quinta-feira, 10 de setembro de 2020

Aparecido Raimundo de Souza (Comédias da Vida na Privada) Parte Quinze



ROLETRANDO

O PASSAGEIRO CHEGA PARA PAGAR A TARIFA ao trocador estendendo as mãos cheias de moedinhas.

- Posso ficar lhe devendo cinco centavos? - pergunta com sua costumada gentileza.

- Não! A passagem é um real e cinquenta e cinco centavos - Assevera o cobrador, com ares pouco cavalheirescos. - Se não tem a grana completa, desce...

- Eu sei moço. Quebra essa... Ou terá que trocar cinquenta reais.

- Prefiro. Se deixar o senhor ir em frente – junta o exemplo à explicação -, terei que tirar do meu bolso na hora de prestar contas. A empresa não perdoa.

- Cinco centavos...?

- De cinco em cinco...

Diante da intransigência do cobrador o passageiro mete as moedas de volta numa niqueleira. Em seguida puxa do bolso a nota de cinquenta reais.

- Se é assim, fazer o quê?

- Espere um pouco...

- Vou saltar logo.

- Onde?

- Vila Alegria.

- Tá longe. Daqui até lá, bem uns vinte pontos. Espere aqui do lado para não atravancar os demais.

O passageiro senta naquele banco destinado às grávidas e aos idosos e fica a espreita. Em cada parada, ao longo do caminho, sobe uma nova leva de gente. Algumas exibem notas grandes, iguais à dele, outras trazem cartões magnéticos e passes pré-pagos.

Vinte minutos depois volta a cutucar o funcionário.

- Conseguiu?

- Calma cavalheiro.

- Meu ponto está chegando...

À medida que o pessoal cruza a catraca, o trocador junta o dinheiro para devolver o troco.

- Aqui...

Antes de seguir adiante o passageiro resolve conferir as notas e as moedas recebidas. Percebe uma pequena falta. Protesta:

- Amigo, dei cinquenta reais...

- E eu lhe devolvi o troco.

- A passagem não é um real e cinquenta e cinco?

- É o que diz a plaqueta logo aqui atrás de mim.

- Desculpe. A grana está errada.

- Como assim?

- O amigo terá que me devolver quarenta e oito reais e quarenta e cinco centavos.

- E quanto lhe passei?

- Quarenta e oito reais e quarenta centavos. Faltam cinco centavos.

- Estou sem moedinhas nesse valor.

- Perdão. Exijo o troco correto.

- Parceiro, entenda, não tenho cinco centavos. Será que essa enorme quantia vai lhe fazer falta? Pelo amor de Deus!...

- Veja bem, não é pela quantia. É pela sua postura. Pela sua sacanagem.

O cobrador começa a dar sinais de visível irritação. Desforra:

- Passa logo e não chateia. Pense nos demais que estão a sua retaguarda e também querem pagar a passagem para chegarem a seus locais de destino...

- Não, não vou lhe dar esse gostinho. Quero o troco a que tenho direito: quarenta e oito reais e quarenta e cinco centavos.

- Faz questão de cinco centavos?

- Estou pagando na mesma moeda.

Meia dúzia de rostos furiosos pede, com urgência, a desobstrução para o interior do coletivo.

- “E ai, meu chapa. É pra hoje?”.

- “Dá pra ser, cidadão?”.

- “Será que terei de pular?”

Diante desses protestos o trocador se empolga e bota banca. Berra:

- O cara tá fazendo esse carnaval por causa de cinco centavos. É mole?

Um terceiro entra em favor do cobrador. Muge:

- Vai ver está precisando para inteirar a “malmita...”.

O passageiro na exigência dos cinco centavos continua impassível. Esbraveja:

- Faço questão dos cinco centavos. É merreca? Sim! Mas é meu.

Um senhor de boné azul marinho com uma pombinha branca da paz desenhada nele estende uma moedinha de dez centavos.

- Moço, toma aqui. Vai com Deus.

- Agradeço a sua boa vontade em querer ajudar. Todavia, não posso aceitar. Ele aqui é que tem de se virar e me dar o troco correto.

- Estou lhe dando cinco centavos a mais... Sem ter nada com o peixe...

- Valeu a sua intenção. Penhoradamente agradeço a sua gentileza.

- Estou propenso a supor que o encrenqueiro aqui é o prezado.

- Peço mil desculpas por todo o transtorno que estou causando, mas o senhor pegou o bonde andando. Quando entrei, tentei pagar a passagem com moedas. Tinha exatamente um real e cinquenta. Faltavam cinco centavos. Falei com o distinto e pedi que me deixasse passar sem eles. Houve a recusa. Alegou que teria que desembolsar de seus fundos na hora de prestar contas à empresa. Então mandei a nota de cinquenta. Agora está me devolvendo o troco errado. Ora bolas: se não posso ingressar sem os cinco centavos –, o senhor como um homem decente e honesto -, deverá concordar comigo que ele também não tem o direito de ficar me devendo os cinco centavos, ainda mais se levar em conta que apresentei nota maior. O certo, o justo, nesse caso, é cobrar um real e cinquenta...

Um silêncio sepulcral toma conta dos presentes.

- “Ele tem razão” - Argumenta uma colegial com uma mochila nas costas.

- “Devolve o troco direito” - Protesta um grandalhão.

- “Esses caras de jumento todos os dias embolsam nossas moedinhas”- conclui um terceiro.

- “Safado. Ladrão” berra eufórica, a galera.

- “No fim do expediente ele junta uma quantia considerável. Se multiplicado por trinta dias...”.

O quadro de repente toma proporções inesperadas.

- “Perverso esse um. Devolve a grana do moço...”.

 “- Ou deixa o cidadão passar faltando os benditos cinco centavos”.

- “É isso mesmo...”.

Sem saída, detido pela impotência daquele festival confuso de vozes a beira de um ataque de nervos, o motorista, coitado, não sabe o que fazer, ou que atitude tomar. Está impedido de partir e fechar a porta dianteira. Uma enxurrada de cabeças, braços e pernas se acotovela tanto do lado de dentro, quanto de fora, querendo subir a bordo.

- “Devolve a grana, pilantra”.

- “Tudo isso por causa de cinco centavos?”.

Por fim, o consenso prevalece:

- Me passa os quarenta e oito reais e quarenta.

- Faltam cinco centavos...

- Amado, mais tem Deus para me dar, que o diabo para tirar.

Satisfeito, o passageiro roda o molinete, entrega as moedinhas da niqueleira e revê a nota que causou toda a balbúrdia. Salta logo depois. O trocador, enfurecido, meio que lesado, perdido de si, rebolado no monturo da vergonha segue o resto da viagem reclamando. Desprecisão tanta, miséria maior. Faz cara de choro. Finge desengonçado, num gesto mal ensaiado. Retruca:

- Vão descontar do meu bolso. Esta empresa é uma droga! Uma droga! Que droga...!

Envolvidos, entretanto, pela avidez da chegada, cada um segue emborcado nos próprios problemas. No minuto seguinte, ninguém mais se lembra do cobrador e seus queixumes.

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. Comédias da vida na privada. RJ: Editora AMC-GUEDES, 2020.

Texto enviado pelo autor

quarta-feira, 9 de setembro de 2020

Varal de Trovas n. 373

 


Humberto de Campos (O Patrão)

 

O Sr. Alberto Gomes Valente era guarda-livros da firma Sobreira, Costa & C., ganhando quinhentos mil réis, quando resolveu constituir família, unindo-se solenemente à senhorita que mais o impressionara na vida. Tímido, com o pudor nos olhos e na língua, procurou ele o chefe da casa, o Sr. Zacharias Sobreira e pediu-lhe, usando de mil rodeios, que lhe aumentasse o ordenado.


- O ordenado? - estranhou o capitalista, franzindo a testa. - Por que? Que é que justifica a sua reclamação?

O guarda-livros gaguejou, aflito, e explicou o seu caso. A organização do seu lar exigia despesas novas, graves, pesadas, e era como um homem em véspera de casamento que ele pedia, submisso, um aumento de cinquenta ou cem mil réis por mês. O Sr. Sobreira, foi, porém, inflexível:

- Impossível, meu amigo; é impossível! O que eu posso fazer, é o seguinte: impedir que o senhor se case. Serve?

O guarda-livros insistiu, no entanto, na sua deliberação, e casou-se. E ia vivendo, bem ou mal, há três meses, com os seus quinhentos mil réis, quando o patrão o chamou, uma tarde, e comunicou-lhe:

- Sr. Abelardo, a firma, satisfeita com os seus serviços, resolveu aumentar espontaneamente o seu ordenado. De hoje em diante, o senhor passa a ganhar setecentos mil réis.

