sábado, 7 de março de 2020

Carlos Drummond de Andrade (Glória)


— Meu filho é artista de televisão, contando o senhor não acredita. Eu mesmo às vezes penso que é ilusão. Com oito anos, imagine. Estava brincando na pracinha lá da vila quando passaram uns homens e olharam muito pra ele. Meu filho, não é pra me gabar, mas é uma lindeza de Menino Jesus, aí um dos homens falou assim pra ele. Quer fazer um teste, ó garoto? O que é teste? ele respondeu. Aí o homem explicou, não sei bem qual é a explicação, levaram ele pra um edifício na cidade, tiraram um bocado de retratos dele, depois falaram assim: Você foi aprovado. Aí ele se espantou: Mas eu não fiz exame, que troço é esse? Não é nada de exame não, eles responderam, você foi aprovado pra fazer um comercial, tá bem? Ele neca de saber o que é um comercial, nem eu, mas agora eu fiquei sabendo, é uma coisa à toa, a pessoa nem precisa falar, fica só fazendo uma coisa, comendo doce de leite, devagarinho, com uma carinha alegre, quando acaba passa a língua nos beiços, assim, olha, e pisca o olho, ele é tão engraçado, antes de acabar de comer ele já estava fazendo isso, um negócio. Aí mandaram ele de volta pra casa, não, antes falaram assim pra ele: manda seu pai aqui na agência receber o cachê. Ele ficou espantado, falou assim: Que troço é esse? Eles responderam. É tutu. Aí ele baixou a cabeça e respondeu baixinho: Eu não tenho pai. E mãe você tem? Ele respondeu que mãe ele tinha, e levantou a cabeça. Então manda ela aqui, mas o garoto é esperto, deu uma de sabido: Eu mesmo não posso receber? se fui eu que fiz tudo sozinho. Não, você não pode, tem que ser sua mãe, diz a ela que venha das duas às quatro, trazendo carteira de identidade. Bonito, e eu que nunca tive carteira, já pelejei pra tirar uma, dei duro, pedi pro compadre Julião me quebrar esse galho, compadre explicou que carece antes tirar certidão de nascimento, essa é muito boa, então a gente tem que provar que nasceu, eu não estou viva com a graça de Deus e forte e trabalhando? O pior é que nem sei se fui registrada lá em Pilão dos Palmares, chão do meu nascimento, não tenho parentes neste mundo, só tenho no outro, e nem a poder de oração consegui até hoje tirar o papel da tal certidão, afinal eu falei assim pro compadre: Deixa pra lá, sem carteira vivi até hoje, sem ela vou viver até Nosso Senhor me fechar os olhos. Vou lá na agência assim mesmo. Larguei meu serviço. Fui. Tinha um mundão de gente, eu não sabia quem é que podia me atender, andei rolando de uma sala pra outra, até que afinal um cara de bigodão, atrás da parede de vidro com um óculo no meio, falou assim: É comigo, trouxe a carteira? Eu expliquei que carteira eu não tinha, mas sou lavadeira muito acreditada na Zona Norte, muitas madamas da rua Conde de Bonfim podem atestar que eu sou eu mesma e mãe de meu filho, há vinte e cinco anos que trabalho de lavar roupa. Ele abanou a cabeça, falou assim: Nada feito, não tenho ordem de pagar sem identidade. Mas o meu filho trabalhou, moço, eles ficaram satisfeitos com o trabalho dele, tanto que prometeram pagar um tal de cachê, como é que pra pagar a ele é preciso a carteira de outra pessoa, o senhor acha isso direito? Ele não respondeu nada, tornou a abanar a cabeça e eu fiquei matutando: O que tu vai fazer pra sair dessa, Clementina da Anunciação? E comecei a chorar. Aí eles me viram chorando, ficaram com pena de mim, um barbudo que passava disse assim pro bigodão: Paga a ela, Reginaldo. O bigodão resmungou: Tá legal, e me deu um papel passado em três folhas iguais, pra eu assinar nelas todas. Aí eu disse: O senhor me desculpe, mas eu não sei escrever, a cabeça não dá. Então nada feito outra vez, o bigodão respondeu. Aí, eu não tinha mais vontade de chorar e disse assim pra ele: Escuta aqui, moço, quanto é que meu filho tem pra receber? Ele respondeu: cinquenta cruzeiros. Ah, é isso? respondi. Pode ficar pra agência. Perdi meu dia de trabalho, gastei trem, gastei ônibus, andei a pé neste solão, não vou me chatear por causa dessa mixaria. Um cara que estava escutando falou assim: A senhora vai jogar fora esses cinquenta mangos? E daí? respondi pra ele. Meu filho vale muito mais, a gente não fica mais pobre por causa disso, ele agora é artista, amanhã se Deus e a Virgem Maria ajudar, vai ganhar milhões. Nem precisa ganhar, só o orgulho que eu sinto por ele ter passado no teste! Saí de lá com esse orgulho bonito no coração, meu filho é artista, meu filho é artista, ia repetindo sozinha, na rua me olhavam admirados mas eu nem dei bola, fui pra casa e ligo a televisão o dia inteiro, trabalho vendo ela, até chegar a hora de meu filho aparecer no comercial comendo doce de coco. Pobre tem televisão, na vila todos têm, vai ser um estouro quando meu boneco aparecer e piscar o olho, então isso não vale mais que cinquenta, que quinhentos ou cinco mil cruzeiros, ou todos os cruzeiros do mundo?

E seu rosto enrugado cintilava de glória.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas.

Luiz Otávio (Um Coração em Ternura…) 2


DUAS FLORES

Plantaste em meu coração,
um sutil "amor-perfeito",
e desde este dia então,
vivi feliz, satisfeito!

