quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

Figueiredo Pimentel (A Corda do Diabo)


Sinfrônio era um homem riquíssimo, dono de inúmeras propriedades e dispondo de fabulosas somas em ouro. Metendo-se, porém, em maus negócios, empobreceu de repente.

Vendo-se na mais completa miséria, resolveu sair do seu país, procurar uma terra onde não fosse conhecido, e ver se conseguia recuperar a fortuna perdida.

Um dia, atravessando uma planície, encontrou o diabo, a quem não reconheceu, todavia.

— Que tens? perguntou-lhe Satanás, conquanto soubesse perfeitamente bem a causa da tristeza de Sinfrônío.

— Para que dizer-te? — respondeu este. — Não me poderás dar remédio...

— Isso é que não sabes; e, desde já, obrigo-me a tirar-te do embaraço, se te obrigares a fazer tudo quanto eu disser.

Em seguida, vendo que Sinfrõnio estava espantado com aquela proposta, deu-se a conhecer.

O pobre homem não sabia que fazer, mas como se achava desesperado da vida, completamente pobre, resolveu aceitar a proteção de Satanás.

Prometeu ficar-lhe pertencendo, com a condição de enriquecer de novo.

— Pois bem, disse o demônio concluindo o pacto, de hoje em diante sair-te-ás bem de todos os negócios em que te envolveres. Se, entretanto, te achares alguma vez em perigo, bastará dizer “Dom Martinho, socorre-me!” e eu te aparecerei.

O capataz do inferno sumiu-se.

Sinfrônio, continuando viagem, chegou pelo meio da noite, a uma cidade.

Aí, certo de que triunfaria, resolveu roubar.

Em todas as casas que pretendia entrar, mal chegava, as portas abriam-se de par em par, encontrava os moradores profundamente adormecidos, e via à mão objetos preciosos.

Então meteu-se em altas empresas, e tornou-se um bandido célebre, terror de toda a região, saqueando viajantes.

Um dia foi preso.

Mal se viu na prisão, lembrou-se do seu protetor e exclamou:

— Dom Martinho, socorre-me!

O diabo apareceu logo e libertou-o.

Vendo-se livre, Sinfrônio recomeçou na sua antiga existência, cometendo toda a sorte de rapinagens.

Novamente foi preso, mas, como da primeira vez, invocou Satanás.

— Dom Martinho, socorre-me!

O demônio veio, mas Sinfrônio reparou que se demorara um pouco.

— Por que não vieste mais depressa?

— Estava ocupado, limitou-se o diabo a dizer laconicamente.

Mais tarde, depois de novos crimes e terríveis façanhas, o nosso herói caiu nas mãos da justiça.

Do fundo da sua prisão chamou Satanás que não veio.

Passaram-se dias, o processo já estava muito adiantado, e só faltava a sentença, quando finalmente mestre Lúcifer veio libertar o amigo.

Posto em liberdade, o bandido continuou ainda na sua horrível existência de rapinagem, com mais afã que nunca, em vez de se emendar.

Pela quarta vez foi preso, encerrado numa masmorra forte, e guardado por sentinelas.

Sem se inquietar muito, Sinfrônio gritou pelo demônio, segundo haviam combinado.

— Dom Martinho, socorre-me!

Decorreram semanas e semanas, até que, enfim, o juiz pronunciou a sentença, condenando-o à morte.

Marcou-se a data para a execução da sentença. Satanás, faltando à palavra, não acudiu à chamada.

Sinfrônio, escoltado pelo carrasco, e por soldados, caminhou para a praça e subiu à forca.

Foi só então que o capataz do inferno apareceu.

— Toma esta bolsa, disse-lhe ele. Aí, dentro estão vinte contos de réis. Dá-os ao juiz que ele te libertará.

O condenado, chamando o juiz, como que para lhe dizer as suas últimas vontades e confissões, fez-lhe a proposta.

O juiz, magistrado desonesto e avarento, escondeu a corda e disse para o povo:

Cidadãos: acaba de suceder um fato extraordinário, que pela primeira vez acontece: esquecemos de trazer a corda para enforcar o condenado. A execução fica pois, suspensa. Quem sabe se Deus não quis, por esse modo, mostrar a inocência do réu? Vai rever-se a sentença mas a justiça será feita.

Prepararam-se os executores para reenviar Sinfrônio para a cadeia.

Nesse intervalo o magistrado abriu a bolsa, mas só encontrou uma corda nova, em lugar dos vinte contos de réis.

Voltou-se indignado, exclamando:

— Cidadãos: acaba de aparecer uma. Foi Deus quem a enviou. Este homem é na verdade um bandido. Enforquem-no!

Passaram o laço no pescoço de Sinfrônio, que vendo-se estrangulado, bradou:

— Dom Martinho, socorre-me!

— Ah! disse o demônio aparecendo, eu não posso fazer nada, quando os meus amigos já estão com a corda no pescoço.

É assim que o diabo, fingindo querer salvar-nos, acaba sempre por trazer a corda para nos enforcar.

Fonte:
Figueiredo Pimentel. Histórias da baratinha. RJ; BH: Garnier, 1994.

Professor Garcia (Poemas do Meu Cantar) Trovas – 2 –


A dor das ondas e as minhas,
são ante as queixas do mar,
consolo das ladainhas
que a noite vive a cantar!
- - - - - –
Ante os teus ciúmes loucos
e a loucura desmedida;
o amor, vai sentindo aos poucos,
os desencantos da vida!
- - - - - -
Caicó - a idade avança,
mas no meu imaginário...
És linda moça criança
no teu sesquicentenário!
- - - - - -
Coração - cofre sagrado,
és o mais secreto cofre.
Só tu sabes do passado
das ilusões de quem sofre!
- - - - - -
É quando a mágoa me açoita
que busco em meus alfarrábios,
a resposta que se amoita
no silêncio de teus lábios!
- - - - - -
É tarde!... Em tua moldura,
logo assim que o sol se esconde;
uma saudade murmura,
por outra, que não responde!
- - - - - -
Fecho a janela, abro as portas
aos sonhos sentimentais...
Não quero esperanças mortas,
presas aos meus madrigais!
- - - - - -
Foto antiga!... E, pelos gestos,
por culpa de um neto ingrato...
Há cupins, comendo os restos,
do resto do teu retrato!
- - - - - -
Meu sabiá, tão contente,
cantas, fingindo o teu pranto;
nem vês que o pranto da gente
é triste quanto o teu canto!
- - - - - -
Meu versinho é uma criança,
que sozinho me insinua...
A levar paz e esperança
onde faltar paz na rua!
- - - - - -
O silêncio mais profundo,
me inspira e nele eu medito.
Ouço as torturas do mundo
no silêncio do infinito!
- - - - - -
Ostentação, nada diz.
Pobre e feio, também ama...
O sapo é pobre e feliz
mantendo os pés sobre a lama!
- - - - - -
Ouço um canto, me arrepio
e, aquela voz diferente,
vem da cascata de um rio
pranteando as mágoas da gente!
- - - - - -
Passando sem percebê-los,
os anos, de forma ingrata,
deixam-me a cor dos cabelos,
branquinhos, da cor de prata!
- - - - - -
Passo a passo e, sem alarde,
prossegue o pobre velhinho...
Tão perto do fim da tarde,
tão longe do velho ninho!
- - - - - -
Percebo que as mãos do outono
pintam na dor do poente,
cores das tardes sem dono,
donas das tardes da gente!
- - - - - -
Pobres cabelos grisalhos,
encanecidos, tão velhos;
fibras de tantos retalhos
que tecem meus evangelhos!
- - - - - -
Por teu amor, me proponho
a ser fiel ante a dor!...
Quem vive de amor e sonho,
vive as neuroses do amor!
- - - - - -
Qualquer adeus, nesta vida,
deixa um sabor tão cruel...
Que o gosto da despedida
amarga mais do que fel!
- - - - - -
Revivendo os sonhos vãos,
pelo tempo, envelhecidos;
trocamos beijos pagãos
por beijos prostituídos!
- - - - - -
Se amas a luz do luar,
te encantas, com tanto brilho;
vê quanto brilho, há no olhar,
da mãe que amamenta o filho!
- - - - - -
Se nossas almas se enlaçam,
ouço fingidos rumores,
entre corpos- que se abraçam
nos braços de outros amores!
- - - - - -
Toda tarde, em meus cansaços
ouço os teus conselhos belos,
na cantiga de teus passos,
no estalo de teus chinelos!
- - - - - -
Um grande amor não fenece,
resiste ao tempo que passa;
quanto mais ele envelhece,
mais tem ternura e tem graça!
- - - - - –
Vida dura!... Mil percalços,
e, essa ausência, inesperada,
me deixa de pés descalços
no meio da caminhada!

