quarta-feira, 14 de agosto de 2019

Teresinka Pereira (Poemas Recolhidos) II

 
CRIANÇA

Teus olhos são janelas
por onde entra cada dia
o sol da sabedoria e vida.

Tuas mãos inquietas
devem abarcar o mundo inteiro
como um gigante balão
que consente o tato
de tua mágica inteligência.
Criança, teu poder
é ilimitado e fecundo.

Aprende a caminhar
pela senda da humanidade
e a amá-la como toda tua.

ESPERANÇAS?

Um momento, por favor!
A noite dorme tranquila:
porque queres anular
o silêncio do infinito?
Deixa-me em paz
com minha angústia!
Deixa que me proteja
de tuas pérfidas esperanças!

MUDANÇAS

É muito difícil
re-inventar a vida.
A gente carrega
nos ombros
a natureza de nossos erros.

Os que falam deles
ajudam a mudar
a vida dos outros.

NA PRAIA

Uma imensa estrela
cruzou a noite
e caiu na cidade fria.
Na praia seca e vazia
sonho à mercê
do vento e do frio.

Um dia fui sereia
despreocupada e doce
passeando pelos oceanos
onde bosques de peixes bravios
cresciam como segredos,
como imagens que permaneciam
invisíveis com sua beleza e esplendor.

Agora nada mais sou
que o sonho de alguém,
um fantasma de água
e de palavras,
entre o mar e o medo,
luzes e sombras,
e alguns raios de lua
sem destino próprio.

O OLHO

O olho não pode esconder
nossa subjetividade,
mas é um farol invisível
pelo qual percebemos
a supremacia
da natureza,
o mistério da humanidade
e a beleza das flores.

O olho tem o poder
de nos fazer sonhar
com a liberdade
do firmamento.

SECRETA INTRANSIGENTE CÓLERA

Cada vez que eu falo
sinto teu vigilante
e imaginário lápis
apontando palavra
por palavra
meus pecados.

Tua secreta
e intransigente cólera
é uma intrusa
em nosso destino.

Mas o amor não tem
couraças, e das veias
não se podem extrair
impulsos secretos
de censura.

Ao fim e ao cabo,
como viver totalmente
puro das gangrenas
do discurso?

Fonte:
Poemas enviados pela poetisa

Renato Frata (Estrelas Pisadas)


Acordou pisando estrelas, estendeu a mão direita no peito apertando o coração descompassado, abriu o sorriso motivado pelo sonho cortado ao meio, respirou fundo com os olhos semicerrados e instintivamente fez um pensamento positivo. O dedão da mão esquerda se enfiou entre o indicador e o pai-de-todos construindo uma figa. O dia prometia. Cobriu melhor Pedrinho que dormia, correu para a pequena sala e com um toco de lápis anotou as dezenas.

Era dia de mega-sena e sonho sonhado em que números que rolavam ao seu encontro era mais que um sinal positivo.

- É hoje que a onça perde as pintas! - Disse ao encostar o joelho no chão diante de Mãe Aparecida. Botou a marmita em banho-maria, terminou de se arrumar e conferiu as horas: cinco e dois. 52!

Pensou e anotou os números. Logo correria a se juntar no ponto dos cortadores de cana, e ouvir a tagarelice das companheiras, as piadas porcas dos homens; sentir o vento gelado cortar-lhe o rosto e o carinho do sereno de fim de noite a lamber seus cabelos formando neles cristais de cobre. Mas seria o dia da redenção: o sonho fora real por demais, diferente de todos os sonhos.

- Vou ganhar na mega! E como primeira coisa comprarei a caixa de lápis de 72 cores para Pedrinho... ~ Prometeu no momento em que o remorso calou na consciência e a fez engolir saliva engrossada com fel por não ter dado ao filho todos os materiais da lista da escola; e acabou com uma caixa de 12 cores no pacote.

Os olhos tristes do menino disseram tudo, mas o que fazer se a grana curta mal dava para o armazém e a farmácia? Fuçou na bolsa, catou a única nota de R$ 2,00, enrolada, tomou o facão e, com farnel às costas fechou a porta. Entregaria o dinheiro ao motorista que era encarregado das apostas do pessoal.

Pedrinho acordaria com o despertador e iria sozinho para a escola; e só o veria de novo na boca da noite quando estaria quem sabe, a pintar as tarefas escolares com 12 cores ao invés de 72. Menino bom, sem maldade no pensar e no agir. O filho que toda mãe gostaria ter.

- O que faria com o prêmio? - Pensava nos solavancos da condução. - Uma casa linda com uma amoreira na janela de onde pudesse dali catar frutas sem ter que ir ao quintal. E uma tonelada de lápis de cor ao Pedrinho para compensar a caixa de 72 que não pôde dar. Melhor, compraria lápis às crianças da cidade, para que não sentissem a vergonha que o filho passara ao ser repreendido por se apresentar com o material escolar incompleto.

- Liga não, filho, - teria dito - dia haverá em que um arco-íris pousará nas mãos e te trará um pote de ouro - e limpou as lágrimas do rosto.

- Só queria os lápis, mãe. - respondera Pedrinho.

Deu de ombros para a lembrança e: - se sonho vale, que se vá o último tostão para conseguir o intento - e o barulho do ônibus abafou sua doideira.

Imaginou-se num quarto lindo, de paredes forradas com papel colorido e um lustre pendente sobre a cama.

Sonho simples como ela.

Lembrou-se dos buracos do zinco que o barraco real carregava desde sempre; e da luz do poste lá fora, quarada da lâmpada de mercúrio, injetada na escuridão do aposento lançando estrelas pelo chão. - Pisava nelas.

Sorriu enviesado entre a certeza do resultado de logo mais e a realidade do aconchego pobre, mas seguro.

Fonte:
Livro enviado pelo autor.
Renato Benvindo Frata. Azaringo e o caga-fogo. Paranavaí/PR: Paranavaí Ed. Gráfica, 2014.

terça-feira, 13 de agosto de 2019

Silmar Böhrer (Lampejos Poéticos) XVI


Olga Agulhon (Magro Zé)


Dias atrás, desses de ficar remexendo nos baús guardados no sótão de nossa memória, lembrei-me, com saudade, do Magro Zé, um personagem que está presente nas minhas recordações de infância.

Bom lembrar do Magro Zé. O seu nome de batismo eu nunca soube. Tinha esse apelido porque era mesmo muito magro, não tinha muita saúde, pouco comia, bebia muito; acho que o seu primeiro nome nem era José. Era primo de minha mãe, a quem chamava de comadre, sem que houvesse motivo para isso. Viúvo, tinha duas filhas, que não ficaram com ele. Foram criadas por uma tia. Não sei se já bebia ou se o vício começou a partir da viuvez.

Minhas recordações são um tanto vagas e nunca me falaram dele depois que cresci. A única coisa que me contaram é que uma das filhas casou-se, mas me parece que o genro não o quis morando junto. E Magro Zé continuou sozinho.

Talvez ninguém o quisesse porque bebia. Ou, então, bebia porque ninguém o queria. Na verdade, acho que nem ele mesmo sabia por que se embriagava a ponto de vez por outra ser encontrado largado em qualquer canto, com uma garrafa de pinga vazia na mão, tal como um indigente. Era nisto que se transformava o Magro Zé quando bebia: um indigente, sem lar, sem parentes, sem amigos, sem sonhos, sem esperança, sem vontade de viver; um farrapo humano.

Quando estava sóbrio, ele era a pessoa da qual me lembro com carinho. Para a família, devia dar muito desgosto; mas, para mim, ele era legal. Magro Zé tinha inclusive profissão. Era um excelente mestre de obras, daqueles que constroem uma casa, um armazém, uma igreja, sem necessidade de instruções de nenhum engenheiro. Era mesmo bom no serviço, mas nunca teve nada na vida, nem ao menos um emprego seguro, um trabalho fixo. Bebia.

Numa certa altura de sua vida, a pedido de meu pai, veio fazer um trabalho na fazenda onde morávamos, hospedando-se em nossa casa. Terminou o serviço, mas foi ficando, ficando, ficou.

Pegava pequenos serviços por perto, para ir levando a vida. Às vezes, ia mais longe e demorava a voltar, mas voltava. Quando retornava, chegava de braços abertos e me mandava procurar balas e bombons nos bolsos do seu casaco; eu adorava aquilo. Também cuidava de mim quando minha mãe estava muito atarefada, mas não era de todo confiável, porque, de uma hora para outra, bebia.

Foi nessa época que minha mãe pôs na cabeça que iria fazê-lo parar de beber e ele prometeu que iria tentar, fazer de tudo para deixar o vício.

- Comadre, se você encontrar, de hoje em diante, alguma garrafa nesta casa, pode jogar fora.   

E era isso que ela fazia. Encontrava garrafas embaixo da cama, no guarda-roupa, atrás do sofá, na casinha do cachorro, nos mais diversos lugares; esvaziava todas, mas não se zangava com ele e não ralhava; e ele, por sua vez, também não reclamava.

Certo dia, chegou com a perna e o pé direitos engessados, pois havia quebrado um osso da coxa e o tornozelo ao cair de um telhado que estava cobrindo. Veio ajudado por um amigo, não podia andar sozinho.

- É agora que você para de beber, Magro Zé. Não se levanta sozinho e ninguém vai dar-lhe um pingo sequer de álcool.

- Pelo amor de Deus, Comadre, espere eu ficar bom... Como vou parar de beber logo agora que estou doente, entrevado, sem ter o que fazer?

– É uma boa hora!

Eu lhe fazia companhia, mas, para mim, ele somente pedia água e comida. Vivia me aconselhando para que nunca fumasse ou bebesse bebida alcoólica. Hoje, penso em quanto ele sofria e não me deixava perceber. Comigo, era sempre contente e estava sempre disposto a brincar.

No segundo dia, à tarde, toda a família foi até a cidadezinha mais próxima e, quando voltamos para casa, ao entrarmos pela cozinha, vimos um rastro branco de gesso pelo chão, que se estendia pelo corredor. No fim daquele rastro, lá estava Magro Zé bêbado, segurando uma garrafa quase vazia.

Depois do porre, a bronca:

- Quem lhe arrumou pinga, Zé?

- Ninguém, Comadre.

-Alguém tem que ter trazido para você. Aqui em casa é que não tinha nenhuma garrafa. Quem foi?

A explicação, porém, só pôde ser dada no dia seguinte, quando, do álcool, só restava, a ressaca:

- Ninguém, Comadre. Antes do acidente eu tinha escondido a garrafa dentro de uma panela, aquela que você só usa para fazer feijoada. Como está fazendo muito calor, achei que você não iria fazer feijoada tão cedo... Quando não aguentava mais, me virei até cair da cama e me arrastei até o armário; não sei como não bebi lá mesmo.,.