Veio depois a Distância,
arrancá-lo, por maldade,
e em seu lugar a Constância,
deixou plantada a Saudade…
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QUEM SOFRE MAIS?

Quem tem maior sofrimento,
numa atroz separação:
— quem parte só, num tormento,
quem fica na solidão?!

Sendo as almas desiguais,
a do homem e da mulher,
é esta quem sofre mais,
diga alguém o que quiser!

A mulher é mais constante,
mais emotivo o seu ser...
É seu amor delirante
a razão de seu viver

O homem logo se esquece...
Tem que viver, que lutar…
Por isso, menos padece,
se partir ou se ficar…
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 NO ÁLBUM DE VERINHA

Ó Verinha — anjo pequeno,
que Jesus ao Céu chamou!
Por que ainda assim tão cedo,
aos teus pais, Deus te tirou?!

Com certeza, que este Mundo,
que num caos se transformou,
não serve mais para os anjos,
e Deus, então, te levou...

Só treze anos — são tão poucos!
Nem a vida começou...
(Mas também, por serem poucos,
por breves mágoas passou...)

Se tu soubesses, Verinha,
quanta saudade ficou!
Como a vila entristeceu!
Tua mãe — como chorou!...

A morte é muito traiçoeira;
ninguém, jamais, a evitou…
— Mas não morre, quem a Terra,
pelo Céu, feliz trocou...

Quem viveu só em pureza,
quem foi bom, e não odiou,
nos corações dos amigos
vive sempre... e assim ficou…

Atendendo ao teu desejo,
— como tua mãe contou —
só agora no teu Álbum
escrever meus versos vou...

... Mas do Céu, lerás, por certo,
estas trovas que te dou:
são saudades — flores pobres,
que um troveiro te ofertou...
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POEMA DA FILA


Que filas tão grandes! Que filas paradas!
Parecem formigas,.. Mas não digo bem...
Pois andam mais lentas, mais tristes, cansadas…
— Há crianças e moços, e velhos também!

As filas começam ainda tão cedo!
As vezes terminam repentinamente...
— São filas compridas que até metem medo,
que causam apertos no peito da gente!

As filas igualam, nos dão mesma sorte...
Um rosto, têm todos, igual, sonolento…
Parecem com gado que vai para o corte,
também conformado, sem ter um lamento...

Parece mentira: é o Povo sem nome,
que vai comprar leite, que vem já aguado,
pra dar de beber aos seus filhos com fome,
ou pra alguém que em casa ficou acamado.

Caminha em silêncio, às vezes aos pares,
a Fila da Banha, do Leite, do Pão.
A Fila daqueles que voltam aos lares,
e esperam, exaustos, qualquer condução...

Por que tantas faltas, nas casas, nas feiras,
se a terra é tão boa pra toda cultura?
Por que há falta d’água, se há rios, cachoeiras?
Por que falta tudo, se há tanta fartura?

E os pobres, coitados, sofrendo… sofrendo…
A vida subindo… sem ter mais um fim…
As filas mais lentas e sempre crescendo...
E os ricos que fingem não ver tudo assim…

E Deus que do Céu todas coisas assiste,
será que estas filas já não pressentiu?
Que o pobre ficou bem mais pobre e mais triste!
Que ricos tão fortes jamais ninguém viu!

E o Povo saudoso da antiga abastança,
de tudo que havia no nosso País,
não fala, não grita, não perde a Esperança…
— E a Fila caminha, bem lenta, infeliz…

Fonte:
Luiz Otávio. Um coração em ternura. Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti, 1947.

Contos e Lendas do Mundo (Suécia: As Três Avozinhas)


Era uma vez um príncipe e uma princesa que se amavam muito. Ela era terna, linda e muito estimada por todos, embora mais propensa à diversão e ao jogo que às atividades do lar.

O fato parecia não ser do agrado da velha rainha, pelo que declarou que não queria ter como nora uma mulher que não fosse tão ativa como ela fora na juventude, e opôs-se de todas as formas e maneiras possíveis ao casamento do príncipe.

Como a rainha não queria voltar com a palavra atrás, o príncipe procurou-a e pediu que o deixasse pôr a noiva à prova, para verificar se era tão ativa no trabalho como ela tinha sido. O pedido pareceu a todos muito arrojado, pois a mãe do príncipe continuava a ser uma mulher infatigável, que passava dia e noite a fiar, coser e tecer, de tal modo que ninguém a conseguia igualar. No entanto, consentiu finalmente que se cumprisse a vontade do príncipe. Assim, conduziram a bela princesa à sala das mulheres e a rainha enviou-lhe vinte libras de linho para que o fiasse, tarefa que devia estar concluída antes do amanhecer, de contrário nem pensar na possibilidade de receber o príncipe por esposo.

Quando ficou só, a princesa sentiu-se muito mal. Sabia perfeitamente que não poderia fiar o linho da rainha e, por outro lado, não queria perder o jovem príncipe, que tanto a amava. Por conseguinte, dava voltas pela sala, chorando ininterruptamente. De súbito, a porta abriu-se devagar para dar passagem a uma velha muito pequena, de aspecto assaz estranho, com uns pés enormes que causariam estranheza a quem a visse. Saudou a princesa com as palavras:

- Paz de Deus!

- A paz de Deus seja contigo!

- Porque está tão triste esta noite a bela donzela?

- Não hei de estar, se a rainha me ordenou que fiasse vinte libras de linho? Se não terminar o trabalho antes do amanhecer, perderei o meu amado príncipe!

- Consola-te, bela donzela! Se é apenas isso, posso ajudar-te. Mas tens de me conceder o desejo que passo a comunicar-te.

Ao ouvir isto, a princesa sentiu-se invadida por uma enorme alegria e perguntou em que consistia esse desejo.