Quatro meses depois, outra chamada, com outra comunicação:

- De agora em diante, Sr. Abelardo, o seu ordenado fica aumentado. O senhor ficará ganhando, à partir deste mês, um conto de réis.

Vivia, assim, o honrado auxiliar da firma Sobreira, Costa & C., em um ambiente de conforto relativo, quando, aproveitando a ausência do chefe da firma, lhe deu na cabeça, um dia, correr até à casa, para matar as saudades da mulher. Ao abrir o portão, notou que a esposa estava dormindo. E não se enganara; pelo menos, foi com a roupa em desalinho e os cabelos desarranjados que ela lhe correu a abrir a porta, oferecendo-lhe, como prêmio de chegada, uma infinidade de beijos.

- Tu por aqui a estas horas? - estranhou a moça, carinhosa. - Que foi isso?

O marido explicou. O Sr. Sobreira havia saído para ir à Alfândega, e ele, tirando proveito da hora, correra a beijar a sua querida mulherzinha. Era por isso.

Ao contar essas coisas, olhou, rápido, para o grande relógio da sala de jantar, um relógio de dois metros de altura, enorme, formidável, conventual, e estremeceu, vendo-o atrasado.

- Que é isso? O relógio parou?

E vendo que, de fato, a grande maquina de medir o tempo estacionara meia hora antes, encaminhou-se para ela, disposto a pô-la em movimento. Mal porém, puxara a tampa do monstro, alta como uma porta de igreja, recuou, pálido, com a agonia no coração, exclamando:

- O Sr. Sobreira!.

E com as mãos tremulas, os olhos fora das órbitas, estupefato por encontrar o patrão escondido na caixa do relógio, rugiu, de dentes cerrados, entre o medo e a raiva:

- Que é que o senhor está fazendo aí?

Encostado no fundo da caixa, o patrão, igualmente pálido, gemeu, apenas:

- Passeando...

E puxou sobre si, fechando-se, a tampa do relógio.

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado em 1925.

Baú de Trovas XIV (para descontrair)



Velho que casa com moça,
analfabeto quer ser...
— Este, quando compra livro,
é sempre para outro ler!
A. C. DE OLIVEIRA MAFRA
- - - - - -
Velo em ti, coroa rica,
dois males que não têm cura:
— capa de pura pelica,
— cara de pelanca pura!
ALOISIO ALVES DA COSTA
- - - - - -
Ele opina sobre tudo.
Gesticula, ordena, fala,..
De repente, fica mudo,
porque a sogra entrou na sala..
AMÉLIA TOMAS
- - - - - -
Maria, (que ingenuidade!)
por não crer em coisa feia,
deu-me tanta liberdade,
que eu fui parar na cadeia…
APARÍCIO FERNANDES
- - - - - -
Beijo-te a carta e bendigo
tuas juras, desta vez,
com tal amor, que mastigo
teus erros do português...
ARLINDO BARBOSA
- - - - - -
Cama nova, bem limpinha,,.
Nome dela numa fronha...
Ela própria,    engraçadinha...
Que beleza, hein, sem-vergonha?
CHICO VEIGA
- - - - - -
Surpreendido de mansinho,
sem a libra dos heróis,
naqueles lençóis de linho,
eu me vi em maus lençóis...
COLBERT RANGEL COELHO
- - - - - -
Não tenhas medo, querida,
que agora eu quero é viver:
com este custo de vida,
quem é que pode morrer?!
EURICLES BARRETO
- - - - - –
Ordena a viúva triste:
— "Vistam-lhe o mais rico terno!
Pergunto: será que existe
tanta festa lá no Inferno?.,.
HERALDO LISBÔA
- - - - - –
Teus foros de sapiência
a outros têm iludido.
Não a mim, tenho ciência
que não és sábio, és sabido...
J. DIAS DE MORAES
- - - - - -
Creio que o noivo da Anita
é muito feio — Jesus! —
pois, sempre que ele a visita,
ela logo apaga a luz...
JOÃO RANGEL COELHO
- - - - - -
Você, meu caro casmurro,
tem na vida o seu papel:
como bacharel, é burro,
como burro,    é bacharel...
LAFAYETTE PEREIRA SPÍNOLA
- - - - - -
Quase não tive noivado,
não tinha tempo, sequer...
Hoje namoro atrasado
a minha própria mulher...
LAMARTINE BABO
- - - - - -
Todo mundo é boa praça
quando é chegada a eleição.
Mas, depois que o pleito passa,
o povo fica na mão!...
M. AUGUSTO COSTA
- - - - - -
Distraída, distraída
é a mulher do Januário:
ouve à porta uma batida,
tranca o marido no armário!
MAGDALENA LÉA
- - - - - -
Um belo carro de luxo...
Não há mulher que resista!
— É o caso mais positivo
de amor à primeira vista...
MARILITA POZZOLI
- - - - - -
Maria tem tanto medo
do mau gênio do Antenor,
que não conta seu segredo
nem ao padre confessor….
MÁRIO PEIXOTO
- - - - - –
Não grites por Santo Antônio.
Os teus pecados são tantos
que deves antes gritar:
— Valham-me todos os santos!
NOEL DE ARRIAGA
- - - - - -
Pernas tortas, magricela,
e do biquini na praia!
- Você não sabe, Isabela,
que falta lhe faz a saia!...
PAULO EMÍLIO PINTO
- - - - - –
A sociedade é um torneio
de parceiros em negócios:
cada sócio busca um meio
de lesar os outros sócios...
RODRIGUES CRÊSPO
- - - - - -
Quem casa com mulher feia
ganha em dobro, na jogada:
mesmo cobiçando a alheia,
nunca a dele é cobiçada...
SERAFIM SOFIA
- - - - - –
Todo homem é um diabo,
não há mulher que o negue.
Mas todas elas procuram
um diabo que as carregue!
TROVA POPULAR ANÔNIMA

Fonte:
Aparício Fernandes (org.). Trovadores do Brasil. 2. Volume. RJ: Ed. Minerva

terça-feira, 8 de setembro de 2020

Varal de Trovas n. 372

 


Rubem Braga (A Casa Viaja no Tempo)


Volto, como antigamente, a esta grande casa amiga, na noite de domingo. Recuso, com o mesmo sorriso, a batida que o dono da casa me oferece, e tomo a mesma cachacinha de sempre. O dono da casa é o mesmo, a cachaça é a mesma, a casa, eu... E tantas vezes vim aqui que não  tomo consciência das coisas que mudaram.

Sento-me, por acaso, ao lado de uma jovem senhora, amiga da família, e a conversa é tranquila e morna. Mas de repente, a propósito de alguma coisa, ela diz que se lembra de mim há muito tempo. "Você vinha às vezes jantar, sempre assim, de paletó e sem gravata.  Sentava calado, com a cara meio triste, um ar sério. Eu me lembro muito bem. Eu tinha seis anos...

Seis anos! Certamente não me recordo dessa menina de seis anos; a casa sempre esteve cheia de meninas e mocinhas, há pessoas que eu conheço de muitos domingos através de muitos anos, e das quais nem sequer sei o nome. Pessoas que para mim fazem parte desta casa e desses domingos, visitando esta casa.

A primeira recordação que tenho dessa jovem é de uma adolescente que às vezes dançava no jardim. Era certamente linda; mas não creio  que tivéssemos trocado, através dos anos, mais de duas ou três frases ocasionais. Sempre tive a vaga impressão de que, por algum motivo  imponderável, ela não simpatizava comigo. Só agora me dou conta de que a vi crescer, terei sido uma distraída testemunha de seus flertes, seu namoro; lembro-me de seu noivado, lembro-me quando se casou, sei que hoje, ainda tão moça, tem dois filhos - e a maternidade veio definir melhor sua radiosa beleza juvenil.

Inutilmente procuro reconstituir a menina de seis anos que me olhava na mesa, e me achava triste. E não faço a menor ideia do que ela soube ou viu a meu respeito durante esses inumeráveis domingos.

Certamente fui sempre, para ela, uma figura constante, mas vaga  -  um senhor feio e quieto, que ela se acostumou a ver distraidamente de vez em quando - às vezes com um ano ou mais de intervalo, que viaja e reaparece com a mesma cara e o mesmo jeito. Tomo consciência de que é a primeira vez que conversamos os dois, ao fim de tantos anos de vagos "boa-noite" e "como vai?", mas nossa conversa tranquila e trivial me emociona de repente quando ela diz: "eu tinha seis anos..."