- Você não toma jeito, Zé! Mas foi a última vez. Vou revirar essa casa e não vou deixar uma gota de álcool para você.

Assim o fez. Encontrou mais uma garrafa dentro do saco de arroz guardado na despensa. Esvaziou-a.

Sem a bebida, Magro Zé foi ficando nervoso, não comia quase nada, gritava, xingava. Chegou a tentar se arrastar para fora de casa, mas meus pais o impediram. Por maior que fosse o seu desespero, não ousou enfrentá-los; tinha por eles muito respeito e gratidão, devia-lhes muitos favores. Afinal, eram as pessoas que o tinham acolhido, apesar do parentesco distante.

Voltou para a cama e, não se sabe como, ficou quarenta e cinco dias sem beber. Todos ficamos contentes.

- Se você aguentou todo esse tempo, pode ficar sem beber pelo resto da vida...

- Eu prometo, Comadre. Nunca mais vou pôr álcool na boca. Acho que agora estou curado.

Tirou o gesso. Nos dias que se seguiram, realizava longos passeios pela fazenda, dizendo que precisava fazer exercícios.

A alegria durou apenas mais uma semana; começou a aparecer bêbado todos os dias, apesar de ter ido á venda apenas uma vez. Ninguém sabia onde ele arrumava a bebida, já que não estava saindo da fazenda.

Foi aí que minha mãe resolveu seguir o Magro Zé. Ele atravessou a porteira e entrou no pasto. Daí em diante não deu para continuar, pois certamente ele a veria; o capim estava muito baixo. Observou-o de longe até perdê-lo de vista. Passou-se uma hora e ele não voltou. Fomos procurá-lo, eu e minha mãe, seguindo a direção que ele tinha tomado.

Encontramos o Magro Zé dormindo. O cheiro de pinga impregnava o ar. A seu lado, no meio de uma moita, uma caixa de cimento, feita com muito capricho. Estava destampada e cheia. Era um quadrado com cerca de cinquenta centímetros cada lado. Ainda havia, lá dentro, quatro garrafas de pinga.

Enquanto pensávamos que ele passeava pela fazenda para exercitar-se, ele estava trabalhando na tal caixa, que ainda lhe dava pinga fresquinha. Havia, com certeza, dado dinheiro para que alguém dos sítios vizinhos lhe trouxesse as garrafas da maldita, pois nenhum conhecido nosso o ajudaria em tal ato.

Dessa vez minha mãe ficou furiosa e ele, envergonhado por sua fraqueza, acabou indo embora, mesmo contra a nossa vontade.

Na partida, choramos. Vendo-o partir, acenando e querendo esboçar um sorriso, minha mãe comentou:

- Aquele corpo franzino, derrotado pelo vício, não parece conter uma alma tão grande... tão boa e generosa... Parece uma alma aprisionada.

Eu apenas observava seus olhos; e nunca mais vi tanta dor num olhar.

Nos primeiros tempos, escrevia. Chegou a nos visitar uma vez e me trouxe balas nos bolsos, como sempre fazia. Mas continuava constrangido; não nos olhava nos olhos, não se demorou. Com o tempo, parou de escrever. Ficamos sabendo, anos depois, que ele estava bem. Havia conseguido um bom emprego, era responsável pela construção de casas populares em uma cidade do interior de São Paulo. Tinha criado jeito.

Tempos depois, outra notícia: Magro Zé voltava para o alojamento na carroceria do caminhão que transportava os empregados da construção; já estava bêbado, caiu do caminhão em alta velocidade, quebrou-se todo. Fraco e também com o pâncreas debilitado, morreu na enfermaria de um hospital qualquer. Morreu sozinho, como vivera durante quase toda a sua vida.

Mas ao enterro todos compareceram: amigos, conhecidos, parentes e curiosos, daqueles que gostam de frequentar funerais.

Saudades do Magro Zé.

Fonte:
Olga Agulhon. Germens da terra. Maringá/PR: Midiograf, 2004.

J. G. de Araújo Jorge (Inspirações de Amor) XXII


EGOÍSMO... NA NOITE DE CHUVA...

Bem que gosto da chuva a escorrer dos telhados...
a olhar-me com seus olhos vagos e molhados,
e a cirandar com o vento, e a cantar nas esquinas...
E gosto de espiar ao longe, as ruas curvas,
pelo olhar das vidraças molhadas e turvas
embuçadas no véu friorento das neblinas...

Paro de ler as vezes, esquecido, um instante,
e olho a rua estirada... a rua que está morta...
Chove... que há de fazer aquele vulto adiante,
encolhido e encostado ao vão daquela porta ?

Nesses dias assim eu me sinto sozinho...
Egoísmo o meu talvez, só penso em meu conforto...
E o homem que se foi, molhado, no caminho ?
e o barco que sumiu na neblina, sem porto ?

Sinto-me bem... Lá fora pelas ruas quietas,
pelas ruas molhadas, úmidas, sombrias,
passam sombras fugazes, rápidas, discretas
e erradias...

Ouço a chuva que chove... A chuva cai nas ruas.
Aqui dentro, que íntimo bem-estar me invade !
Mas... por onde andarão aquelas crianças nuas
que eu vi num bairro triste e longe da cidade ?

Mas eu gosto da chuva, a chuva me faz bem...
Há dias em que a dor da minha alma é cinzenta,
tenho uns vagos desejos de escutar Chopin
enquanto a chuva chove, enquanto o vento venta...

Tão bom a gente ouvir a chuva assim lá fora
e encolher-se entre quentes lençóis, inconsciente,
sem pensar.. . sem pensar... como eu pensei agora
que há alguém num vão de porta a tiritar doente...

Meu Deus, por que hei de estar me entristecendo à toa
se essa chuva que canta é tão suave... é tão boa...

ELEGIA

Ontem                                         
dando-te o verde dos meus olhos,
quis pintar de esperança o nosso sonho
que hoje morre... sem cor...           

Dá-me pois agora o negro dos teus olhos,
quero vestir de luto o nosso sonho
de amor...

ESPERA...

Se tivesse mandado uma palavra: - "espera!"
Sem mais nada, nem mesmo explicar até quando,
eu teria ficado até hoje esperando...
- era a eterna ilusão de que fosses sincera...


Que importa a vida, o Sol, a primavera,
se eras a vida, o Sol, a flor desabrochando?
Se tivesses mandado uma palavra: - "espera!"
eu teria ficado até hoje esperando...

Não mandaste, tu nada disseste, e eu segui
sem saber que fazer da vida que era tua
procurando com o mundo esquecer-me de ti...

E afinal o destino, irônico e mordaz,
ontem, fez-me cruzar com o teu olhar na rua,
ouvir dizer-te: - "espera!..." E ser tarde demais...

ESPERANÇA

Morre o sol, - quando sobre o verde travesseiro
das montanhas além, retintas no seu sangue,
pende a cabeça, tonto, num delíquio, exangue,
como quem chega enfim ao sono derradeiro...

Morre o rio no mar. E o pássaro ligeiro
ao despencar no espaço,- e a flor, num gesto langue
ao se despetalar aos poucos num canteiro
ou a manchar curvada as pétalas num mangue!
que muita vez soltava sem querer

Morre o passado em sombras, longe, na lembrança,
- a saudade de alguém que ainda hoje se ama
e às vezes morre mesmo um verdadeiro amor...

Só não morre a esperança, enfim, porque a esperança
na brasa onde expirou a derradeira chama
ainda vive... ainda vive e espera!... ainda é calor !

ESTÓRIA ANTIGA

Vendo-a, fico a pensar que entre nós, certo dia...
Mas, para que falar desse tempo feliz?
Eu a quis – nem eu sei dizer como a queria!
Ela – Quem poderá dizer quanto me quis?!

Foi romance talvez, foi talvez fantasia,
vida que quase chega, e foge, por um triz...
Nosso amor, mas nem eu me lembro o que dizia!
Quem há de se lembrar do que a sonhar se diz!

Era um misto de sonho e tímido desejo:
eu – temendo manchar uma afeição tão bela!
ela – a entregar-me a vida e a boca num só beijo!

Ah! a Vida... Afinal quem a vida adivinha?
Nem eu – que tanto a quis – sei por que não sou dela!
nem ela, há de saber por que nunca foi minha!

ESTRANHO DESTINO ...

Ficará ressoando indefinidamente
no bronze de tua carne moça de adolescente
essa música infinita
que ainda às vezes escuto, e ainda às vezes me agita
na lembrança das horas distanciadas. . .

Eu fui no bronze vivo de teu corpo, o primeiro
som!
- o toque matinal e alvissareiro
das primeiras badaladas!
  
Que a tua carne morena, esplêndida e tropical
trouxe o estranho destino
musical
de um sino!

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. Os Mais Belos Poemas Que O Amor Inspirou. vol. 2. SP: Ed. Theor, 1965.

João do Rio (A Noiva do Som)


Estávamos na sala malva, a sala das recepções íntimas, das conversas leves em torno da mesa do chá. Mme de Sousa, linda no seu “ teagown”[vestido para o chá das cinco] cor de pêssego, posava entre a trêfega mme. Werneck e a sisuda viscondessa de Santa Maria, e nós, eu e o barão Belfort, já tínhamos esgotado o ataque à música italiana, quando mme. Werneck deu conta da sua última descoberta:

— O barão está triste.

— Pois se venho de acompanhar um enterro.

— Triste por isso? O barão, o homem sem emoções, triste porque acaba de fazer a coisa mais banal desta vida, entre pessoas de sociedade!

— Não é propriamente por isso. Estou triste porque vi enterrar a última mocinha romântica deste agudo começo de século. Se lhes contasse a história da pobre Carlota Paes, ficavam para aí todos a chorar, e antes de tudo, nesta hora agradável, nunca me perdoariam ter envermelhecido os lindos olhos de mme. Werneck.

— Mas, pelo que vejo, a sua história tem a propriedade do dilúvio! fez asperamente a viscondessa.

— Conte-nos isso, barão, disse mme. Werneck; com a sua história contemporânea do dilúvio faremos decididamente coleção de antiguidades sisudas.

Houve um aproximar de cadeiras. O barão bebeu um gole de chá.