- Bem, chamo-me Storfota-mor e a única recompensa pela minha ajuda limita-se a estar presente na tua boda. Não assisto a uma desde que a rainha, tua futura sogra, foi a noiva.

Concedeu-lhe de bom grado e a seguir separaram-se. A princesa deitou-se, mas não conseguiu pregar olho em toda a noite, que lhe pareceu eterna.

De madrugada, antes que rompesse o dia, a porta abriu-se e a velha reapareceu, para se aproximar da princesa e entregar-lhe um novelo de fio tão branco como a neve e fino como uma teia de aranha.

- Não fiava um novelo tão lindo como este desde que o fiz para a rainha, quando ia casar - informou. - Mas já lá vai muito tempo.

Em seguida, retirou-se e a princesa mergulhou num sono leve e reparador. Mas não tinha passado muito tempo, quando a rainha a acordou a perguntou se havia completado a tarefa. Ela respondeu que sim e entregou-lhe o novelo. Assim, a rainha teve de se considerar satisfeita, embora fosse evidente que o fazia com relutância.

Quando amanheceu, a rainha disse que queria submetê-la a outra prova. Enviou o novelo à sala das mulheres, juntamente com o tear e todos os apetrechos necessários, e ordenou à princesa que o tecesse. O tecido devia estar terminado antes do nascer do Sol, de contrário escusava de pensar sequer em casar com o jovem príncipe.

Quando ficou só, a princesa voltou a sentir-se amargurada, pois sabia que não conseguiria cumprir a nova tarefa, apesar de não querer perder o príncipe, que tanto amava. Desmoralizada, movia-se de um lado para o outro, chorando amargamente, quando a porta se abriu para dar passagem a uma velha muito pequena, de aspecto estranho e semblante ainda mais invulgar. Além disso, o seu traseiro era tão grande que quem o visse teria forçosamente de ficar abismado. Saudou-a com as palavras:

- Paz de Deus!

- A paz de Deus seja contigo!

- Porque está tão triste e preocupada a bela donzela?

- Não hei de estar, se a rainha me ordenou que tecesse este novelo? Se não o fizer antes de raiar o dia, perderei o príncipe, que tanto me ama.

- Se é apenas isso, posso ajudar-te. Mas com a condição que passo a comunicar-te.

Ao ouvir isto, a princesa foi invadida por uma enorme alegria e perguntou em que consistia esse desejo.

- Bem, chamo-me Storgumpa-mor, e a única recompensa pela minha ajuda limita-se a estar presente na tua boda. Não assisto a uma desde que a rainha, tua futura sogra, foi a noiva.

Concedeu-lhe de bom agrado e a seguir separaram-se. A princesa deitou-se, mas não conseguiu pregar olho em toda a noite, que lhe pareceu eterna.

De madrugada, antes que rompesse o dia, a porta abriu-se e a velha reapareceu, para se aproximar da princesa e entregar-lhe um tecido tão branco como a neve e tão delicado como uma pele.

- Não tinha voltado a tecer nada como isto desde que o fiz para a rainha, quando se ia casar. Mas já lá vai muito tempo.

Com estas palavras, a velha retirou-se e a princesa reconfortou-se com um sono agradável, embora de curta duração, pois não passara muito tempo quando a rainha a acordou e perguntou se concluíra a tarefa.

A princesa respondeu que sim e entregou-lhe o lindo tecido. A rainha viu-se forçada a considerar-se satisfeita pela segunda vez, embora fosse evidente que o fazia com relutância.

A princesa supunha que não teria de se submeter a mais provas, porém a rainha não era da mesma opinião. Um pouco mais tarde, mandou entregar o tecido à sala das mulheres, com a recomendação de que confeccionasse com ele camisas para o noivo. Deviam estar prontas antes do nascer do Sol, de contrário a princesa escusava de pensar em casar com o príncipe.

Quando voltou a encontrar-se só, a princesa sentiu-se muito amargurada. Sabia que não conseguiria completar o encargo, mas não queria perder o príncipe, que tanto amava. Desmoralizada, movia-se de um lado para o outro, chorando copiosamente, quando a porta se abriu para dar passagem a uma mulher muito pequena e velha, de aspecto assombroso e um semblante ainda mais singular, com um polegar tão incrivelmente grande que deixaria qualquer observador estupefato.

- Paz de Deus! - saudou.

- A paz de Deus seja contigo! - replicou a princesa.

- Porque está tão triste e só a bela donzela?

- Não hei de estar, se a rainha me ordenou que cosa com esta tela de linho camisas para o príncipe? Se não o faço antes de amanhecer, perco o meu noivo que tanto me ama.

- Consola-te, bela donzela. Se é só isso, posso ajudar-te. Mas com uma condição que passo a expor.

Ao ouvir estas palavras, a princesa alegrou-se enormemente e quis saber qual era a condição.

- Bem, chamo-me Stortumma-mor e apenas quero a recompensa de assistir à tua boda. Não presencio nenhuma desde que a rainha, tua sogra, foi a noiva.

A princesa concedeu-lhe de bom grado o desejo e a seguir separaram-se e ela deitou-se e dormiu tão mal que nem sequer sonhou com o noivo.

De madrugada, antes do nascer do Sol, a porta abriu-se e surgiu de novo a velha, que se aproximou da princesa, acordou-a e entregou-lhe umas camisas, cosidas e bordadas com tanta arte, que seria impossível encontrar outras iguais.

- Não cosia camisas tão boas como estas desde que o fazia para a rainha - declarou a mulher. - Mas já lá vai muito tempo.