Fonte:
Professor Garcia. Poemas do meu cantar. Natal/RN: Trairy, 2020.
Livro enviado pelo autor.

Nilto Maciel (As Irreversíveis Lavas do Vesúvio)


Nunca consegui esquecer essa mulher que se grudou em meus olhos feito uma cegueira e tomou o lugar de todas as outras. De minha mãe, das santas de papel e gesso, das mocinhas fugidias, das heroínas dos compêndios de História, das personagens de ro­mances, das vedetes do cinema, das cantoras mortas, daquela com quem vivi quase uma vida. Dentro de mim, essa mulher ora me acalanta, ora me espreita, ora me sufoca. Doutras feitas, ora se mostra engrandecida, ora se faz sofrida, ora se enche de vida. Mais além é mero fulgor de sons, quando não me reclama ou não me espanta.

Depois de tanto tempo, agora, é como se eu e ela fôssemos o mito eterno e incriado de uma dor indefinível frente ao deses­pero ilimitado. No sonho, na vigília, na dimensão incompreen­dida da recriação.

Examinei-lhe o cadáver e persiste ainda em mim a vaga noção de tê-la viva – a mesma criatura daquele único, passageiro e casual encontro. Como se nos víssemos para além da vida e da morte – mitificados.

Seu corpo desfigurado pelo fogo me apavorou sempre, naquele dia, depois, agora. A mim, acostumado a conviver com mortos vindos das mais variadas formas de morrer. Não por re­encontrá-la defunta, semicarbonizada, mas por tê-la conhecido.

Desvendei-lhe a vida, do embrião à sepultura, numa investigação de celerado. Como se chamava, onde e com quem vivia, o que fazia e deixava de fazer, seus brinquedos, suas manias, seu jeito. Anos e anos dedicado a uma criatura sem biografia. E nada daquilo importava, a não ser para rebuscá-la inutilmente. Qual a importância de seu relacionamento com aqueles cabe­ludos que vagavam por ruas e estradas? Que significado tem a sua pouca fala sobre paz e amor, os hindus, Sidarta?

De tudo, talvez só o seu diário valha a pena ser preservado. E, para mim, hoje, quem sabe apenas a última anotação:

“Não sei onde anda o meu amigo, nem onde dormiu. Pode estar morto a estas horas, ou preso mais uma vez.”

Sua derradeira referência ao rapaz com quem andava, seu irmão de solidão, de quem eu nunca soube o paradeiro.

“De manhã vendi meu isqueiro a um desconhecido. To­quei-lhe o braço e fiz a oferta. Disse-me que não fumava e tra­tou de desvencilhar-se de mim. Tive ódio e comigo mesma cha­mei-o de porco, cachorro, miserável. Procurava com os olhos alguém que me ajudasse, quando ele voltou e perguntou por que eu queria vender o isqueiro. Olhava para mim com curiosi­dade, como se eu fosse um bicho estranho. Durou alguns mi­nutos nossa conversa e pude observar como se vestia bem, todo de branco, parecendo ser médico ou enfermeiro. Roupa lim­pa, corpo limpo, cheiroso. Senti desejo de abraçá-lo, beijá-lo. E ri de mim mesma, de minha tolice.

Falei de minha fome, da necessidade de dinheiro para com­prar comida. Não pensasse besteiras, podia confiar em mim, o isqueiro me pertencia de verdade, não costumava roubar. Meu lema era só paz e amor. Disse ainda uma porção de coisas, en­quanto ele apenas ouvia, metia as mãos nos bolsos, perguntava quanto eu queria pelo isqueiro. Notei sua pressa e tratei de fe­char o negócio. Pedi muito, esperando uma reação dele. Para minha surpresa, no entanto, ele me passou o dinheiro pedido, recebeu o isqueiro, disse adeus e retirou-se.

Ainda agora estou pensando no desconhecido. E também no dinheiro que ele trocou por um isqueiro. Nada mais me res­tou, porque o dinheiro eu o dei aos mendigos. E a fome passou. Quero só pensar em mim mesma.”

Termina aí o diário. E não há qualquer explicação para o suicídio, ocorrido ao escurecer.

Cabe a mim completar a história – essa pequena história vivida por ela e por mim.

Ao deixá-la, guardei o isqueiro no bolso e, enquanto caminhava para o carro, por uns dois minutos ainda me lembrei dela.

Ao chegar ao instituto, desfiz-me do maldito isqueiro. Ofe­reci-o a uma colega. Um mal-estar qualquer me indicava ser preciso apagar do espírito as imagens daquela menina.

Depois de jantar, informaram-me que me aguardava “um caso estúpido”. Lembro-me de ter perguntado se havia algum caso delicado naquela porcaria. “Uma garota se matou, tocou fogo às roupas”, completaram. Nem me passou pela cabeça a moça do isqueiro. Porém, ao ver o cadáver, tomei um susto. Seu ros­to, sua cara apavorada, parecia me dizer: “Cidadão, quer com­prar este isqueiro?”

Enquanto examinava a defunta, recordei o encontro da ma­nhã. Eu me havia compadecido daquela pobre criatura e em ne­nhum momento olhei para ela com olhos de cupidez. Pareceu­-me muito infeliz, não por andar suja, despenteada, faminta, mas por vender um isqueiro, como se vendesse o próprio corpo, para matar a fome.

Não tive palavras de conforto, de ajuda, de socorro, embo­ra haja pensado em falar das injustiças sociais, do desamparo à infância, à juventude, às pessoas em geral, fazer um discurso ético e político. Depois,  achei por bem apenas ouvi-la e aceitar a sua oferta.

Em determinados momentos senti que ela desejava uma aproximação maior, vender-me seu corpo, em vez do isqueiro, tal como está no diário. Ou simplesmente oferecê-lo de graça, tanta me pareceu sua solidão. Seu olhar transmitia isso. Eu, no entan­to, nenhum desejo senti, não por repugnância ao estado de seu corpo ou qualquer outro escrúpulo, mas por estar cheio de outros sentimentos.

Ao constatar o vazio de seu estômago, tive ímpetos de chorar, gritar, acordá-la, dar-lhe vida. E me senti impotente, inú­til, frágil, como se eu mesmo estivesse morto.

A partir daquele dia, ela não mais me deixou e, onde quer que eu esteja, ela me acompanha, minuto a minuto, hora a hora, dia a dia. Aquele último dia dela cai sobre mim feito o Vesúvio – lavas irreversíveis.

Fonte:
Nilto Maciel. Itinerário: contos. Fortaleza, CE: Ed. do Autor, 1974.
Livro enviado pelo autor.