— Não conheceram a Carlota Paes? Pois a pobre Carlota Paes, coitada! já com um começo de tísica e um perfil romântico, dava mesmo pena, à noite, no parapeito da janela, muito branca, como desmaiada. Ninguém lhe sabia da vida, e vendo-a assim, à janela daquela velha casa, todos a deploravam. Quando a Carlota atravessava a brutalidade do bairro pobre, com a apagada dor dos humildes aristocratas, trazia no rosto um tal desgosto que era por quantos a conheciam um só lastimar. Também saía apenas para acompanhar a mãe, uma senhora escalavrada e roída como um vaso antigo, para acompanhar com o seu passo de visão a pobre velha carregada de pesadas costuras. Fora assim desde nascida! Olhava os pobres e os parentes como se guardasse na alma a recordação de um mundo melhor, alheava-se deles, e quando a viam recolher ao sobrado em ruína, já todos tinham a certeza de vê-la aparecer à janela, muito loura, e muito branca.

Que fazia ela, assim, por longas horas, alheia à rua, olhando o céu, como um personagem de romance? Coitada! Era o único meio de esquecer a miséria da casa, a miséria que embota a alma e engrossa as delicadezas. Carlota ficava ali, numas atitudes serenas de pássaro triste, com o olhar cravado no infinito, e toda a suavidade sensitiva, quebrada pela incompreensão dos outros, mucilaginava [ruminava, remoía] uma dolorosa expectativa.

Parecia um tipo de lenda à espera da fada que o fosse salvar do bairro escuro e daquela pobre senhora sempre a trabalhar e sempre de preto.

Como estão a ver, era uma menina romântica, e que romantismo, minhas senhoras! Até eu cheguei a admira-la. Tossia mais, estava diáfana, parecia uma ninfa virada em anjo da saudade — porque, decerto, quem lhe visse o olhar e os irresolutos gestos, julga-la-ia perdida de um paraíso artificial. Não lhe pude saber a origem desse esquisito feitio, e certa vez que lhe levava “bombons" e lhe falei em paixão, ela teve um gesto tal, que me esfriou a alma. Também, como sumida da realidade, nunca ninguém a tinha visto à janela baixar o seu severo perfil às vulgaridades do namoro.

Esperava, nada via, e com a sua ansiedade, assim ficava até tarde, muito branca e muito loura, olhando o céu.

Uma vez, no mês de junho, a Carlota estava a chorar, nem sabia bem porque, diante da álgida luz do luar, quando na casa junto, o harpejo brusco e sonoro de um piano sobressaltou-a. Do outro lado lentas espirais melódicas espraiavam-se, envolviam-na. Era, num turbilhão contínuo de notas, de expressões súbitas e diversas, a expressão persistente, torturante do desejo que não se termina e se preludia, do amor cuja volúpia jamais alcança o paroxismo. Ela ficou presa, estarrecida. Quem seria? Nunca ouvira aquilo, nunca sentira os nervos tocados daquele brusco quebranto, daquele epidérmico encanto do som, exprimindo o inexprimível. Os sons, como carícias de rosas, iam a pouco e pouco desfibrando-a, envolvendo-lhe a alma, machucando-a. toda ela palpitava agora com uma tremura de folha ao vento. Teria chegado a felicidade, o impalpável prazer até então vedado? Aconchegou-se mais ao xale, com um arrepio de gozo que lhe subia pelos braços e lentamente se irradiava pela nuca.

Do outro lado a música, velada, num resumo de mil emoções, esboçava paisagens sutis e esfumadas, desfiava risos perlados, cavava-se em soturnas mágoas, e como se a vida extra-humana fosse um só gemido de amor, toda ela espiralava tormentosos queixumes, endechas dolorosas, perdidos soluços de paixão. Para os grandes sensuais só ha um gozo integral que exprimia a ânsia de acabar e a fraqueza humana — o som, a vibração de uma corda na lamentável evocação de vidas que se não realizam.

Para que o sentir da pobre criança fosse mais intenso, no espaço, as estrelas palpitavam e a luz do luar lustrando as casas com o seu misericordioso brilho, entrava pela janela num retângulo de ouro que parecia milagre. Oh! nunca a doce Carlota se sentira tão emocionada, ela que sempre vivera na expectativa do bem!

Essa noite passou-a à janela até muito depois do piano calar, ouvindo-lhe o último som perdido na cinza avelhada do luar, e desde então andava o dia à escuta e toda a noite passava, em que o oculto pianista tocava, presa ao parapeito, entre a luz dos astros e os sons misteriosos. Nós já ríamos da paixão.

— Então a Carlota?

— Ai! meu senhor, continua a viver dos sons, está de todo virada!

E quando eu lhe levava alguma coisa:

Então a sra. d. Carlota sempre com os sons?

Ela pendia na cadeira sussurrando

É tão bom!

Aqueles sons, como um rosário sem fim, que se desfiasse, iniciavam-na numa religião de amor desencarnado, e quando qualquer dificuldade emperrava do outro lado a mão do tocador, a Carlota sentia uma agonia como se hesitasse em compreender todo o alcance pecaminoso da frase.

Vinha-lhe às vezes a curiosidade de saber quem era esse tocador. Passava os dias à espreita; a casa ao lado, uma pensão, não lhe deixava adivinhar, entre as muitas pessoas que entravam, o artista estranho da noite. Perguntou à mãe se a informavam e a velha senhora respondeu que não sabia, que não era possível saber.

Bruscamente, então, perdeu esse desejo. Conhece-lo para que? Bastava a delícia de ouvi-lo, bastava a inconsútil paixão que a rojava a seus pés! E perdia totalmente as noites, essas noites de agosto, traidoramente frias, em que a luz brilha mais, há mais perfume no ar e as brumas, ao longe, parecem sudários consoladores. Era um inebriamento até ao romper da alva. No fim, quase se arrastando, ia para o peitoril, como para uma tortura e do outro lado, a música inquisidora amortalhava-a desabridamente no delirante tropel do amor!

Ah! o gozo do som! Os seus nervos sensíveis chegavam ao pranto, ao soluço, ao sorriso, como hipnotizados. Cada nota já lhe exprimia um sentimento; os trechos repetidos pelo artista ela os seguia, adivinhando acordes, adivinhando sons, como se fizesse o exame da sua alma de amorosa, e de cada vez, mais maravilhada ficava, bebendo a pleno trago o delírio, a morte, o êxtase da música encantada. Decerto, ninguém, ninguém no mundo amava, sentia-se ainda com esse sagrado e impalpável amor. Encostava-se ao parapeito, esperava e era sempre com um susto que, de repente, ouvia abrir-se uma escala, como acordando o piano, e as duas vibrações de bordão, dois acordes de contrabaixo, pesados e sonoros. Depois, um som subia, outro respondia, o aviário se encadeava num trinado. Muita vez, o pianista que fundia a alma com as notas, tocava várias árias simples, com um ar velho, como se os séculos todos chorassem a vida; de outras, eram trechos modernos, trançando no ar uma flora bizarra de nervosos acordes e era então uma revoada de dores, ais sem fim, queixas em arpejos arquejados, rugidos rubros de ciúme, em que o piano parecia abalado e a musica estrebuchava...

Nos últimos dias, a coitada ardia em febre, plenamente fora do mundo, gozando com um gozo feroz de agonizante, o amor incorpóreo, enquanto ao lado, noites em fora, as mãos invisíveis soluçavam a mágoa e a tristeza.

Ora, ontem, quando eu subia a escada íngreme da sua velha casa, d. Ana apareceu-me desgrenhada.

— Venha, acuda, a Carlota morre...

— Como foi isso?

-— Sei lá! Passou toda a noite à janela; o músico não tocou, a chuva, hemoptises*, sangue...

Na sala de visitas, a pobre Carlota, coitada! estava caída numa cadeira de braços, entre as bacias, as botijas, os panos, a lúgubre confusão que precede o eterno descanso. Fez um esforço, estendeu a mão.

-— Estou à espera da música...

Deixei-a, despreguei-me pelas escadas. Era preciso que a música lhe levasse o supremo consolo. Entrei pela casa ao lado.

— O pianista? perguntei ao encarregado.

— O maluco? No primeiro andar, à direita, quarto n°. 5.

Subi, bati com força no quarto, empurrei a porta, desesperado. Encontrei um velho homem, magro e adunco.

— É o senhor o pianista?

— Sou.

— Há aqui ao lado uma criança que agoniza. Vinha pedir...

— Para não tocar hoje. Vá com Deus.

— Não. Venho pedir que toque. Não é possível explicações. Essa menina vive há um mês de ouvi-lo. Está morrendo. Pede-lhe que toque.

O homem passou a mão pelos cabelos.

— Escute, é uma loura, muito loura? Meu Deus! Pobre pequenina! Então ela me ouvia? Vá, eu toco, vou tocar, vá.

Depois, agarrou-me o braço.

— Mas escute, não lhe diga como eu sou. Eu sou feio, perdia o encanto!

Quando outra vez entrei na sala, a Carlota morria. Como a querer beija-la, o luar entrava pelas janelas, num golfão de ouro, e ela, com as mãos de magnólia cruzadas sobre a peito, tinha na face a tortura da agonia.

Mas, subitamente, teve um estremeção. Ao lado, como uma ronda de astros que se despregassem do infinito, o piano explodia uma indizível revolta. Um tropel de sons reboou, entrechocou-se, deslizou, rasgando o ar, da terra as estrelas, com uma dor infinita. Depois, pareceu parar, tremulou brevemente, abrindo um paraíso, onde os arcanjos cantassem e, enquanto Carlota sorria, os acordes, como um coro de rosas, envolveram-na, beijaram-na. E ela morreu, docemente, sem uma contração, ouvindo a música do amor...

         Houve um longo silencio na sala malva, onde há conversas tão alegres, à hora suave do chá. O barão limpou o monóculo:

— Ora, aqui está porque eu estou triste!

— Coisas da sua fantasia macabra, fez a severa viscondessa de Santa Maria.

— Para entristecer a gente, acrescentou mme. de Souza, linda e sentimental.

E, de novo, enquanto mme. Werneck fazia um grande esforço para não chorar, todos nós, com afinco e erudição, atacamos a música italiana.
____________________
*Hemoptise – expectoração de sangue proveniente dos pulmões, traqueia e brônquios, mais comumente observável na tuberculose pulmonar.

Fonte:
João do Rio. Dentro da Noite.

segunda-feira, 12 de agosto de 2019

Varal de Trovas n. 58


André Kondo (A Pétala)


Akemi e Jiro se conheceram durante o hanami*, o tão aguardado encontro com a primavera, sob as floridas cerejeiras. Dentre milhares de pétalas que choviam naquela tarde, sopradas pelos ventos do destino, Akemi e Jiro acompanharam, com o olhar, apenas uma. E o cair dessa pétala, traçando sentimentos no ar, uniu suas primaveras ao repousar no colo de Akemi. Como se estivesse diante do mais incrível espetáculo, Jiro aplaudiu aquele momento, porque lhe pareceu o mais belo de sua vida.