Penso em tudo o que vivi nestes anos - tanta coisa tão intensa que veio e foi - e penso na casa, no dono da casa, na família, na gente que passou por aqui. A casa não é mais a mesma, a casa não é mais casa, é um grande navio que vai singrando o tempo, que vai embarcando e desembarcando gente no porto de cada  domingo: dentro em pouco outra menina de seis anos, filha dessa menina, estará sentada na mesma sala, sob a mesma lâmpada, e com seus dois olhinhos pretos verá o mesmo senhor calado, de cara triste - o mesmo senhor que numa noite de domingo, sem  o saber, se despedirá para sempre e irá para o remoto país onde encontrará outras sombras queridas ou indiferentes que aqui viveram também suas noites de domingo - e não voltaram mais.

Fonte:
Rubem Braga. A Traição das Elegantes. Crônica publicada em 1953.

Apollo Taborda França (Grandes Temas da Literatura) O Sapo – 2, final



Ildefonso Borba Cordeiro
Piraquara-PR, 1900 – 1938, Curitiba-PR

A CANTIGA DOS SAPOS

A cantiga dos sapos, a cantiga
Desses cantores tristes da lagoa,
Encerra qualquer coisa que me intriga
E uma coisa qualquer que me magoa.

Ao ouvi-los, cantando sem fadiga,
Não os posso entender e cismo à toa;
Cantar é bendizer a sorte amiga;
Mas, a sorte dos sapos não é boa.

Vivem escorraçados sem piedade
E, no entretanto, quando a chuva irriga
A terra, ao estrugir da tempestade,

Eles põem-se a cantar alegremente:
A alegria, porém, dessa cantiga
É uma alegria que entristece a gente.
****************************************

Diva Ferreira Gomes
(Ouro Preto-MG, 1914) Curitiba/PR

A UM SAPO

Inofensivo sapo, porque tremo
ao esbarrar contigo no porão?
Olhos saltados, tu és bem o Demo
que repudio, sem contemplação.

— Guardas a lenha? — É isto que temo.
Sabes ser feio como guardião!
Ao avistar-te, se não grito, gemo...
— Muda de casa. vai pra outro porão.

Quem sabe se também tu não te assustas,
toda vez que invadindo teu domínio,
de ti me acerco, sem me aperceber?!

Pensando bem, vives às tuas custas.
Acostumar-me a ti é o raciocínio.
Mas, fecha os olhos para eu não correr.
****************************************

José da Cruz Filho
Canindé/CE, 1884 – 1974, Fortaleza/CE

A ILUSÃO DO SAPO

Aos pinchos, pela noite, hesitante e moroso,
O batráquio surgiu do grande charco à borda,
E quedou-se, a cismar, como quem se recorda
De algo que se esvaiu num passado brumoso...

Ao fundo, onde do céu, que de nuvens se borda,
Reflexa a imagem vê, pelo céu bonançoso,
Vê da lua pairar o esferóide radioso,
E o repulsivo ser de júbilo transborda...

Quedou-se, acaso, ali, todo perplexo. Ao centro,
A tentá-lo, a ilusão do orbe lunar flutua,
E ei-lo, que apresta o pulo e se arroja lá dentro.

E a água ondulou, entre chispas cambiantes,
Num naufrágio de luz, em que parece a lua
Dissolvida em cristais, topázios e diamantes...
****************************************

Raimundo de Moura Rêgo
Matões/MA, 1911 – 1988, Rio de Janeiro/RJ

O SAPO

Mole, imundo, asqueroso, a bater sempre o papo,
Gomo da própria vida as horas a marcar,
é mesmo um tipo feio e repelente o sapo,
não havendo, talvez, a que se comparar,

Surja um brilho no Azul, um pequeno fiapo
de luz, e ei-lo a espumar de alegre, ei-lo a cantar
de gozo. E a vida passa assim, por entre um trapo
de sonho e a água de um charco inútil e vulgar...

Entretanto, a viver como o homem, sobre a terra
espalhando o terror e a destruição da guerra,
entre a ambição e o insulto, impenitente e incréu,

talvez seja melhor ser sapo. É preferível
viver, nessa ilusão de querer o impossível,
namorando o esplendor das estrelas do céu…

Fonte:
Apollo Taborda França. 10 grandes temas (clássicos) da literatura. Curitiba/PR: Gráfica Vitória, 1989.
Livro enviado por Vânia Ennes,

Lima Barreto (Agaricus Auditae)


 A João Luis Ferreira

Alexandre Ventura Soares tinha seus vinte e cinco anos, bacharel em ciências físicas e naturais, era preparador do Museu de História Natural, cargo que, obtido em concurso, lhe dera direito a uma viagem à Europa, nos tempos em que as subvenções para isso largamente se distribuíam, razão pela qual eram equitativa e sabiamente feitas. De volta, por acaso, viera a morar defronte de um homem de idade, venerável, que vivia, pelo jardim de sua vasta casa, a catar pedrinhas no chão. Curioso com os trejeitos do homem, pôs-se a observá-lo, a fim de descobrir o que significavam. Visou a Ásia e encontrou no caminho a América. El Levante por el Poniente... A filha do ancião, muito naturalmente, pouco afeita a curiosidades sobre o seu jardim que não tivessem a ela por objeto, supôs que o doutor estivesse apaixonado por ela. Nenê, era o seu apelido familiar, sabia que o rapaz era dado a coisas de botânica; que pertencia ao museu; que o tratavam de doutor; logo não se podia tratar senão de um médico.

A nossa mentecapta inteligência nacional, de que não fazem parte só as mulheres, não admite que tratem de botânica senão os médicos; e de matemática os engenheiros; quando, em geral, nem uns nem outros se preocupam em tais coisas. Ela, porém, vivendo em círculo restrito, não tendo estudos especiais, convivências outras que não essa da sociedade, fossilizadas de cérebro e com receitas de formulário na cabeça, não podia ter outra opinião que a geral na nossa terra, de cima a baixo. Aquele moço era por força doutor em medicina ou, no mínimo, estudante. Quando soube que não, teve uma ponta de despeito; e custou-lhe a crer que fosse tão formado como outro qualquer doutor. Foi o próprio pai quem a convenceu.

– Oh! filha! filha! Pois não sabias disso? Pois eu estimo muito saber que tenho na vizinhança um sábio.

O desembargador Monteiro, pai da Nenê, estava aposentado e tinha a mania da mineralogia. Ele mal conhecia o primeiro sistema de cristalografia; mas não lhe deixava a teima. Tinha um laboratório onde não havia nem uma balança de Jolly, nem um maçarico, nem um bico de Bunsen, nem um reativo, nem um pedaço de carvão vegetal; mas quando mostrava aos visitantes, exclamava ufano:

— Vejam como tenho livros! Vejam! Tenho o Haüy, as suas duas obras; a Estrutura dos cristais e a Mineralogia, primeiras edições... Olhem aqui Delafosse! Seis volumes! Hein?

E assim mostrava toda a sua biblioteca de mineralogia sistemática e descritiva. Chegava a um canto, onde havia uma pequena bigorna de ourives, montada em um forte soco de pau, tendo a um dos lados um pesado martelo de carpinteiro; e observava:

— É aqui que trabalho há anos... Ainda não consegui isolar uma granada de granito... No entanto, eu as vejo em quase todas as pedras da rua sobre que ponho os pés.

Foi esta mania de procurar granadas nas pedras da rua que chamou a atenção do jovem naturalista seu vizinho. Se Monteiro lobrigava* uma granada por menor que fosse, nas pedras soltas do seu caminho, logo apanhava o pedregulho, levando-o para casa, e martelava-o naquela bigorna de fazer pulseiras, à cata da pedrinha vermelha-rubra; mas, fosse por isso ou por aquilo, a granada se escafedia e o nosso mineralogista ficava desolado. Só os paralelepípedos do pavimento das ruas lhe escapavam; mas, assim mesmo, quando estivessem ajustados aos outros; se soltos, ele pagava a algum moleque para levar um ou outro à sua casa. Sua filha, dona Nenê, ficou muito contente; e o jovem botânico não teve nenhuma dificuldade em obter a sua mão. O velho desembargador disse-lhe unicamente:

— Bem. Não há dúvida. O doutor tem com certeza um futuro brilhante; mas, ainda não demonstrou para que veio ao mundo. Já escreveu uma "memória"?

— Não, senhora.

— Faz mal. Na Alemanha, é muito usado... A "memória” demonstra sagacidade para o novo, para o detalhe inédito, inexplorado, um ponto de vista que houvesse escapado aos sábios e grandes mestres... Eu queria que meu futuro genro merecesse minha filha dessa maneira, porque, na Alemanha...

— Mas o senhora desembargador há de me permitir uma pergunta?

— Pois não.

— A que sociedade ou academia deveria eu apresentar a minha memória?

