembrava bem, tantos moços... E não pertencera ao grupinho dela. Mas que o Alfredo era bom, ela jurava.

– Meu marido está inocente! repetia cem vezes inúteis por dia. O Alfredo gritava que fora provocado, que o outro o convidara pra irem ver uma casa, não sei o quê! pra irem ver um terreno, e de repente se atirara sobre ele quando atravessavam o campo... Então pra que não veio contar tudo logo! Em vez: continuou tranquilo indo no serviço todo santo dia, muito satisfeito..., que “facínora”! Toda a gente estava contra ele, o Aldo tão quieto!...

O advogado devassou a série completa dos argumentos de defesa própria. E lembrou com termos convincentes que o Alfredo era bom. Afinal vinte e dois anos de honestidade e bom comportamento provam alguma coisa, senhores jurados! E a Teresinha com as duas crianças ali, chorosa... Grupo comovente. O maior, de quinze meses, procurava enfiar o caracaxá vermelho na boca da mãe. Não brinque com essa história de isolar sempre que falo em mãe, o caso é triste. Pois tudo inútil, o criminoso estava com todos os dedos. Foi condenado a nem sei quantos anos de prisão.

A Terezinha lavava roupa, costurava, mas qual! com filho de ano e pouco e outro mamando, trabalhava mal. E, parece incrível! inda por cima com a mãe nas costas, velha, sem valer nada... Se ao menos soubesse aonde que estavam esses irmãos pelas fazendas... Mas não ajudariam, estou certo disso, uns desalmados que nunca deram sinal de si... Então desesperava, ralhava com a mãe, dava nos pequenos que era uma judiaria.

A sogra, essa quando chegava até o porão da nora, trazia uma esmola entre pragas, odiava a moça. Adivinhava muito, com instinto de mãe, e odiava a moça. Amaldiçoava os netos. Os dez mil réis sobre um monte de insultos ficavam ali atirados, aviltantes, relumeando no escuro. Teresinha pegava neles, ia comprar coisas pra si, pros filhos, como ajudavam! Ainda sobrava um pouco pra facilitar o pagamento do aluguel no mês seguinte. Mas não lhe mitigavam a desgraça.

Também lhe faziam propostas, que inda restavam bons pedaços de mulher no corpo dela. Recusava com medo do marido ao sair da prisão, um assassino, credo!

Teresinha era muito infeliz.

Fonte:
Mário de Andrade. Os contos de Belazarte.

domingo, 28 de julho de 2019

Trova 357 - Sonia Regina Rocha Rodrigues (Santos/SP)

Trova enviada pela trovadora. Montagem com imagem obtida na internet, sem autoria.

Antonio Carlos de Barros (João Saudade)


Nota: as palavras em itálico, o significado está no glossário ao final do texto.
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Quando aquele homem rural, campeiro, acostumado com a lida do campo, migra da sua querência para a Cidade Grande, leva em sua canastra de sonhos, o desejo de uma melhor qualidade de vida, de ter acesso a um trabalho não tão bruto como àquele lá de fora, de ter acessos aos diversos canais de Televisão e Rádios, ao lazer, um mercado próximo, cinema, enfim, uma infraestrutura básica, como escolas, hospitais, igrejas, transportes, etc.

Nesse contexto abordo hoje, mais precisamente o Gaúcho, JOÃO SAUDADE, habitante da Fronteira do Rio Grande do Sul, dedicado à vida pastoril e perfeito conhecedor das lides campeiras, ginete e domador por profissão, homem que monta bem, com firmeza e com garbo. Sempre muito bem pilchado como manda as tradições Gaúchas, frequentava os CTG’s (Centro de Tradições Gaúchas) até bailava nas domingueiras, apostava uns trocos nas carreiras, e muitas vezes, gavionando umas prendas bonitas.