Jiro, com seus 17 anos, sonhava em conhecer o mundo. Queria ser explorador, mesmo sabendo que o mundo já havia sido explorado à exaustão. Porém, para ele, sempre sobrava a esperança de que ainda haveria alguma coisa nova a descobrir. Akemi, com seus 15 anos, sonhava em ser conhecida pelo mundo. Queria ser artista, mesmo consciente de que o mundo tem mais aspirantes a artistas do que pessoas interessadas em ser plateia. Porém, para ela, sempre restava a esperança de que ainda haveria lugar para mais uma estrela no céu.

Nem Jiro tornou-se explorador, nem Akemi artista. Naquele singelo voo de uma única pétala, que atraiu seus olhares e corações, Jiro descobriu que o mundo poderia se resumir em um sorriso de moça. E Akemi, que apenas um único homem poderia ser o seu mundo.

Vieram as primaveras, mas não os filhos no verão. Anos se passaram e a primavera da vida foi se distanciando. Mas em momento algum Jiro e Akemi deixaram de ansiar pelo hanami, quando voltavam para o mesmo parque, para contemplar as flores que desprendiam alegres lembranças.

Após anos de dedicação, haviam construído um lar. Akemi cantava em seu aparelho de karaokê. Jiro descobria, em cada canção de Akemi, uma nova alegria, e logo aplaudia o talento da esposa. Akemi cumprimentava, agradecida, como uma artista agradece a sua plateia. Eram felizes.

Longos anos se passaram, repletos de alegrias efêmeras, mas que pareciam valer por eternidades. Entretanto, por mais longo que seja o voo de uma pétala de cerejeira, chega o momento em que ela chega ao chão. Akemi caiu.

No hospital, Jiro encontrou a esposa em sono profundo, Quando ela acordou, não se lembrou do marido. Não se lembrava de mais nada. Era como se cada primavera fosse a primeira, como se cada pétala fosse igual a qualquer outra, que tenha caído ontem, hoje ou que ainda caísse amanhã. Nada mais era e nem seria lembrado.

Jiro queria levar a esposa para casa, mas os médicos disseram que seria perigoso, pois ambos já estavam velhos demais. Como se a velhice fosse uma doença.

Todos os dias, Jiro visitava Akemi. Falava com ela sobre coisas novas, porque qualquer coisa seria novidade para ela, que nada retinha em sua memória. Animava-se com a proximidade do hanami, quando as cerejeiras estariam floridas. Porém, os médicos não deixavam Akemi sair. A primavera passava.

Anos foram arrancados pela ventania da vida. "O senhor não precisa vir todos os dias aqui", dizia o médico. "Não posso deixar Akemi sozinha", respondia Jiro. "Mas ela não irá notar. Ela sequer se lembra do senhor”. E Jiro respondia: "Mas eu me lembro dela".

Assim, as lembranças de ambos eram guardadas apenas por um. Todavia, por mais persistente que seja a alma de um homem, o corpo não pode resistir para sempre. Sentindo as pernas fraquejarem, decidiu que era hora de prosseguir com o sonho de explorar o desconhecido, antes que fosse tarde demais. Era preciso viver novamente...

Jiro se preparou. Dirigiu-se ao hospital, com a consciência de que aquela seria a última vez. Akemi estava apática, como em todos os anos em que passou ali. Como sempre, não reconheceu Jiro. Mesmo assim, ele tomou a sua mão, a beijou e disse: "Akemi, chegou a hora de partir. Os sonhos não podem morrer".

Beijou carinhosamente o rosto da esposa e fugiu do hospital.

Jiro se sentiu feliz. Mais uma vez, comemorava o hanami. As flores de cerejeira traziam novos significados, novas vidas. Em cada pétala que partia de cada galho, via uma nova possibilidade. Imaginou como teria sido a sua vida, se não tivesse seguido a mesma pétala de Akemi. Teria se tomado um grande explorador? Teria conhecido o mundo? E Akemi? Teria se tomado uma grande artista? Teria sido reconhecida pelo mundo?

Jiro sorriu. Naquele instante, uma pétala caía no colo de Akemi, sentada em uma cadeira de rodas, ao seu lado. Ele a aplaudiu, sabendo que, a partir daquele momento, cada dia seria uma descoberta a ser explorada. E como uma grande artista, Akemi recebia os aplausos de Jiro, o seu mundo. Um mundo que a conhecia e a admirava. Jiro aplaudia.

Aplausos de uma desconhecida plateia, mas que, mesmo anônima, se sente feliz, amando a artista que voa em seu palco... Como uma pétala ao vento, efêmera, mas com o perfume das coisas eternas.

[Vencedor do XIX Concurso de Contos Washington de Oliveira – Fundart (SP)]
____________________________________
Nota:
* Hanami (literalmente "contemplar as flores") é costume tradicional japonês de contemplar a beleza das flores, sendo que "flor" neste caso quase sempre significa sakura ou umê. Do fim de março ao começo de maio, o sakura floresce por todo o Japão, e por volta de primeiro de fevereiro na ilha de Okinawa. A previsão de florescimento é anunciada todo ano pela Agência Meteorológica do Japão e é observada cuidadosamente por aqueles que planejam fazer o hanami, visto que ela floresce por apenas uma ou duas semanas. No Japão moderno, o hanami consiste basicamente de realizar festas ao ar livre embaixo do sakura durante o dia ou a noite. O hanami à noite é chamado de yozakura (sakura noturno). Em muitos lugares, como o Parque Ueno, lanternas de papel temporárias são presas para realizar o yozakura. Na ilha de Okinawa, lanternas elétricas decorativas são presas nas árvores para o divertimento noturno, tais como nas árvores do Monte Yae, perto da cidade de Motobu, ou no Castelo Nakajin.
Uma forma mais antiga do hanami também existe no Japão, que é a contemplação do florescimento da ameixeira (ume). Este tipo de hanami é popular entre as pessoas mais velhas, pois elas são mais calmas do que as festas do sakura, que normalmente envolvem pessoas mais jovens e podem às vezes ser lotadas e barulhentas. (Wikipedia)


Fonte:
André Kondo. Contos do Sol Renascente. Jundiaí/SP: Telucazu Ed., 2015.

Caldeirão Poético XXX


ADÉLIA VICTÓRIA FERREIRA
São Paulo/SP

Tempo Presente


— Discutir o Presente? É falar de utopia!
Ele é simples bocal de acanhada abertura
que a matéria do Tempo, em veloz travessia,
do Futuro ao Passado, esfaimada perfura!

O lampejo fugaz de uma luz fugidia
é esse vulto que passa e passando fulgura,
ao tomar-se um "já fui" na roldana macia
que impulsiona ao Passado a existência futura.

Ao dizeres "eu sou!", já não és! Terás sido!
O que foste partiu nos embalos da voz,
mero "z" de um corisco entre o antes e o após...

Na ampulheta, é o gargalo, o funil reduzido
que as areias do Instante, ansiando viver,
atravessam fulgindo e... deixando de ser.

 ANALICE FEITOZA DE LIMA
Bom Conselho/PE, 1938 – 2012, São Paulo/SP

Espiando Estrelas


Somente em sonhos, posso ver estrelas,
por ser minha visão, um véu espesso,
fico feliz, se em sonhos volto a vê-las,
e quando as vejo, logo me enterneço.

Por as querer, tentando merecê-las,
ao infinito, em preces agradeço,
e por não descobrir como entendê-las,
a minha pequenez eu reconheço.

Sei que os meus dedos jamais vão tocá-las,
por isso é que emoção, nos versos deixo,
tentando aos poucos, quase desvendá-las.

E se fazer poema, é ser esteta,
jamais dos contratempos eu me queixo,
porque Deus deu-me o dom de ser poeta...

ANTONIO CARLOS FONTES
Santos/SP

Bastidores


Não sou um vencedor, falando claro.
Não tenho a contundência da conquista.
Isolam-se de mim, num fato raro,
O prático viver e a larga vista.

Nem sei a substância de que é feito
O anseio de se expor à luz intensa?
Pois vale para mim, como perfeito,
O gosto de viver da só presença.

Eu vejo-me de estar em outra cena,
No reverso do palco engalanado,
Onde o silêncio é vivo e a luz amena.

Mas é, então, que eu sei onde me ponho,
Ser, assim, como alguém visto de lado,
Preso do fogo interno do seu sonho.

ARLINDO TADEU HAGEN
Juiz de Fora/MG

Saudade... Eterna Saudade


Reclamas que a saudade te arrebata,
te traz recordações desagradáveis.
Tu dizes que a saudade em ti desata
velhas lembranças quase insuperáveis.

E faz sangrar as chagas incuráveis
dentro de um peito que se fez sucata
para abrigar lembranças incansáveis
de uma paixão que agora te maltrata.

Mas a saudade, amor, é, na verdade,
um prêmio dado àqueles que se amaram
numa paixão que não sobreviveu.

Querida, tu te esqueces que a saudade
acende luzes que já se apagaram
nas sombras de um amor que já morreu!

CAROLINA RAMOS
Santos/SP

Bendito Seja...


As palavras o tempo apaga e arrasta
— pétalas soltas ao sabor do vento...
O livro é escrínio, que resguarda e engasta
as joias perenais do pensamento!

O livro é amigo silencioso. E basta,
em si trazer as luzes do talento,
para, banindo a dúvida nefasta,
mentes clarear e aos sonhos dar alento!

Bendito o livro que mantém o lume
do saber, que impulsiona e orienta o povo
que na cultura o seu lugar assume!

Bendito seja quem imita os astros,
valorizado a cada instante novo,
à luz dos livros, que lhe doura os rastros!

DIVENEI BOSELI
São Paulo/SP

A Ponte


Eu ia pela ponte estreita, longa e erguida
e, olhando o sol se pôr, eu chorava baixinho,
levando uma incerteza há muito conduzida
na concha destas mãos, vazias de carinho.

Tu vinhas pela ponte, a mão enrijecida,
armada de um gatilho, ao modo de um bentinho,
trazendo no semblante a marca umedecida
de quem, no pôr do sol, duvida do caminho.

Cruzando-se no ocaso, as nossas incertezas
pesaram por demais e a ponte, combalida,
me fez estremecer ao rés das correntezas...

Mas, firme, a tua mão alçou-me para a Vida,
enchendo as minhas mãos das supremas belezas
contidas neste amor, do qual nem Deus duvida!

GLORINHA VELLOSO
Santos/SP

Aconteceu!


Nosso amor, uma cálida paixão,
levando-me a viver um doce encanto,
paixão febril, prenúncio de ilusão,
sem que eu pudesse perceber o quanto,

arrebatou-me a alma e o coração,
fazendo-me cantar um acalanto!
Em palavras e gestos, num clarão
tão assustador, cheio de espanto,

não mais que de repente se findou
aquele amor e tudo se acabou;
restou uma lembrança, uma saudade,..