Posto isto, desapareceu, pois acabava de chegar a rainha para saber se as camisas estavam prontas. A princesa respondeu que sim e entregou-lhas. Em face disso, a rainha enfureceu-se tanto, que os olhos emitiram chispas, mas reconheceu:

- Está bem, ele é, teu! Não pensei que pudesses ser tão rápida.

E retirou-se, batendo com a porta tão violentamente, que o som retumbou em todo o palácio.

O príncipe e a princesa podiam finalmente casar, como a rainha prometera, pelo que se iniciaram os preparativos dos esponsais.

No dia estipulado, a princesa não estava especialmente contente, pois não sabia se as suas singulares convidadas apareceriam. Chegado o momento, a boda celebrou-se, segundo a antiga tradição, com prazer e alegria, mas por mais que ela olhasse para todos os lados não descortinava nenhuma mulher idosa. Por fim, quando os convidados tinham de se sentar à mesa, deu-se conta da presença das três, que ocupavam outra a um canto da sala. Ao avistá-las, o rei perguntou de quem se tratava, pois via-as pela primeira vez, e a mais velha informou:

- Chamo-me Storfota-mor e tenho os pés tão grandes pelo muito que fiei na minha vida.

- Nesse caso - replicou o monarca -, é conveniente que a minha nora não tenha de voltar a fiar.

A seguir, dirigiu-se à segunda mulher e perguntou-lhe o motivo do seu singular aspecto.

- Chamo-me Storgumpa-mor e tenho o traseiro tão grande pelo muito que teci na minha vida - foi a resposta.

- Nesse caso - decidiu o rei -, é também conveniente que a minha nora não tenha de voltar a tecer.

Quando se voltou para a terceira velha e lhe perguntou quem era, Stortumma-mor levantou-se e explicou que tinha um dos polegares tão grande devido ao muito que cosera ao longo da sua vida.

- Nesse caso - concluiu ele -, é igualmente conveniente que a minha nora não tenha de voltar a coser.

E assim foi. A bela princesa recebeu a mão do príncipe e ficou eximida para toda a vida de fiar, tecer e coser.

No final da boda, as avozinhas partiram. Ninguém viu que rumo tomaram, nem se sabia de onde tinham vindo. No entanto, o príncipe viveu satisfeito e feliz com a esposa e tudo decorreu com muito mais calma e tranquilidade, pois a princesa não era tão ativa como a exigente e severa rainha.

Fonte:
Ulf Diederichs, Palácio dos Contos. Lisboa/Portugal: Círculo de Leitores, 1999.

sexta-feira, 6 de março de 2020

Varal de Trovas n. 200


Gilson Mendes de Góis (O Destino da Cobra Cega)


Desde seu nascimento, João despertou a atenção de todos que o conheceram. A começar por aquele tradicional tapinha nas nádegas. Assim que o médico lhe aplicou as palmadinhas, o então bebê, ao contrário de chorar emitiu um som que foi classificado por todos na sala de parto como uma gargalhada. Uma gargalhada irônica por sinal! Neste instante, começaram seus problemas. O médico não aceitou aquele fato e tornou a bater no recém nascido com mais força. João chorou. Não porque estava chocado por ter sido tirado do seu mundo de proteção que era o útero de sua mãe, chorou sim, de dor por ter sido agredido...

No dia do batismo, quando lhe foí jogada a água na cabeça, ele tomou a rir. João era o menino mais feliz que nascera no mundo até então. Ter nascido, para ele, não era como carregar um fardo; era como ir ao circo, ao teatro, ao jogo de futebol. A vida era o presente mais lindo que lhe foi confiado...

Mas João despertava a desconfiança de todos. Ninguém aceitava uma pessoa que fosse feliz vinte e quatro horas por dia. Sim, pois até dormindo, ele sorria. E seus irmãos mais velhos ficavam acordados para verem-no rindo nos sonhos e, para amaldiçoá-lo.

Muito raramente o menino encontrava amigos que se pareciam um pouco com ele. Então, a amizade era grande. Contudo, não demorava e até mesmo aquelas crianças que pareciam ser felizes se aborreciam com a felicidade de João. E ele voltava a ser só. Só mas nunca infeliz... E como tinha uma fé inabalável aquele garoto... uma fé indescritível para tudo o que fosse bom. Ele amava aos outros como poucos na história da humanidade tinham amado. Isso aumentou significativamente quando ele conheceu as religiões... além de muito feliz, João era um superdotado, entendia de tudo. Desde os primeiros dias que foi para escola, ele já debatia com os professores, que tinham que tentar mudar de assunto para não se verem desmascarados pela inocência sábia do garoto, Apesar de inocente, o menino sabia que existia a maldade na história dos homens. Mas ele procurava sempre um lado positivo para tudo o que via acontecer ou que acontecera. Ninguém jamais ouviu de sua boca um palavrão que fosse. Nem mesmo quando seus colegas o agrediam fisicamente.

Ele não entendia o porquê daquilo, mas dizia para eles: "um dia vocês verão que estão errados e eu não me importo em ser a pessoa que serviu para isso!"

Mas na adolescência, João descobriu que era diferente. Não mudou, mas aprendeu a usar uma máscara para não incomodar muito os outros. Pela primeira vez, pode-se dizer que João conheceu a tristeza, ele não conseguia aceitar o fato de as pessoas preferirem sofrer ao invés de tentarem serem felizes. O que mais o incomodava era saber e ver que todos que o rodeavam diziam procurar a felicidade. Esta foi a única incógnita que João não conseguiu decifrar. Porém, nunca abriu mão de ser feliz. As pessoas aprenderam a suportá-lo assim que o rapaz começou a agir assim, disfarçando que não era tão feliz.

Quando se esquecia disso, ele acabava por ouvir: “Ih, já tá ficando maluco de novo. Não tem jeito, louco é louco!”

