quarta-feira, 30 de outubro de 2019

Carlos Drummond de Andrade (A Visita Inesperada)


A empregada correu na frente, para avisar:

— Me desculpe, madame, mas a campainha tocou e mal eu fui abrindo a porta, essa madame aí foi entrando e dizendo que precisava falar com o doutor.

Atrás vinha uma senhora de porte altaneiro, que se plantou diante da mesa onde jantavam quatro pessoas e disse:

— Boa noite. Vim aqui buscar meu marido.

Os comensais entreolharam-se, em conferência muda de espantos que não encontravam expressão verbal, nem mesmo um oh!

A dona da casa, refazendo-se, quebrou o silêncio:

— Não quer sentar-se?

— Obrigada. Não pretendo me demorar nesta casa.

E voltando-se para um dos homens sentados:

— Agenor, vamos embora?

Agenor, sem levantar o rosto, respondeu:

— Estou jantando.

— Peça licença para interromper o jantar e vamos para casa.

— Estou jantando, já disse, e não costumo interromper minhas refeições.

— O lugar de você fazer refeições é a nossa casa, e não me consta que esta seja a nossa casa.

— Com licença, Heleninha — disse o outro homem. — Agora me lembrei que tenho de visitar um doente no Grajaú antes das dez. Vamos embora, Teresa?

— Não, Euclides — disse a dona da casa. — Prefiro que vocês fiquem. Não vejo nenhum inconveniente em que este assunto seja tratado em mesa-redonda, tanto mais quando Teresa é minha irmã e você é meu cunhado. E então, Agenor?

— Gosto de jantar tranquilo — respondeu Agenor. — Além do mais, não acho correto que pessoas estranhas entrem em domicílio alheio sem serem convidadas.

— Perdão, Agenor, essa pessoa estranha é sua mulher legítima, e a pessoa em cuja casa você está jantando é que é realmente um elemento estranho à nossa sociedade conjugal — objetou a recém-chegada.

— E se o diálogo fosse desenvolvido no salão, depois do jantar? — propôs Heleninha, ríspida.

— É mesmo — aprovou Teresa. — Você não acha, Lucrécia, que tudo pode ser conversado daqui a pouco? Estamos quase acabando.

Lucrécia transigiu:

— Bem, eu espero quinze minutos, não mais.

— Nesse caso, aceita um café? — sugeriu Heleninha, com um meio sorriso de circunstância (ou de vitória prévia?).

A invasora pensou um instante para responder:

— Aceito.

O dr. Euclides levantou-se e ofereceu-lhe uma cadeira, que Lucrécia, antes de sentar-se, recuou um pouco, a significar que absolutamente não participaria da mesa da amante de seu marido.

Voltando o silêncio, coube a Teresa realimentar a conversa, dizendo para a irmã:

— Heleninha, este seu Bianco é espetacular. Um nu tão sensual, e ao mesmo tempo tão casto.

— Pois eu ainda gosto mais dos trigais do Bianco, todo aquele esplendor da terra, que ilumina a parede em redor — disse o dr. Euclides.

— Se é Bianco, é sempre bom — comentou Agenor, saindo do mutismo em que mergulhara após a última estocada de sua mulher.

Entraram a falar de pintura, em sobremesa lenta.

— Aprecio os seus conhecimentos em matéria de arte, Agenor, mas não podia andar mais depressa com essa mousse de chocolate que está no seu prato? — agrediu outra vez Lucrécia.

Agenor continuou brincando com o talher na orla do prato, enquanto discorria sobre o fim da arte conceitual.

— Está se esgotando o tempo regulamentar — continuou ela — e eu não saio daqui sem você.

— Vamos tomar o café na sala — atalhou Heleninha, um pouco nervosa.

Levantaram-se todos.

— O meu cliente não pode esperar, o estado dele não é bom — disse Euclides. — Você vai permitir que eu me retire com Teresa.

— Não, querido, você e Teresa vão ficar aqui. O cliente inclusive terá vida mais longa, e é falta de educação se despedir logo depois da comida — objetou Heleninha.

Dirigiram-se todos para o salão.

— Muito bem — disse Heleninha, sentando-se como os demais, enquanto se servia café. — Agora podemos examinar calmamente a situação.

— Concordei em tomar café mas não concordei em examinar nenhuma situação — ressalvou Lucrécia. — Aliás, ela é muito clara. Agenor é meu marido e eu vim buscá-lo, simplesmente.

— Que é que você diz a isso? — perguntou Heleninha, virando-se para Agenor.

— Não preciso de guia para me levar a essa ou àquela parte — respondeu ele, olhando para o teto.

— Talvez precise, Agenor. Você saiu de casa às sete e meia da manhã, prometendo voltar para o almoço, e até agora. Todos os dias a mesma coisa. Concluo daí que lhe faz falta alguém para reconduzir você ao lar conjugal.

— Sou maior de vinte e um, tenho minhas pernas.

— Eu sei, ninguém está negando isso.

— Quando me sinto bem num lugar, satisfeito, relaxado, prefiro ficar mais tempo nele.

— Até certo ponto é razoável, meu caro. Mas se você se sentir bem no Regine’s, por exemplo, será que vai passar o resto da vida lá?

Heleninha atalhou:

— Dada a natureza do diálogo, não seria melhor vocês ficarem à vontade, sem estarmos presentes? Nós iremos lá para dentro, enquanto vocês conversam.

— Não. É ótimo que você esteja presente — disse Lucrécia — porque você é exatamente o motivo feminino pelo qual Agenor não para mais em casa. Quanto a Euclides e Teresa, até é bom que eles fiquem sabendo, se é que não sabem.

— Você está me responsabilizando pelo fato de seu marido não parar em casa?

— Claro, queridinha. Não é aqui que ele janta praticamente de segunda a domingo? E quando não janta aqui, não é com você que ele janta fora de casa? Com você que ele vai ao cinema, ao teatro, a Cabo Frio, passeia de lancha, faz não sei mais o quê?

— Admito que nós fazemos juntos uma porção de programas sociais, mas você também me fará a fineza de admitir que ele não faz nada obrigado, faz porque quer, porque gosta de fazer. Eu não administro Agenor.

— É possível. Em todo caso, e sem querer aprofundar esse ponto, convido Agenor a sair comigo para passar uns tempos em nossa casa.

— Estou bem aqui — respondeu Agenor, examinando atentamente as unhas.

— Você pode ir, eu vou mais tarde.

— Procure ser gentil, meu bem. Se não quer que sua mulher o acompanhe, pelo menos acompanhe sua mulher até a casa. Parece que ainda estamos casados.

— Parece — confirmou Agenor. — Você disse a palavra certa. Parece, mas não é verdade.

— Como? No civil, no religioso, você põe em dúvida?

— Os papéis, não. Mas a realidade atrás dos papéis. Eu me sinto solteiro.

— Escute aqui, Lucrécia — disse Teresa. — Não quero me meter na vida de vocês, mas quem sabe se um desquite não pegava bem? No meu caso deu certo, não foi, Euclides?

— É — confirmou Euclides. — No meu também. Nosso casamento vai navegando em mar azul.

— Agradeço o seu conselho, Teresa — disse Lucrécia. — Mas desquite não é vitamina C, que se receita para todo mundo. Eu não quero me desquitar de Agenor.

— Está vendo? — exclamou Agenor, com um gesto desalentado, de mãos abertas, na direção de Heleninha.

— Então, permita que eu também meta a colher no assunto, embora não seja do meu feitio — aparteou Euclides. — Se você não quer o desquite é porque lhe tem amor. Se lhe tem amor, procure reconquistá-lo, ou aceite-o como ele é.

Heleninha repeliu a lição, antes que Lucrécia o fizesse:

— Essa não, Euclides. Ele é quem tem de decidir. Vamos, Agenor, não fique com essa cara de habitante de outro planeta, que não tem nada com a gente.

— Querem saber de uma coisa? — bradou Agenor. — Vou-me embora, mas não é para casa. Vou sozinho, recuso companhia. Não aceito discussão coletiva dos assuntos de minha vida particular. Ciao para todos.

Levantou-se e ia sair, quando as duas mulheres o travaram pelo braço:

— Não, Agenor, você vai é comigo, que sou sua mulher.

— Agenor, você não vai sem decidir esta parada — disse Heleninha. — Se você sair, não precisa mais voltar. Exijo que fique e resolva de uma vez por todas esta situação.

— Com que direito você estabelece restrições ao livre-arbítrio de meu marido? — protestou Lucrécia. — Ele quer sair, eu também quero. Vou sair com ele, e está resolvida a situação.

Agenor continuava irritado:

— Se vocês começam a brigar, eu desapareço e ninguém mais terá notícias minhas. Sumo! Viro fumaça!

— Nãããão! — exclamaram as litigantes em uníssono.

— Viro sim! Chega de competição em torno da minha pessoa!

Heleninha, por sua vez, estranhou:

— Que é isso, Agenor? Então você me coloca em nível de competição com Lucrécia? Por acaso eu fui à sua casa tirar você dos braços dela? Pois bem, pode sair, não serei eu que implore a você a graça de ficar comigo.

— Não é isso — respondeu Agenor —, eu não quis ofender você, eu estou nervoso, eu…

— Viu? — disse Lucrécia. — Viu o que você fez com ele? Agenor, um homem tão calmo, tão forte, de repente sua estrutura psicológica desmorona diante dos ataques desferidos por você, que não o compreende. Ninguém resiste à incompreensão.

— Quem fala em incompreensão, se a presença de Agenor em minha casa prova justamente que ele não é compreendido em casa de você?

— Quer um tranquilizante, nego? — propôs Teresa docemente, dirigindo-se a Agenor, que, com a cabeça, respondeu: sim.

— Primeiro vamos tratar do nervoso de Agenor, depois vocês discutem — disse Euclides, lembrando-se da sua condição de médico.

As duas calaram-se.

Com as mãos na cabeça, e a cabeça baixa, Agenor virara estátua.

— Acho melhor pôr ponto final nesta discussão — disse Lucrécia.

— Também acho — concordou Heleninha.

Uma brisa de paz circulou pelo salão.

— Você fuma? — perguntou Lucrécia, estendendo o maço de cigarros a Heleninha.

— Aceito — respondeu ela. E acrescentou: — Obrigada.

Teresa e Euclides acenderam seus cigarros. O fumo tornou o ambiente ainda mais apaziguador.

Ingerido o tranquilizante, Agenor deixou-se estar em serena passividade. Ninguém ousava perturbar-lhe o repouso.

— Sabem da última do Lulu Blake? — indagou Euclides. — Tocou fogo na mansão da Isolda Schnitz para exorcizar um lobisomem. Que não era lobisomem, era o motorista da Isolda, que fazia barulho de madrugada para assustar o Lulu.

— Lulu é muito impulsivo — comentou Lucrécia. — Uma ocasião, na piscina do Copa…

— É, eu me lembro — confirmou Heleninha. — Atirou n’água, com vestido e tudo, a duquesa de Armenonville, que dissera para ele: “Vous êtes un drôle de pantin, monsieur”.

Entraram a recordar demasias de temperamento de Lulu Blake, nas quais Agenor não parecia interessado. Guardava silêncio nobre e distante, de olhos cerrados.