E hoje, lembrando aquele desalinho,
tento outra vez, seguir novo caminho,
procurando encontrar felicidade!

 IDALINA APPARECIDA COTRIN APPES
Ribeirão Preto/SP

Arrebol Gaúcho


O pôr do sol no Guaíba caindo,
mesclando as águas turvas do estuário,
vai este espelho todo colorindo,
no extasiante, belo relicário!

Eis o horizonte, todo engalanado
de cores mil co'a noite se encontrando,
no rubro traço mostrando encantado,
a mão de Deus, na tela pincelando!

Fim da tarde! Lá se foi mais um dia,
que ao calendário vai e já se integre,
marcando tempo, dor, mais alegria,

nesta querida e sempre Porto Alegre!
Mas... se este dia já se torna outrora,
novo amanhã, virá em nova aurora!

Fonte:
Cláudio de Cápua (editor). Itinerário Poético II: coletânea. São Paulo: EditorAção, 1996.

Carlos Drummond de Andrade (Iniciativa)


É sina de minha amiga penar pela sorte do próximo, se bem que seja um penar jubiloso. Explico-me. Todo sofrimento alheio a preocupa, e acende nela o facho da ação, que a torna feliz. Não distingue entre gente e bicho, quando tem de agir, mas como há inúmeras sociedades (com verbas) para o bem dos homens, e uma só, sem recursos, para o bem dos animais, é nesta última que gosta de militar. Os problemas aparecem-lhe em cardume, e parece que a escolhem de preferência a outras criaturas de menor sensibilidade e iniciativa. Os cães postam-se no seu caminho, e:

— Dona, me leva — murmuram-lhe os olhos surrados pela vida mas sempre meigos.

Outro dia o cão vinha pela rua, mancando, amarrado a um barbante e puxado por um bêbado pobre, mas tão bêbado como qualquer outro. Com o aperto do laço, o infeliz punha a alma pela boca. E o bêbado resmungava ameaças confusas. Minha amiga aproximou-se, com jeito.

— Não faça assim com o pobrezinho, que ele sufoca.

— Faço o que eu quero, ele é meu.

— Mas é proibido maltratar os animais.

— Eu não vou maltratar. Vou matar com duas navalhadas.

Minha amiga pulou como Ademar Ferreira da Silva:

— Me dá esse cachorro.

— Dar, não dou, mas vendo.

Dez cruzeiros selaram o negócio, e, livre do barbante, o cachorro embarcou no carro de minha amiga. Felizmente, anoitecia — e ela penetrou no apartamento, sem impugnação do porteiro. Que prodígios não faz para amortecer o latido dos hóspedes, lá dentro! (Uma vez, ante a reclamação do vizinho, explicou que era disco de jazz.) Já havia três cães instalados, não cabia mais. Tratou do bicho, chamou-lhe veterinário, curou-lhe a pata, deu-lhe vitamina e carinho. Só depois começou a providenciar uma casa de confiança para ele. Seu método consiste numa conversa mole com a pessoa: tem cachorro em casa? Por que não tem mais? Fugiu? Morreu de velho? (Se o cão fugiu, o dono não presta.) Conforme a ficha da pessoa, minha amiga lhe oferece o animal, ou não, e passa adiante.

Desta vez o escolhido foi José, contínuo de autarquia (não carece ser rico, mas bom, paciente, bem-humorado). José tem crianças, espaço cercado e vocação para dedicar-se. Minha amiga ofereceu-se para levar o cachorro ao longe subúrbio, José disse que não precisava, ela insistiu, ele idem. Afinal foram juntos, o carro subiu ladeira, desceu ladeira, e no alto do morro desvendou-se a triste casa de José, que não era casa cercada, era um corredor de cabeça de porco, com cinco crianças, mulher e sogra de José empilhadas.

Minha amiga compreendeu. José era mais pobre do que o cachorro e sem um mínimo de dinheiro não se compra ar livre e espaço para brincar. Seria cruel dizer a José: “Volto com o cachorro”. Felizmente o animal salvou a situação, tentando morder um dos garotos que lhe fizera festa. Minha amiga iluminou-se: “Está vendo, José? Ele não se acostuma. Vou te trazer outro, novinho”. José, desolado, aquiesceu. Minha amiga saiu voando para a cidade, entrou numa dessas casas onde se martirizam animais à venda, e resgatou o menor dos cachorrinhos recém-nascidos, que já penava numa jaula sem água e alimento, a um sol de fogo. “Para este, qualquer coisa é negócio, e melhora a vida.” Levou-o rápido, para José, que o recebeu de alma embandeirada.

Agora, minha amiga tem dois problemas: arranjar um dono para o cachorro do bêbado, e dar um jeito nos cinco filhos de José. Mas resolve, não tenham dúvida.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 historinhas.

domingo, 11 de agosto de 2019

Silmar Böhrer (Lampejos Poéticos) XIV


Olivaldo Júnior (Três microcontos sobre o vento)


Agosto: mês dos ventos

O VARAL DE ROUPAS DA MINHA MÃE
Quando chega o mês de agosto, o varal de roupas da minha mãe, que vive cheio de roupas, já sabe o que lhe cabe: balançar ao pé do vento, que corre solto em suas cordas.

Não é de hoje a novidade. Basta um pequeno sopro, e as camisas se entrelaçam, e as calças se embaraçam, cuidando de misturar as cores, provocando nosso “mini arco-íris”.

Dia desses, porém, o pé do vento foi mais forte, e as roupas do varal da minha mãe renderam-se às forças da natureza e, uma a uma, desprenderam-se e foram para o céu.

O QUE O VENTO UNIU...

Foi na praça, aquela ali, perto de casa. Um menino chamado Joca, do “alto” de seus quinze anos, passeava de bicicleta, quando viu Aninha, de quatorze, na sua bike também.

Conversa vai, conversa vem, o tempo mudou de repente e, para se protegerem de uma rajada de vento capaz de arrancar-lhes a alma, correram, voaram até o coreto da tal praça.

Magrelas para trás, deitadas, inertes, na calçada, ambos, tremendo de medo, se abraçaram instintivamente sob a abóbada do coreto, que timidamente balançava ao vento...

AS FOLHAS SECAS DA MINHA ALMA


Não que eu seja uma árvore, mas também tenho minha época de trocar as folhas. Agosto chega, ou qualquer outro mês em que haja vento, e me ponho a trocar as folhas da alma.

Passo entre outras almas no meio da rua e sei que, secas, minhas folhas vão caindo e se perdendo dentre as folhas que outras almas vão perdendo. Todo mundo tem seu tempo.

Por isso, quando chega o mês de agosto, conhecido “mês dos ventos”, deixo as folhas da minha alma em meio aos sonhos que se foram, que voaram para longe, e me renovo.

Fonte:
Colaboração do Autor

Dorothy Jansson Moretti (Folhas Esparsas)1


AMIZADE

Por mera e singular curiosidade
quis eleger a coisa mais preciosa.
Que ela tivesse a beleza da rosa,
da violeta a real simplicidade;

do ouro tivesse a maleabilidade
e do diamante a força poderosa;
da árvore a acolhida deliciosa,
do sol o alento, da chuva a bondade.

Tudo encontrei. Ao longo dos caminhos,
fui recolhendo, entre pedras e espinhos,
uma porção de cada qualidade.

E de tudo o que enfim juntei, contente,
uma palavra só surgiu-me à frente,
a mais terna entre todas: Amizade!

ESPAÇONAUTA E A TERRA

Às vezes me surpreendo imaginando
o que deve sentir um astronauta
a olhar, da altura, a Terra divagando,
seguindo a órbita, no espaço, incauta...

Quem sabe há de cismar: “Como é pequena!
Que interesse terão os homens nela?
Guerras, paixões a fervilhar na arena,
longe assim, não são mais que bagatela.

A ambição a exigir supremacia,
autos, litígios e burocracia...
que imporiam as urgências do planeta?

O tempo aqui é inócuo e sem remissa...
Não se discute a pressa ou a preguiça
com que a areia se esvai pela ampulheta.”

FANAL

Vagando pelas ondas da poesia,
procurando entre escolhos, a passagem,
eu nem sequer supunha que haveria
de encontrar um amigo na viagem.

Em volta, o oceano... e só monotonia,
e eu tinha tanto verso na bagagem...
Soava em mim tão doce melodia,
mas era apenas minha cada imagem.

Até que a asa do vento transportou-me
à ilha onde um fanal resplandecia,
pondo fachos de luz sobre a paisagem.

Cheguei. Um novo alento arrebatou-me,
e ali deixando quanto verso havia,
eu encontrei meu porto de ancoragem.

MEU PEDACINHO DE CAMPO

Tive ao alcance da vista paisagens,
cada qual em seu gênero tão bela,
mas que o progresso extinguiu em voragens
onde até uma lembrança se esfacela.

Hoje, em novo painel, verdes ramagens
e árvores densas vejo da janela;
cavalo branco solto nas pastagens,
montanhas do outro lado da cancela.

E pensativa, a olhar essa beleza,
eu procuro iludir-me na certeza
tão vaga quanto a luz de um pirilampo,

de que o progresso pare de repente,
e poupe, compreensivo e conivente,
o pedacinho alegre do meu campo.

RETALHO DE PAINEL

O bairro sujo e pobre, a rua esburacada,
a água livre a correr no esgoto a céu aberto,
urubus em disputa à sobra já estragada
de um animal qualquer caído ali por perto…

Um garoto esgravata, em lixo descoberto,
uns restos de alimento e uma bola rasgada,
enquanto um menorzinho, andando a passo incerto,
rói o miolo doentio de uma fruta mofada.

Retalho de painel, comum país afora,
milhares que a cruel desigualdade explora
e que a Morte esqueceu, ao passar, distraída.

Ficamos lastimando o país do hinduísmo,
sem lembrarmos que aqui, bem ao nosso egoísmo,
nossos párias também tem seu direito à vida!

SENTINELAS

O carro deslizando velozmente
e eu, ligado. às mudanças na paisagem,
deparo novo quadro, de repente,
que me insinua singular imagem.

Lá no topo de um morro, lentamente,
três palmeiras agitam a ramagem,
embaralhando as palmas levemente,
somo leques abertos pela aragem..

Três atalaias na torre, em seu posto,
impassíveis nos gestos e no rosto,
desfraldando as bandeiras tremulantes,

tão firmes, tão altivas e tão belas,
parecem-me três vivas sentinelas
velando a segurança dos viajantes.