João conseguiu sobreviver e chegar a idade adulta sem se corromper totalmente. Assim ele pensava, pois em sua pureza, ele não admitia o fato de fingir que não era feliz o tempo todo…

Ele gostava de ajudar aos outros. Assim, decidiu que seria médico para poder aliviar as dores dos que sofriam. Contudo, logo lhe explicaram que isso não ia dar certo não, pois ele não iria cobrar dos pacientes e seus colegas de profissão iriam contra ele por perderem seus clientes para um médico que não cobrava consulta... A cada profissão que João escolhia, alguém lhe mostrava que não daria certo, pois a bondade de João estragava tudo.

Depois de muito pensar, ele decidiu que seria enfermeiro. Enfermeiro não precisava cobrar para ajudar o paciente.

Desde que começou a trabalhar, João constatou o que já imaginava. As pessoas eram felizes em sofrer. Desta feita, ele resolveu se dedicar a desfazer isso na ideia das pessoas. Com muitos ele conseguiu. Estas pessoas jamais esquecerão os conselhos de João. Todavia, a grande maioria não aceitava nem de longe a possibilidade de uma vida sem sofrimentos e reclamavam do enfermeiro: "Aquele rapaz é meio besta. Não é que ele me disse que se eu quisesse eu ficava curado só pela minha fé! Se fosse assim Deus não tinha feito os médicos."

Num determinado momento de sua vida, ele decidiu que não mentiria mais. Era feliz e ponto final. Passou a ser tratado como um estranho de novo. Mas ele prometera a si mesmo que não voltaria atrás. Assim, aprendeu a conviver com o falatório dos outros às suas costas. As pessoas que desejavam ser como ele, tentavam compreendê-lo e isto lhe dava alento para continuar sua vida. E era feliz mesmo tendo que enfrentar quase todo mundo que conhecia.

João via seus colegas tentando derrubar uns aos outros, brigando por cargos, por poder. Mas ele não se Importava com isto, queria apenas fazer sua parte. Muitas vezes tinha projetos muito bons para seu trabalho, mas não tinha coragem de torná-los públicos ao pensar que todos imaginariam que ele estava jogando o jogo de todos. Isso o deixava um pouco triste, mas ele sempre procurava fazer aquilo que seu coração acreditava que fosse o certo e assim, não deixava de dormir por temer perder sua posição na empresa...

Contudo, vez por outra, ele ia até o chefe e lhe dava de presente seus pianos, pedindo que o mesmo guardasse segredo... o chefe era inteligente e sempre que aplicava os planos de João, recebia os elogios. A pureza de João não pedia nada em troca, assim, o que era dado, era com amor, o que é dado com amor não traz consigo o ranso da cobrança e a tendência de dar certo é muito maior. João ficava muito feliz ao ver seus projetos aplicados corretamente quando acarretavam o bem das pessoas e nunca se importava em requerer a autoria dos mesmos… o importante era vê-los acontecendo isso era felicidade para ele...

Com o passar dos anos João foi se tornando cada vez mais feliz. E quase todos os seus colegas e familiares achavam que ele estava louco.

Um certo dia, colocaram uma droga no refresco de João. Depois de tomar, ele ficou muito estranho. Começou a dizer xingamentos para aqueles que o importunavam e demonstrar toda sua ira por ser tratado como um louco... As pessoas adoraram aquele João... Levaram-no para casa. Na manhã seguinte, ao voltar para o trabalho, ele começou a ouvir elogios, pois todos acreditavam que ele ainda estava sob o efeito da droga: "Que bacana, colega, eu que cheguei a achar que você não fosse normal. Acho que aquele "remedinho" revelou sua verdadeira personalidade. Será que você não andava tomando alguma coisa que te transformava naquele chato e a nossa brincadeira serviu como antídoto e você voltou ao normal?”

Ao perceber o que acontecera, pela primeira vez na vida, João ficou deprimido. Também, ele não era de ferro! E ao ficar deprimido, as pessoas começaram a idolatrá-lo, a tratá-lo como um rei. As pessoas estavam felizes com João pela primeira vez em toda a vida do sujeito. Mas ele estava deprimido exatamente por causa disso, pela primeira vez ele percebeu seu deslocamento em relação a todos. E as pessoas estavam felizes, João também sofria...

Nesses dias, ele observou no terreno baldio que ficava atrás do hospital, uma aglomeração de meninos, ele foi até lá. Os garotos estavam se divertindo com uma cecília. João apesar de não estar bem não aceitou que maltratassem o anfíbio. Perguntou por que eles estavam fazendo aquilo. Eles responderam que era uma cobra e que por isso eles tinham que matá-la. Ele explicou que aquele animal não era cobra de forma nenhuma, mas sim um anfíbio e que por isso eles não precisavam maltratar o animal.

– Pode até ser, responderam eles, mas como se parece com uma cobra, tem de morrer, pois cobra é cobra, nem que seja só na aparência...

Ao ouvir aquelas palavras, João teve um acesso de ira, expulsou os meninos do terreno do hospital. Enquanto eles se retiravam, um deles ainda gritou, lugar de cobra é no mato, lugar de bicho é na selva e lugar de ET é no espaço. João, a princípio não entendeu, mas ao ouvir as gargalhadas de seus colegas que estavam nas janelas do hospital, ele se lembrou que todos o chamavam de extraterrestre antes de ele ter adoecido.

Com muito cuidado apanhou a cobra cega pela extremidade próxima a cabeça para que ela não o mordesse e a levou para um bosque que ficava a poucas quadras do hospital. Enquanto caminhava em direção ao bosque, ele pensava em tudo o que ouvira e em tudo que acontecera nos últimos dias; nas pessoas que eram infelizes com a felicidade que ele sentia e tentava transmitir antes e com a felicidade deles com a aparente infelicidade dele... refletia também nas palavras dos meninos.