— Não há negá-lo: a sua objeção procede. Não havendo entre nós academias especiais a semelhantes ciências, havia, portanto, embaraço em achar quem julgasse o mérito ou demérito do seu trabalho. As que há, ou são de uns ignorantes literatos que nunca viram uma granada em uma pedra, ali, da pedreira no rio Comprido, ou são formadas por uns médicos faladores que têm pretensões a literatos. Mas... acontece que os senhores não conhecem bem o Brasil, senão saberiam que existe uma academia respeitável e egrégia, não só pelos vários ramos de ciências naturais nela cultivados, como também pelo número de sábios mortos e vivos a ela pertencentes, que mereciam ser conhecidos pelo senhora que governa a sua mocidade nobre pela inteligência e pelo estudo. Então não conhece o senhora a "Academia dos Esquecidos"?

— Não!

— É de admirar! Pois, creia-me, dela, além dos atuais, fizeram e fazem parte ainda: Alexandre Ferreira, Conceição Veloso, Gomes de Sousa, o doutor José Maurício Nunes Garcia, Domingos Freire, Tito Lívio de Castro, Morais e Vale, José Bonifácio...

—José Bonifácio, dos Esquecidos!

— Sim! Aquele mineralogista que depois foi político. E como não?

— Ah!

— Compreende-me, agora? Pois bem. Atualmente, presido eu a academia, disse o desembargador com ênfase; e espero que, como um paladino, ofereça à sua noiva a árdua vitória de fazer parte dela: Está aqui a minha mão, Nenê...

Os três sábios despediram-se tocantemente; faltou porém, o quarto sábio. Talvez fosse o único que não levasse n'alma engano cego; mas a pequena levou, creio, durante o primeiro ano.

Na rua, monologava Soares: um caso novo, um detalhe original, onde hei de buscá-los? Fui bom estudante e, talvez, por isso, nunca supus que, na ciência, houvesse novidade. Tudo já estava feito e, quando não estava, quando se queria coisa nova, compravam-se as revistas estrangeiras e lá estava a coisa digeridinha.

E — que diabo! - para que havia eu de aumentar a dificuldade dos estudantes? Não bastavam os europeus, os tais alemães? Já que era preciso descobrir ou inventar para casar, vá lá! Mas não era já suficiente ser "doutor" para casar? Ainda mais esta! Até o que se havia de pedir para casar bem! Ora bolas! Estou quase desistindo... Não! É preciso ter-se urna posição decente na sociedade, um bom casamento, se não rico, pelo menos semi-rico... Se não descubro, forjo qualquer coisa e a ciência que se amole... A ciência é um enfeite; é assim como este anel de safira.

E olhou para a pedra quase tão dura como o diamante, a qual não esmaeceu em nada ao seu olhar feroz de cupidez...

Resolveu-se Soares a escrever sobre mineralogia: Rochas metamórficas do Brasil ou O veio de petrossílex do Corcovado; mas isto, considerava, não é novo e muito menos é meu. O jovem sábio foi dormir, julgando ter perdido a menina rica, a importância de genro do desembargador Monteiro, e a sua entrada na Academia dos Esquecidos.

Buffon afirmou alhures que alguns volumes da sua monumental História natural, ele os devia ao seu criado. Soares deveu a sua "memória" e a sua felicidade ao seu criado José. Despertou-o este bem cedo, muito a contragosto dele. Leu os jornais, de princípio a fim; leu a notícia dos rolos que houvera no Teatro Lírico, tomou outra xícara de café, fumou e, de súbito, sentou-se à mesa e escreveu em bastardo:

Agaricus auditae

Mais em baixo, ao lado direito, pôs à guisa de epígrafe:

Memória apresentada à Academia dos Esquecidos, secular e vetusta como as demais congêneres, pelo bacharel em ciências físicas e naturais da Escola Politécnica do Rio de Janeiro Alexandre Ventura Soares.

E então começou:

"Senhores Acadêmicos. Seduziu-me desde moço a doutrina darwiniana; e eu, com Lyell, a sorvi em grandes haustos na sua aplicação à geologia. Concordei que o mundo atual era resultante e resultado de várias, lentas, pequeninas transformações seriadas cujos termos não têm origem; com Huxley, depois daquela sua célebre demonstração por que tem passado o cavalo através das idades (T. Huxley — L'Évolution et l'origine des espèces — tradução francesa, 1892, págs. 232 e segs.) — com Huxley, dizia, acreditei que o Megatherium e o mamute, como plenipotenciários seus, tivessem acreditado entre nós a hórrida preguiça e o informe elefante. Sustentei que, sob o império inexorável da seleção natural e da adaptação ao meio, marchássemos nós, pedras e homens, nessa sucessão de modificações, passo moroso e graduado com que vai a variável, de estádio em estádio, se aproximando do limite para nunca atingi-lo, como nós para o nosso perfeito destino desconhecido (Haeckel, passim)".

— Bem começado! exclamou o nosso Alexandre. Os períodos se sucedem como uma falange de teoremas e deles tirarei legiões de corolários. Festina lente.. Mas continuemos:

"E, certo nestas ideias, parecia impossível, e de fato é, que, em plena vida contemporânea, existissem exemplares da fauna e da flora dos primórdios da Terra. Houve, não obstante ser inconsequente com os verdadeiros princípios da ciência, alguém que pretendeu ter visto fósseis 'vivos', mas, se é possível isto no mundo das inteligências, fora do mundo do pensamento, tal como o dos artistas, dos poetas, dos sociólogos, dos escritores, dos arquitetos, dos jornalistas, dos músicos, tal não permite a evolução em geral".

"Deveis lembrar-vos, senhores acadêmicos, dos Pterodactylus longisrostris, que alguns viajantes (poetas naturalmente) julgaram lobrigar por entre as florestas ralas da Nova Zelândia, mas que, após visitas de verdadeiros cientistas, foram arrastados para a voragem dos desmentidos da excelsa ciência”.

Soares não se conteve e exclamou bem alto:

— Muito bem! Excelsa ciência! Admirável! Naturalmente o desembargador Monteiro há de apreciar esta bela frase: excelsa ciência! Não há dúvida! Esta minha memória traz no seu bojo toda uma síntese das minhas qualidades e das minhas audácias fáceis! Assentarei a minha fama de naturalista; entrarei para a Academia dos Esquecidos; demonstrarei o vigor do meu estilo e, por cima de tudo, uma pequena semi-rica! Arre! Como é bom ter-se um bom curso na Escola Politécnica do Rio de Janeiro! Nenê, como te amo! Socorre-me nesse transe, como me vais socorrer a vida toda! A mulher foi feita para sustentar homem... Aquele burro do Comte! Era por isso que ele detestava a geologia, a paleontologia! Burro! Nenê!... E não é que estou mesmo parecendo o Paulo, o tal da Virgínia? Ora bolas!

Adiante:

"II - Amigo meu e consumado sábio, J. C. Kramer, exímio geólogo e professor da mesma cadeira da Harvard University, USA, em conversa comigo, há dias, no Museu de História Natural desta capital — conversa amável de sábios — comunicou-me que, há tempos, por ocasião de estudar, no Rio de Janeiro, a hipótese da glaciação do Brasil”, de Agassiz, observou vegetando nesta cidade de assaz estranha casta de tortulhos (cogumelos) — a que as crianças chamam ‘mijo-de-sapo' e ‘orelha-de-burro’ que ele julgava, apesar do disparatado dos caracteres, exemplares da flora do período triássico da época secundária.

"Óbvio será dizer-vos, senhores acadêmicos, que uma tal comunicação me encheu de imenso júbilo, patriótico e científico.

"Cavaqueando comigo o doutor Kramer, da Harvard University, USA, admirava-se, sorrindo com mofa e desculpando-se amável, que, vivendo os tais cogumelos tão próximos dos nossos estabelecimentos de ciências, não houvéssemos ainda notado a sua singular estrutura. É bastante explicável – desculpava-se agora mal - vosso país é muito novo. E, na continuação da palestra, não se media, ás vezes, de contentamento e satisfação. Deixava sempre transparecer nesses sentimentos a utilidade científica da perspicácia e sutileza do sábio yankee; e o que parecia acrescer ainda mais a sua maligna satisfação, era que tais Agaricus* fossem além dos nomes das crianças que tinham, também conhecidos vulgarmente por 'diletantes', nome que, dado o seu explicável e previsto mau ouvido para as línguas do sul da Europa, creio tratar-se de dilettanti"

Nisto, o José chega á porta do gabinete do sábio Alexandre e grita:

— "Seu dotô"! O almoço na mesa!

— Oh! Já?