Estante de Livros (O Calor das Coisas, de Nélida Piñon)


A obra O calor das coisas, de Nélida Piñon, é um livro de contos que tratam de circunstâncias presentes no cotidiano das pessoas. São treze histórias nas quais é fácil perceber as mesmas preocupações da autora: a importância da palavra e a manipulação política da linguagem. Desta vez, porém, há uma grande carga de humor. De fina ironia e construção complexa para desvendar os mais recônditos cantões da alma de seus personagens.

Nélida utiliza imagens belas e delicadas para tratar das paixões humanas. Seus enredos, sempre originais, muitas vezes confundem-se com o discurso. Nélida alterna poesia e crítica, racionalidade e erotismo em páginas de leitura voraz e provocadora.

A obra de Piñon é instigante e envolvente. Ela traz em sua estrutura temática o desdobrar e o atualizar em cada publicação, seja de romances, de contos ou de ensaios. Reflete em sua obra a preocupação constante com questões referentes à criação do texto, à linguagem, à religião (panteísta ou cristã), ao mito, ao amor associado aos questionamentos do cristianismo, à paixão, à solidão humana e, entre outras, à realização feminina

Nesta obra têm-se personagens do mundo contemporâneo vivendo momentos significativos – mas não necessariamente excepcionais – e historicamente marcados.

A multiplicidade das histórias deixa ver um certo número de temas recorrentes, que se espelham entre si e se desenvolvem uns aos outros. Tem-se assim, por exemplo, o tema fantástico da união (im)possível de espécies diferentes e o da mutação humana, o do incesto e o da homossexualidade. Em todos os casos tem-se o homem infrator, ora por sua ação, ora pela inação que, nesses contos, não significa jamais fraqueza mas escolha e assunção de força. Esse homem infrator exige, limpa, ordena, organiza, que tais são os verbos recorrentes na gramática nelidiana.

Nas histórias que nesse livro se conta, não há reorganização (construção) do mundo destruído pelos personagens, pelas circunstâncias, pela narração. Quando ocorre, a auto-organização do protagonista implica a desvalorização de seu contexto, que só lhe interessa como cenário, palco de experiências próprias e não partilháveis.

De fato, tem-se nesses contos, em vários níveis e em vários matizes, a mesma narrativa de solidão, em que toda relação interpessoal é vista como radicalmente impossível e na qual é lesiva toda tentativa nesse sentido.

É por isso que não se pode, a rigor, falar da existência de diálogos nesses textos. Entre os personagens só há monólogos e o preenchimento do silêncio pelo pastiche do lugar-comum, falas que apontam o vazio de que são feitas.

Os contos “O calor das coisas”e “A sombra da caça” destacam-se na composição do livro de que participa. O primeiro por dar nome à coletânea de que faz parte, o outro por ocupar o significativo lugar de último conto do livro, como a indicar que nele se poderia buscar (como nos romances policiais) a chave para o(s) mistério(s) de sentido que se teriam enovelado até então.

Se, quando apreciados tematicamente, vê-se atravessar tais textos o sentimento de erosão, este também se exprime na linguagem. Assim, já à primeira abordagem, a dicção destes contos se mostra provocadora, elaborando uma narrativa densa, que exige toda a atenção do leitor para a percepção do seu sentido. Pode-se mesmo dizer que o discurso nelidiano revela-se uma experiência sobre as possibilidades de expressão da tensão pensamento/linguagem fora da norma linguística e que daí advém a dificuldade que oferece a seu leitor.

Nesse discurso pode-se também identificar a presença de alguns aspectos da retórica do “carnaval”, tais como o estilo grotesco como em “O calor das coisas” e “O sorvete é um palácio”.

É a presença do mecanismo da paródia que melhor caracteriza a estruturação dos mais significativos textos do livro em questão. Através de tal procedimento perpassam os mais bem sucedidos nesses contos, narrativas advindas de lugares tão variados quanto a Bíblia em “O jardim das oliveiras”; o repertório artístico popular brasileiro em “Disse um campônio a sua amada”; um determinado corpus de valores e padrões de comportamento em “I love my husband” ou “Tarzan e Beijinho”. Esses textos básicos (e considera-se como texto também o conjunto de valores e padrões de comportamento vigentes a partir dos anos 60 do século XX) constituem o indispensável pano de fundo do conto nelidiano, que os relativiza sem jamais os anular.

Estão, assim, sempre presentes, indicando o quanto o discurso da autora deles se serviu e o quanto deles se afastou e assinalando, dessa maneira, a tonalidade irônica desse discurso. Assim, por exemplo, a agonia de Cristo é convocada na expressão da angústia daquele que renega seus antigos valores, em “O jardim das oliveiras”, primeiro conto da obra. Este conto narra, em primeira pessoa, a história de um preso que não suporta ser torturado, que examina os horrores da ditadura e a covardia moral dos seres humanos. Assim como Pedro nega Cristo, o protagonista desta história pretende negar
a si mesmo.
___________________________
continua: análise dos contos .

Fonte:
Elvia Bezerra para o Passeiweb.

terça-feira, 5 de janeiro de 2021

Varal de Trovas 460

 


Silmar Böhrer (Croniquinha) 14


É verão. Chuvas aguaceiras. Fugazes, ligeiras, logo vão. Parecem arremedar o tempo e o vento e a vida - passageiros. Mas não! Estes têm a constância do efêmero. As chuvinhas caem aqui, ali e acolá. Logo desaparecem.

E o tempo? Fala-se tanto do tempo. Tempo é o senhor. Tempo sobra. Tempo é remédio. Tempo falta. Tempo é linimento.

" Tempo é o que existe, inexistindo ", escreveu o poeta. O tempo dá voltas, volteios, volteadas. E assim chegamos a outro cruzeiro na convenção humana do tempo. Mudamos de ano, Mas o cruzeiro segue.
 
Refletir sobre o que passou. Benefícios. Malefícios. Mas essencialmente seguir abrindo portas, buscando caminhos e alternativas - como a água - desviando os obstáculos. Lembrando da interdependência e de que tudo é impermanente. Desavenças, tristezas, bem-estar, alegrias, doenças, morte, tudo é Devir. Tudo vem a ser, acontece e passa.

Essa é a trilha da vida. Seguir sempre, nos adaptando, harmonizando com seres e Natureza - partículas que somos do cosmo. Como escreveu o pensador, " O essencial é o caminhar - a alegria não está no final do caminho, ela é o caminho ".

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Mário Quintana em Prosa e Verso 11


A RUA DOS CATAVENTOS

I


Escrevo diante da janela aberta.
Minha caneta é cor das venezianas:
Verde!... E que leves, lindas filigranas
Desenha o sol na página deserta!

Não sei que paisagista doidivanas
Mistura os tons... acerta... desacerta...
Sempre em busca de nova descoberta,
Vai colorindo as horas quotidianas...

Jogos da luz dançando na folhagem!
Do que eu ia escrever até me esqueço...
Pra que pensar? Também sou da paisagem...

Vago, solúvel no ar, fico sonhando...
E me transmuto... iriso-me... estremeço...
Nos leves dedos que me vão pintando.
****************************************

II

Dorme, ruazinha... É tudo escuro...
E os meus passos, quem é que pode ouvi-los?
Dorme o teu sono sossegado e puro,
Com teus lampiões, com teus jardins tranquilos...

Dorme... Não há ladrões, eu te asseguro...
Nem guardas para acaso persegui-los...
Na noite alta, como sobre um muro,
As estrelinhas cantam como grilos...

O vento está dormindo na calçada,
O vento enovelou-se como um cão...
Dorme, ruazinha... Não há nada...

Só os meus passos... Mas tão leves são
Que até parecem, pela madrugada,
Os da minha futura assombração...
****************************************

III

Quando os meus olhos de manhã se abriram,
Fecharam-se de novo, deslumbrados:
Uns peixes, em reflexos dourados,
Voavam na luz: dentro da luz sumiram-se...