“ÚLTIMA FLOR DO LÁCIO”

Nossa língua tão bela, tão sonora,
tem sofrido agressão tão aviltante
que nem se sabe como, rude, embora,
ela resiste à investida constante.

Agride-a barbarismo malsonante...
gíria e baixo calão... é o que vigora;
e quem repele a insensatez reinante,
magoado assiste à invasão que deplora.

Onde a joia de arrulhos e de brados
que inspirou poemas e canções e fados,
e o vale renitente ainda cultua?

"Última flor do Lácio”, eu te lamento,
mas sofrendo a teu lado esse tormento,
te espero ainda encontrar... talvez na lua…

Fonte:
Livro enviado pela poetisa.
Dorothy Jansson Moretti. Folhas esparsas: sonetos. Itu/SP: Ottoni, 2006.

Leandro Bertoldo (Mapinguari)


Conta a lenda que existia na floresta um bicho esquisito que, dizem, comia gente... Chamava-se Mapinguari! Esse bicho eu sei que ninguém conhece, mas ele é conhecido de outro bicho que esse... Também ninguém conhece! Sabe que bicho era? Nada mais, nada menos do que o Rei Zilá, o Rei da escuridão... Bem, se isso é verdade eu não sei... O que eu sei é que essa história é mesmo de assustar, e começa assim...

Quero levantar da sombra
e o mundo dominar.
Quero fazer do escuro
um lugar pra se morar.
Quero um mundo diferente,
quero todo mundo respeitando a gente.
Quero um planeta sem cor,
quero que o perfume abandone a flor.
Eu sou Zilá, há, há, há, há!
Eu sou a sombra, há, há, há, há!
Faço do escuro um medo engasgado
e acato o lamento do choro vingado!
A sombra me aquece,
o terror engrandece,
a feiura estremece...
Eu sou o mestre!
Eu sou Zilá, há, há, há, há!
Eu sou a sombra, há, há, há, há!
Eu sou Zilá!

Só que nessa história não tem Zilá nenhum... Ele é só conhecido do Mapinguari, o tal bicho de nome esquisito que vivia na floresta! Ele era grande... Quase quatro metros! Tinha os cabelos vermelhos e as orelhas pontudas. Vivia no meio das árvores e imitava o pio dos pássaros... Fiu, fiu... prrrrit, prrrrit!

Em noite de lua cheia ele se transformava em menino, saia e entrava no terreiro das casas à procura de comida. Todos tinham medo dele, tinham medo da noite e tinham medo da lua...

— Besteira! Isso não existe... — diziam os mais jovens.

— Cuidado, meninos, com o bicho... — diziam os mais velhos.

Um dia, apareceu no terreiro da casa de um caçador um menino estranho. O caçador, ouvindo um barulho, foi até a janela, mas não viu ninguém. Até que ouviu um batido na porta...

TOC, TOC, TOC!

O caçador foi andando até a porta...

— É... Quem está aí?

— É o bich... Quer dizer, é um menino...

— Menino?!

O caçador, então, lembrou que aquela noite era noite de lua cheia! E já meio amedrontado, perguntou:

— E o que você quer, me-me-menino?

— Ah, apenas um pouco de comida!

Comida? Menino?! Lua??!! E o caçador já bastante amedrontado, perguntou:

— E o que, vo-você co-co-come, me-menino?

— Ah, qualquer coisa... Até mesmo um pedaço de pão!

Ah, que alívio! Não era o bicho, pois esse comia gente! O caçador, então, cheio de coragem abriu a porta...

NHÉÉÉÉÉÉ....

Quando ele abriu a porta... Sabe o que ele viu? Viu que, de fato, era um menino, e que ele tinha os cabelos vermelhos e as orelhas pontudas...

— Ai, meu Deus do céu!! É o bicho! É o bicho! Socorro, meu Deus do céu! Ai, ai, ai, ai, ai... Socorro! É o bicho, meu Deus!

— Sim, sou o bicho! Transformei-me em menino e vim me encontrar com o senhor!

— E vai me comer, bicho do mato?

— Do mato eu sou, do mato em vim, mas não vou comer ninguém... Vim para dizer que existo, mas não sou mal como dizem que sou!...

— Veio para dizer isso?! — perguntou o caçador admirado.

— Vim para pedir uma coisa! Não tenham medo de mim, como a todos os meus amigos animais. Vocês é que nos caçam, vocês é que nos comem e, muitas vezes, não por fome...

O caçador ouvindo isso abaixou a cabeça e, envergonhado, pediu desculpas pelas atitudes malvadas dele. Quando levantou a cabeça não mais viu o menino-bicho, que já havia voltado para a floresta. Ouviu apenas um som longo e fino sumindo pela noite.

Fiu, fiu... prrrrit, prrrrit!
_____________________________
Para ouvir o conto narrado:
https://www.youtube.com/watch?v=vibok8YknYk&w=676&h=381

Fonte:
Colaboração do Autor

sábado, 10 de agosto de 2019

Varal de Trovas n. 57


Francisca Júlia (A Inveja)


Havia um homem, extremamente invejoso, que não tinha conseguido ainda arranjar fortuna, apesar dos esforços que fazia, do trabalho diário e das economias.

Este homem, desde que ficou só no mundo, sem o amparo de seus pais, que tinham morrido, entregou-se ao trabalho; mas como nunca foi honesto e empreendia tudo com má fé e malícia, não pode prosperar, de modo que todos, que deviam auxiliá-lo, evitavam-no e negavam-lhe apoio.

Seu principal defeito era a inveja.

Invejava a felicidade de todos, e a todos desejava mal. Se o seu amigo prosperava, cercava-o de pequenas intrigas, maculava-lhe a reputação até vê-lo empobrecer.

Um dia, cansado dos sofrimentos e humilhações por que tinha passado até então, revoltado contra a sorte que lhe era tão adversa, mudou de terra para recomeçar a vida. Empregou-se na casa de um rico moleiro.

Sua ocupação era pastorear as ovelhas, tomar conta do celeiro à noite, evitando a voracidade dos ratos que tudo destruíam. Trabalho suave esse, que lhe rendia algum dinheiro e um tratamento relativamente bom, porque o seu patrão era generoso. Assim viveu ele por muitos dias, feliz, alimentando-se bem e fazendo as economias a que estava habituado.

A inveja, porém, começou a dominai-o de novo, a envenenar-lhe a alma, obrigando-o a revoltar-se contra a crescente prosperidade do seu amo. À noite, fechado em seu quarto, retorcia-se no leito, espumava de raiva, fantasiava altercações com o moleiro, dirigia-lhe impropérios e a inveja ia-o tornando mau cada vez mais.

Daí em diante, já se não importava com o trato das ovelhas, deixando que se desgarrassem do rebanho ou que morressem de peste por falta de cuidados. Agitava a água da azenha, tornando-a suja. Abria a porta do celeiro para dar estrada aos ratos.

Tudo isso ele fazia no intuito de empobrecer o moleiro, fazendo-lhe esses males, causando-lhe prejuízos diários. Mas o proprietário, que já tinha percebido os maus sentimentos do seu empregado, e observado a sua inveja, chamou-o à sua presença e falou-lhe duramente:

— Tu és um mau homem; a princípio conseguiste iludir-me com tua falsa solicitude, com teu fingido amor ao trabalho; agora te conheço melhor, porque de uns tempos a esta parte tenho observado a baixeza de tua alma e a inveja de que está penetrada. De hoje em diante ficas dispensado do serviço da minha casa. Vai com Deus.

E despediu-o, depois de lhe haver pago o que lhe devia, dado alguma roupa e conselhos úteis de moral.

O nosso homem saiu, de cabeça baixa, coberto de vergonha e humilhação.

E jurou vingar-se.

A noite tinha caído de todo. Não havia uma estrela no céu. Tudo era propicio para a realização dos seus desígnios criminosos.

Armou-se de um punhal e encaminhou-se para a casa do moleiro.

Tudo, porém, estava fechado, e ele receava acordar os cães, que eram bravos.

Então, mudando de estratégia, resolveu vingar-se de outro modo: quebrar a roda do moinho.

E partiu, pé ante pé, de cócoras, para confundir-se com o mato e aproximou-se do moinho para quebrar-lhe a roda. Como era dotado de muita força, agarrou num dos raios, suspendeu-se, e, com o auxilio dos pés, pensou quebrar um por um todos os raios; estava nesta posição quando um grosso jato d'água se desprende de cima, apanha a roda, fá-la virar impetuosamente, e mata o desgraçado sem lhe dar tempo de gritar por socorro.

No outro dia, quando o moleiro soube do ocorrido, ergueu as mãos ao céu e rogou a Deus repouso para a alma daquele infeliz.

Fonte:
Francisca Júlia. Livro da Infância. Revisão ortográfica: Iba Mendes.

Luiz Damo (Trovas do Sul) I


A amizade pode ser
uma brilhante virtude,
pois ela nos faz crescer
num mar de solicitude.

As pedras da caminhada
fazem lutar todo o dia,
se soltas, nos valem nada,
juntas, têm grande valia.

Às vezes, nós perdoamos.
E a natureza? Jamais!
Deus perdoa quando erramos
até nos passos finais.

A vida chama a atenção
com perguntas e respostas,
sempre tem a solução,
basta não darmos as costas.

Cada momento vivido
se traduz numa vitória,
que sempre será relido
dentre as páginas da história.

Desde o primeiro momento
até os instantes finais,
seja a vida um testamento
só de amor, morte jamais.

É de um gesto pequenino
que a mudança resultou,
maior, somente o divino,
quando este mundo criou.

Enquanto puder andar
pelas estradas sem fim,
possa Deus se apoderar
do vazio dentro de mim.

Fazer tudo não consigo
para o mundo melhorar,
ó Senhor, conte comigo,
pois contigo vou contar.

Nem sempre a dor tem ferida,
às vezes, vem da saudade,
quem nunca a sentiu na vida
jamais amou de verdade.

Nenhuma planta pereça
sem perfumar os caminhos,
nem antes que amadureça
o menor dos seus frutinhos!

Nenhum tempo poderá
ser melhor do que o presente,
o que foi, não voltará,
e o vindouro está pendente.

Ninguém se sinta traído
por qualquer adversidade,
nem veja diminuído
o leque da dignidade.

O pranto rola no rosto
deixando transparecer,
duras marcas do desgosto
qual sequioso entardecer.

O sol fica entusiasmado
vendo a terra transbordar,
de luz, embora nublado
o dia se apresentar.

Perde-se tempo chorando
na esperança de ganhar,
no entanto, se cresce quando
no pranto se aprende a amar.

Se as escarpas ou espinhos
todos forem superados,
iremos pelos caminhos
com passos acelerados.