— Não fale alto, Euclides — ponderou Heleninha. — Assim você acorda Agenor.

— Isso mesmo — apoiou Lucrécia. — Vamos falar baixinho.

Mas Agenor abriu espontaneamente os olhos, já recuperado, e todos se felicitaram pela sua reação pronta.

— Desculpem o incômodo que lhes dei — disse ele calmamente. — Não dormi a noite passada, com esse calor, e necessito invariavelmente de oito horas de sono para manter o equilíbrio.

— Incômodo nenhum, ora — disseram todos, expressamente ou pela fisionomia.

— Quantas horas são?

— Passa um quarto de meia-noite.

— Vamos embora, Lucrécia?

— Vamos, meu bem.

— Cuide bem dele, Lucrécia — recomendou Heleninha. — Você volta amanhã?

— Fique tranquila — prometeu Lucrécia.

— Volto — prometeu Agenor.

— Depois a gente resolve tudo — disse Heleninha.

— Tá — disse Lucrécia.

Ciao. Ciao. Ciao. Despediram-se cordialmente.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas.

terça-feira, 29 de outubro de 2019

Jorge Fregadolli (Minha Namorada… Maringá)


Ó Maringá… terra amada,
canto tuas mil riquezas.
És a bela flor alada
nos voos, trazes surpresas.

Maringá nasceu na mata,
o seu ninho, um denso verde,
nas noites, teu céu é prata,
ao sol, bonito ouro-verde.

O café, tua riqueza,
tens história não distante,
deu-te um mundo de certeza,
veio a geada castigante.

Outros rumos tu tomaste,
recomeço por inteiro;
e para trás não deixaste
com a garra do pioneiro.

Eras tão linda, menina,
em dez de maio, nasceste.
Aos setenta anos, divina…
os desafios venceste.

Não és mais a caboclinha
de outrora, vês, Maringá?
Tens o garbo de rainha,
que te aplaude o Paraná.

Teus progressos, que pujantes,
seguem direções distintas.
Há esferas conflitantes,
com as nuanças das tintas.

Louvo seu templo sagrado,
nosso ícone, a Catedral.
A Mãe, gesto idolatrado,
de puro amor filial.

Nasceste para ser bonita,
ó querida Maringá.
Exibes graça infinita
nas filhas que Deus te dá.

Terra de gente de fibra.
Maringá urbe garbosa,
tem alma sensível, vibra.
Que cidade glamorosa!

És a Cidade Canção,
de povo gentil, feliz,
que, de alegre coração,
que no cantar te bendiz.

É filha de Maringá
a querida Academia,
orgulho do Paraná…
um canteiro de poesia!

Belas praças… avenidas,
desfilam-se arranha-céus…
são riquezas incontidas
sob o azul de belos véus.

Projetos e mais paixão…
escolas, saúde e arte –
conquistas do coração,
que do homem a luta é parte.

A medicina, altaneira,
modelo de prontidão,
abre caminho, é ligeira,
conquista espaço, atenção.

O engenho da linha férrea
é progresso, admiração.
Trilhos debaixo da terra
gorjeiam linda canção.

Gigantesco aeroporto
leva Maringá ao mundo;
uma conquista e conforto
de progresso tão fecundo.

O comércio, com lampejos
atende a todo querer,
desde o pequeno desejo
até mais alto poder.

É o Parque do Japão
uma lembrança constante,
vida, beleza, e emoção
de um recanto bem distante.

Maringá, hoje, faz anos,
quero mesmo te abraçar
ao declarar-me que te amo!
Para sempre vou te amar!

Fonte:
Poema enviado pelo autor.

Contos e Lendas do Mundo (África: Kigbo e o Espírito do Mato)

Kigbo, que quer dizer «homem teimoso», tinha um nome que lhe assentava às mil maravilhas, pois um homem teimoso é aquele que não descansa enquanto não leva a sua avante. Segundo um mito dos lorubas, a teimosia de Kigbo é que foi a fonte de todos os seus males.

Kigbo e sua mulher, Dolapo, eram ambos jovens e tinham vivido com os pais até casarem. Isso significava que não possuíam terras próprias. Quando chegou a altura de os aldeões prepararem os campos para o plantio, o pai de Kigbo foi a casa do filho para falar com ele.

 - Tens uma mulher bonita e um filho esplêndido, chegou pois a altura de cuidares deles - disse. - Procuraremos um lugar fora da aldeia, limparemos o terreno e faremos dele a tua plantação particular.

 - Não quero - respondeu Kigbo.

 - Não queres? - admirou-se o pai. - Mas tu precisas de cultivar alimentos para ti e para a tua família. Agora és independente, Kigbo. Nem os teus pais nem os da Dolapo têm obrigação de sustentar-vos.

- O que eu quis dizer é que não quero arranjar um terreno nos arredores da aldeia, pois já está quase tudo tomado e, portanto, só conseguiríamos dispor de terra suficiente para um campo pequeno.

 - Mas tu só precisas de um campo pequeno - advertiu-o o pai. Há terra suficiente para todos.

 - Quero fazer uma plantação no mato - disse Kigbo.

 - No mato? - exclamou o pai, ficando de boca aberta. - Que perfeita loucura! Ninguém cultiva aí. O mato fica longe de casa e é perigoso!

 - Não ligo à distância e é exatamente porque ninguém cultiva lá que poderei desbravar um campo do tamanho que quiser - explicou Kigbo, sorrindo.

 - E o perigo... - lembrou-lhe o pai. Kigbo fitou o pai e respondeu:

 - Tu mesmo me puseste o nome de teimoso. Nada me fará mudar de ideias.

 Foi assim que Kigbo se pôs a caminho do mato por sua conta e risco. Começava a desbravar a terra quando um grupo de espíritos apareceu.

 - Nós somos os espíritos do mato - disseram. - Esta terra pertence-nos. Que fazes aqui?

 - Preparo um bocado de terra para plantar o meu milho - respondeu Kigbo teimosamente.

 Não queria permitir que um grupo de espíritos alterasse os seus planos.

- Nós somos os espíritos do mato - repetiu o grupo. - Esta terra pertence-nos. Fazemos o mesmo que tu.

Então os espíritos, em vez de expulsarem Kigbo, começaram a ajudá-lo na sua tarefa, daí que, passado pouco tempo, uma ampla clareira estava desbravada.

Satisfeito, Kigbo parou e os espíritos imitaram-no. A seguir, sem ao menos um «obrigado», voltou de novo para a aldeia.

Ao chegar a casa, encontrou o pai à sua espera, tendo a seu lado Dolapo.

- Estava muito preocupado contigo - disse-lhe o pai. - Receei que os espíritos te tivessem apanhado e feito coisas terríveis.

- Coisas terríveis? - riu-se Kigbo. - Quando comecei a dar conta de uns arbustos, eles apareceram e até ajudaram. O trabalho ficou feito num instante... Amanhã voltarei lá para revolver a terra.

- Será que não aprendeste nada comigo, grande teimoso? Já te avisei de que o mato é um sítio terrível, e que os espíritos não são para brincadeiras.

Quando, na manhã seguinte, Kigbo voltou, levando consigo um saco de milho, o grupo de espíritos do mato apareceu de novo.

- Nós somos os espíritos do mato. Esta terra pertence-nos. Que fazes aqui?

- Remexo o solo para plantar as minhas sementes - respondeu Kigbo.

- Nós somos os espíritos do mato - repetiram. - Esta terra pertence-nos. Fazemos o mesmo que tu.

Kigbo começou então a lavrar a terra, antes coberta de mato, e os espíritos ajudaram. Num instante, o solo ficou preparado para ser semeado. A seguir, Kigbo tirou do saco uma mão-cheia de grãos, que começou a espalhar.

- Nós somos os espíritos do mato - disse o coro. - Esta terra pertence-nos. Fazemos o mesmo que tu.

E começaram a semear. Depressa o trabalho estava terminado.

Satisfeito, Kigbo parou e os espíritos imitaram-no. Depois, uma vez mais sem agradecer, voltou para a aldeia.

O tempo passou e as estações mudaram. Depois do tempo de semear veio o de colher e Kigbo continuou a viver, à sua maneira egoísta e teimosa, sem se preocupar minimamente com os outros.

Todos os outros aldeões podiam vigiar facilmente as suas pequenas plantações, mesmo na orla da aldeia, para acompanhar o crescimento do milho. Kigbo, no entanto, era obrigado a percorrer uma grande distância até à beira do mato onde desbravara o seu campo de cultivo. Mas achava que valera a pena. Via-se, a perder de vista, um mar de milho a brilhar ao sol.

Kigbo pensava: «As pessoas acham que sou teimoso, mas vejam o que eu consegui com a minha esperteza. Todos têm plantações pequenas e precisam de trabalhar duramente nelas. Eu tenho este campo enorme e aqueles espíritos tolos fizeram a maior parte do trabalho duro por mim. Espero que me ajudem quando o milho estiver maduro e pronto a colher!»

O orgulho que Kigbo sentia no seu milho dourado era tão grande que resolveu ir buscar a mulher e o filho para o verem. Voltou então à aldeia.

Dolapo, entretanto, sentia remorsos.

«Kigbo pode ser teimoso», pensou, «mas é meu marido e eu amo-o... e, quando trabalha, faz com grande empenho.»

Resolveu então ir até lá para ver com os seus próprios olhos. Devem ter tomado caminhos diferentes, pois não se cruzaram. Quando, por fim, Dolapo chegou à plantação, não viu Kigbo em lado nenhum.

 Fora uma grande caminhada e Dolapo aborreceu-se com a teimosia dele. Porque não desbravara ele um campo mais pequeno perto da aldeia?

O filho de Dolapo começou a chorar.

- Tens fome, pequenino? - perguntou-lhe ela. - Não posso dar-te este milho, pois ainda não amadureceu.

Porém, como o filho não se calava, Dolapo arrancou uma maçaroca de milho - apesar de ainda não estar madura - e deu-lha a comer.

Nesse preciso momento, o grupo de espíritos apareceu e disse:

- Nós somos os espíritos do mato. Esta terra pertence-nos. Fazemos o mesmo que tu.

E, antes de Dolapo perceber o que estava a acontecer, os espíritos do mato cortaram as maçarocas de todo o milho. Não tardou que o solo ficasse juncado de maçarocas de milho verdes, estando assim irremediavelmente perdida toda a safra!

- Que foi que fizemos?! - exclamou Dolapo.

Sentou-se a chorar, e os seus queixumes, junto com os do bebé que também começara a fazer o mesmo, soaram tão alto que chegaram aos ouvidos de Kigbo, que ia a caminho de casa. Este ficou com uma cara preocupada.

- Este choro parece-me da Dolapo e do bebê - disse, cada vez mais receoso. - E vem do mato!

Voltou para trás e correu o mais depressa que pôde para a sua plantação. Que estaria Dolapo a fazer ali com o seu filho? O mato era um sítio muito perigoso. Quando lá chegou, ficou horrorizado perante o panorama com que deparou. Não havia uma única maçaroca de pé. A plantação ficara reduzida a um mar de hastes secas, sem qualquer préstimo!

- Que aconteceu? - perguntou Kigbo, embasbacado.