Rua em rua, acenderam-se os telhados.
Num claro riso as tabuletas riram.
E até no canto onde os deixei guardados
Os meus sapatos velhos refloriram.

Quase que eu saio voando céu em fora!
Evitemos, Senhor, esse prodígio...
As famílias, que haviam de dizer?

Nenhum milagre é permitido agora...
E lá se iria o resto de prestígio
Que no meu bairro eu inda possa ter!...
****************************************

IV

Minha rua está cheia de pregões.
Parece que estou vendo com os ouvidos:
"Couves! Abacaxis! Caquis! Melões!"
Eu vou sair pro Carnaval dos ruídos,

Mas vem, Anjo da Guarda... Por que pões
Horrorizado as mãos em teus ouvidos?
Anda: escutemos esses palavrões
Que trocam dois gavroches* atrevidos!

Pra que viver assim num Outro plano?
Entremos no bulício quotidiano...
O ritmo da rua nos convida.

Vem! Vamos cair na multidão!
Não é poesia socialista... Não,
Meu pobre Anjo... É.. simplesmente... a Vida!...
****************************************

V

Eu nada entendo da questão social.
Eu faço parte dela, simplesmente...
E sei apenas do meu próprio mal,
Que não é bem o mal de toda a gente,

Nem é deste Planeta... Por sinal
Que o mundo se lhe mostra indiferente!
E o meu Anjo da Guarda, ele somente,
É quem lê os meus versos afinal...

E enquanto o mundo em torno se esbarronda*,
Vivo regendo estranhas contradanças
No meu vago País de Trebizonda...

Entre os Loucos, os Mortos e as Crianças,
É lá que eu canto, numa eterna ronda,
Nossos comuns desejos e esperanças!...
****************************************

VI

Na minha rua há um menininho doente.
Enquanto os outros partem para a escola,
Junto à janela, sonhadoramente,
Ele ouve o Sapateiro bater sola.

Ouve também o carpinteiro, em frente,
Que uma canção napolitana engrola.
E pouco a pouco, gradativamente,
O sofrimento que ele tem se evola...

Mas nesta rua há um operário triste:
Não canta nada na manhã sonora
E o menino nem sonha que ele existe.

Ele trabalha silenciosamente...
E está compondo este soneto agora,
Pra alminha boa do menino doente…
****************************************
* Esbarronda – desmorona.
* Gavroches – moleques.


Fonte:
Mário Quintana. A Rua dos Cataventos. Publicado em 1940.

Estante de Livros (A Falecida, de Nelson Rodrigues)


análise pela Profa. Sônia Targa.


A Falecida, 1ª tragédia carioca, foi considerada um marco na obra de Nelson Rodrigues. Pela primeira vez o autor aproveitou sua experiência na coluna de contos A vida como ela é… para retratar o típico subúrbio carioca, com suas gírias e discussões existenciais. Os cenários passaram do “qualquer lugar, qualquer tempo” das peças míticas, para a Zona Norte carioca dos anos 50. Os personagens não representam mais arquétipos nem revelam alguma parte escusa da alma dos brasileiros. O que Nelson Rodrigues mostra agora é o cotidiano vulgar dos brasileiros. A falta de dinheiro, as doenças, o dedo no nariz das crianças, as pernas cabeludas de uma mulher, as cartomantes picaretas e o lado mais grosseiro da vida serão presenças constantes em suas peças daqui para frente.

A linguagem coloquial e repleta de gírias assustou a plateia do Teatro Municipal, afinal ninguém imaginaria colocar longos vestidos de veludo para assistir a uma peça onde o protagonista fala sobre futebol. Passado o estranhamento inicial da plateia com o “carioca way of life”, Nelson Rodrigues faz as pazes com o seu sucesso comercial. Talvez porque suas tragédias, quando viradas do avesso, comportem-se como comédias, preferência brasileira nos anos dourados.

Escrita em 26 dias, A Falecida foi encenada pela Companhia Dramática Nacional e recebeu direção do quase estreante José Maria Monteiro. Nos bastidores, Nelson Rodrigues apaixonou-se perdidamente por Sônia Oiticica, intérprete da protagonista feminina Zulmira. Apesar de se sentir lisonjeada com os galanteios do famoso dramaturgo, Sônia não lhe deu bola e, educadamente, deu a entender que era muito bem casada. A delicadeza, entretanto, não conseguiu evitar que o coração do dramaturgo se partisse pela primeira vez depois do fim do casamento com Elsa.

A Falecida conta a história de uma mulher frustrada do subúrbio carioca, a tuberculosa Zulmira, que não vê mais expectativas na vida. Pobre e doente, sua única ambição é um enterro luxuoso. Quer se vingar da sociedade abastada e, principalmente de Glorinha, sua prima e vizinha que não lhe cumprimenta mais. Zulmira tem uma relação de competição com a prima, chegando até mesmo a ficar feliz quando sabe que a seriedade da prima provém de um seio arrancado pelo câncer.

O marido, Tuninho, está desempregado e gasta as sobras da indenização jogando sinuca e discutindo futebol. Um pouco antes da hemoptise fatal, Zulmira manda Tuninho procurar o milionário Pimentel para que pague o enterro de 35 mil contos (o sepultamente normal, na época, não chegava a um conto!). Zulmira não dá maiores explicações nem diz como conhece o empresário milionário. Pede apenas para que o marido se apresente como seu primo.

Tuninho vai até a mansão de Pimentel e acaba descobrindo que ele e Zulmira foram amantes. Toma-lhe o dinheiro e, depois de ameaçar contar tudo a um jornal inimigo de Pimentel, consegue lhe arrancar mais ainda, supostamente para a missa de sétimo dia. Tuninho dá um enterro “de cachorro” à Zulmira e aposta o dinheiro todo num jogo do Vasco no Maracanã.

Como definir A Falecida? Tragédia, drama, farsa, comédia? Valeria a pena criar o gênero arbitrário de ‘tragédia carioca’? É, convenhamos, uma peça que se individualiza, acima de tudo, pela tristeza irredutível. Pode até fazer rir. Mas se transmite uma mensagem triste, que ninguém pode ignorar. Os personagens, os incidentes, a história, tudo parece exprimir um pessimismo surdo e vital. Dir-se-ia que o autor faz questão de uma tristeza intransigente, como se a alegria fosse uma leviandade atroz”.

A Falecida revolucionou o teatro brasileiro da época ao abordar uma temática extremamente carioca. Foi a primeira de muitas peças onde Nelson Rodrigues colocou suburbanos frustrados e fracassados como protagonistas. Suas tragédias cariocas são mais simples que suas peças míticas, não há tantos símbolos e poesia. Em contrapartida, foi graças a elas que o brasileiro pôde se reconhecer no palco. O sucesso comercial foi muito grande e essas foram as peças mais assistidas de Nelson Rodrigues.

Para retratar fielmente o suburbano e sofrido carioca, Nelson Rodrigues trocou a poesia e as metáforas pela linguagem coloquial. As personagens conversam sobre temas triviais, comentam assuntos populares e usam muitas gírias. O autor foi muito feliz na escolha delas, já que a grande maioria transfere o leitor contemporâneo diretamente para a década de 50. Com faro para descartar modismos, Nelson Rodrigues usou em A Falecida expressões como “a polícia não é sopa”, “pintar o sete”, “pernas de pau”, “cabeça inchada”, “é batata!”, etc. Tem espaço até mesmo para as abreviações da linguagem falada, como “té logo!”, e estrangeirismos, como “all right” e “bye, bye”.

A ironia e o deboche são as características mais marcantes em A Falecida. A visão do autor é extremamente pessimista, como se no final tudo sempre estivesse predestinado a dar errado. A cartomante consultada por Zulmira numa das primeiras cenas perde o sotaque afrancesado assim que recebe o dinheiro. O filho da cartomante passa toda a consulta com o dedo no nariz, plantado ao lado da mãe. O médico, cujo nome é Borborema, diz que Zulmira não tem tuberculose, é apenas uma gripe.