Sem temer dicotomias
que repelem nosso ser,
lutamos todos os dias
para a batalha vencer.

Tantas flores perfumadas
servem para embelezar,
ornamentam as estradas
por onde vamos passar.

Todo aquele que trabalha
pode ser um vencedor,
vencendo qualquer batalha
é mais que trabalhador.

Fonte:
Livro enviado pelo autor.
Luiz Damo. A Trova Literária nas Páginas do Sul. Caxias do Sul/RS: Palotti, 2014.

sexta-feira, 9 de agosto de 2019

Varal de Trovas n. 56


Carolina Ramos (A História de Amélinha)


Não! Esta não é, absolutamente, um história autobiográfica. Convenhamos, logo de início, que o simples fato de ter sido escrita por uma mulher, não dá direito, a qualquer, de encostá-la na vida da autora. Uns esbarrõezinhos, vá lá, até que são permitidos. Que no âmago de toda mulher, há sempre uma Amélia em potencial, pronta a assumir o seu lugar. E se não a estrangulam, se não abafam os seus impulsos, a própria vida acaba por facilitar-lhe a ascensão. E depois que ela assume o posto, ninguém mais a tira de lá!

Mas, vamos à história de Amélinha, sem mais preâmbulos, nem delongas. Começa com um desejo:

Maria Amélia, Amélinha, para os íntimos, queria ficar doente! Isso mesmo. Queria ficar doente! Só! Desde pequenina, quando contrariada, acudia-lhe sempre esse mesmo desejo. Queria adoecer, ficar bem doente! Morrer, até! Para que o pai, a mãe, a professora ou quem fosse, tivessem pena dela e se roessem de remorsos, por não lhe terem dado atenção ou satisfeito seus insignificantes caprichos de menina.

Agora, mulher madura, o desejo continuava o mesmo. As razões, claro, eram bem outras. Assoberbada de trabalho, em suas lutas domésticas, sem férias nem feriados, ainda queria ficar doente, mas, para poder descansar. Para ter o direito, sagrado, de relaxar o corpo, sempre tenso, um pouquinho que fosse!

Trezentos e sessenta e cinco dias, ano após ano, de faina ininterrupta, criando filhos, cuidando do esposo, da casa, etc. etc, faziam-na, para todos, mãe e esposa exemplar! Mulher nota 10!

Ajudantes, nem pensar! No meteórico passar por sua vida, só lhe haviam trazido dores de cabeça. A última até lhe roubara as joias modestas, de pouco valor, mas, de um preço estimativo sem tamanho! As correntinhas partidas, as medalhinhas mastigadas pelos dentes afiados da primeira dentição, até os reloginhos que haviam tiquetaqueado no seu pulso, em diferentes etapas, marcando a pulsação das horas mais emotivas, tudo fora levado, sem volta! Desgosto dos maiores!

Amélinha era pródiga em dar. Mas, não admitia que lhe tirassem um só alfinete! Indignada, decidira-se: — Ninguém mais entraria pela sua porta, sob pretexto algum, com
intenção de enganá-la!

Reunira forças, enchera os pulmões, lançara-se à batalha, de vida ou morte, para sustentar como mulher, a nota dez! Difícil! Cada vez mais difícil, mas, seguia no posto.

Findava dezembro e dizia com satisfação: — Sobrevivi!

Entrava janeiro, e puxava novamente o fôlego, arregaçando as mangas, quando as tinha, dispondo-se a enfrentar a sobrecarga de mais doze novos meses. Sentia o fôlego cada vez mais curto e o peso do trabalho crescer, alarmantemente, para braços que se enfraqueciam.

Valiam-lhe as máquinas. Bendita tecnologia que fazia de cada uma delas autêntico Cyrineu, a aliviar ombros frágeis, domesticados! Na verdade, elas mesmas, as máquinas, eram facas de dois gumes. Dispensavam ajuda de outras mãos, somando tarefas a serem desempenhadas, até a estafa total, por legiões de donas de casa sobrecarregadas, que ainda se orgulhavam de as possuir! Certo, que sem elas, seria bem pior!

Amélinha olhava o tanque cheio de roupa, com desânimo infinito! A máquina de lavar, comprada com tanto sacrifício e já com boa folha de serviços prestados, resolvera não cooperar. O velho e escravizante lesco-lesco a esperava, desgastante e execrado por tantas e tantas Amélias, em todo os tempos! Mais essa!

Maria Amélia, Amélinha, para os mais chegados, demorou-se na auto-análise: — Por que trabalhava tanto?! Talvez, influência do nome, estigmatizado pelo cancioneiro popular. Arrancou do peito um suspiro profundo, O nome era bonito, mas, por via das dúvidas, não o passara a nenhuma das filhas.

Queria ficar doente! Isto, sim, é o que queria!

Nada de grave, não. Uma doençazinha de nada, passageira, que levasse o caçula a receber o pai à hora do almoço, dizendo;

— A mãe tá dodói... tá deitada, tadinha!

Doce ilusão! Em troca, esperava pelo beijo convencional do marido e a frase de todos os dias:

— A boia tá pronta? Tô com uma pressa danada!

Era o mesmo que pisar no acelerador, Amélinha esquecia tudo o mais, para abastecer a mesa, cercada de estômagos vazios e olhos ávidos.

Uma gripezinha à-toa seria o bastante. Logo ao primeiro espirro, contudo, contaminava toda a família. Todo o mundo ía para a cama e a sina de Amélinha, implacável, a induzia a continuar de pé, tratando de todo o mundo!

Uma apendicitezinha, sem maiores consequências, também não viria mal. Nem isso conseguia! Até as amígdalas estavam firmes no posto, sem alarmes maiores que simples rouquidões passageiras.

A memória guardava apenas os surtos infantis de catapora, sarampo, coqueluche, etc. Depois disso, nada mais lembrava que pudesse contrabalançar com a pedreira do marido, sempre ativa, e que, periodicamente lhe rendia alguns dias de repouso, espécie de gestação, até que o rim, aos berros, decidisse dar à luz a mais um precioso cálculo; guardado em vidrinho, numa gaveta, e de lá só saído para ser exibido aos amigos, com a satisfação de pai, que apresenta o filho à sociedade.

Vez ou outra, uma enxaqueca brava ameaçava derrubar Amélinha. O tempo breve que a prendia ao leito, no entanto, era tão cruciante, que nem dava gosto! A enxaqueca maltratava demais! Não valia a pena! Depois... as obrigações acumuladas exigiam o dobro do trabalho!

Não havia jeito. Amélinha morreria de pé! Seu único mal era, na verdade este: — estava doente de vontade de ficar doente!

Tinha pronta até a maleta, arrumada com carinho, com duas camisolas sem uso, com rendas nas mangas e no decote. Neste, a agulha pudica acrescentara alguns pontos, para quebrar a ousadia. Que, ao marido, apenas, cabiam maiores abrangências. Um "pegnoir" rosa, os chinelinhos da mesma cor, acetinados, escova de dentes, pasta sabonete e talco, trocados, de tempo em tempo, por perderem o perfume, compunham a pequena bagagem.

Queria ir bem bonita para o hospital, para ser atendida por um médico de roupa toda branca, de boas maneiras e voz mansa. Em suma, causar boa impressão! Não esqueceu, por isso, a bolsinha plástica, fechada a zíper, portadora de "rouge", batom e outros acessórios indispensáveis à maquiagem. Não admitia ser uma doente feia e amarela!

Por ocasião do nascimento do primeiro filho, pensara chegada a hora da glória! Dera um "chega pra lá" ao conteúdo da maleta, para acomodar o enxovalzinho do neném. E, deliciada, aguardara com ansiedade a corrida para o hospital, o que, ainda daquela vez, acabou por não acontecer!

Dona Marta, "aparadeira" da vizinhança, e cujos zelos Amélinha desdenhava, no firme propósito de que jamais os solicitaria, teve de ser chamada às pressas, madrugada adentro, que o menino tinha pressa, ainda maior, em chegar!

Assim, a pausa repousante e tão desejada, foi adiada indefinidamente!... Na tarde daquele mesmo dia, a moça lavava fraldas do pequenino chorão que, em clarinadas sonoras, valentemente conquistava espaço nas vinte quatro horas, laboriosas, da mãe!

Os outros filhos, invariavelmente, seguiram os mesmos cômodos moldes. Dona Marta, instalada no bairro, era sempre a solução mais fácil e, por que não dizer?, mais econômica. Seus favores não podiam ser preteridos a troco de nada.

E foi assim que Amélinha acumulou cansaços numa faixa etária que se estendia dos dezoito aos sessenta e dois anos.

A dorzinha boba, que de quando em vez lhe cutucava o peito, nem chegava a impressionar.

Amélinha morreria de pé! Não sabia como, nem onde e nem quando. Apenas, sabia que seria assim!

Quando a encontraram, naquela tarde fatídica, estava na cozinha, já fria, cor de cera, tendo à frente a costumeira pilha de panelas e pratos, devidamente ensaboados.

O corpo rijo, tombado para a frente; a cabeça mergulhada na pia, lembrando um triste L invertido.

Tombara em pleno campo de batalha! Em combate! Soldado anônimo, sem qualquer condecoração!

Morrera de pé!

... E, Amélinha, que trabalhara tanto para tanta gente, acabou por dar enorme trabalho para todos, porque... nem morta, conseguiram deitá-la!!!

Fonte:
Carolina Ramos. Interlúdio: contos. São Paulo: EditorAção, 1993.

Trovadores Potiguares que Deixaram Saudades (L – W)


Apesar do arranha-céu,
Natal mostra a mesma lira
dos versos de Otoniel
e dos poemas de Palmyra.
Luiz de França Morais
Belém/PA 1916 – ????, Natal/RN


Rugas são marcas da vida
que a mão do tempo traçou,
lembrando à face esquecida
que a mocidade passou.
Luiz Dutra Borges
????


Trova – rosário de contas,
de sete contas de luz...
– Estrela de quatro pontas
a iluminar minha cruz.
Luiz Rabelo
Natal, 1921 – 1996


Não fico mais esperando
aquilo que sonho ter,
pois sinto que estou plantando
onde nunca vai chover.
Luiz Francisco Xavier
Santana do Matos, 1935-????, Natal


Ó! Que manhã sacrossanta!
Ó! Que vivenda querida!
Como é doce a voz que canta
na manhã rósea da vida.
Manoel Rodrigues de Melo
Macau, 1907-????, Natal


O vento como em gemidos,
que só a dor sabe tê-los,
gelado, como a saudade,
vem me beijar os cabelos.
Manuel Lins Caldas
????