- O nosso filho chorava com fome, de modo que eu arranquei uma maçaroca e dei-lha - explicou-lhe a mulher.

- Criança estúpida! - gritou Kigbo, fazendo, em seguida, algo de terrível. Enraivecido, agarrou no menino e sacudiu-o.

Antes de ter tempo para se aperceber das consequências do seu ato, o grupo de espíritos apareceu e disse:

- Nós somos os espíritos do mato. Esta terra pertence-nos. Fazemos o mesmo que tu.

Então, antes de Kigbo poder detê-los, começaram todos a sacudir a pobre criança da mesma maneira.

Kigbo sentiu-se culpado e furioso com o que acontecera. Era horrível tratar alguém - sobretudo uma criança - daquela maneira, porém tentou convencer-se de que a culpa fora de Dolapo.

- Olha o que me obrigaste a fazer! - exclamou, cometendo novo erro, pois esbofeteou a mulher.

- Nós somos os espíritos do mato - disse o grupo, mais uma vez. Esta terra pertence-nos. Fazemos o mesmo que tu.

Depois começaram todos a dar bofetadas em Dolapo. Kigbo, dando-se conta de quão teimoso e louco fora, bateu com os punhos na cabeça.

- Que estúpido fui! - queixou-se. - Porque não ouvi o meu pai?

- Nós somos os espíritos do mato - repetiu o grupo, virando-se para ele. - Esta terra pertence-nos. Fazemos o mesmo que tu.

Começaram então a bater em Kigbo.

- Esta terra pertence-nos - repetiam, sem que ele percebesse uma palavra por causa das pancadas.
_____________________________
Esta lenda tem muitos fins. Um deles conta que Kigbo e Dolapo fugiram do mato levando o filho com eles e que o grande teimoso aprendeu a lição. Outro diz que os três foram mortos pelos espíritos. Um terceiro relata que Kigbo morreu nas mãos dos espíritos, mas Dolapo e o filho escaparam com vida.

Seja qual for o fim que tiveram, o certo é que o pai de Kigbo tinha razão. O mato é um lugar perigoso e não se pode brincar com os espíritos... por muito prestáveis que estes se possam mostrar ao princípio.


Fonte:
Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

Apollo Taborda França (O Corvo)


do clássico de Edgard Allan Poe (EUA)
À meia-noite, sombria,
Eu triste, lendo manuais. . .
Ouvi sons de quem batia,
Para entrar em meus umbrais.
— Isto posto e nada mais!

Foi num pérfido dezembro,
Na saudade de Lenora…
Sinto bem, como me lembro,
Pela morte ela se fora.
— Para mim não volta mais!

Nesta lúgubre noitada,
Está alguém que pede abrigo…
A livrar-se da nortada,
Ou de um atroz inimigo.
— Penso nisso e nada mais!

Inseguro, ponderei,
Quem bate tenha paciência...
Quase em sono atendo à lei
Do refúgio, na insistência.
— Porta aberta e nada mais!

Perquiri lá fora além,
Tudo escuro, ânsia e medo…
Nem de Lenora, também.
Pra abrandar meu acre enredo.
— Só silêncio e nada mais!

Novamente o grave ruído
Faz vibrar os meus vitrais,,.
Mais plangente que um gemido,
Desses ermos sepulcrais.
— É o vento e nada mais!

Abro a janela, de chofre,
Entra um vulto, me observa...
Um Corvo, odor de enxofre,
Vem, pousa em minha Minerva.
— Fica ali e nada mais!

Surpreendido com a figura,
Esqueço as dores morais...
Qual seu nome, ó negrura
Dos tempos bem ancestrais?
— Disse o Corvo: "Nunca mais!"

Nunca ouvi falar um corvo,
Nem qualquer outro animal…
Grande enigma absorvo,
Pois, que foge ao racional,
— Crocitando: "Nunca mais!"

E não disse uma outra cousa,
Nem uma pena moveu...
Até amigos vão-se à lousa,
E você, volta ao museu?
— A resposta: "Nunca mais!"

Sempre iguais, duas palavras,
Aprendeu não sei de quem..,
Termos de doridas lavras
Do seu dono que é ninguém.
— Sempre o nunca: "Nunca mais!"

Perturbado, na cadeira,
Fui mudando a posição...
Será a frase derradeira,
Ou há nisso uma intenção?
— Expressando: "Nunca mais!"

Olhar duro, penetrante,
Me angustiava no coxim...
Ela ausente, eu hesitante,
Nunca sofri nada assim.
— Suportando o "Nunca mais!"

Ar difuso, perfumado
Qual incenso celestial…
Penso nela, sou coitado,
Não a esqueço é meu ritual,
— Grasna o Corvo: "Nunca mais!"

Satanás ou ave preta,
Tlins quebrados de cristais…
Há um bálsamo, não treta,
Pra findar estes meus ais?
— Ouço a saga: "Nunca mais!"

Profeta ou fero bruxo,
Pelo Deus que é dos mortais...
Volta ela, num refluxo,
Dessas hostes abismais?
— Geme o Corvo: "Nunca mais!"

Nos separe a sua fala,
Vai-te às trevas infernais…
Não o quero em minha sala,
Sumam lembranças que tais.
— Implacável: "Nunca mais!"

Segue a noite, densa e nua,
Suas sombras são punhais…
Ave-diabo continua
Desafiando os meus ideais.
— Libertar-me… nunca mais!

(Curitiba-PR, 12.10.1988)
Fonte:
Apollo Taborda França. 10 Grande Temas (clássicos) da Literatura. Curitiba/PR: Gráfica Vitória, 1989.
Livro enviado por Vânia Ennes.

Vinicius de Moraes (Encontros)


Meu primeiro encontro, em Poesia, depois das inelutáveis influências da juventude, foi o de Murilo Mendes. A fase da imitação declinava lentamente, à medida que os poetas melhoravam.

Discípulo ardente de Júlio Dantas, tendo escrito aos 14 anos um poema chamado "Os três amores", passei por Guerra Junqueiro em branco. Julgava-o um grande filósofo mais que um poeta, e temia-lhe o tom blasfemo. É que não lera ainda Os simples, onde está o melhor do seu lirismo. Nessa ocasião, fiz do sr. João Lira Filho mentor espiritual. Dei-lhe Foederis arca para ler. A Arca em aspas era um livrão de capa preta onde ia pondo os versos que me pareciam razoáveis. O sr. João Lira Filho não se agradou da poesia. Deu-me uns conselhos: que eu deixasse daquilo, que poesia era "frescura" e "abandono", que meus sonetos eram "muito ruins" e só as trovas "onde você procura imitar Adelmar é que são mais ou menos". A palavra "abandono" que interpretei mal, feriu-me a suscetibilidade juvenil. Larguei do sr. João Lira Filho e do seu mestre da Academia e dei com Guilherme de Almeida. Aquilo é que era poeta! Como é que o homem fazia aquelas coisas, que perfeição!

            O relógio de mogno, grave, enorme
            Dorme

Meu olhar se concentrava sobre a magia da palavra "mogno". Se me perguntassem o que era Poesia, eu diria que era aquela palavra feiticeira. Lembro-me que fiz um verso onde falava "em teus seios de mogno e teus lábios de écran". Meus poemas redundavam em diálogos sutilíssimos entre a amada e eu, passavam-se sempre numa casa de chá elegante ou num ônibus de luxo, tinham de Toi et moi, que felizmente só vim a ler mais tarde.

Castro Alves e Bilac não me fizeram grande impressão. Li-os apressadamente, sem que me tivessem marcado muito. A poesia paterna, que encontrara numa gaveta velha em casa, foi a minha grande decisiva influência. Desejei imenso fazer versos assim, versos de amor, despidos das ideias grandiloquentes que assustavam no vate baiano e do brilho de joalheria que cegava no artífice da "Via Láctea".

            Junto de ti, ó minha amada
            Passam-se os dias a voar
            Se longe estou, como apressada
            Minha alma à tua quer chegar!

Posso citá-los ainda de cor. Causaram-me inveja e me fizeram sofrer. Pensei que nunca poderia ser poeta.

Chorei. Cheguei ao furto. Uma vez mostrei a alguns conhecidos um que me parecia o melhor, como se fora meu. Assinei meu nome embaixo. Na noite desse dia tive uma das maiores crises por que já passei neste meu fadário. Pensei pela primeira vez em me suicidar.

Depois, fui crescendo, como acontece na vida. Na Faculdade de Direito entrei em pasmo contacto com os grandes do CAJU, o centro da elite da escola. Era garoto e andava fardado de aspirante a oficial da reserva. Foi uma época rica e dolorosa, de lutas íntimas, de descobertas gloriosas, de ânsia e aspiração infindáveis. Otávio de Faria e San Thiago Dantas, dois dos nomes de maior projeção acadêmica, discutiam problemas de Poesia no Café do Areal. Ouvia quieto, mas com um ouvido gigante, as sentenças misteriosas, ditadas sabe Deus por que demônio, que na boca de San Thiago se prestigiavam de uma claridade que para mim tinha algo de sobrenatural, e que Otávio de Faria fazia sombrias, dilacerantes. A um devo uma amizade que através de tanta coisa vivida tem se mostrado sempre boa e generosa, amável no cotidiano mas atenta nos momentos difíceis. Ao outro devo a Amizade.

Foram esses dois homens que me iniciaram nos mistérios da Poesia. Falavam em Murilo Mendes e Augusto Frederico Schmidt. San Thiago Dantas lembrava-se às vezes do derradeiro:

            O filósofo é como o galinho branco, pequenino, dormindo...

Eu pensava. Que não seria aquilo tudo? Filósofo... galinho branco... Realmente, uma sugestão qualquer, branca, assim como um idéia branca, a idéia branca de um filósofo, Platão, sei lá. Palmo a palmo conquistava a compreensão do incompreensível. Um dia ouvi um nome: Baudelaire. Outro: Rimbaud. Mais outro: Mallarmé. Outro ainda: Verlaine. E pus-me a ler.

Mas isso não vem ao caso. Com Murilo Mendes a coisa foi assim: achava-me passeando com Otávio de Faria pela Praia do Flamengo. De repente ele produziu uma brochura branca, quase quadrada, com o título Poemas em caracteres negros. Era Murilo Mendes. Minhas mãos estavam virgens ainda de qualquer nova poesia brasileira. Minha emoção foi grande.

Fiz perguntas, como era, como não era. Lemos alguns poemas juntos. Otávio criticava, de dentro da admiração real pelo poeta. Travei conhecimento com a questão do "sublime" e do "cotidiano" em Poesia. Ponderei coisas. Coisas me foram ponderadas.

Em casa li o livro até de manhã. Achei-o magistral em tudo, até no que tinha de artifício. A primeira impressão que o poeta me deu é de que vivia num espaço cristalizado em ângulos onde anjos cubistas salmodiavam ao som de saxofones. Todas essas adolescentes burguesas geométricas, essas meninas em eterna projeção e prolongamento, movia-as o poeta, transformado em mágico, como a novos títeres, através de versos como fios metálicos, num cenário fantástico de metrópoles cônicas, paisagens elásticas, ao som de melodias penetrantes.