Olhou o relógio na parede e concordou:

— Você tem razão... E verdade! Já são dez horas... Almoço, vou ao museu, consulto as notas da besta do Kramer e, antes do fim do mês, tenho a "pequena" e o resto... E, se alguns céticos, pessimistas e despeitados disserem que a ciência, no Brasil, não leva longe, não dá fortuna, independência, eu posso dizer bem alto: aqui estou eu!

E bateu, com força, no peito, como se dissesse para a escolta do fuzilamento: atirem que eu não preciso de ficar amarrado, nem vendado. Sei morrer!

No dia seguinte, completamente armado com as notas do famoso geólogo yankee, o notável brasileiro Alexandre Ventura Soares, homem grave e sábio, tanto mais grave e mais sábio por ser jovem, continuou a sua memória casamenteira assim:

"III — O habitat de tais 'orelhas-de-burro', como lhes chamam as crianças do Rio de Janeiro, é um barracão úmido e quente que fica ao sopé do morro de Santo Antônio, no centro da cidade, e serve as mais das vezes de depósito de jornais europeus de modas e joias de aluguel que correm, em vários corpos, as capitais de segunda ordem do globo, exibindo-as como riquezas próprias".

— Diabo! exclamou Soares, compulsando as notas. Este Kramer tem cada ideia! Isto é impossível! Adiante, pois é preciso! Enfim ponho umas aspas e vai a coisa por conta dele:

"Convém — e com humildade vos peço, senhores acadêmicos — que vos esqueçais (não fôsseis Esquecidos) das mais comezinhas noções de botânica, pois o nosso excêntrico sábio vai desvendar órgãos pouco fáceis de aceitar em ‘mijos-de-sapo' "

— Está salva a minha responsabilidade, monologou o notável preparador do Museu de História Natural. Vamos! E preciso não esquecer o teu ideal científico! A Nenê está ali! Vamos! Esta "memória" é a tua sorte grande!

E tomando fôlego, continuou:

"Eles deveriam ser análogos aos criptógamos que formavam com outros a flora do período carbonífero; e, para justificar isto, encontraram-se entre eles alguns exemplares do Lepidodendron elegans, do gênero Atanephae.

"Parecia a pessoas pouco versadas em geologia e paleontologia, que tais criptógamos não alcançassem, nos nossos dias, mais do que alguns centímetros de altura; mas, a vós, que delas sabeis mais do que eu, não parecerá estranho que afirme tê-los visto com 1,50 m e 1,80 m de altura.

"Sob a forte objetiva de um microscópio de Zeiss, encontrou o doutor Kramer, na parte mínima do disco superior que possuem tais tortulhos, alguma coisa semelhante ao cérebro humano.

"Analisando esse pedacito de cabeça pacientemente, com a paciência característica de um professor da Harvard College, se lhe depararam, ao doutor Kramer, coroando as suas fatigantes pesquisas, em estado rudimentar, os nervos óptico, auditivo, olfativo, gustativo etc. e, de todos esses, o mais rudimentar e grosseiro, era o auditivo. Usando, então, de um paradoxo fácil, o sábio de Cambridge (USA) denominou-os cogumelos auditivos (Agaricus auditae).

"Das bossas (o singular Kramer ainda admite a teoria de Gall), só lhes restava a da memória. As funções da vida vegetativa tinham neles um completo e pleno desenvolvimento, tanto assim que, apesar de agáricos, sabiam comer demasiadamente.

"O que toma tais cogumelos dignos de nota, além de outros caracteres — observa o doutor Kramer —, é que possuem sexos. Há os machos e os há fêmeas. Embora fiel aos ditames da ciência, no entretanto, por honestidade científica, julgo-me obrigado a transcrever aqui essa blasfêmia. Mas, se ela foi irrogada à ciência, por um sábio com o distinto professor do Harvard University, claro é que nós não devemos senão acatá-la, embora assim parecendo ser. Se não nos parece verdade inconcussa, partindo de onde parte, néscios como somos, temos o dever de tomá-la como tal. "Diz o professor americano que há os exemplares de uma coloração negra, intensamente negra, tendo na parte superior um canudo também negro, lustroso, como uma espécie de rabo de ave — são os machos; e os outros claros, róseos, cabeludos, seminus, cheios de pedrarias — são as fêmeas. "Nessas diferenças, todas superficiais, que o extraordinário professor julga traduzirem sexos, no choque delas, no seu atrito é que reside a agitação, a fermentação daquele principado vegetal dos Agaricus auditae.

"Tocando isto à sociologia dos 'orelhas-de-burro', em que não sou versado, não me animo a discutir a questão e adio o debate para mais tarde..."

— Que é, José?

— Esta carta da casa do doutor Monteiro.

O criado retirou-se e o sábio, apud Kramer, abriu o bilhete e leu:

"Meu querido:

Já não apareces, não te vejo mais. Deixa essa história de memória'. Papai é maníaco, isto não é preciso. É melhor que arranjes um soneto, uns versos, enfim, que talvez façam o mesmo efeito; e, se quiseres, manda-los-ei fazer por um poeta discreto que anda na precisão de dez mil-réis. Queres? Que tal? Responde.
Nenê".

O sábio Alexandre, luzeiro da ciência brasileira, respondeu:

“Nenê.

Tem fé em mim e na Ciência.
Alexandre".

Em seguida, o original cientista Ventura considerou de si para si:

— Bem, por hoje, basta. Amanhã irei determinar a origem e, no sábado, lerei a memória ao desembargador; e, ainda, não foram passados dois meses! A ciência brasileira tem os seus lados notáveis e singulares — continuou Alexandre na sua meditação — e um deles é essa presteza nos seus trabalhos. Isto é devido ao fato que, para os outros sábios, o objeto da ciência está no mundo, exigindo pesquisas, observações e experiências demoradas; nós, porém, pouco nos importamos com o mundo. Há livros; fazemos ciência. Com eles, revistas, memórias dos outros, sem ir diretamente á natureza, estudam-se detalhes, arquiteta-se uma teoria nova que escapou aos grandes mestres das grandes obras. A questão é combinar um com outro, embora antagônicos... Oh! Este Brasil não é um país perdido! E um grande país!

Na quinta-feira, tinha o nosso bacharel concluído a sua memória e fê-lo de modo feliz e completo. Ei-lo:

"IV - Escusado será dizer que, desde logo, procurei motivar e determinar as origens de tão estranha vegetação; e sem nada encontrar, já desesperava, quando o acaso, constante amigo dos sábios, auxiliou-me eficazmente, como quando foi ao encontro de Newton, com a maçã, e de Galileu, com a lâmpada da catedral de Pisa.

"V- Há um ano pouco mais, andando eu na Itália, em comissão do governo, vi, na praia de Nápoles onde flanava, brotando sobre uns andrajos sujos e abandonados de um lazzarone, uns cogumelos de um cromatismo vário e minúsculos. Naturalista, impressionaram-me eles e tive o capricho de trazer a policrônica aglomeração dos pequeninos tortulhos, com os competentes andrajos, para o Rio de Janeiro. Aqui chegado, depositei-os em um quarto contíguo ao do meu criado José, que, ora tocando em uma flauta de bambu ou em sanfona valsas e polcas mais em voga; ora, lendo noticias de fitas de cinema, distraía-se, sem esquecer, de quando em quando, de entoar com indecifrável voz, árias das óperas da moda, que ele ouvia trauteadas pelas ruas. Sem que tal saiba bem explicar, a não ser a flauta, o cantochão as crônicas do José, as 'orelhas-de-burro' napolitanas começaram a medrar, a crescer e têm atualmente quase meio metro de altura.

"VI — Atributo, portanto, senhores acadêmicos Esquecidos, aos portentosos Agaricus do doutor Kramer as mesmas origens que os meus e o seu desenvolvimento às mesmas causas que os daqueles trazidos por mim da Itália, tanto mais que perto do habitat dos primeiros existe a banda de música da Brigada Policial e o Teatro Lírico".

O doutor Alexandre Ventura Soares, bacharel em ciências físicas e naturais pela Escola Politécnica do Rio de Janeiro, preparador, por concurso, do Museu de História Natural do Rio de Janeiro, terminando a memória, levou-a ao desembargador Monteiro que gastou seis meses em lê-la e meditar sobre ela. Ao fim dos quais, mandou chamá-lo e, logo que veio, apresentando-o à filha, assim falou:

— Nenê, é este o teu noivo que, pelo seu talento e pela sua erudição, acaba de penetrar na Academia Brasileira dos Esquecidos. Casados, desejo que vocês continuem o número deles, para grandeza e fama do Brasil.

Casaram-se e a primeira coisa que fizeram, graças ao dote dela, foi comprarem um chalé na "curiosa floresta" dos Agaricus auditae.