E se os meus rumos mudaram,
deles me restam lembranças
que, em meu coração, ficaram
como fontes de esperanças!
Maria Antonieta B. D. de Sousa
Baixa Verde, 1931 – ???? Natal


A vida, esse mar de abrolhos,
ensinou-me a navegar
no lago azul dos teus olhos
quando se põem a chorar.
Maria Eugênia M Montenegro
Lavras/MG 1915 – ???? Natal


Da senzala ao pelourinho
era bem pequeno o espaço...
– Mas tão largo o seu caminho,
quão sinistro o seu abraço!
Maria Silva Carriço
????


Comparo os meus pensamentos
às aves de arribação
que, em bando, ao sabor dos ventos,
navegam pela amplidão.
Mariano Coelho
Assú, 1899 – 1985, Natal

A corrente de esplendores
que trazes sempre no olhar
é tecida dos amores
da lua beijando o mar.
Minervino Wanderley
????

Qual andorinha tristonha
do seu bando desligada,
a minha alma sempre sonha,
mesmo que esteja acordada.
Nati Cortez
????


Minha mãe quando rezava
aos pés da Virgem Maria,
ao meu olhar que a fitava,
outra santa parecia.
Olegário Júnior
????


Felicidade, onde moras?
O teu rumo desconheço.
Parece que me mandaram
errado o teu endereço.
Palmira Wanderley
1894-1978


Do viver enfrento as provas,
e de alma alegre ou sofrida,
vou compondo minhas trovas
pelos caminhos da vida.
Reinaldo Aguiar
Natal, 1921 – 2010


É feliz o desgraçado
tombado no chão da vida,
que pode ser levantado
pelas mãos da mãe querida.
Renato Caldas
Assu. 1902 – 1991


Certo vaqueiro, tristonho,
já vencido pela idade,
afaga, como num sonho,
seu alazão – a saudade...
Revoredo Netto
Natal, 1930 – 1995

O Amor – bom senso ou loucura –
é como a fatalidade:
foge de quem o procura
e chega em qualquer idade.
Rômulo Wanderley
Assu, 1910 – 1971


Eis o futuro ou destino
desta pobre humanidade:
o lengalenga de um sino,
uma cova... uma saudade...
Sebastião Soares
Pau dos Ferros, 1918 – 2008, Natal


Possui um divino encanto,
é mais um gênio, talvez,
quem de preces faz um manto
para cobrir a nudez.
Segundo Wanderley
????


Contemplo o céu estrelado
no silêncio da amplidão,
e penso que ele é bordado
de rendas feitas à mão.
Ulisses Freitas Júnior
????

Esta flor da mocidade
passando com tanta graça,
me faz pensar, com saudade,
ser o antigo amor que passa.
Wilson Correia Dantas
Ceará-Mirim, 1920 – 1998, Natal


Fonte:
Luiz Gonzaga da Silva

Christa Wolf (Associações em azul)


Quem gritou de alegria quando a cor azul nasceu?
Pablo Neruda


Pablo, o senhor faz perguntas estranhas. O azul? Nasceu? Mas ele não estava aqui desde sempre? Como o azul do céu sobre a paisagem da infância? Como o azul mais imortal que existe? Lá fora, se estende o mais belo céu azul e você aqui dentro debruçada sobre seu livro. Ainda vai tornar-se uma sabichona reprimida e etérea e não conseguirá depois homem nenhum.

O azul escreve histórias.

O amigo de Annemarie quer ir buscar para ela o azul do céu, ele disse. Vou trazer para você o azul do céu. Ah, deuzinho querido. Isto alguém diz apenas assim, à toa. Mas lhe é fiel, ela diz. Quem acredita. Ela é loura, por isso usamos azul, diz seu namorado. Azul, azul, azul, azuis são todas as minhas roupas. Azul é a cor da fidelidade. Mas sapatos vermelhos, até deu-lhe de presente, recentemente. Vermelho e azul anil decoram o pernil da leitoa. E Kasper, sua patroa. Bem que ele gosta de gazetear, seu namorado, papo pro ar azul. Hoje azul e amanhã e depois de amanhã outra vez. Segunda-feira azul. Ora, você vê. Segunda azul, terça fome, isto a gente conhece. E agora, mentavelmente, ele cambaleia lá fora na praça e a isso canta: azul da centáurea é o céu sobre o Reno deslumbrante. Totalmente azul, o ser humano. Também nenhum adepto da Cruz Azul o socorre mais. Azul da centáurea são os olhos das mulheres quando bebem vinho. Isto você pode dizer bem alto. Outro dia ele a espancou até que ficasse verde e azul. Bem, você vê. Daí seu irmão disse, agora porém ele pode levar a sua e experimentar suas próprias estrelinhas azuis, e, com uma bela surra, azulou-o devidamente. Ele mais uma vez escapou de uma pior com um olho azul. Bonito e bom. Mas agora, tomara. Annemarie não vai mais se deixar enganar por ele e cair nessa do perfume azul. Tão ingênua, só vendo imaculado azul, decerto ela não pode ser.

Viemos da montanha azul, tesouro, ah, tesouro, estás tão distante daqui. Nosso professor é tão burro quanto nós, cantávamos. O dia está lindo, o céu é azul, senhor professor, queremos sair para passear. Querem mesmo ganhar uma carta azul? Ou o quê!? Melhor que observem bem as cores do arco-íris: vermelho laranja amarelo verde azul índigo violeta. VLAVAIV. Ou preferem novamente escutar apenas alguma coisa sobre a guerra, quando as balas azuis voaram à volta das orelhas dos nossos? Em marcha de passos uniformes. Uma canção. Os dragões azuis. Cavalgando num brinquedo tilintante, eles atravessam o portão.

Não podem ao menos uma vez cantar algo bonito? Danúbio azul, tão azul, tão azul. Esta foi a primeira valsa que dancei com Hans. Sim, sim. Sempre o mesmo. Terminou mal com seu marinheiro azul. Grete não se conforma. Um marinheiro azul, que navega ao redor do mundo. Ele amava uma garota e não tinha nenhum dinheiro ou fundos. A garota enrubesceu e quem era o culpado? O marinheiro azul na loucura do amor desvairado. É o tipo de coisa que pode acabar em fiasco. Precisamente, a mulher X teve de ser removida na ambulância com luz azul. Ácido cianídrico azul, digo apenas. Já tinha os lábios completamente azuis. Neste caso qualquer socorro chega tarde demais.

O tipo elegante que ela abandonou ali sentado deve ter tido sangue azul, em todo caso ele disse isso a ela. Rei Barba Azul, a gente conhece bem. "O cavaleiro estrangeiro tinha uma barba inteiramente azul e, diante dele, ela sentia um pavor que, tantas vezes quantas o mirasse, era-lhe sobremodo aterrorizante." Tivesse atentado para seu sentimento. Mas ele a presenteou com uma raposa azul, ela pensou, alguém assim não pode mentir, e com os joelhos trêmulos, assombrada, intimidou-se.

Isto aqui custa ao senhor no entanto um par de lóbulos azuis que, antes de tudo, querem ser merecidos. Se tanto. Para a escrita clara, usamos sempre tinta azul. Mas primeiro fabriquem-me por favor uma pausa azul. Num tal projeto, não se deseja qualquer tiro lançado em vão para o ar azul. Não obstante, alguns atiram no azul e acertam o preto.

Antigamente, tínhamos as canecas de leite cheias de cerejas azuis em duas horas. E, à tarde, o bolo já estava pronto. Carpa azul para o Ano-Novo? Jamais. Carpa ao molho de cerveja, assim é que se faz. E truta azul é algo para gente fina. Azul não é simplesmente uma cor para produtos alimentícios. Mais para flores. Violetas, por exemplo. No prado, curvada sobre si mesma e anônima, havia uma violeta, era uma graciosa violeta. Repolho azul, no sul, como quiser, E licor azul, este sim bem que existe! Curaçao, ou como ele se chame. E queijo que se denomina Blue Master, com mofo dentro, nada para mim. Mas como cultivam batatas e depois podem chamá-las "camundongo azul", isto restará para mim eternamente incompreensível. Algo assim antinatural...

Azul, Pablo, é a cor da saudade. Isto o que o senhor quis dizer. A primavera deixa sua fita azul outra vez tremular através dos ares. As colinas azuis na distância azul. Sobre tão azuis horizontes. Bandeiras azuis a caminho de Berlim. Azul-da-prússia, azul-berlim, importante pigmento azul, extraído do sulfato de ferro e do ferrocianeto de potássio amarelo. Como fino traço sobre porcelana. O azul cobalto profundo dos vasos de vidro, tigelas e cinzeiros, cor predileta. Toalhas de mesa com estampa impressa em azul, antiga padronagem. Técnica que se extingue.

Uma vez na vida estar no Adriático azul. Ó céu, radiante azul. A borboleta azul, que esvoaça à nossa frente. O pássaro azul da artista Liessner-BIomberg sobre a cortina de boca, para o cabaré dos emigrados russos, na Berlim dos anos 20. O cavaleiro azul de Kandinsky. A torre dos cavalos azuis de Franz Marcs. A fase azul de Picasso.

A hora azul entre dia e sonho. Azul noite. Azul dos pombos. A luz azul da fonte do conto de fadas dos irmãos Grimm, a qual não apenas proporciona satisfação ao bravo soldado tratado com injustiça, quando ele acende seu cachimbo, mas traz para ele o reino completo com a filha do rei. De outra forma não pode ser.

A divisão azul do general Franco na Guerra Civil Espanhola. A bandeira da Europa em azul. E os pacotinhos de produtos alimentícios que os americanos lançam no Afeganistão, ultimamente em azul, não mais em amarelo, para que eles os distingam das bombas de aspersão amarelas, que eles também atiram.

A flor azul, ao contrário, Pablo, um símbolo do romantismo alemão, uma invenção de Friedrich, conde de Hardenberg, chamado Novalis. Cujo herói de romance, Heinrich von Ofterdingen, a encontra em sonho, "uma grande flor de azul luminoso, que logo de início achava-se ali na fonte e o tocou com suas folhas largas e brilhantes... Ele observou-a longamente com indizível ternura e nada mais via além da flor azul". E ele segue sua imagem encantadora e ideal e vê nela "uma proteção contra a mesmice e a vulgaridade da vida", um feitiço contra a monotonia do mundo terreno.

Mas quem gritou de alegria quando o azul nasceu? Em quem o senhor pensava, Pablo? Agora eu sei; foram os extraterrestres que gritaram de alegria ao ver como a Terra, o planeta azul, nascia,

(Traduzido do alemão por Laura Barreto)

Fonte:
Nadine Gordimer (org.). Contando histórias. SP: Companhia das Letras, 2007.