Mais tarde, já com o primeiro livro publicado, conheci o poeta na Avenida, por intermédio de Otávio. Vinha deblaterando, o dedo em riste, uma gravata vermelha, o rosto azul de entalhe magro dignificado por uma testa vasta e dolorosa. Pôs-me a mão no ombro, depois me abraçou com longos braços dançarinos. Senti a imediata cordialidade do artista, a sua ânsia de comunhão. Disse-me palavras reconfortantes, de longe ainda me gritava coisas, escandalosamente.

Via-o depois em concertos, em conferências, ora mergulhado na música, ora apontando ondulante de uma multidão, a me enviar mensagens periódicas de fraternidade com a mão espantosa, quebradiça e exangue. E desde sempre Murilo Mendes foi um amigo. Ouço muito falar mal dele, de seu espírito fantástico, da teatralidade com que vive. Eu próprio já tenho sentido certa má-vontade - a minha má vontade de animal razoável - contra o poeta nos seus momentos de irrisão declamatória. Mas que me deixem dizer: a par de ser um grande poeta brasileiro, com um modo pessoalíssimo para a Poesia, Murilo Mendes é um puro e um coração bom, não direi como a água, de que não gosto, mas como o uísque.

Com Augusto Frederico Schmidt foi diferente. Já em meio à primeira experiência poética, juntando os poemas que iriam dar O caminho para a distância, li Navio perdido. Tinha do poeta uma idéia que me perturbava um pouco. Ouvia falar dele como se fala dos gênios. Alguém sem pé nem cabeça, a quem não se leva muito a sério no que diz, uma pessoa variável, inconstante, passeando pela vida uma grande alma insatisfeita, ferida de Poesia. Dizia-se que o poeta era assim e o homem assado, que a vida do homem não traduzia a obra do poeta, a sua extraordinária mensagem lírica. Mensagem... o termo me pegou em cheio. Achei que mensagem é que era. Adotei mensagem. Quando Aporelli mexia com o bardo, aproveitando-se das suas levitações poéticas, eu me enfezava, achava um desrespeito, embora bem que risse. Navio perdido passou a ser o meu livro. Sentimentos comuns em face da Poesia, a vocação do "sublime", causa de que me fizera paladino, me aproximavam muito de Schmidt. Contudo, não gostei quando os críticos acharam grande semelhança de tons entre as duas poesias. Eu queria era ser pessoal, tinha uma vaidade danada disso. Pensava que ficar como continuador do lirismo schmidtiano era muita honra, mas não para mim. Minha extrema mocidade não admitia senão uma linha de frente geral. Todo mundo junto.

Um artigo de Manuel Bandeira me deixou louco. Hoje, pensando nessas coisas, dá-me uma grande ternura por mim mesmo. Que menino esplêndido eu era! Manuel Bandeira (isto é, o inimigo de então, o chefe da poesia do "cotidiano") ousava escrever, colocando meu livro do lado de vários outros, que eu realmente tinha vocação poética, mas que precisava muito abandonar o "tom schmidtiano", metrificar minhas linhas, deixar de muitas facilidades com o verso livre, que só é bom na mão dos mestres.

Como fiquei queimado! Achei que você não entendia nada de Poesia, Manuel, que você não era o Grande Poeta, vivendo a vida inefável dos símbolos misteriosos, dos rios loucos, das luas assexuadas, das mulheres trágicas e dos caminhos de Deus.

Mas, voltando a Schmidt. Uma noite vinha com Otávio de Faria pela rua Sachet. Ia ver meu livro que acabava de sair e que a Schmidt Editora distribuíra. À porta da famosa livraria, onde tanta coisa confusa já teve lugar, encontrava-se o poeta. Achei-o irreal, à primeira vista. Apertou-me a mão com um gesto que eu não soube se era de simpatia ou de zanga, porque ao mesmo tempo que me prendia fortemente, me mantinha a distância. Houve falta de jeito. Schmidt exclamou: "Ah, é esse!" Depois falou em Gilberto Amado, o qual teria dito que eu era "um alto". Ficou tudo meio atrapalhado, meio confuso. Eu queria ir-me embora, Otávio também, que não sabia como casar aqueles dois poetas. De volta, creio que fiz observações pouco gentis sobre o que ficara.

Durante um certo tempo, Schmidt passou a ser uma presença incômoda. Não havia crítica, notinha de jornal onde se mencionasse meu livro, que não falasse nos poetas irmãos, um prosseguindo no caminho que o outro abrira. A coisa para mim tomou um ar de pendenga, de corrida rasa, com Schmidt à frente, e eu em segundo, fazendo força para emparelhar.

Quando todas essas coisas passaram e a minha vaidade trancada começou a dar mofo, algumas saídas juntos, algumas conversas foram dissipando a impressão de ceci tuera celà que a presença de Schmidt me causava. Ia gostando dele, compreendendo-lhe o método lírico dentro do desarranjo formal, amando-lhe a inteligência de vôo tão largo. Hoje em dia vemo-nos menos, mas nos gostamos mais. Às vezes dá-me uma saudade do poeta, e eu tomo a iniciativa de ir visitá-lo no seu décimo andar sobre Copacabana. Mesmo porque, ele não me procura. Schmidt tolera pouco os intelectuais, e embora eu nunca converse "inteligente" com ele, creio que o poeta descansa mais o espírito britando pedra, por assim dizer, na companhia dos seus amigos homens de negócio, onde o troco inocente de idéias deixa às vezes saldo para uma das partes. Eu que, em companhia do poeta, já tive oportunidade de assistir a algumas dessas reuniões, acho que talvez ele é que esteja com a razão. Há um mistério agradável nesses homens de ar vagamente entendiado que vivem do gozo rápido das tiradas, que andam muito de táxi e percorrem numa noite vários ambientes, resolvendo uma mesma questão que nunca entre em jogo.

O encontro de Manuel Bandeira, que coisa excelente foi! Eu ainda tinha várias dificuldades em relação à poesia do poeta, mas intimamente mudara muito. Se no princípio me quisessem levar a ele, talvez tivesse relutado. Depois, não. Manuel me escrevera um cartão agradecendo a remessa de Forma e exegese, que me remexeu por dentro. Lia-o às vezes, a Manuel, invejando-lhe secretamente a sobriedade perfeita do verso, mas sempre em oposição ao modo de sua poesia. No fundo, achava que não se podia transigir assim com o Espírito, com a Fome metafisica, com a Visão. Mas, ai de mim, já amava o poeta. Meu coração de mulher da vida já batia por ele. Andava dando um jeito para encontrá-lo.

Anah e Carlos Chagas Filho deram-me o ensejo. Esses caros amigos, cuja casa da rua Jardim Botânico era para mim uma coisa perfeita de gosto e intimidade, providenciaram o encontro. O próprio Manuel, diziam eles, achava que a idéia de um jantar tinha seus pontos. E uma lagartixa resolveu a questão.

Eu havia chegado e esperava na sala, quando vi uma lagartixa branca. Parti a caçá-la, o que fiz com o maior cuidado para não magoar o bichinho frágil. E Manuel me pegou assim, com a lagartixa na concha da mão e aderiu imediatamente a ela. Dei-lhe um aperto de canhota, porque tinha a lagartixa na direita. O poeta esticou o pescoço, ficou observando o animalzinho com o seu perfil de pássaro, depois riu à-toa, um riso que mal parecia vir daquele siso sério. O riso me venceu. A ternura pelo poeta foi imediata. Um segundo depois estávamos conversando no sofá, eu brilhando discretamente para não chocar o amigo em perspectiva. Falou-se dos Mello Moraes, de poesia, de violão. Eu trouxera o violão, que era assim uma espécie de prato forte meu (nem tão forte, na verdade...) e que hoje em dia considero uma cruz. Cantei umas modas. Manuel parece que gostou.

Vi-o pela segunda vez no Salão de Belas-Artes. Foi quando me apresentou a Mário de Andrade. Fez-me as mesmas festas, perguntou pelo violão, falou vagamente em se marcar qualquer coisa. Mário de Andrade conservou-se "onézimo", segundo a gnomonia ovalleana, que é um modo sui generis de imparticipação.

Uma noite saímos juntos. Grande noite para mim, e Manuel, paternal, me levou ao cinema, me levou à Americana para tomarmos um malted milk, depois me levou ao Beco, onde subi sete andares num elevador vermelho, que pia feito gavião quando chega. Conheci seu quarto, esse quarto que às vezes tem sido para o poeta um lugar de tristezas; e que para mim tem sido tantas vezes um lugar de sossego. E banhei-me do verso exemplar de Estrela da manhã, ainda inédito, que o poeta leu para mim, ou melhor, que me jogou em cima, com aquele seu modo brusco de ler poesia.

Manuel é hoje em dia um ser à parte para mim. Todo o mundo tem seus dias de antipatia do amigo, suas brigas, suas caturrices. Chega-se mesmo a enjoar da pessoa, da presença, do modo de ser, de certos pequenos hábitos irritantes. Fica-se mesmo com uma tendência vaga a partir a cara, sem prejuízo grande para a amizade. Com Manuel, jamais! Nunca a menor bulha, mesmo dentro de um ou dois pontos de vista diferentes. Manuel aceita o amigo e se impõe a ele. É fiel, mas não intervém; presto, sem se fazer sentir. Parece Ronald Colman.

Mas eu tinha falado em Mário de Andrade. Mário foi uma conquista minha. O poeta, a princípio, não quis nada comigo. Fui-lhe mesmo apresentado umas duas ou três vezes, sem resultado. Fazia um ar, meu Deus, vaguíssimo, de ombros um pouco levantados.

Mas em São Paulo, que é sua casa, eu fui um dia à casa dele com Armandinho Sales de Oliveira, Mário de Andrade tinha dirigido um recital colosso, de modinhas do Império, de modo que estava no céu com o pé de fora. À saída, não me lembro mais por que, a uma pergunta de Armandinho eu respondi: "Tomara!" Mário de Andrade me pegou vivamente pelo braço. "Você também vem. Uma pessoa que fala tomara, tomara, meu Deus! - que gostosura! - tem direito a beber minha caninha. Ah, não! você vem!"

E eu fui. E eis como venci Mário de Andrade, pela linguagem. Em casa dele bebemos toda a garrafa de caninha. Houve grandes confraternizações. E hoje em dia, mal acabo de escrever um livro, corro para Mário de Andrade. Ele critica impiedosamente, inefavelmente. Anota as margens. Sinto que gosta de meus poemas, mas tem uma "diferença" qualquer com minha poesia. Eu o acho uma criatura esplêndida, com todas as suas manias. E que bom poeta! Poucos literatos no Brasil terão uma figura tão vasta e universal, apesar do seu fanático regionalismo. Conheço gente que o acha fiteiro. Mas a esses eu direi - lede-o para entendê-lo:

            Muito de indústria me fiz careca
            Abri salão nos meus pensamentos.

Ou ainda:

            Danço para não chorar.

Também em São Paulo conheci Oswald, também de Andrade. Achava-me no Hotel Esplanada, no quarto de Manuel Bandeira, que deveria ir jantar com o poeta de Pau-Brasil. Ao saber quem eu era, prorrompeu em gargalhadas positivamente obscenas: "Então é esse menino, com esse ar esportivo, o autor daqueles versos compridos como um iole-a-8! Mas você não tem medo de fazer tanta força nessa regata desigual, seu poeta?"