Ouvindo mais seu coração que a razão, se foi de mala e cuia para uma cidade grande. O impacto foi grande, assistia estupefato, uma correria de pessoas que ao seu modo de entender, não sabiam para onde iam. Era uma selva de pedras, onde ninguém se conhecia, não havia mais aqueles cumprimentos festivos, o estender as mãos, tudo muito frio e esquisito. Tudo muito diferente da já saudosa Fronteira. Com o passar dos dias, a guaiaca ficou vazia, a pensão não lhe deu prazo no pagamento das diárias, e como consequência esses problemas sociais acentuaram, pois a falta de uma qualificação profissional e educacional, dificilmente conseguiria uma vaga no mercado de trabalho, o que sobrou foi um subemprego, que o avacalhava, se sentia desmoralizado, atorado, triste feito uma tapera velha, abandonado,catando papel e papelão nas ruas e morando em um barraco de uma favela próximo a uma rodovia. A sua vontade era atirar-se por um canhadão abaixo. Acabou-se o garbo e o entono.

Os músicos, cantores e compositores Pedro Neves e Vaine Darde, com muita inspiração, fizeram com grande sucesso, a Música: JOÃO SAUDADE, onde retratam com maestria a história de muitos Joãos, migrantes dos seus meios rurais para as grandes cidades. Vejam o que diz a letra:

No estilo da estampa
Um resto de pampa
Farrapo dos trapos,
Bombacha já rota
Melena revolta
E um jeito de guapo.
Chapéu deformado
Um lenço rasgado
Ainda bandeira,
Guaiaca roída
Rimando com a vida
Do João da Fronteira.

Porque, oh João
Deixaste o galpão
E a lida campeira,
Pra ser na cidade
Mais um João-Saudade
Sem eira, nem beira?

O João da favela
Que a vida atrela
A um carro de mão,
É João-lá-de-fora
Repontando agora
Papel, papelão.

E assim, quem diria,
Que a sorte um dia
Lhe desse este pealo,
O João já nem sente
Que ontem ginete
É hoje o cavalo.

Porque, oh João
Deixaste o galpão
E a lida campeira,
Pra ser na cidade
Mais um João-Saudade
Sem eira, nem beira?
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GLOSSÁRIO:
Atorado - despedaçado.
Bombacha - é uma peça de roupa, calças típicas abotoadas no tornozelo, usada pelos gaúchos. O nome foi adotado do termo espanhol "bombacho", que significa "calças largas". Pode ser feita de brim, linho, tergal, algodão ou tecidos mesclados; de padrão liso, listrado ou xadrez discreto.
Canastra - mala de couro grande para viagens.
Canhadão – Vale, baixadas grandes, extensas, entre coxilhas e serras.
Carreiras – Corridas de cavalos.
Coxilhas – Grandes extensões onduladas de campinas cobertas de pastagens.
Entono - orgulho.
Gavionando – Procurando.
Ginete – bom cavaleiro, domador.
Guaiaca – Cinto largo de couro, que serve para porte de arma e para guardar dinheiro.
Guapo – Forte, vigoroso, valente, bravo.
Melena – Cabelo comprido.
Pealo – Ato de arremessar o laço e por meio dele prender as patas do animal e derrubá-lo.
Pilchado – Trajado com vestimenta típica de Gaúcho.
Prendas - mulheres.
Querência – lugar onde nasceu, se criou, ou se acostumou a viver.
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Nota do blog a título de Curiosidade:
Sem eira nem beira - Significa pessoas sem bens, sem posses. Eira é um terreno de terra batida ou cimento onde grãos ficam ao ar livre para secar. Beira é a beirada da eira.
Quando uma eira não tem beira, o vento leva os grãos e o proprietário fica sem nada. Na região nordeste este ditado tem o mesmo significado mas outra explicação. Dizem que antigamente as casas das pessoas ricas tinham um telhado triplo: a eira, a beira e a tribeira como era chamada a parte mais alta do telhado.
As pessoas mais pobres não tinham condições de fazer este telhado, então construíam somente a tribeira ficando assim "sem eira nem beira".(Soportugues)

Fonte:
Colaboração do autor