Aliás, nenhum médico consultado pela protagonista lhe deu o diagnóstico certo. Determinada hora, Tuninho é mandado embora do jogo de sinuca por uma dor de barriga violenta. Assim que chega em casa, corre para o banheiro, mas está ocupado por Zulmira. Uma cena antológica acontece quando Tuninho consegue sentar no vaso e, com a mão no queixo, simula a atitude de O Pensador, escultura de Rodin.

Para conseguir mostrar com mais profundidade a realidade dura do subúrbio, Nelson Rodrigues apela para o vulgar e o grotesco.

Belos cavalos de enterros chiques são odiados porque soltam fezes pelo caminho. A mãe de Zulmira fica sabendo da morte da filha enquanto “coça as pernas cabeludas”. A prima da protagonista, Glorinha, é loira, mas oxigenada. Foge da praia não por timidez do maiô, como acreditava Zulmira, mas sim porque o câncer lhe extirpou um dos seios. Zulmira, por sua vez, tinha um cheirinho de suor que agradava o amante. O ódio que Zulmira sente do marido vem desde a lua de mel, quando ele lavou as mãos depois do ato sexual.

A falta de ilusão e o pessimismo feroz do autor mostram à plateia uma Zulmira enganada até mesmo na hora da morte, quando ela é enterrada no caixão mais barato da funerária – contrariando a regra da cultura ocidental de que o último pedido de um moribundo é lei. As personagens são mostradas em situação nada glamourosas, como espremendo cravos nas costas, fazendo necessidades no banheiro, etc.

Às avessas, A falecida é uma comédia das mais rasgadas. O dramático aparece em muitas cenas como digno de risadas. Determinada momento do 2° ato, o autor coloca na rubrica da cena em que Tuninho está viajando de táxi: “Luz sobre o táxi, em que viaja Tuninho. Táxi, evidentemente, imaginário. O único dado real do automóvel é uma buzina, gênero ‘fon-fon’, que o chofer usa, de vez em quanto. A ideia física do táxi está sugerida da seguinte forma: uma cadeira, atrás da outra. Na cadeira da frente vai o chofer, atrás, Tuninho. O chofer simula dirigir, fazendo curvas espetaculares”. Em outro momento, discute-se as razões que levaram Zulmira a se recusar a beijar o marido na boca:

“Tuninho – Afinal de contas, eu sou o marido. E se eu, por acaso, insisto, que faz minha mulher? Fecha a boca!

Cunhado – Muito curioso!

Tuninho – Mas como? – perguntei eu à minha mulher – você tem nojo de seu marido? Zulmira rasgou o jogo e disse assim mesmo: ‘Tuninho, se você me beijar na boca, eu vomito, Tuninho, vomito!’

Sogra – Ora veja!

Cunhado (de óculos e livro debaixo do braço) – Caso de psicanálise!

Outro – De quê?

Cunhado – Psicanálise.

Outro (feroz e polêmico) – Freud era um vigarista!”


Esta cena serve também para ilustrar o cuidado de Nelson Rodrigues com a caracterização das personagens de A Falecida. A personalidade tanto dos protagonistas quanto das personagens secundárias é revelada, muitas vezes, em apenas uma única frase. Às vezes, como no caso retratado acima, basta uma aparição no palco para a plateia se dar conta do tipo de pessoa. Primeira heroína frustrada de Nelson Rodrigues, Zulmira trai porque não vê muita motivação no seu mundinho.

Não tem dinheiro, não tem divertimento e não tem mais esperança de que sua vida possa mudar. Por isso concentra-se na sua morte, ou seja, em planejar nos mínimos detalhes o seu enterro de luxo. Seu marido Tuninho também é frustrado e infeliz. Não se acha capaz de conseguir um novo emprego e, por isso, resolve passar o tempo com os amigos, na praia, jogando sinuca ou falando sobre futebol. Todos têm em comum o fato de não terem o destino da vida nas mãos.

A grande inovação estrutural de Nelson Rodrigues em A Falecida está na troca de protagonistas que acontece no 3° ato. Zulmira tem a ação nas mãos nos dois primeiros atos, quando pesquisa preços para o seu enterro e visita médicos para se certificar de que está mesmo com tuberculose.

No final do 2° ato, a suburbana morre e passará o comando da peça para o marido, Tuninho. A partir daí, ele vai atrás de Pimentel para conseguir o dinheiro do enterro e descobre a traição de sua mulher. O foco narrativo muda, portanto, no meio da peça.

Mas Zulmira também tem aparições esporádicas no 3° ato, principalmente para elucidar aspectos ainda nebulosos de sua personalidade. Na cena em que Pimentel está revelando a infidelidade de Zulmira, Tuninho arrasta a sua cadeira e se coloca diante do quadro, na mesma posição de um observador da plateia. Aparece então Zulmira, que reproduz com Pimentel o contexto da traição.

O corte do flashback acontece com um grito de Tuninho, histérico com a “coragem” da mulher em traí-lo no banheiro de uma lanchonete enquanto ele esperava na mesa. Voltar no tempo para contar a traição de Zulmira foi uma solução bastante eficiente encontrada por Nelson Rodrigues. Se a história fosse apenas contada por Pimentel a Tuninho, a cena ficaria monótona e perderia parte de seu conteúdo dramático.

Outra novidade presente em A Falecida é a multiplicidade de cenários. Zulmira vai à cartomante, ao banheiro, ao quarto, à Igreja, à casa dos pais, à funerária e ao consultório, até morrer de hemoptise. Tuninho aparece num táxi, numa sinuca, na mansão do empresário Pimentel e até mesmo no Maracanã. Para poder abarcar tantas mudanças, o espaço é vazio e o único objeto fixo são as cortinas. Ao contrário do que possa parecer, a peça não ficou fragmentada e o resultado saiu original.

Frases

“A solução do Brasil é o jogo do bicho! E, minha palavra de honra, eu, se fosse presidente da República, punha o Anacleto (bicheiro) como ministro da Fazenda”.
Timbira, funcionário da funerária

Estou com uma pena danada do Tuninho… A mulher morre na véspera do Vasco X Fluminense… O enterro é amanhã… Quer dizer que ele não vai poder assistir ao jogo… Isso é o que eu chamo de peso tenebroso!…”.
Oromar

Mas como? – perguntei eu a minha mulher – você tem nojo de seu marido? Zulmira rasgou o jogo e disse assim mesmo: ‘Tuninho, se você me beijar na boca, eu vomito, Tuninho, vomito!'”.
Tuninho

A mulher de maiô está nua. Compreendeu? Nua no meio da rua, nua no meio dos homens!”.
Zulmira

Fonte:
Jayro Luna.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

José Feldman (Versejando) – 17 –

 


Gregório Duvivier (Abraço Caudaloso)


Amizade entre cronistas é um perigo: todo papo esbarra em crônica, já que toda crônica é uma espécie de papo. Foi numa conversa com o Antonio Prata, meu ex-amigo-platônico
“ex” não por não ser mais amigo mas por não ser mais platônico – que a bola começou a quicar. “Isso dá uma crônica”, ele disse. Mas nenhum dos dois escreveu, por escrúpulos de estar roubando a ideia do outro. Eu, que tenho menos escrúpulos e menos ideias, resolvi escrever.

Palavras, percebemos, são pessoas. Algumas são sozinhas: Abracadabra. Eureca. Bingo. Outras são promíscuas (embora prefiram a palavra “gregária”): estão sempre cercadas de muitas outras: Que. De. Por.