_______________________
Notas:
Lobrigar – enxergar com dificuldade na escuridão ou penumbra; ver a custo; entrever.
Agaricus – é um grande e importante gênero de cogumelos, contendo tanto espécies comestíveis como venenosas, possivelmente com mais de 300 membros em todo o mundo.

Fonte:
Lima Barreto. Histórias e Sonhos. Publicado em 1920.

segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Varal de Trovas n. 371

 


Stanislaw Ponte Preta (Do Teatro de Mirinho: A burocracia do buraco)


Ato único

Cena — Na repartição onde se aceita reclamação sobre  buraco.

Personagens — Funcionário que anota buraco e cidadão que  reclama buraco.

Cenário — Quando o pano abre, o palco mostra uma repartição comum, dessas repartições estaduais, onde mosca treina aviação e onde se junta um monte de funcionários, esperando a hora de ir para casa. Ao centro, uma mesa com a inscrição "Buracos Aqui". O funcionário está sentado à margem dessa mesa, fingindo que escreve. O espetáculo começa quando entra o cidadão, vestindo terno, pasta debaixo do braço. Tem cara de quem acredita no Estado.

Cidadão — (Entrando e parando ao lado da mesa) Boa tarde!

Funcionário — (Levantando a cabeça e olhando para o cidadão de alto a baixo) Boa tarde!

Cidadão — Na minha rua tem um buraco.

Funcionário — Um só???

Cidadão — Bom... na verdade tem uma porção de buracos, mas este de que eu falo não é mais um buraco.

Funcionário — O senhor está querendo me gozar?

Cidadão — (Colocando a mão no ombro do funcionário, com medo que ele vá tomar café antes de o atender) O senhor não me entendeu.

Funcionário — (Já tomando aquele ar de superioridade que tinham os funcionários cariocas em 1959 A. C. — isto é, antes de Carlos) Entendi perfeitamente... O senhor chegou aqui dizendo que tinha um buraco.

Cidadão — Eu não. A minha rua.

Funcionário — Pois não... a sua rua. O senhor disse que tinha um buraco, depois que já não era mais buraco. Afinal, qual é o assunto? É buraco?

Cidadão — Sim, buraco. O senhor não me deixou explicar direito. Eu quis dizer que aquilo já não é mais buraco.

Funcionário — Taparam o buraco?

Cidadão — Pior. . . Era um buraco pequeno (faz o gesto), enfim, um buraquinho. Foi crescendo, crescendo, agora é um buracão.

Funcionário — É o maior buraco do bairro?

Cidadão — (Orgulhoso e de peito estufado que nem o Amando da Fonseca) Modéstia à parte, não é por estar na minha presença não, mas lá na redondeza não tem rua com um buraco igual ao da nossa rua.

Funcionário — É preciso acabar com essa proteção.

Cidadão — (Voltando ao ar humilde) O senhor sabe. .. eu ouvi dizer que a gente deve colaborar pra "Operação-Buraco".

Funcionário — (Vestindo o paletó) Meu amigo, eu estou de saída.

Cidadão — Mas eu não vejo mais ninguém aqui, para me atender.

Funcionário — É que metade tem horário de mãe de família, como eu, e a outra metade tem horário de quem mora longe.

Cidadão — Que pena. Eu queria tanto colaborar!

Funcionário — O senhor deixa aí nome e endereço.

Cidadão — Do buraco?

Funcionário — Que buraco, seu? O senhor parece tatu. Só pensa em buraco. Onde já se viu buraco com endereço?

Cidadão — Mas esse de que eu falo, tem. É lá perto de casa.

Funcionário — Bem em frente à sua casa?

Cidadão — Não, senhor. O buraco é mais em cima.

Funcionário — O senhor conhece bem o buraco?

Cidadão — Se eu conheço? (Ar de superioridade) Meu amigo, desde pequenino que eu conheço. Crescemos juntos. O buraco é muito popular lá no meu bairro. Vão até inaugurar uma linha de ônibus para lá.

Funcionário — Linha de ônibus?

Cidadão — Sim, senhor: "Mauá—Buraco, Via Jacaré".

Funcionário — Pelo jeito esse buraco acaba elegendo um deputado. Só falta falar.

Cidadão — Pela idade que tem, já era pra falar.

Funcionário — Tão antigo assim?

Cidadão — O buraco hoje faz vinte anos.

Funcionário — Hoje??? Então vamos comemorar. (Cantam o parabéns)

Funcionário — (Abotoando o paletó) Pois, meu amigo, tive imenso prazer em conhecê-lo. Recomende-me ao buraco. Que esta data se reproduza por muitos e muitos anos.

Cidadão — O senhor vai embora?

Funcionário — Eu tenho que levar minha esposa ao médico.

Cidadão — O senhor não disse que tinha horário de mãe de família?

Funcionário — Ou isso.

Cidadão — (Agarrando o outro pelo braço) O senhor não vai sair sem me atender.

Funcionário — (Tentando se desprender e visivelmente irritado) Me larga, poxa! O senhor pensa que só o seu buraco é que interessa ao governador? Fique sabendo que buraco é que não falta. (Apoplético): Eu já sei o que o senhor quer. Eu já estou farto de ouvir sempre a mesma coisa. (Aos berros): O senhor quer é que a gente tape o buraco, não é?

Cidadão — (Começa a rir) Eu não venho pedir para tapar buraco nenhum. Eu apenas represento o comitê lá da minha rua.

Funcionário — E não é pra tapar o buraco?

Cidadão — Não, senhor. O comitê está estudando o problema e quer saber.

Funcionário — Saber o quê?

Cidadão — Saber oficialmente. Quer que esta nova repartição — já que é especializada em buraco — resolva.

Funcionário — Mas resolva o quê, seu chato?

Cidadão — Se é o buraco que fica na nossa rua ou é a nossa rua que fica no buraco.

(Cai o pano esburacado e os atores caem no buraco do ponto)

Fonte:
Stanislaw Ponte Preta. Dois amigos e um chato. Ed. Moderna, 1996

Apollo Taborda França (Grandes Temas da Literatura) O Sapo I



Apollo Taborda França

O SAPO
Curitiba/PR, 1926 – 2017

O SAPO é feio! Ninguém nega,
Assustando muita gente.. .
Sobrevive na refrega,
Povoando o seu ambiente.

É demais enigmático,
Tem olhar sentimental...
Andarilho, carismático,
Sempre um tema universal.

No seu leito de batráquio,
Liberdade é seu luzeiro.. .
Assim, cônscio, esse terráqueo
Filosofa o tempo inteiro.

Sua vida uma ciranda,
Coaxando ganha loa...
É Maestro que comanda
As Orquestras da lagoa.

Diz a ciência que ele é útil,
Para a horta e pro jardim. . .
Que não tem nada de fútil,
Anti-inseto sempre a fim.

Mais de noite que de dia,
Vai à luta sem destino...
Curte tristeza e alegria,
Conformado, peregrino.

Criatura que impressiona,
Toda envolta na magia...
Tem nos ermos sua zona,
Aconchego e fantasia.

Vai levando a vida mansa,
A despeito da maldade...
Do homem que não se cansa,
De enxotá-lo da cidade!
**************************************** 


Leonardo Henke
Curitiba-PR, 1906 – 1986

AO SAPO


Tua vida, pobre sapo,
é de dor toda uma mescla,
vivem os maus a pisa-la,
porque és bom, és manso, és guapo.

Se rasgam-te igual a um trapo,
quedo, nem ergues a fala,
nem há em teus olhos de opala,
de raiva o mínimo fiapo.

Mais do que eu, és justo e sereno;
pois se, num viver ameno,
passo a vida a blasfemar,

tu, ó filósofo eterno,
embora sofras o inferno,
vives feliz a coaxar.
****************************************

Serafim França
Curitiba-PR, 1888 – 1967

SAPOS


O Sapo é um bicho hostil, bicho de morte!
Dizem alguns que a teimosia sua
vem do complexo de coió sem sorte.
Passa ele a noite inteira de olho aceso
com intenção de namorar a Lua
e ela lhe vota o seu maior desprezo.
Justíssimo é o desdém, porque o animal
além de feio e bobo e de ser baixo,
na hora de burilar um madrigal
apenas ronca um detestável coaxo.
Por isso é que é um boêmio repudiado,
O beijo dele deve ser gelado
e quem tem sangue frio não tem amores.
Há muito poeta modernista, de hoje,
que vive ao rés-do-chão, arfando o papo,
e embora invoque a Musa a Musa foge
porque poesia é do alto, é asa no azul,
canto heroico e não ronco de paul...
****************************************

Euclides Bandeira
Curitiba-PR, 1877 – 1947

SAPO


Olhai atentamente: é um sapo. Um sapo!,,. E nada
Mais asqueroso do que um sapo!.. . E nada mais
Repugnante do que ele, o rei d'água estagnada,
Verde como a gangrena azebre dos metais.