Eu me abespinhei um pouco, mas não fiz má cara à piada. Dei uma em troca. E logo a cordialidade se estabeleceu. Saímos os três e jantamos em boa camaradagem. Oswald estava brilhantíssimo.

Procurava-o sempre que ia a São Paulo. Gostava de seu jeito e de sua casa. Boa casa para a gente se sentir à vontade, entre originais até de Picasso, vendo Oswald construir de um lado e arrasar de outro. O poeta tem a paixão da literatura. É um demolidor, mas é, por outro lado, um espírito altamente construtivo. Gosto dos homens assim, mutáveis mas intransigentes enquanto creem, bem raciados, os homens que gostam da sua casa e da sua mulher, não os femininos, os impotentes ou os fracos. Oswald tem essa grande qualidade macha que lhe dá sumo à vida. Quase todo o mundo o teme. Temo-lhe o destabocamento e a sátira irresponsável. Compreendo que não gostem dele. Mas no fundo é um homem fácil de se gostar, com um grande complexo sentimental de paternidade, um homem de coração gordo e violento.

Homem que vi estranho foi o poeta Carlos Drummond de Andrade. Conheci-o para lhe pedir um favor e desde então nunca mais fiz outra coisa. Mas já tenho ido lá para pedir-lhe o simples favor de vê-lo um pouco. Achei-o intratável a primeira vez, parecia um estilete e não um chefe de gabinete. Saí impressionado, pensando comigo que nunca poderia ser amigo de um sujeito assim.

Não sei se ele gosta de mim ou não, não me interessa. Eu o tenho em especial carinho. Invejo-lhe a poesia descarnada e lúcida, e como que iluminada por um sol fluido de aurora. Tenho

            Amor, a quanto me obrigas.

O poeta louco Jayme Ovalle, ou melhor, "o místico", como o chamou Manuel Bandeira, foi na minha vida um encontro de que não me esqueço. Conheci-o três dias depois de sua chegada da Europa, em casa de Schmidt. Tinha uma curiosidade enorme em vê-lo. Soube que andava fechado, não querendo receber ninguém, sofrendo as agruras da dor-sem-nome, roído de saudade da Inglaterra. Mas combinei uma tramoia com Schmidt e fui, com um ar de quem não quer. Encontrei o poeta no meio da sua garrafa de uísque, rodeado pelo grupo familiar atento e respeitoso. Seu monóculo me recebeu mal, enquanto seu olho de águia me considerava com ar pouco amigável. Calei-me e fiquei quietinho, espiando passear o gênio.

Passado um tempo Ovalle sentou-se. Todos se voltaram para ele. Alguma coisa ia suceder. Mas ele limitou-se a falar fanhosamente para Schmidt: "Põe um Bachzinho aí na vitrola pra mim, põe?"

Só então se virou para o meu lado. Ficou me olhando um pouco, eu gelado mas firme, sorrindo um riso covarde. Ao fim de um tempo sorriu também.

- Ele é muito bonzinho - disse, apontando-me com o dedo. - Ele é tão bonzinho que um dia... que um dia ele é capaz de sair correndo assim, compreende, sair correndo assim, e aí...

Mas não cheguei a saber o que ia acontecer comigo no fim da corrida. Schmidt voltava com um livro de poemas do poeta, poemas ingleses, feitos na sua amada Londres. Ovalle relutou um pouco, mas acabou lendo quase tudo. Eu fiquei ouvindo sem compreender muita coisa, mas compreendo muita coisa do homem a que ouvia. Ovalle chorou, ajoelhou-se, às vezes se curvava até o chão para em seguida saltar como um calunga doido, falava música, fazia gestos tão patéticos que parecia querer se agarrar ao xale invisível de Nossa Senhora.

Juro que fiquei fisicamente cansado da emoção. Quando resolvi sair, o poeta quis vir comigo. E fomos juntos por Copacabana afora. Depois entramos num táxi para a cidade. Na cidade pusemo-nos a beber - e bebemos tanto que nem as estrelas do céu ou os peixinhos do mar fariam conta do que bebemos. A madrugada nos encontrou na Lapa, comendo um filé à moda com vinho verde. A expressão do poeta sossegara muito, e ele agora me contava sobre as coisas do mistério, num tom simples e persuasivo. Ouvi de sua boca a explicação integral da famosa Gnomonia. Ouvi-o falar de Bach e Beethoven. Ouvi-o exaltar as mulheres da vida. Mais tarde, às sete horas da manhã, assisti ao seu encontro com Manuel Bandeira, encontro emocionante, depois de quatro anos de ausência, e um pequena rusga. Do quarto de Manuel fui para a Censura Cinematográfica, onde dormi durante a projeção um sono de duas horas e liberei todas as fitas.

Até hoje, quando nos encontramos, sinto entre nós a fidelidade a esse primeiro encontro. Descobrimos coisas, fazemos caso de tudo, nunca há silêncio entre nós.

Meu amigo Pedro Nava, ou melhor, o dr. Pedro Nava, é um grande poeta brasileiro que também é médico. Um olho clínico, como dizem seus colegas. E eu digo amém, porque Pedro Nava é o meu médico. Já me diagnosticou uma apendicite, e guardo bem a lembrança - a última lembrança ao ser anestesiado - de seu olho clínico posto em tristeza diante da possibilidade de um trespasse meu. Pedro Nava, sendo como é meu amigo, contou-me mais tarde o medo que tivera que eu morresse, não tanto porque fosse eu paciente, mas porque era seu amigo. É verdade que se morre muito nesse negócio de operação, por mais que o cirurgião seja hábil, como era no meu caso. Tive um medo póstumo, quando o poeta me fez ver essa possibilidade.

Mas já que se falou em morrer, em se tratando de Morte o poeta Pedro Nava comparece e fica triste. Porque se trata de um ser votado à Morte, tanto em sua profissão, onde luta exemplarmente contra ela, como em sua poesia, onde é todo dela. Pedro Nava é o criador da ideia sinistra do defunto que todos nós carregamos conosco, a quem damos de comer e beber e para quem arranjamos mulher; defunto que se senta, se levanta, anda na rua, vai ao cinema, escova os dentes e, no fim da noite, se deita imóvel para imitar o descanso eterno.

Como se pode deduzir, Pedro Nava é um ser terrível, um perturbador da ordem, um russo. É o poeta russo Pedro, o grande. Só se sente bem ou no seu hospital, onde combate, com uma prudência de conhecedor a fundo, todos os candidatos à Morte; ou perturbando a alma alheia com sua grande tristeza - e por que não dizer dor-de-corno? - sua ternura úmida e animal de mastim fiel, e sua poesia lancinante.

É um grande Pedro! Travei relações com ele em casa de Rodrigo Mello Franco de Andrade - esse Rodrigo cuja amizade é para mim uma coisa extrema na vida - e o poeta batalhou para me manter a distância. Não queria mais saber de amigos, que são criaturas que atrapalham muito, sofrem, adoecem, morrem, é o diabo!

Mas pouco a pouco venci o poeta. Hoje ele é um desses quatro ou cinco que já não distingo mais em meu sentimento. É um homem espantosamente rico e inteligente. Não há balda, como se diz em Minas, que lhe passe. Sua capacidade inventiva, no domínio da psicologia lírica, é assombrosa. Marca não importa quem, com dois ou três traços essenciais. Sua poesia bissexta, como se diz, segundo a expressão de Prudente de Morais Neto - porque vem de raro em raro -, é excelente. Quem não leu "O defunto" não sabe o que é sugestão de morte. É o poema mais "incômodo" que há. Perturba o tempo todo, irremediavelmente.

            Quando morto estiver meu corpo
            Evitem os inúteis disfarces...

E por fim meu primo, meu amado primo, que também é Pedro e é o anjo dos "Dantas" - Prudente de Morais Neto. É preciso concentrar-se muito para dizer a menor das suas qualidades. Sua poesia - que ele chama bissexta - é o próprio lirismo. É um canto japonês. É o saquê. E fica-se sem saber o que admirar mais nesse homem: se essa alma que aninha tudo com o mesmo amor, o bem e o mal, o puro e o impuro; ou o seu espírito lógico, que separa com precisão matemática o justo do injusto, embora justificando a ambos.

Quem o vê a primeira vez pode bem achá-lo bobo - e muitos bobos têm caído nessa esparrela. Se eu tivesse que "procurar-lhe o bicho", diria talvez que Prudente parece um bom chantecler, com seu topete, seu olho azul, sua cabeça que lhe movimenta todo o corpo ao se voltar, e esse corpão genial, terno, túmulo ideal para as confidências, os segredos, os sentimentos mais íntimos, as paixões mais puras, as contemplações mais estáticas.

Porque esse homem, de aparência burguesa e de inteligência prática, é um contemplativo. Não se irrita, não quer mal a ninguém, perdoa a injustiça que lhe fazem. Mas é justo e preciso como a luz elétrica. Não fica escaninho que lhe passe despercebido quando se volta para o julgamento de alguém ou de alguma coisa. Não tolera a mentira ou o engano. Prefere sofrer os males de uma verdade desnecessária que o remorso de uma mentira generosa. E isso não porque se ache demasiado íntegro diante da vida. Porque o erro o nauseia e desequilibra. Seu caminho é um doce movimento para a frente, um doce movimento de braços abertos.

Eu vos incito a amá-lo muito, vós que o não conheceis ou o admirais apenas. Não importa a posição em que estejais, direita, esquerda, centro avante, ou retaguarda. É preciso amá-lo com o maior carinho, com maior doçura e deixar que ele vos ame também, porque a glória desse mundo é pouca e o amor desse homem é uma grande glória.

Mas estou me tornando patético. Ou não estou? Não sei. Sei de uma coisa: que Prudente de Morais Neto, o criador da Cachorra, sobrinho de Manuel Bandeira e meu primo pelo coração, foi o homem mais exato que já vi até hoje. E a propósito disto, cabe uma consideração.

Que grupo excelente fazem todos esses homens! Olhem que estive viajando, conhecendo gente nova, tive contato com grandes poetas ingleses, ouvi-os falarem, vi outros grupos de homens de espírito; mas nada assim como eles. Essa força lírica, essa poesia magistral que estão criando para o Brasil, esse impacto de ternura e sordidez, essa coragem diante da vida, essa modéstia real, esse socorro mútuo, essa discrição e esse escândalo com que vivem, só os encontrei neles, aqui entre nós, nesses pequenos grupos dentro do grande Grupo. E faz um bem terrível pensar nisso. Que onde quase todos esperam recompensas, esses homens não esperam nada, apenas a fidelidade mútua. Que onde quase todos usam de processos turvos, muitas vezes inconfessáveis, esses homens agem limpamente, sem sequer se dar conta disso. Vivem em meio à ganância geral com armas desiguais, senão desarmados.

São almas caríssimas, perfeitas de sentimento. Quando se queixam o fazem na melhor poesia, mas porque o fazem assim se queixam pouco. Não transigem com a má literatura: sabem esperar o amadurecimento da palavra a fim de que ela não traga engano. E são homens que se iludem, sujeitos às mesmas tentações e às mesmas quedas, com a mesma sensação da própria fraqueza e da própria sordidez.