Ao chegar no bosque, escolheu um lugar que lhe pareceu seguro e soltou a cobra cega. Então, olhou em volta, sorriu e perguntou para uma pessoa que se aproximando pôs-lhe a mão sobre o ombros: "será que eu sou um ET mesmo?" Em resposta ele ouviu: "Não meu bom João, ET não. Você é um dos poucos seres humanos de verdade que já pisaram sobre este planeta. Os outros ainda não evoluíram!

Nunca mais se ouviu falar de João. Dizem que naquele dia avistou-se no bosque uma luz ofuscante que subiu. As pessoas que conviviam com João irritam-se com seu desaparecimento dizendo que logo quando ele estava se transformando numa pessoa legal, foi sumir...
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Gilson Mendes de Góis nasceu em Nova Cantu/PR, em 1964. Transferiu-se para Campo Mourão, em 1970. Ainda menino, apaixonou-se pela leitura e, consequentemente, pela literatura. No antigo ensino primário, ao se observarem suas redações escolares, notava-se que, ainda menino, já demonstrava certo "dom" no trato com as letras. Vencendo alguns concursos de redação e muito bem estimulado por seus primeiros professores,  esse lado escritor foi se materializando. Dentre as pessoas que o incentivaram, faz questão de citar a Professora Vera Alice de Oliveira Basso. Afirma que sua vida escolar e, até mesmo, literária era uma e tornou-se muito mais palpável depois de ter sido aluno da referida mestre. Dessa forma, seguiu os passos rumo ao sonho de se tornar um bom escritor. Participando de concursos literários (de contos e poesias), consolidou-se a cada dia a certeza de que escrever era o seu norte.

É graduado em Letras Anglo-portuguesas e especialista em Literatura Brasileira pela Faculdade Estadual de Ciências e Letras de Campo Mourão. Escreve romances, contos e poesia. Em 2002, teve sua primeira vitória, que foi a publicação de seu primeiro romance. Isto se deu através de um concurso estadual promovido pela Secretaria de Estado da Cultura do Paraná, intitulado Livraria Paraná, onde seu trabalho "A coruja e a lagarta" obteve a classificação para ser publicado. Depois disso, foi convidado a fazer parte da Academia Mourãoense de Letras, da qual é fundador da cadeira número 11.

É autor do livro "História de Filhotes" e publicou trabalhos em antologias, tanto de contos quanto de poesias, no Paraná.


Fontes:
– Rubens Luiz Sartori (org.). Compêndio da Academia Mourãoense de Letras.  Campo Mourão/PR: UNESPAR/FECILCAM, 2004.
– Biografia in Academia Mourãoense de Letras

Américo Gonçalves de Sousa (Poemas Diversos)


A LUA É TESTEMUNHA

Passei de noite pela tua rua,
e demorei-me um pouco à tua porta,
mas não te vi... eu vi somente a lua,
que se escondia, que era noite morta…

Fiquei bem triste... e, como quem flutua
sobre um mar tenebroso; algo me importa...
É que tenho a minha alma presa à tua;
se as separar, o que é que me conforta?...

Disse-me a lua: Vinhas ver a amada?
Tu vais embora, que ela está deitada...
É muito tarde... está a amanhecer...

Não imaginas como eu vim pra casa...
O corpo todo me queimava em brasa,
que eu cheguei a pensar que ia morrer.
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DEPOIS DE TUDO CONSUMADO

Entristeci só em pensar que um dia
eu tenha muita pena de morrer,
e talvez, cheio de melancolia,
queira encontrar alguém pra me valer…

Como suportarei essa agonia,
vendo começar tudo a escurecer,
e eu envolvido numa névoa fria,
sentindo pouco a pouco falecer…

Ó que triste hora deve ser aquela...
Talvez... que nem acendam uma vela,
para ficar a alumiar meu rosto...

Quisera, quando tudo consumado,
morrer, mas não morrer amargurado...
morrer tranquilo sem sentir desgosto.
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DESVENTURA

Vi passar mendigando, pela rua,
uma pobre mulher, quase trapilha!
Descalça, esfarrapada, quase nua,
levava pela mão a sua filha.

Já era noite e não havia lua.
Fazia frio, e não tinham mantilha...
Vivendo o drama da miséria crua,
iam caminhando na espinhosa trilha.

Desalentadas pelo seu cansaço...
A mãe e filha sentam-se no chão
e a mãe sentou a filha no regaço.

Não podendo conter sua emoção,
estreitou sua filha num abraço,
e disse-lhe a chorar: "Não temos pão…”
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FAUSTA

Vês esta cruz aqui no cemitério?...
Aqui repousa alguém, que muito amou.
Depois que ela morreu, nada mais sou,
e vivo por viver,., caro Rogério.

Sei que acreditas de que falo sério.
Ela, ao ver que morria, me abraçou...
no seu rosto, uma lágrima rolou,
e tudo se acatou como um mistério!

Deixa que eu desabafe a minha dor...
Oh!, Fausta, Fausta, meu querido amor,
ajuda-me a sofrer esta amargura…

Sabes como é tremendo o meu desgosto...
Oh!, quisera poder beijar-te o rosto...
Já que eu não posso, beijo a sepultura.
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O AMOR DE MÃE

Como eu me lembro, quando me beijavas...
Era sempre em desvelos, sem cansaço...
Os meus cabelos, tu acariciavas,
sentando-me depois no teu regaço.

Meu peito, junto ao teu, aconchegavas,
não ficando, entre nós, qualquer espaço...
depois, o meu pescoço entrelaçavas
com muito amor, num carinhoso abraço.

Hoje, eu quero tomar o teu lugar.
Ao ver-te já cansada, e já velhinha...
Vem cá, no meu regaço, te assentar.