Mirai-o bem, porém, como eu estou a olhar
Esse que os gorgolões de uma enxurrada crua
Cuspiram da sarjeta — upa! cabriolas no ar,
E estatelou-se de redondo ali na rua.

Caiu, ficou. E mais chato que a laje lisa!
Há de encontrá-lo quem ao transitar embaixo
Dos pés sentir, cedendo, a maciez de um capacho
De musgo fofo a se afundar quando se pisa.. .

A pata de um corcel com ferraduras de aço
Passando a galopar, mais lesto do que um corso,
Talvez sem dó o esmague, ao lhe premir o dorso,
Fazendo-o vomitar as vísceras, o baço...

Mas, ele ali está, quieto, desprevenido,
Descuidado de si, do mal, das traições;
De resto o sapo é assim, parece andar perdido
Sempre em profundas e sérias cogitações.

Ah! quem sabe se nesse animal tão rasteiro
Que mal consegue erguer-se um palmo além do chão.
Não há uma centelha, um vislumbre, um ligeiro
Fulgor de inteligência, um timbre de razão!...

Se tal acontecer, ele que anda de rojo,
E não sabe, sequer, que existem tantos sóis,
Deste nosso paul e de nós, todos nós!
Que náusea há de sentir!. . . Que desprezo e que nojo!

O mundo é um tremendal; envolve tudo a lama:
Era um palácio de ouro assente sobre o lodo:
Tragou-o um terremoto e, incendiado todo,
Sumiu-se. . . Apenas resta uma língua de chama.

A Fé caiu no charco, o Bem em vil marmota...
A liberdade! — a Luz! num grande ceno hiante...
A Justiça — piedade!... — uma ceguinha rota
Aí anda a esmolar de porta em porta,.. Adiante!

Nada resta impoluto; é uma vasa o Universo.
Onde um canto de sol para o altar da Pureza?
Há salpicos de lodo até no próprio verso!
N'alma, no mar, na terra, em toda a natureza!

Ah! o sapo compreende o atascal de misérias
Que afaga a Humanidade... Ao vê-la na asfixia
Ele às vezes, deixando as atitudes sérias,
Assume estranho ar de esplêndida ironia!

Compreende tudo!. .. E quando a lua nova, perdida,
Divaga na amplidão envolta em manto gázeo,
É por nós que ele coaxa uma nênia sentida,
Erguendo para os céus os olhos de topázio.,.

Fonte:
Apollo Taborda França. 10 grandes temas (clássicos) da literatura. Curitiba/PR: Gráfica Vitória, 1989.
Livro enviado por Vânia Ennes.

Aparecido Raimundo de Souza (Comédias da Vida na Privada) Parte Catorze


DOBRADURAS COM SAQUINHOS DE CHÁ

DUAS FORMIGUINHAS se encontram e começam a conversar:

— Oi, amiga!

— Olá, tudo bem?

— Tudo azul. E com você?

— Graças a Deus, tudo na santa paz. Desculpe. Não estou reconhecendo seu rosto. Você não é daqui, pois sim?

— Realmente, não sou. Eu vim de lá...

—  De lá de onde?

—  De um lugar bem distante.

—  Mas você não sabe o nome desse lugar?

—  Acho que é Braspília, Brasmília, algo assim...

—  Você quer dizer Brasília?

— Isso, Brasília. Foi de lá que eu vim...

— Brasília fica no Planalto Central. Realmente um lugar muito distante. E como veio amiga?

—  Não vai acreditar. De carona, dentro de um fogão velho.

—  Fogão velho?

—  Sim.

— E não teve medo de, no caminho, lhe atirarem em algum lugar onde se dispensa coisas sucateadas?

— De forma alguma. A dona do fogão, dona Candinha adora esse velho cacareco e fez questão de trazê-lo na mudança. Os filhos não queriam, mas a boa senhora insistiu tanto que...

— Entendo! E se depois de instalados aqui, acredito numa nova casa, você se visse queimada ou pior, assada no caso da dona Candinha usar o troço?

— Na verdade, dona Candinha pouco usa esse fogão, a não ser para fazer seu chazinho, à noite. De outra banda, minha amiga, o forno não funciona há tempos...

— Menos mal. De qualquer forma, você se arriscou um bocado. Mas mudando de pau pra cavaco, diga amiga, por que resolveu vir embora de Brasília? Um lugar tão simpático, rico... É chamado de “O berço das grandes decisões nacionais”.

— A mim, em particular, não importa o nome pelo qual Brasília seja conhecido. O que me afastou daquela linda e encantadora cidade foram os tamanduás. Pra amiga ter uma ideia, tem tamanduá de tudo quanto é jeito e tamanho, pra tudo quanto é lado que se estique as vistas. E você sabe né: Formiga e tamanduá... Nunca se cruzaram bem... Deu bandeira... É comida na certa.

— Verdade. Aqui, graças a Deus, não temos muitos. Vez ou outra aparece um... Mas é raro.

— Ao contrario de lá, amiga. Os tamanduás partem pra cima da gente, línguas afiadas, como candidatos à política em época de eleições. Na colônia onde fui criada, e vivi a minha vida toda, essas figuras pilosas são conhecidas popularmente como papa-formigas. Um horror, amiga, um horror! Muitas de nossas irmãs e primas constantemente se vêm dizimadas, como judeus em campos de concentração nazista.

— Nem me fale. Nem me fale. Só de pensar, fico com as antenas arrepiadas. Olhe para mim... Jesus, Maria José!

— Pois então. Em vista disso, eu e uma pá de outras da nossa afeição, resolvemos cair no mundo. Só ficaram as mais antigas e essas os tamanduás não querem... Desprezam... Não rendem votos...

— Sei como é. O problema é social...  

— A sorte é que esses animais que todos dizem estar em extinção (o que lhe asseguro não é verdade), lá em Brasília tem mais tamanduás que gente. E pra variar, dando bandeira, ora aqui, ora acolá. A sorte, completando o raciocínio, é que eles, embora tragam na boca um órgão aguçado e estimulado pela fúria, são cegos e surdos. Contudo, amiga, apesar de cegos e surdos, e mesmo com a liberação do ácido que soltamos para irritar nossos predadores, pelo menos para as nossas premências mais urgentes, tal fato não tem valor. Como é do conhecimento da amiga, os infelizes tamanduás possuem um excelente olfato. Em vista disso, sentem o nosso cheiro à dezena de metros de distância. Eu mesma, em muitas ocasiões, me vi frente a frente em várias e quase infelizes barafundas. Escapei por pura sorte do Divino!

— Fez muito bem em se mandar. Ou a qualquer momento acabaria devorada... Apesar de sermos em maior número e consideradas de um lado como pragas para a agricultura, e, de outro, exemplo de organização social, nada podemos contra os tamanduás. Eles estão no poder... E, pior: tem a força.

— Tirou as palavras de minha boca. Creia amiga, apesar dos pesares, estou feliz agora. Aqui parece um pedaço do paraíso.

— E é. Pode ter certeza. Engraçado! Estamos aqui papeando, tricotando e não sei, ainda, seu nome. Como se chama?

— É mesmo. Que coisa! Meu nome é Fu...

— Fu... Fu o quê?

— Fumiguinha. E o seu, minha amiga? Qual é seu nome?

— Ah... Desculpe igualmente a falha. O meu nome é Ota...

— Ota? Ota o quê?

— Ota Fumiguinha...

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. Comédias da vida na privada. RJ: Editora AMC-GUEDES, 2020.
Texto enviado pelo autor.

domingo, 6 de setembro de 2020

Varal de Trovas n. 370

 


Carlos Drummond de Andrade (Trem de Contos) 1, 2 e 3


AS TRÊS GRAÇAS


Um doutor em estética do corpo, ao visitar o Museu do Prado, em Madri, achou que as Três Graças, na tela de Rubens, sofriam de celulite, mais acentuada na Graça do centro.

Procurou o diretor do museu e sugeriu-lhe que o quadro fosse submetido a tratamento especial, de modo a ajustar os nus femininos aos cânones de beleza e higidez que hoje cultuamos.

O diretor ouviu-o polidamente e respondeu que nada havia a fazer, pois as obras-primas do passado são intocáveis, salvo quando acidente ou atentado tornam imperativa a restauração. Além do mais, pode ser que no século xvii o que hoje chamamos de celulite fosse uma graça suplementar.

À noite, o esteta inconformado tentou penetrar no museu, foi impedido e preso. Interrogado, explicou que queria raptar o quadro e confiá-lo a famoso especialista em cirurgia plástica, pois o caso não era de restauração nem de regime alimentar. Seria a primeira vez em que uma obra de arte receberia tratamento médico especializado, feito o qual tornaria ao museu.