Mas neles até a sordidez é inefável. Eis o que os diferença. Neles a sordidez se transforma em poesia e a poesia em canto. E não é essa a maior grandeza do poeta? É possível ser-se poeta sem ser sórdido?

Fonte:
Escrito pelo poeta para o Jornal Correio da Manhã, em 1940.

segunda-feira, 28 de outubro de 2019

Vinicius de Moraes (Parábola do homem rico)


Todos são poetas à sua maneira, mas é bem possível que, se todos o fossem realmente, não houvesse mais lugar para a poesia. Porque a poesia é a amante espiritual dos homens, aquela com quem eles traem a rotina do cotidiano. A poesia restitui-lhes o que a vida prática lhes subtrai: a capacidade de sonhar. O desgaste físico e moral imposto pelo exercício das profissões, em que o ser humano deve despersonalizar-se ao máximo para atingir um índice ideal de eficiência - eis a grande arma da poesia. Depois que o banqueiro passa o dia manipulando o jogo de interesses do seu banco, vem a poesia e, na forma de um beijo de mulher, diz-lhe que o amor é menos convencional que o dinheiro. Ou o bancário, que passa o dia depositando e calculando o dinheiro alheio, ao ver chegar a depositária grã-fina, linda e sofisticada, sonha em tornar-se um dia banqueiro. E fazendo-o, invade o campo da poesia. Pois tudo é fantasia. Cada ação provoca um sonho que lhe é imediatamente contrário. Tal é a dinâmica da vida, e sem ela a poesia não teria vez.

Isso me faz lembrar certa noite em Paris, num jantar com meus amigos Marie-Paule e Jean-Georges Rueff, em companhia de um grande comerciante francês, um homem super-rico, dono de um dos maiores supermercados da França, superviajado, superlindo e casado com uma mulher superlinda. Nós nos havíamos conhecido alguns anos antes, em Estrasburgo, onde ele e os Rueff então moravam, e um pilequinho em comum nos havia aproximado, depois de um papo de coração aberto que nos levou até a madrugada. O assunto agora era o mesmo, a poesia, e o nosso prezado homem rico, depois de discutirmos um pouco a extraordinária vida desse jovem gênio que foi o poeta Jean-Arthur Rimbaud, fez-nos ver que não há casamento possível entre o Grande Lírico e o Grande Empresário: ou se é uma coisa, ou se é outra. O verdadeiro homem de empresa ao mesmo tempo inveja e despreza o poeta, uma vez que não se pode preocupar além dos limites com as palavras da poesia. Elas são, para ele, o reverso da medalha: o ouro impalpável. E como as mulheres - dizia-me ele ao lado da sua - são seres devorados de lirismo, sobretudo no amor, o capitalista tinha que pagar seu preço ao artista: e esse preço, via de regra, era a própria mulher.

- Elas ficam conosco porque nós representamos poder aquisitivo, podemos dar-lhes as coisas de que necessitam para ficarem mais sedutoras, terem mais disponibilidade para cuidar da própria beleza. Mas essa beleza, elas a entregam a vocês, os artistas. No fundo, as mulheres nos odeiam. O que não impede que vocês sejam todos gigolôs do capitalismo.

Ponderei-lhe que já conheci vários homens de empresa que tinham passado na cara mulheres de artistas, mas o nosso prezado homem rico não se deixou perturbar e me disse assim:

- É porque não se tratava de artistas verdadeiramente grandes e puros. Seriam, provavelmente, contrafações. As mulheres sentem. As mulheres só abandonam um iate em Saint-Tropez por um apartamentozinho na Rive Gauche à base do amor integral. E esse amor, só o artista verdadeiramente puro pode dar. Nós, os grandes empresários, temos um outro tipo de pureza. O nosso maior amor é o dinheiro e, através do dinheiro, o poder. A mulher vem na onda.

- Eu conheci e era amigo - ponderei-lhe - de um grande poeta que foi também um grande homem de negócios.

- Grande mesmo? Duvido. Esse tipo de dualidade cria uma profunda infelicidade pessoal. Não se serve ao Deus e ao Diabo ao mesmo tempo.

Admirei-lhe, não sem uma certa sensação de desconforto, a franqueza e honestidade - ele, um belo homem, em plena força de seus quarenta anos, ao lado de sua mulher extraordinariamente linda, com um solitário no anular quase tão grande quanto um ovo de codorna, a nos escutar com uma atenção diligente. Fechado o restaurante, resolvemos esticar na boate New Jimmy's. O nosso prezado homem rico fez uma grande volta para passar diante do seu empório, a fim de ministrar-me uma aula: todo um quarteirão de supermercado, com três pavimentos servidos por escadas rolantes e centenas de vendedores e vendedoras com ordens expressas de serem simpáticos, mas impessoalmente, nunca além do limite, de modo a não retardar com conversas ou excessos de cortesia o fluxo incessante das compras.

- Eu tenho uma média de três a cinco pessoas que são presas diariamente pela minha polícia, por furto de objetos. Em geral, depois de pregar-lhes um susto, eu os deixo ir.

Depois, na direção do seu Rolls-Royce, cujo chofer dispensara, tirou do bolso do paletó a cigarreira da prata e com gestos precisos acendeu um cigarro e, olhando-me pelo espelhinho da direção, me perguntou com uma voz que não permitia réplica:

- Não é uma beleza, poeta?

Fonte:
do Original: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 31 dez 1969.

J. G. de Araújo Jorge (Inspirações de Amor) XXVIII


SERENIDADE

Cheguei enfim a essa serenidade
de quem sorri condescendente,
do homem que não pragueja, na vaidade
de impor aquilo que hoje pensa ou sente...

Desprezo a inútil religiosidade
e o fanatismo histérico de um crente...
Nem vestirei jamais a liberdade
nos dogmas de uma força onipotente!

Não afirmo mentiras nem me exalto,
toda verdade por mais forte é incerta
e não convenço por falar mais alto...

Libertei-me! E afinal concluí, na vida,
que a verdadeira voz que se liberta
não afirma nem nega... mas duvida!

SOFRER POR SOFRER...

Parti. Quis te deixar abandonada
às lembranças do amor que nos prendeu.
Trouxe comigo, na alma torturada,
um ciúme atroz ciumentamente meu...

Fugi... fuga cruel, desesperada,
quando supus que nosso amor morreu...
Fuga inútil, se ainda és a minha amada,
se continuo inteiramente seu!

Não, não me livro deste amor nefasto,
nem dessa angústia, dessa luta, desse
ciúme que aumenta quanto mais me afasto...

E hoje concluí, fugindo de meus passos,
que sofrer por sofrer, antes sofresse
como sempre sofri... mas nos teus braços!

SOLILÓQUIO

A poesia chega forte como uma hemoptise.
Mancha de vermelho o papel  e se transforma em palavra.
Vem em golfadas, depois de longos períodos de ausência.
Rompe a inércia, abruptamente, como um objeto solto no ar!

Oh! a ânsia de não poder contê-la tantas vezes nas palavras,
vê-la desperdiçar-se, fugir, entranhar-se no chão,
como a água da chuva em terra seca.

Pequeninas e insignificantes taças são as palavras
de que disponho para servir meu pensamento.
Meu Deus!
como hei de conseguir conter nestas taças pequeninas,
feias e opacas, a torrente sonora e clara que não para,
que me afoga?

SONATA AO LUAR

Branca, tão branca, como se fosse feita
toda de luar,
- um luar humano...
- como se seu corpo fosse o maravilhoso teclado
de um piano
à espera de mãos de artista para o despertar

Branca, tão branca, como se seu corpo fosse
feito da espuma do mar,
mar de delícias, mar de meus anseios...
- adivinho a inquietação desse mar de mistérios
quando tremem as ondas vivas dos seus seios!

Branca, tão branca, como se fosse feita
da mais fina areia,
dessa areia que é luz embebida de sol
dessa areia que canta ao contato do mar!
Areia de unia praia impossível e desconhecida
numa enseada escondida
onde nenhuma vaga ainda foi se espraiar...

Branca, tão branca, como se seu corpo fosse
uma estátua vestida em mil véus de luar,
- branco luar de camélias e de lírios
que tem forma de mulher em meu olhar ;
um morno luar de amor, a viver em meus nervos,
como a lua, sobre os nervos deslumbrados
do mar!

Branca, tão branca, como se seu corpo fosse
num gesto heráldico e fino
um lírio esbelto no ar! ...
- um lírio de alma vermelha de rosa feiticeira
que abre os lábios úmidos, brejeira
para o sol beijar!

Branca, tão branca, como se seu corpo fosse
esta folha sem mancha onde escrevo os meus versos
a pensar,
- pensar que hei de compor na alvura de seu corpo,
versos do nosso amor, sem rimas nem palavras,
que ela só há de ler... a viver...
a vibrar...

Branca, tão branca, como o meu pensamento
antes de a encontrar.

SONETO À TUA VOLTA

Voltaste, meu amor... enfim voltaste!
Como fez frio aqui sem teu carinho....
A flor de outrora refloresce na haste
que pendia sem vida em meu caminho.

Obrigado... Eu vivia tão sozinho...
Que infinita alegria, e que contraste!
-Volta a antiga embriaguez porque voltaste
e é doce o amor, porque é mais velho o vinho!

Voltaste... E dou-te logo este poema
simples e humilde repetindo um tema
da alma humana esgotada e envelhecida...

Mil poetas outras voltas celebraram,
mas, que importa? se tantas já voltaram
só tu voltaste para a minha vida…

SUPREMA  IRONIA

Não digas que não sofro - o meu sofrer profundo
com um sorriso nos lábios muita vez apago...
A dor - é como a pedra que cai - vai pro fundo
sob a face serena e tranquila do lago...

Um segundo de pura alegria - um segundo
muitas vezes me basta, e já me dou por pago...
Se invejo, invejo aquele que não tendo um mundo,
tem mundo para além do olhar ardente e vago...

Que eu não ando a dizer que sofro e me atormento!
É covardia a gente maldizer-se à toa
a viver esta vida entre um ai e um lamento...

Eu, não! Bem sei que sofro, mas sofrer - que importa ?
Digo aos homens que o mundo é belo, a vida é boa!
E... suprema ironia... a minha voz conforta!

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. Os Mais Belos Poemas Que O Amor Inspirou. vol. 2. SP: Ed. Theor, 1965.

Arthur de Azevedo (Vingança)

Obs: As palavras com *, a explicação está nas notas ao final do conto.
____________________________

Quando Madame d’Arbois chegou ao Rio de Janeiro, escriturada numa trupe parisiense que fez as delicias dos frequentadores do Cassino Franco Brésilien, muitos rapazes se apaixonaram por ela. Dizia-se que Madame d’Arbois resistia heroicamente a todas as seduções, guardando absoluta fidelidade ao marido, um cabotin (farsante) qualquer, que ficara em França, esperando filosoficamente que ela voltasse da América, endinheirada e feliz.

O jovem Comendador Cardoso, que não acreditava em Penélopes de bastidores, e era, em questões eróticas, de uma diplomacia insigne, com tanta habilidade soube levar água ao seu moinho, que, ao cabo de dois meses, vivia maritalmente com Madame d’Arbois.