Algumas palavras são casadas. A palavra caudaloso, por exemplo, tem união estável com a palavra rio – você dificilmente verá caudaloso andando por aí acompanhada de outra pessoa. O mesmo vale para frondosa, que está sempre com a árvore. Perdidamente, coitado, é um advérbio que só adverbia o adjetivo apaixonado. Nada é ledo a não ser o engano, assim como nada é crasso a não ser o erro. Ensejo é uma palavra que só serve para ser aproveitada. Algumas palavras estão numa situação pior, como calculista, que vive em constante ménage, sempre acompanhada de assassino, frio e e.

Algumas palavras dependem de outras, embora não sejam grudadas por um hífen – quando têm hífen elas não são casadas, são siamesas. Casamento acontece quando se está junto por algum mistério. Alguns dirão que é amor, outros dirão que é afinidade, carência, preguiça e outros sentimentos menos nobres (a palavra engano, por exemplo, só está com ledo por pena – sabe que ledo, essa palavra moribunda, não iria encontrar mais nada a essa altura do campeonato).

Esse é o problema do casamento entre as palavras, que por acaso é o mesmo do casamento entre pessoas. Tem sempre uma palavra que ama mais. A palavra árvore anda com várias palavras além de frondosa. O casamento é aberto, mas para um lado só. A palavra rio sai com várias outras palavras na calada da noite: grande, comprido, branco, vermelho – e caudaloso fica lá, sozinho, em casa, esperando o rio chegar, a comida esfriando no prato.

Um dia, caudaloso cansou de ser maltratado e resolveu sair com outras palavras. Esbarrou com o abraço que, por sua vez, estava farto de sair com grande, essa palavra tão gasta. O abraço caudaloso deu tão certo que ficaram perdidamente inseparáveis. Foi em Manoel de Barros. Talvez pra isso sirva a poesia, pra desfazer ledos enganos em prol de encontros mais frondosos.

Fonte:
Blog da Língua Portuguesa

Ronnaldo de Andrade (Caderno de Trovas)


Abraça-me com ternura,
dá-me um pouquinho de amor,
afasta minha amargura
e apazigua a minha dor.
- - - - - -
Acorda, amor! Veja o sol,
à porta, chamando a gente,
para ver seu arrebol
na casa do sol nascente.
- - - - - -
Acredito ser verdade,
este amor que por mim sente.
Mas vivamos da saudade
do que foi o amor da gente.
- - - - - -
Agora você me diz:
“Por favor, não se acostume...
Não lhe quero, nunca quis;
eu só quis fazer ciúme...”
- - - - - -
Amanhã pode ser tarde,
pra entregar seu coração,
a este alguém que hoje arde,
chora e sofre de paixão.
- - - - - -
As flores do meu jardim
morreram todas depois
que você fugiu de mim,
levando junto nós dois!
- - - - - -
Banhado por seu olhar,
ao som do seu violão,
eu me ponho a passear
nos jardins do coração.
- - - - - -
Chego a perder o sentido
quando me encontro em seus braços,
e fico muito esquecido
no calor dos seus abraços.
- - - - - -
Cheguei ao fundo do poço,
quando você me deixou,
e ao voltar, ainda moço,
a esqueci, você passou!
- - - - - -
Com esta caneta escrevo
esta trova de saudade
para você... mas eu devo
alertar que é de amizade.
- - - - - -
Cuidaste tão bem de mim,
que eu hoje me sinto mal,
por ter te falado assim:
“Acabou, ponto final!”.
- - - - - -
De modo muito singelo
nosso amor galgou vitória...
É grande o nosso castelo,
mas sobressai nossa história!
- - - - - -
Deus lhe pôs no meu caminho,
pra não me ver sofrer mais.
Você, Rosa sem espinho,
calou todos os meus ais.
- - - - - -
Eu chego a perder o sono,
pensando em ti, minha flor.
Não quero ser o seu dono,
e sim o seu beija-flor.
- - - - - -
Fazendo os dias amenos,
acalmo minha agonia,
de quando, dos sonhos plenos,
acordo – a cama vazia!
- - - - - -
Foi o tempo, um adversário,
em meu cenário de amor,
truculento, sanguinário;
mas eu saí vencedor.
- - - - - -
Fui em sua vida um nada,
e nada serei... Assim,
ao me encontrar pela estrada,
vê se não olha pra mim.
- - - - - -
Não sai de minha memória
a nossa história de amor;
você, sua trajetória,
seu desejo abrasador...
- - - - - -
Na tela do meu cinema
você foi e ainda é,
o filme do meu dilema:
amor, angústias e fé!
- - - - - -
Neste poema humilde e breve,
eu choro a perda de alguém,
que esta boca não se atreve
falar seu nome a ninguém.
- - - - - -
Nos palcos de minha vida,
você foi minha Iracema;
a poesia transmitida
na tela do meu cinema!
- - - - - -
Nosso amor é muito lindo
e gostoso de se ver,
que nem mesmo, Amor, fingindo,
conseguirei esquecer.
- - - - - -
Nunca chega o amanhecer,
quando o coração padece
de tanto amor, de querer
alguém que não nos merece!
- - - - - -
Olhe bem para o jardim,
veja como está feliz.
Eu só quero ser assim,
com você, ó flor-de-lis!   
- - - - - –
O nosso amor não é lenda
e nem um conto de fada.
Talvez eu lhe surpreenda:
ele é só amor e mais nada!
- - - - - -
Os sonhos que sonho são
delírios desta minh’alma
que, se entregando à paixão,
perdeu a razão e a calma.
- - - - - -
Percebo que lhe perdi,
mas não deixo de lhe amar.
Foi ótimo o que vivi
com você, meu Céu, meu Mar.
- - - - - -
Perdoe-me se fui covarde,
Não era a minha intenção
dizer a você bem tarde:
– Não me dê seu coração!
- - - - - -
Por causa do teu ciúme
me afastei, fiquei distante;
porém isso não resume
quanto me foste importante.
- - - - - -
Quando você põe em mim
seus lindos olhos azuis,
minha tristeza tem fim
e os meus enche-se de luz.
- - - - - -
Queria ser uma abelha,
pra pousar nessa boquinha
aveludada e vermelha,
que parece uma florzinha.
- - - - - -
Seus olhos são diamantes,
valiosos, minha querida.
São raros, são fascinantes,
por eles dou minha vida.
- - - - - -
Seus olhos têm um feitiço
que me prende e me domina;
eles me fazem submisso
a você, mulher menina.
- - - - - -
Sim, todas estas poesias
e as lágrimas que derramo,
lembram-me todos os dias,
que é você que ainda eu amo.
- - - - - –
Sinto faltar um pedaço
de tudo que existe em mim.
Sou planeta sem espaço
sem você, meu Querubim.
- - - - - -
Sofreu sem fazer alarde,
a dor dum amor desfeito.
Hoje sei bem o quanto arde,
pois sofro do mesmo jeito.
- - - - - -
Sofro de amor, de paixão,
nessa minha vida inglória.
Por não ter mais ilusão,
ponho um ponto nessa história!
- - - - - -
"Trilha amarga. Que desgosto"
sentir o gosto da dor,
e ver em todo meu rosto
as marcas do dissabor! .
- - - - - -
Vá-se embora! Tem razão...
Mas, por favor, não se queixe
se na maré de... ilusão
nunca mais encontrar peixe.
- - - - - -
Vê se acorda, coração,
vive sonhando profundo...
Saiba que o amor é ilusão:
a pior de todo o mundo.

Fonte:
Trovas enviadas pelo trovador.