O homem foi mandado embora, com a advertência de que sua presença não seria mais tolerada em museus espanhóis. E aconselhado a frequentar assiduamente as praias, para se habituar às imperfeições do corpo humano, que formam a perfeição relativa.
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BANDEIRA 2


O modesto servidor foi perguntar ao chefe de seção se não dava jeito de arranjar bandeira 2 para ele. Levou um fora total:

— Que negócio é esse de bandeira 2? Você não é chofer de táxi, o governo não é passageiro de táxi, como é que ele vai te pagar bandeira 2?

— É que eu pensei… Todo mundo lá fora está cobrando bandeira 2. A bandeirada está solta, e se eu não pegar também uma bandeirinha 2, com perdão da palavra, estou… frito.

— Dê o fora, que tenho essa papelada toda para despachar.

Saiu, desbandeirado. Em casa, os meninos pediram-lhe pelo menos bandeira 1, para tomar sorvete. A mulher reclamava bandeira 2, formato grande, para as compras da semana. Abriu o envelope e leu o cartão de Natal com estes dizeres: “Bandeira 2 para você e todos os seus”. Ligou o rádio, escutou: “Salve, lindo pendão da esperança”.

Os colegas se cotizaram para pagar a bandeira 2, encomendada por ele. Vivia enrolado nela, no Pinel.
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BOM TEMPO


Não há nada tão belo como os dias que medeiam entre o inverno e a primavera, observou Eugênio, que gostava de olhar o céu. Nós não temos propriamente inverno, e seria exagero dizer que temos primavera.

Misturando estações, conseguimos fazer uma terceira, temperada, amável, com dias claros, termômetro benevolente, doçura.

Eugênio apreciava tanto esses dias intervalares que convidou parentes e amigos distantes a virem saborear com ele a delícia do tempo. Acudiram em bando, enchendo o pequeno apartamento. Nessa semana o elevador estava em reparo, o aquecedor de gás enguiçou, faltou luz, a empregada despediu-se, mas as noites eram frescas e os dias belíssimos.

Eugênio achou que a natureza compensava bem os incômodos domiciliares. Os hóspedes, não. Quando as coisas melhoraram no edifício, sobreveio um tempo de chuva e vento, que desaconselhava botar o pé na rua. Os hóspedes, não podendo sair de casa, e sentindo-se confortáveis, iniciaram um joguinho, de que Eugênio não participava. Negócio dele era o azul.

“Você está empatando o nosso lazer”, disseram-lhe. “Por que não vai passear?” Eugênio foi para a rua e apanhou a devida pneumonia, por muito amar o bom tempo.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. Publicado em 1981.

Baú de Trovas XIII (para descontrair)


Maria beijou Aurora
no portão do seu jardim.
— Perdulária, joga fora
o que nega para mim...
ALFREDO DE CASTRO
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A um burro dizia um sábio:
— Pobre animal sofredor,
a muitos convém teu nome,
a bem poucos teu valor...
ANA ATAÍDE FERREIRA DA SILVA
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Carinho pra quê? Me deixe!
Agora estamos casados…
E ninguém dá isca a peixe
depois dos peixes pescados.
ANATOLE RAMOS
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Uma mosca sem valor
pousa, com a mesma alegria,
na cabeça de um doutor,
como em qualquer porcaria!
ANTÔNIO ALEIXO
- - - - - -
Poliglota conhecido,
dominar as línguas logra.
Excetuando-se, é sabido,
as da mulher e da sogra...
ANTÔNIO TORTATO
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Jovens lindas como aquelas
dão trabalho ao hospital,
pois, na esquina, quem, ao vê-las,
não se esquece do sinal?
ANTÔNIO WEBER
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"Barrigudinho!" — brincava,
dando-me bola, a vizinha.
— E tanto ela me invejava,
que ficou barrigudinha...
APARÍCIO FERNANDES
- - - - - -
Vi teus braços... que ventura!
Teu colo... as pernas... que gosto!
Agora, tira a pintura,
que eu quero ver o teu rosto.
BELMIRO BRAGA
- - - - - -
Duvide lá quem quiser,
mas, ó vida, me insinuas:
melhor do que uma mulher,
não há dúvida, só duas...
BENNY SILVA
- - - - - -
A minha sorte ferina
me passou um grande logro;
o teu pai, linda menina,
devia ser o meu sogro.
CALIXTO DE MAGALHÃES
- - - - - -
Dei-te meu livro de trovas,
mas os teus olhos moleques
parecem dizer: "de trovas?..."
melhor se fossem "de cheques".
CARLOS GUIMARÃES
- - - - - -
A mulher quando se arruma,
quanta roupa! Já notou?
E foi sem roupa nenhuma
que Teresa se arrumou...
COLBERT RANGEL COELHO
- - - - - -
Não adianta nada agora,
eu já não perco a cabeça.
Mas, é bom ires embora,
antes que tal aconteça...
COLOMBINA
- - - - - -
O homem tem grande horror
ao vácuo, já descobri:
quando ele se vê vazio,
enche-se todo de si...
DJALMA ANDRADE
- - - - - -
Larápios de mil padrões
há neste mundo dispersos.
Até conheço ladrões
que roubam frases e versos...
ESMERALDO SIQUEIRA
- - - - - -
Meu amor, não cries caso,
se teu caso é se casar...
Se crias caso, não caso;
se não me caso... ora, azar!
FRANCISCO MADUREIRA
- - - - - –
A cova, que nos contrista,
serve, com a mesma avidez,
o talento de um artista
e a burrice de um burguês.
GUMERCINDO JAULINO
- - - - - -
A virtude, em muita gente,
é só falta de ocasião;
quanto virtuoso que sente
não ter sido um bom ladrão!
HÉLIO CHAVES
- - - - - -
De saia curtinha e rente,
estas garotas modernas
só sentam perto da gente
para mostrar-nos as pernas...
HERALDO LISBÔA
- - - - - -
É só, pois sente amizade
pelas mulheres feiosas.
E a mesma fraternidade
sentem por ele as formosas...
ILDEFONSO DE PAULA
- - - - - -
Até que deve a oratória
ser um dom dos mais divinos;
porém, tem levado à glória
muitos sujeitos cretinos...
JACY PACHECO
- - - - - -
Chamaste-me um dia, urgente,
para dizer-me um segredo!
— Nunca um homem tão valente
teve, talvez, tanto medo...
JOSÉ DUARTE COSTA
- - - - - -
Quem passa a vida sisudo,
só pensando em caixa alta,
depois que pode ter tudo,
não tem o que fez mais falta...
JOSÉ MARIA MACHADO DE ARAÚJO
- - - - - -
Se todos fazem de si
tão duvidoso conceito,
menina, não queiras ter
a fama sem o proveito...
NOEL DE ARRIAGA
- - - - - -
Ouvi um cão indigente
a meu buldogue inquirir;
— O teu dono é inteligente?
— Se é? Só falta latir!
OLDEMAR LIMA DE ANDRADE
- - - - - -
Fiquei rindo de um gaiato
que caíra em plena praça,
não vi a casca de manga
e — pumba! — perdi a graça...
OLYMPIO S. COUTINHO
- - - - - –
Homens há tão insensatos
e de maneiras tão duras
que em vez de usarem sapatos
devem calçar… ferraduras!
PAULA FARIA
- - - - - -
Aquela jovem tão grácil
possui grandes qualidades:
além da palavra fácil,
tem outras facilidades...
PAULO EMÍLIO PINTO
- - - - - –
Se beijo pagasse imposto
junto aos cofres da moral,
que renda dava o teu rosto
nos bailes de carnaval!...
RENATO VIEIRA DA SILVA
- - - - - –
Quando por fraca poetisa
um critico se derrete,
o leitor logo ajuíza:
essa poetisa promete...
RODRIGUES CRESPO
- - - - - –
Na festa daquela gente,
o discurso que agradou
foi aquele, unicamente,
que depressa terminou...
SEBASTIÃO BENFICA MILAGRE
- - - - - –
O meu olhar é um peralta
que não tem jeito, mocinha:
aquilo que tanto escondes
o sem-vergonha adivinha...
SOARES DA CUNHA
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Nota do Blog: As trovas podem ser feitas rimando apenas o 2. com o 4. verso (sistema ABCB), contudo para efeito de Concursos de Trovas, normatizados pela União Brasileira de Trovadores,  existe a obrigatoriedade de rimar também o 1. com o 3. verso (sistema ABAB)

Fonte:
Aparício Fernandes. A Trova no Brasil: história e antologia. São Cristovão/RJ: Artenova, 1972.