Por esse tempo dissolveu-se a trupe, e o jovem Comendador Cardoso aproveitou o ensejo para pedir à amiga que abandonasse o teatro Nada lhe faltaria em casa dele, que era negociante e rico. Ela aceitou depois de muito hesitar, impondo como condição, que ele estabeleceria ao marido, em Paris, uma pequena mesada de quinhentos francos.

Durante um ano as delícias dessa mancebia não foram perturbadas pela mais leve contrariedade. O jovem Comendador Cardoso e Madame d’Arbois pareciam talhados um para o outro. Ele era um homem simpático, de trinta anos, pouco instruído é verdade, mas senhor desses hábitos sociais que até certo ponto dispensam a educação literária.

Ela era uma mulher bonita, alegre, quase espirituosa, e uma senhora dona de casa, econômica e asseada como todas as francesas. Que mais poderiam ambos desejar….
---

Tudo cansa. Ao cabo de um ano, Madame d’Arbois começou a sentir nostalgia dos bastidores. Demais a mais, aconteceu que o empresário da melhor companhia brasileira de operetas, mágicas e revistas, lhe ofereceu um vantajoso contrato, convidando-a, nada mais nem menos para substituir a estrela de maior grandeza que então brilhava no firmamento do teatro fluminense, estrela que se retirava temporariamente para a Europa.

O jovem Comendador Cardoso pôs os pés à parede. Que não, que não, que não! A Lolotte – Madame d’Arbois chamava-se Charlotte – não precisava trabalhar para viver! Que o não aborrecessem!

– Mas não, mas não! Não é dinheiro, meu pobre querido – obtemperava Lolotte. – Sinto que farei uma coisa ruim se não voltar ao teatro! Bem ... vamos ver ... seja legal ... você tem que concordar ... (*)

Um negociante, compadre do empresário, foi ter com o jovem Comendador Cardoso, de quem era amigo íntimo, e interveio com muito empenho:

– Que diabo! Consente, Cardosinho, consente! Se não lhe fazes a vontade, ela contraria-se, e não há nada pior que uma mulher contrariada. Depois, vê lá: não é nada, não é nada, mas sempre são seiscentos bagarotes que a pequena mete no banco todos os meses! Não vás tu privá-la desse pecúlio!

Este último argumento foi irresistível. Mês e meio depois, Madame d’Arbois estreava-se no papel da protagonista de uma opereta.

Foi completo o seu triunfo. Ela falava um português fantástico, e na cantoria desafinava que era um horror, mas o público, o magnânimo público fluminense, fechou os olhos a esses defeitos, e aplaudiu-a freneticamente. Madame d’Arbois teve que repetir três vezes certas  coplas cuja letra ninguém percebia, mas eram cantadas com um movimento de quadris capaz de entontecer um santo.
---

Razão tinha o jovem Comendador Cardoso em não querer que a amiga voltasse para o teatro. Dentro de pouco tempo notou nas suas maneiras uma diferença enorme. A diva contrariava-se visivelmente quando ele, cansado de esperá-la no saguão do teatro, penetrava até o camarim.

Uma vez encontrou lá dentro, familiarmente sentado, o Lopes, o primeiro ator cômico da companhia, que logo se retirou, dizendo:

– Adeusinho, comendador; vim cá restituir à colega o rouge que lhe pedira emprestado.

Ele não podia desconfiar do Lopes. Era este um artista de talento, e o público estimava-o deveras, mas a Lolotte poderia lá gostar de um homem tão feio, tão desdentado e tão pouco cuidadoso da sua roupa!

Entretanto, uma carta anônima, escrita com letra de mulher, tudo lhe disse. A primeira atriz cantora e o primeiro ator cômico encontravam-se, quase todos os dias, depois do ensaio, em casa de uma corista, perto do teatro.

Um dia, o jovem Comendador Cardoso, depois de se haver posto em observação numa casa que ficava em frente à da hospitaleira corista, saiu, atravessou a rua e entrou na sala das entrevistas. Lolotte estava sentada, de pernas cruzadas, a fumar um cigarro turco; o Lopes de pé, em ceroulas.

O primeiro ator cômico, ao ver o jovem Comendador Cardoso, não perdeu o sangue-frio, e começou a fingir que estava a ensaiar.

– É como vos digo, Princesa Briolanja; o rei, vosso pai, não acredita nas palavras da Fada das Safiras, e quer absolutamente encontrar nos seus ermos um mancebo, fidalgo ou vilão, que vença o Dragão Vermelho, e vos despose!…

Mas o jovem Comendador Cardoso não engoliu a pílula, e disse, dirigindo-se à Princesa Briolanja, que continuava a fumar o seu cigarro turco:

– Bem; estou satisfeito; vi o que queria ver. Fique-se com o senhor Lopes, que realmente é digno da senhora!

E saiu arrebatadamente.

– E agora? – perguntou o cômico.

– Oh! Ele voltará! – afirmou ela, carregando os erres, entre uma baforada de fumo.

E foram deitar-se.
---

O jovem Comendador Cardoso não voltou, e Madame d’Arbois ficou bastante contrariada, porque o ator Lopes tinha numerosa família – mulher e filhos – e não lhe dava um vintém. Demais, ela bem depressa fartou-se desses amores reles. Que doidice a sua: trocar por aquele tipo um rapaz rico, inteligente, simpático e generoso!

Acresce que a opereta, recebida com grande entusiasmo durante as primeiras trinta representações, já não atraía o público; o teatro ficava agora todas as noites vazio e o empresário já devia um mês de ordenados à companhia…
---

A primeira representação da peça que estava em ensaios, a tal em que entravam a Fada das Safiras e o Dragão Vermelho, devia ser dada em beneficio do Lopes, e esse espetáculo era ansiosamente esperado. O beneficiado via-se doido para atender aos numerosos pedidos de bilhetes. Nos jornais apareciam todos os dias grandes reclames à "festa artística", anunciada também pelas esquinas em vistosos cartazes, onde este nome – LOPES – se destacava em enormes caracteres vermelhos.

Chegou a noite do espetáculo. Às sete horas e meia as torrinhas (*1), os corredores e o jardim do teatro já estavam apinhados. Uma hora depois, a sala transbordava, e toda aquela gente abanava-se com leques, ventarolas, lenços e programas, bufando de calor. Os espectadores das torrinhas batiam com os pés e as bengalas, e dirigiam chufas (*2) aos da plateia e dos camarotes, talvez com a ideia de se vingarem de os ver em lugares menos incômodos. Os críticos teatrais estavam a postos. Os músicos afinavam os instrumentos; um garoto apregoava o retrato e a biografia do glorioso Lopes; as conversações cruzavam-se; e todos esses ruídos juntos produziam um barulho ensurdecedor e terrível.

De repente, ouviu-se o agudo som de uma sineta ao mesmo tempo que uma campainha elétrica retinia longamente, e a sala, até então que se escura, aparecia numa intensidade de luz, arrancando um prolongado O… o… 0k… das torrinhas… Eram nove horas.

Restabelecido o silêncio, o regente da orquestra subiu vagarosamente para o seu lugar, abriu a partitura, falou em voz baixa a alguns músicos, bateu três pancadas na estante, levantou a batuta, e fez executar a ouverture.

Terminada esta, naturalmente esperavam todos que o pano subisse, mas não subiu.

Passaram-se alguns minutos.

Começou o público a impacientar-se, batendo com os pés. A pateada cresceu. Uma ordenança foi destacada do camarote da polícia para o palco. O beneficiado, vestido de escudeiro de mágica, surdiu (*3) no proscênio (*4) e foi recebido com uma salva de palmas. Mas de todos os lados fizeram: Psiu! psiu! – e o barulho cessou.

– Respeitável público – disse o primeiro ator cômico – o espetáculo não pode ter começo, porque a atriz Madame d’Arbois, incumbida de um dos principais papéis, até agora não apareceu no teatro. Rogo-vos humildemente que espereis alguns minutos mais, e me perdoeis esta falta, inteiramente alheia à minha vontade.

Esse cavaco foi acolhido com outra salva de palmas. O Lopes retirou-se, cumprimentando e agradecendo para a esquerda, para a direita, para cima, para baixo, e os comentários, os risos, as imprecações e os gracejos começaram num vozerio atroador.

De vez em quando saíam da caixa do teatro, ou para lá entravam, correndo pelo corredor, pessoas azafamadas, espavoridas – empregados da contra-regra, costureiras, etc. – mandadas à procura de Madame d’Arbois.

Passava das nove e meia quando o Lopes, coagido pela polícia, veio de novo ao proscênio declarar que, não se achando Madame d’Arbois no teatro nem na casa de sua residência, ficava o espetáculo transferido para quando se anunciasse.

Desta vez não houve palmas que saudassem o primeiro ator cômico.

A saída dos espectadores fez-se no meio de uma confusão indescritível. Muitos exigiram que lhes fosse restituído o dinheiro, e promoveram desordem na bilheteria. Foi necessária a intervenção da polícia. Só às onze horas pode ser restabelecida a ordem e fechado o teatro.
---
 
Onde estava Madame d’Arbois?

No dia do espetáculo ela acabara de jantar, e, reclinada na sua espreguiçadeira, relia mais uma vez o interessante papel de Princesa Briolanja, que devia representar essa noite, quando lhe trouxeram uma carta do jovem Comendador Cardoso.

– Ah! Ah! – pensou a francesa com um sorriso de triunfo. – Voltou ou não voltou?

E abriu a carta:

"Lolotte – Escreveste-me, pedindo que te perdoasse. Perdoo-te, mas sob uma condição: deixarás de representar hoje no beneficio do homem que foi o causador da nossa separação, ou, por outra, nunca mais representarás. Só assim serei para ti o mesmo que já fui. Se aceitas, mete-te no carro que ai te irá buscar às sete horas da noite, e vai ter comigo no Hotel Laroche, no alto da Tijuca, onde estou passando uns dias, e onde ficaras em minha companhia. Se não, não. – Cardoso."

Princesa Briolanja leu e releu esse bilhete.

Era o perdão, era o descanso, era a fortuna, que lhe traziam aquelas
letras. Deixando de comparecer ao espetáculo, ela praticava uma ação
feia, provocava um escândalo inaudito, mas isso que lhe importava, se
saía do teatro e ia outra vez estar de casa e pucarinha com aquele homem distinto a quem tantos favores e tanto afeto devia?

Pouco depois da hora aprazada, Lolotte entrou no discreto coupé que a esperava à porta de casa, e chegou ao Hotel Laroche precisamente na ocasião em que o Lopes, desesperado, apelava para a paciência do público.
---

Ao entrar no hotel, Madame d’Arbois perguntou a um criado:

– O Comendador Cardoso?

– Não está, mas deixou um bilhete para Madame d’Arbois. A senhora?

– Sim, sou eu.