Encosta no meu ombro a cabecinha,
que eu quero com carinho te estreitar,
fazendo igual a ti... Santa Mãezinha.
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 POBREZA

Tu jamais te envergonhes da pobreza,
se por acaso em tua casa entrou.
Saibas que o pobre também tem nobreza...
Já houve um rico, que Deus condenou.

Se te conformas, não terás tristeza,
quando algo te faltar, ou já faltou.
Caso a comida falte à tua mesa,
ou até mesmo o pão, já se acabou…

Pode haver muito, que sem Deus é nada..
O pouquinho, que houver, com Deus é tanto,
que a gente fica toda impressionada!

Não admira causar um certo espanto;
A pobreza, em fartura transformada!
Ah!, mas Deus tudo pode, porque é Santo...
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Américo Gonçalves de Sousa nasceu na cidade do Porto, Portugal, no dia 6 de junho de 1919. Filho de Joaquim José de Sousa e Ana Gonçalves Pires. Completando os primeiros estudos com a admissão para o Liceu, seguiu a carreira da música e da escultura, trabalhando em diversos monumentos, principalmente na gigantesca estátua de Cristo Rei, que se encontra no planalto na serra do Pilar, em Poços de Ferreira, Portugal. Apaixonado pela música, cursou solfejo, seguindo o estudo do instrumento de sua predileção: Órgão. Talvez inspirado pela música e com o dom de poeta, cedo começou a escrever as primeiras poesias. Radicado no Rio de Janeiro, afastou-se dos trabalhos de escultura, dedicando-se à música e poesia. Pertenceu à União Brasileira de Trovadores. Colaborou com a Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, na coluna: A Caixinha da Trova, de Heráclito de Oliveira Menezes. Vários trabalhos poéticos publicados em jornais e revistas. Em concursos foi premiado diversas vezes com classificações honrosas.

Fonte:
Aparício Fernandes (org.). Anuário de Poetas do Brasil – 3. Volume. Rio de Janeiro: Folha Carioca, 1980.

Chico Anysio (Impossibilidade)


— Quer ir ao circo?

O filho pula de alegria. Achou que o pai simplesmente adivinhava seu desejo.

— Peça à sua mãe pra lhe vestir.

A mãe enfeita o menino. Ele põe uma roupa mais à vontade.

— Vamos na geral. Circo é bom é na geral.

O menino concorda.

Saem de mãos dadas. Gérson tem sete anos. Há sete espera a irmã que lhe prometem. O ônibus está vazio. Podem escolher lugar. O menino muda de banco seguidamente. De uma janela para outra, atrás, na frente, perturba o motorista.

— Fica bonzinho aí.

— Vem pra cá, Gérson.

O garoto senta ao seu lado. Está inquieto, excitado pelo circo que o espera e que ele tanto esperava.

— Tem fera?

— Não sei. Lá a gente vê.

— Tem trapézio?

— Deve ter, deve ter...

O menino levanta, anda pelo corredor esfregando a mão no encosto dos bancos vazios. Esbarra nas costas do motorista.

— Fica quieto, oh garoto!...

— Vem cá, Gérson, não atrapalha o moço.

Ele vai, mas não consegue ficar sentado mais do que cinco minutos. Já enfia a cabeça pelas janelas, desliza no corredor, mexe na caixa de colocar as fichas.

— Oh, garoto chato.

O motorista reclama e bate na mão do menino. O garoto chora e olha o pai.

— Não bate no meu filho, não.

O pai e o filho são, agora, os únicos passageiros. O mo­torista diz um palavrão, em resposta à advertência. O menino olha o pai. É sua única defesa. Ele sabe que o menino sabe disto. O motorista, um crioulo forte, não se arrepende do tapa que deu na mão do menino.

— Vê se fica quieto aí.

O menino já não olha o pai. Limita-se a sentar no banco da frente, humilhado, cerceado, proibido.

Ele levanta e caminha inseguro pelo corredor. Senta junto do filho e lhe segura a mão, estreitando-a, forte, entre suas mãos suadas. Percebe, nas costas da mão do menino, a marca dos dedos. O motorista o olha pelo retrovisor. Ele percebe um sorriso no rosto do crioulo.

— Covardia, bater no menino.

— Não aporrinha!

O menino vira o rosto, fazendo de conta que espia a cal­çada. Nada percebe, porém, da paisagem que vai passando. Ele nota que o filho chora.

— Deixa, filho... educação não é todo mundo que tem. Cavalo é cavalo.

O motorista breca e se levanta. Tem os olhos avermelhados pela noite mal dormida, tem a alma moída pela briga de ontem com sua negra amante.

— Quem é cavalo?

O menino afasta-se para o canto do banco. Está tremendo. Ele levanta e se põe à frente do crioulo, menor e mais magro.

— É isso mesmo.

O tapa o derruba no chão do corredor. Ele se levanta com a ajuda do filho. Descem sem pagar. O motorista não se importa. Há coisas mais sérias com que se preocupar. Da calçada ele vê o ônibus sumir, dobrando na Avenida Suburbana. Tem sangue saindo do nariz. Enxuga com a manga da camisa. Quer coragem para olhar o filho. Andam sem saber para onde.

— Vamos pra casa, pai.

— E o circo?   

— No outro domingo a gente vai. Eu hoje nem estava com muita vontade...

Os dois choram enquanto cruzam a rua para esperar o ônibus de volta. Ele sabe que precisa falar, mas não consegue imaginar que frase deva dizer. Limita-se a pousar a mão no ombro do filho. Sente que um dente está abalado e que o nariz talvez tenha tido uma fratura. Resiste à dor física. Está chorando por causa de uma dor diferente. Pior. Pior. Muito pior.