Nilto Maciel (O Veneno da Cobra)


A morte do sábio Salomão. Ou João Paulo, Juan Pablo, Jean-Paul. Charles, Karl ou Carlos Magno. Joseph ou José de Anchieta. Alejandro, Alexandre, Alexander. Ignora-se seu nome verdadeiro, sua nacionalidade. Pode ter nascido russo, Alexey Maykov, Konstantin Ostrovsky, Fiodor Saltikov. Francês, inglês, chinês, brasileiro. Ninguém faz caso disso. Vale contar sua morte. Há algum tempo, porém, não se conta a morte de heróis, mitos, eminências. Quando muito, se a noticia. Virou moda esse medo da morte. Não do fato, mas da sua metafísica.

No entanto, Salomão (?) não é um homem da moda. É raro. Antigo como os deuses e novo como os astronautas, sem nunca ter sido de ontem e sem ser de hoje. Se é do futuro, ninguém sabe.

Não importa, ele é morto.

Segundo os cronistas mais famosos, tão imprevisível era que, se tivesse escrito versos, seria o maior de todos os poetas; se tivesse se dedicado à conquista amorosa, não se falaria mais em donjuanismo; se houvesse tomado a dianteira de algum partido ou grupo, agora o poder brilharia em suas mãos. Nada disso fez, porém. Jamais se interessou por poesia, sexo e política. Nem sequer escreveu versos de amor aos 15 anos. Não se casou, não teve amantes, nunca frequentou o infindável abismo do prazer. Um dia leu Marx e toda a nata de pensadores burgueses. Apenas. Não levantou uma palha pelos operários, nem tirou o chapéu para os banqueiros. Manteve-se sempre longe de tudo. Ou perto, à sua maneira.

Ninguém o chamou de menino prodígio, a não ser alguns biógrafos de meia tigela.

Às vésperas de morrer, revelou sua grande descoberta: as fórmulas da vida e da morte, os componentes de seus vírus.

Nas universidades, academias, parlamentos expôs suas conclusões. Chamaram-no de feiticeiro, embusteiro, louco. As igrejas o condenaram. Certa imprensa o promoveu a semideus. Pagavam-lhe a fábula do ouro por um programa dominical. Grupos extremistas sequestraram-no e exigiram, como resgate, milhões de dólares. Ninguém deu ouvidos a nada. Se o matassem, seriam perdoados por todos os seus atos pretéritos e futuros. As editoras propuseram-lhe contratos escandalosos pela publicação de sua obra. Mil impostores escreveram porcarias em seu nome.

Esteve fugido pelos quatro cantos do mundo, até morrer quase anonimamente. Ao lado do cadáver encontraram seu único escrito:

O vírus da morte é o antídoto do vírus da vida. Os dois existem na natureza infinitamente. Em constante luta. Em condições normais, o vírus da vida vence seu inimigo durante determinado tempo. Aos poucos, porém, um e outro ocupam o mesmo “espaço” e finalmente o da morte sai vencedor.

Um animal qualquer é picado por cobra venenosa. Como explicar isso? É simples: o vírus da morte contido no animal conduziu-o à serpente. Num átimo de segundo esse vírus se desenvolveu de forma progressiva no interior do corpo da vítima. Poderia ter ocorrido uma reviravolta, uma brusca reação do vírus da vida e o animal passar a um centímetro da cobra sem ser picado. Ou dar meia volta e regressar. Ou conseguir matar a serpente.

Se conseguirmos produzir o vírus da vida e injetá-lo nos seres vivos, chegaremos a retardar a morte e até a eliminá-la. E não seria um trabalho eterno, porque, à medida que as pessoas e os animais se enriquecessem de vírus de vida, conseguiriam transmiti-lo a seus contemporâneos e descendentes. Algumas gerações depois teríamos reduzido a zero o vírus letal da face da terra.

Porém, cometi um erro fatal. Não, cometer não é o verbo exato. Talvez fosse melhor dizer que não me afastei da tentação de desconfiar de minha própria descoberta. Se tivesse me injetado uma poção que fosse do vírus da vida, agora não estaria diante da morte. Mas nem sequer o produzi, dedicado que permaneci a divulgar minhas teorias. Ao chamado instinto de conservação sobrepunha-se em mim o vedetismo. A morte vencia a vida.

A partir daí, o vírus letal se apoderou do meu ser: frequentei universidades, academias, parlamentos; me apavorei diante da morte; fugi dos homens. Até que – cheio de dúvidas – me fiz solitário e pus-me a imaginar o meu fim. E eu me indagava: se tudo fosse diferente, se eu não estivesse aqui, se eu não fosse esse homem desprotegido...

Quando decidi deixar uma palavra escrita aos homens, esse anúncio de morte, já não havia como retroceder e o abismo se cavava diante de mim, inevitável.

Vou morrer.


Fonte:
Nilto Maciel. Itinerário: contos. Fortaleza, CE: Ed. do Autor, 1974.
Livro enviado pelo autor.

Estante de Livros (O Largo da Palma, de Adônias Filho) – 6, final –


SEXTO EPISÓDIO: A PEDRA

Esta narrativa faz referência ao período da peste bubônica na Bahia. Nesse período era proibido terreno baldio. As casas e os sobradinhos foram se erguendo ao redor da igreja, tão antiga. “O sino da igreja, aqui na Palma, anuncia finados dia e noite. Maior que a peste, de verdade, só o medo”.

Se o terreno estava barato, a construção era cara porque naqueles dias o rei acabou com a escravidão.

Um negociante português construiu uma casa no terreno baldio próximo à igreja: uma casa comum, pequena, baixa. Quem a comprou foi Cícero Amaro, um garimpeiro de Jacobina. A narrativa descreve o temperamento folgado de Cícero, a vida dura de sua mulher Zefa, até o dia em que ele achou um brilhante do tamanho do caroço de uma azeitona. Vendeu e veio com a Zefa para a capital. Aqui comprou a casa do português, comprou uma quitanda para a Zefa e foi para a ladeira de Montanha, todo caprichado em busca de uma aventura. Lá encontra Flor que tira dele tudo que pode e lhe dá o fora. Quando está empobrecido, volta para Zefa que não o quer mais. Acha que é uma grande ingratidão, mas pensa em arrumar algum dinheiro para voltar a Jacobina e retornar à sua vida de garimpeiro.

COMENTÁRIO

Esta narrativa traz um período triste para a história da Bahia, quando a peste bubônica toma o espaço, dizima a população. Ao lado da peste está um belíssimo brilhante. O Largo da Palma, a velha igreja participam do sofrimento. O sino que toca dolorosamente anunciando as mortes, as perdas, o medo.

Depois de passada a peste é que Cícero Amaro chega à cidade. Para poder habitar o Largo da Palma, ele precisou encontrar um brilhante. Essa pedra traz uma simbologia especial: o brilhante precisa passar por uma transmutação, precisa ser lapidado, trabalhado. Em relação ao homem, a pedra simboliza a aprendizagem. Foi isso que Cícero veio aprender: como a vida oferece benefícios, mas exige que se mudem comportamentos.

Ao voltar ao ponto de partida, a lição que sobra para a personagem é recomeçar, mais velho, mais experiente, esperando ter a sorte lhe sorrindo novamente.

Lista de personagens

Cícero Amaro: garimpeiro de Jacobina, é preguiçoso e gosta de frequentar bordéis e beber pinga às vezes.

Zefa: negra esposa de Cícero, é muito trabalhadora e sonha em montar uma quitanda.

Flor: prostituta muito bela que tem um caso amoroso baseado em interesses com Cícero.

Fonte:
– ARAÚJO, Vera L. R. in Cultura, Contextos e Contemporaneidade, p.21. Disponível no Portal São Francisco.

domingo, 3 de janeiro de 2021

Varal de Trovas 459

 


Lima Barreto (Providências Policiais)


À vista do doloroso acontecimento da Avenida em que foi vítima uma excelente senhora da melhor sociedade, a nossa polícia resolveu tomar medidas extremas contra os viciosos que abusam de narcóticos de várias espécies.