E a desgraçada leu o seguinte:

"Caíste como um patinho, minha toleirona. Estou vingado de ti e do teu Lopes. Volta para ele; é tão pulha, que talvez te aceite ainda. – Cardoso."
____________________
Notas do blog:

* No conto esta frase está em francês. Traduzi para melhor compreensão do que está escrito.
– Mais non, mais non! Il ne s’agit point d’argent, mon pauvre chêri – obtemperava Lolotte. – Je sens que je ferai une g’rosse maladie si je ne rétourne pas au théâtre! Eh bien… voyons… sois gentil… Il faut que tu y consentes…

*1 Torrinha – nos teatros, camarote ou galeria da última ordem de assentos, geralmente localizada no pavimento superior

*2 Chufa – gracejo; zombaria; mofa; sátira; caçoada; troça; brincadeira.

*3 Surdir – emergir; vir à tona.

*4 Proscênio – Parte anterior de um palco, que avança desde a boca de cena até seu limite de separação da plateia.


Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos vários.

domingo, 27 de outubro de 2019

Varal de Trovas n. 100


Carolina Ramos (O Anticlerical)


Dizia-se anticlerical. Tinha suas razões. Questionáveis umas. Outras, infelizmente, não. As vezes, um ou dois maus elementos conseguem estremecer as melhores conceituações dos mais radicais.

Embora dizendo-se anticlerical, tinha amigos padres. Bons amigos com quem conversava e trocava ideias. E com quem discutia sobre qualquer assunto, dentro da maior abertura e camaradagem que só as grandes amizades propiciam.

Veja-se o caso do padre português, canceroso, esquecido de todos, que o teve ao pé do leito, em seus derradeiros dias, revoltado com o ostracismo em que morria o velho sacerdote, seu amigo desde os tempos de congregação mariana.

Sim, tinha amigos padres. Amigos sinceros. Mas, embora retribuísse essa sinceridade, dizia-se anticlerical. Razões teria.

Natal! O avô anticlerical esperava as netas à saída da missa vespertina. Foi quando aproximou-se dele um rapaz de pés encardidos, descalços.

— Olhe, eu vim da Bahia... preciso de sapatos... procurei a Assistência Social e... mandaram que eu me virasse... me dê um dinheirinho, sim?

As netas chegavam. O povo escorria pela porta da igreja como água derramada escada abaixo.

Vestido informalmente, de bermudas, e sem um níquel sequer nos bolsos, o avô anticlerical não hesitou. Para surpresa das meninas, descalçou rapidamente o par de tênis novos e entregou-o ao pedinte, voltando descalço para casa, sem esperar pelo agradecimento.

Naquele fim de tarde, as guirlandas de luzes coloridas, dependuradas nas sacadas vizinhas, ganharam brilho especialíssimo. É que o Natal, de repente, ficara mais Natal do que nunca!

Fonte:
Carolina Ramos. Feliz Natal: contos natalinos. São Paulo/SP: EditorAção, 2015.
Livro enviado pela autora.

Silmar Böhrer (Divagações Poéticas) I


1
Nunca fico sem remédio
para dor em casa.
Tenho vários livros de filosofia.
Para qualquer dor.
A qualquer hora.

2
Somos propensos
a praticar
a horizontalidade.
Quase rés-do-chão.

Mais alto devo subir,
mais alto devo olhar.
Goethe a sugerir.
E apregoar.

Pedras
penhascos
planaltos.

Planos altos.

Surgir
subir
sumir.

Praticar
a verticalidade.
Sempre.

3
Não sei se sou
apenas um
ou sou um
apenas.
Sei que sou
um.

4
De vez em quando
lavo
meu relógio de parede.
Em meio
a tanta sujeira
podridão
mesquinhez
falsidade
preconceito
brutalidade
insensatez
é bom termos
algumas horas
puras
limpas
saudáveis
verdadeiras.

5
No espelho:
- Puxa, cara, como você está bonito ?
Quantos anos tem ?
- Meu sorriso é a minha idade.
- Verdade ? Como assim ?
- Anos de vida se contam com paz de
espírito, alegria, otimismo, jovialidade,
e o sorriso na face.
- É... parece !
- Então sorria também. Sempre.

6
Leitor contumaz,
leio até mesmo
o que não me apraz,
e que
daqui a pouco
me satisfaz.

7
Indícios de primavera:
primeiros acordes
do pássaro desconhecido,
fantástico
cantador,
encantador
monástico.
Primeira monção
de setembro.

8
A vida é um rio
que segue
em meandros
na planície,
nas encostas,
nas montanhas.
Vêm pedras,
vêm flores,
vêm espinhos,
alternância
nos caminhos.
Somos um barco
a navegar
em águas
serenas,
rápidas,
caudalosas.
Calmarias,
rebordosas.
Rio somos, rio vamos.

9
Estuário
das leituras
de variadas fontes,
sempre mais
inundado
de águas-conhecimentos.

10
Em nome da cultura
masco palavras,
engulo ideias,
regurgito convicções.

Fonte:
Enviado pelo poeta.

IV Concurso de Trovas da UBT Cachoeira do Sul/RS (Trovas Premiadas)

UBT Seção Cachoeira do Sul orgulhosamente divulga os nomes dos vencedores do seu IV concurso de TROVAS

VETERANOS

Tema: Chuva


Bem-vinda a chuva que encerra
a seca triste, inclemente,
e rega o ventre da terra
para brotar a semente!
Francisco Garcia

A falta de empenho estraga
os sonhos de ser feliz
que a chuva do tempo apaga
o que a gente escreve a giz!
Arlindo Tadeu Hagen

O tempo às vezes destroça
o amor calmo...ou mesmo arisco:
o nosso foi chuva grossa
e hoje é apenas um chuvisco!
Edmar Japiassú Maia

Eu tentei — você bem sabe —
esquecer nossas andanças,
mas não há chuva que acabe,
com fogaréu de lembranças.
José Almir Loures

Age com calma e medida,
em dose certa e sensata...
mesmo a chuva que dá vida,
quando é demais, também mata!
Maria Marlene Nascimento Teixeira Pinto

MENÇÕES HONROSAS

As gotinhas transparentes
da chuva formam um véu
e, qual maná são presentes
que Deus envia do céu!
Alba Helena Corrêa

O tom da chuva parece
algum recado de Deus
ao julgar o tom da prece
que ele ouviu dos filhos seus.
Plácido Ferreira do Amaral Júnior

Sobre os lábios desprezados,
em meio a tanta aridez,
meus olhos, dois céus nublados,
prometem chuva outra vez...
Jerson Brito

É quando a chuva fininha
chega e molha a tarde lenta,
que a saudade vem, se aninha,
e a solidão mais aumenta...
Gilvan Carneiro

Nas chuvas ou na estiagem,
um pomar ao pé da serra
é um prêmio a quem tem coragem
de tocar as mãos na terra!
Renata Paccola

MENÇÕES ESPECIAIS

Quando a chuva é generosa,
torna-se farta a colheita
e a natureza orgulhosa,
de flores, frutos , se enfeita!
Alba Helena Correa

O relâmpago, o trovão,
a festa da agricultura...
A chuva engravida o chão
e do chão nasce a fartura.
A. A. de Assis

A chuva é drama e comédia,
pois, nessa dupla função,
se, às vezes, causa tragédia,
também dá vida ao sertão!!!
Maria Madalena Ferreira

A chuva leve e meu pranto
gotejando em sintonia
alternam, num acalanto,
a paz e a melancolia!
Renata Paccola

A chuva que cai lá fora,
parecendo tempestade,
é meu coração que chora
num dilúvio de saudade.
Antônio Francisco Pereira

NOVOS TROVADORES

Tema: Chuva

VENCEDORES


Cai chuva! Cai no telhado,
no chão e na plantação.
Faz brotar todo o roçado,
na secura do sertão.
Maria Eunice Silva de Lacerda

Na cidade, ela castiga,
irrita a população,
mas, na roça a chuva instiga
o verde a brotar do chão.
José Carlos Defilippo

A chuva é água corrente
que alimenta nossas vidas
para seguirmos em frente
limpando as fundas feridas.
Adilson Roberto Gonçalves

Ao som de linda sonata,
brilhando no meu rincão,
a lua, chuva de prata,
irriga o meu coração.
Regina Rinaldi

Comissão Julgadora:
Flávio Stefani,
Lisete Jonhson e
Marília Oliveira

PARABÉNS AOS VENCEDORES!!!

Fonte:
Jaqueline Machado (Facebook)

Academia de Letras de Teófilo Otoni (Convite para Solenidade de Premiação: 9 de Novembro)


CONVITE
 
Aos Membros Correspondentes da ALTO (Academia de Letras de Teófilo Otoni) classificados no IV Prêmio Literário Gonzaga de Carvalho:

Amalri Nascimento, Rio de Janeiro – RJ
Antonia Aleixo Fernandes, São Paulo – SP
Caracy Teixeira Bessa, Salavador – BA
Carmelita Ribeiro Cunha Dantas, Aparecida de Goiás – GO
Celso Gonzaga Porto, Cachoeirinha – RS
Cláudio de Almeida Hermínio, Belo Horizonte – MG
Cláudio Rogério Trindade, Ijuí – RS
Érika Lourenço Jurandy, Rio de Janeiro – RJ
Evandro Ferreira, Caucaia – CE
Fátima Sampaio, Belo Horizonte – MG
Fernando Catelan, Mogi das Cruzes – SP
Isabel Cristina Silva Vargas, Pelotas – RS
João Bosco de Castro, Bom Despacho – MG
José Feldman, Maringá – PR
Juracy Nonato Ferreira, Santa Helena de Minas – MG
Lucivalter Almeida, Nazaré – BA
Marcelo de Oliveira Souza, Salvador – BA
Margareth das Dores Rafael Moreira Costa, Itambacuri – MG
Marina Barreiros Mota, Palmas – TO
Odenir Follador, Ponta Grossa – PR
Odyla Paiva, Rio de Janeiro – RJ
Paulo Roberto de Oliveira Caruso – RJ
Rosilene Alves, Padre Paraíso – MG
Sílvio Parise, East Providence – EUA
Teresa C.C. M. Azevedo, Campinas – SP
Valter Bitencourt Júnior, Salvador – BA
Vânia Rodrigues Calmon, Vila Velha – ES
Walter Luiz Cid do Nascimento, João Dourado – BA

Temos a elevada honra de comunicar a Vossas Senhorias que a premiação ocorrerá em sessão solene, em comemoração ao Dia Nacional da Língua Portuguesa, da Cultura e da Ciência (Leis 5.579/70 e 11.310/2006).

Local:
Plenário da Câmara Municipal de Teófilo Otoni,

às 19:00 horas, dia 09 de novembro de 2019(sábado).


Na impossibilidade do comparecimento, o estojo com Troféu, Medalha e Diploma será enviado, via correios, para o endereço indicado pelo autor. Solicitamos, apenas, uma contribuição, no valor de R$ 30,00 (trinta reais), referente à despesa postal para envio da premiação.

1º lugar em cada categoria: Troféu Gonzaga de Carvalho, Medalha e Diploma;

2º lugar em cada categoria: Troféu Gonzaga de Carvalho, Medalha e Diploma;

3º lugar em cada categoria: Troféu Gonzaga de Carvalho, Medalha e Diploma;

Os trabalhos classificados do 4º ao 15º lugares, em cada categoria, receberão diplomas de Menção Honrosa e Medalha.

Saudações acadêmicas,
PROF. WILSON COLARES DA COSTA
Secretário-Geral

Fonte:
ALTO