Fonte:
Chico Anysio. O Enterro do Anão.

quinta-feira, 5 de março de 2020

Varal de Trovas n. 199


Dorothy Jansson Moretti (A Mangueira do Oswaldo)


Estive uma noite destas em casa de Oswaldo e Eva, e depois que eles me mostraram sua bela residência, por dentro, levaram-me também ao quintal.

Fiquei encantada! A grama verdinha, as lajes simetricamente dispostas, tudo tão bonito!

Mas aquela velha mangueira, carinhosamente preservada e toda cercada de flores… que coisa linda! Voltei para casa c fui dormir sem poder tirá-la da imaginação. É que me lembrei de uma coisa remota, dos meus tempos de menina de dez ou onze anos de idade.

Era o natalício de Seu Belizário (o querido e popular Coronel Belí, tio-avô de meu marido), e havia um churrasco em comemoração à data.

Bem ali onde está a casa do Oswaldo, havia um pomar de mangueiras copadas que forneciam uma sombra formidável, e esse foi o local escolhido para a churrascada.

Ai, aquelas festas de antigamente! Como eram gostosas! E que animadas! E como a gente se divertia! Sem falar no churrasco delicioso, de carne de primeira, quentinho, fumegando, sangrando…

Todo mundo estava lá; os grandes e nós, as crianças, que corríamos soltas, brincando de pegador ou de esconde-esconde, por detrás dos grossos troncos das enormes mangueiras.

Detalhe curioso: damas e cavalheiros vestiam-se com esmero. Naquele tempo ia-se a churrascos com roupa de domingo. Os homens de terno, chapéu e gravata, e as senhoras com lindos vestidos de seda e sapatos de salto alto. Raros eram os descontraídos que apareciam em mangas de camisa, uma ou outra mulher de lenço na cabeça, roupas mais simples e sapatos de salto baixo.

Eu mesma, apesar de pequena, usava meu querido vestido de sélis cor-de-vinho com entrelaçadinhos de veludo negro nas mangas e no cinto, um amor de modelo, criação de Dona Maria José, a modista preferida de mamãe. Os sapatinhos eram vermelhos, com flores perfuradas no couro da gáspea. Ainda conservo um retratinho de estúdio, tirado com esse traje. No meio de toda aquela correria, lembro-me do cuidado que eu tinha para não rustir os sapatos, nem manchar de gordura o lindo vestidinho.

Uma velha foto registra o acontecimento daquele dia, e ali estão, abrigando o pessoal com a sombra deliciosa, as belas mangueiras em todo o seu esplendor. E é justamente uma delas que reencontro agora no quintal do Oswaldo.

Que saudade! Quanta lembrança e quanto tempo! Muitas daquelas pessoas, como o próprio aniversariante, já não existem mais. Outras vivem - ou sobrevivem — revelando hoje nos traços os quarenta e tantos anos que as separam daquela festa. Como eu, que felizmente não apareço na fotografia, e assim ninguém irá poder prestar atenção à diferença...

(Tribuna de Itararé— 28/08/84)

Fonte:
Dorothy Jansson Moretti. Instantâneos. São Paulo: Dialeto, 2012.

Luiz Gonzaga da Silva (Trova e Cidadania) 11 - Verdade e Mentira


O homem em princípio aspira à verdade. A humanidade busca a verdade, mas também pode asfixiá-la. Os poderosos procuram calar a verdade que os incomoda. Os de espírito lúcido querem descobrir a verdade, mas sempre haverão os mal-intencionados que querem a todo o custo encobri-la, em benefício próprio.

A verdade, deusa nua,
duas faces sempre tem;
e cada homem cultua
a face que lhe convém!
Moacir Figueiredo - SC

A mentira, bem vestida
anda orgulhosa na rua.
A verdade anda escondida
porque é pobre e vive nua. 
José Firmo Cavalcanti - PE

A verdade que redime
não viveria de luto
se a mentira fosse crime
e, enfim, pagasse tributo!...
Hermoclydes Siqueira Franco - RJ

Movido a farsas e engodos...
É assim que o Universo gira,
um mundo onde quase todos
sobrevivem da mentira,..
Darly O. Barros - SP

Se o barco imenso da vida
seguisse rumo à verdade,
alcançaria guarida:
- paz, amor, fraternidade,
Ione Arruda Gomes - CE

Não é possível construir a cidadania sem desvelar a verdade que se esconde por trás das intenções dos grupos mais diversos, seja de amigos, de profissão, de partido, de religião, de castas sociais. Os grupos dominantes procuram sempre encobrir os crimes praticados contra o povo, os crimes perpetrados para mantê-los no poder. Entretanto,

Uma verdade evidente
não há texto que distorça:
– Ante a imagem contundente,
a palavra perde a força.
Almerinda Fernandes Liporage - RJ

O lucro das aparências
que no mundo se arrecade,
só prevalece na vida
até que chegue a verdade,
Auta de Souza - RN

A verdade redentora
ante a farsa do vilão,
é chama íluminadora
dissipando a escuridão.
Pedro Grilo - RN

Uma verdade é verdade
antes de ser proferida,
e sempre em qualquer idade,
ela deve ser mantida.
Nadir Nogueira Giovanelli – SP

Às vezes o poeta põe em relevo o contraste entre a verdade e a mentira:

A verdade anda tão rara
que a mentira, ultimamente,
já nem sequer se mascara
para enganar tanta gente!
João Freire Filho - RJ

Como é engraçada a vida
que de contraste se tece:
a Verdade anda escondida,
a Mentira é que aparece,
Ascendino Almeida - RN


Fonte:
Luiz Gonzaga da Silva (org.). Trova e Cidadania. Natal/RN, abril de 2019.