Não sabemos de todos os nomes das pessoas que vão ser vítimas da ação energética do enérgico Nascimento e Silva, mas temos notícias de alguns.

A primeira pessoa que vai ser procurada pela ativa autoridade é um tal Rabelais, que nasceu em França, em Chinon, e escreveu o Gargântua e Pantagruel.

Não nos consta que ele tivesse cometido nenhum assassinato, mas escreveu esse livro que todo mundo lê e só os policiais não leem. Não direi que isso seja uma honra para os bacharéis delegados ou uma desonra para eles.

Um outro que está na lista é um Edgard Poe, que publicou umas originais Histórias extraordinárias, que Nascimento, Chagas e outros delegados, inclusive o Geminiano, chefe deles, só conhecem de nome.

Este bebia mais do que aquele, e bebidas fortes. Sei bem que ele não matou; foi morto.

A prisão mais difícil é a de Lord Byron, grande da Inglaterra e poeta dos maiores.

O embaixador inglês já está de alcateia, para enviar uma nota contra qualquer violência contra a pessoa do autor do Childe Harold.

Parece que aí vai parar a ação repressora da polícia carioca contra o alcoolismo, porquanto a Inglaterra dispõe de uma grande esquadra e, desde a questão Christie, nós sabemos o que ela vale.

Coleridge também está ameaçado; mas também é inglês...

Mário Coelho é brasileiro e bebia, por isso quem vai pagar o seu estúpido crime devido à embriaguez são os brasileiros.

Sendo assim, vão ser processados o romancista Bernardo Guimarães e o poeta Fagundes Varela.

Embora tenham deixado obras imperecíveis, é preciso que assim se faça, para mostrar a força moralizadora da polícia.

Nunca assassinaram ninguém; mas escreveram muito. Eis aí o seu crime.

Fonte:
Lima Barreto. Marginália: artigos e crônicas. SP: Brasiliense, 1956.

Hildemar Cardoso Moreira (Poemas Avulsos) – 2 –


A LINDA ROSA

À sempre amiga Marlene

 Como que tendo algo de celeste
O botão de rosa que a sorrir me deste
Demonstra algo no rosado ninho,
Abrindo as pétalas como que sorrindo
Estão por certo assim me transmitindo
Algo sublime: Um fraternal carinho.

 Muito obrigado então, minha querida!
Felizes são os seres que na vida,
Na vida em que não existe arremate
Ter sempre enfeitando seus caminhos
Semeando flores, retirando espinhos:
Amigos que contenham seu quilate.
****************************************

A MORTE DA ÁRVORE

 Era lindo de manhã
Nos galhos do cuvatã
Ver os pássaros pulando,
Tinha ninhos de pardal
E descuidado um casal
De pombinhos namorando.

 E essa árvore frondosa
Dava-nos sombra gostosa
Nas tardes ensolaradas.
Na prancha que sustentava
A criançada brincava
Dando muitas gargalhadas.

E nós sorriamos também
Porque é feliz só quem tem
Um motivo pra sorrir.
E aquela árvore antiga
Era por isso uma amiga
Enquanto pode existir.

Mas um dia de manhã
Vi a bondosa cuvatã
No gramado estendida,
E a prancha que sustentava
Em que as crianças brincavam
Ali ao seu lado caída.

Mas eram duas irmãs
As frondosas cuvatãs,
Uma foi outra ficou
A que foi deixou filhinhas
Pois brotaram as mudinhas
Nas raízes que deixou
A criançada brincava
Dando muitas gargalhadas.

E nós sorríamos também
Porque é feliz só quem tem
Um motivo pra sorrir.
E aquela arvore antiga
Era por isso uma amiga
Enquanto pode existir.
Em que as crianças brincavam
Ali ao seu lado caída.
****************************************

CHASQUE À UM GAUDÉRIO

Caro neto Rafael
O meu chasque é um aranzel
De verso chucro e matreiro
Brotado na inspiração
Que eu faço de coração
A um valente cavaleiro.

Já onze anos de lida
Pelas coxilhas da vida
Vens hoje de completar.
Hoje estudas no colégio
E isso já é um privilégio
Que deves aproveitar.

Tu hoje pensas faceiro
Em se tornar fazendeiro
Ou ser dono de uma estância,
Mas para isso, gaudério
Carece trabalho sério
Muita luta e muita ânsia.

Nunca fazer escarcéu
Pra que o patrão lá do céu
Veja que és índio educado
Que és amado na querência
E também na adjacência
És por todos estimado.

Valor de um homem se mede
Pelo jeito que procede
Com todos ao seu redor
Por isso meu caro neto
Trate a todos com afeto
E amor que é o bem maior.

 Que a estância ou a fazenda
E mais uma linda prenda
Te sejam dadas por Deus.
Que os anjos, meigos obreiros
Sejam sempre companheiros
Em todos os passos teus.

 Como uma armada de laço
Aqui fica um grande abraço
De todos nós neste dia
Que Deus do céu te proteja
E que a vida te seja
Cheia de amor e alegria.
****************************************

ENAMORADOS

Você chegou de mansinho
Num suave sopro de Deus,
Foi chegando e foi entrando
Por dentro dos olhos meus,
Como quem nada queria
Foi fazendo sua morada
Dentro do meu coração.

Nossas mãos se afagaram,
Nossos lábios se encontraram
E ao calor de nossos beijos
Um turbilhão de desejos
Veio selar nosso amor.
É esse amor que proclamo
Quando entre beijos te digo:
Te amo… te amo… te amo!
****************************************

LAPA

Linda cidade campista
És modelo para o artista,
Para o poeta – inspiração.
És dos pequenos  – o teto,
És dos grandes  – o afeto,
Do turista  – a adoração.
 
Tuas pedreiras em montes
Onde nascem ricas fontes
Santificadas por João.
Perfeição da natureza,
Estatuário de beleza,
Que eu amo com devoção.

Teu campo de flor coberto
E a mata verde, por certo
Faz pensar que és um sonho.
Teu passado é glorioso,
Teu presente é venturoso,
Teu porvir será risonho.

Se a República nascente
Pediu teu sangue valente
Para se fortificar.
Lá no campo de batalha,
Ao sibilar da metralha,
Teu povo heroico foi dar.

Mas Lapa, eu busco memórias
Para cantar tuas glórias
Porém me falta expressão,
Mas nos versos que te faço
Eu te concedo um pedaço
Do meu próprio coração.
            Lapa – 1951

Fonte:
Cascata de Poesias (https://hildemar.wordpress.com)

Ivan Lessa (Os Presentes)


Claro, os homens fazem os presentes vendidos nas lojas. Claro, as árvores não têm nada a ver com plantar e crescer. Claro, o papel de seda é bonito, o laço vermelho bem dado. Claro, tem dedicatória e cartão de boas festas.

Os presentes estão todos debaixo da árvore ou em cima da cama. Daqui a pouco vai ser papel por toda a casa, mulheres enrolando os barbantes dourados (“amanhã a gente pode precisar...”). Uma daquelas bolas vai se espatifar no chão, cacos brilhantes e desse tamanhinho em torno da árvore.

A camisa um pouco apertada, a gravata agressiva, cuidadosamente dobradas, tudo pra dentro da caixa de novo. As caixas, vazias, ficam pela sala quase que por dois dias. Os barbantes numa gaveta, dentro de outra caixa.

Bola é difícil de embrulhar e o menino a reconhece imediatamente. Claro, sem surpresa. Claro, não deixa de ser agradável. Bola não se desembrulha: tem-se de se rasgar o papel todo e sair chutando-a imediatamente pela casa. De preferência, logo de cara quebrar uma coisa com ela, ou então, com um bom chute de peito de pé derrubar a árvore. Se a árvore tiver lâmpadas elétricas, corre-se o perigo de curto-circuito. Mas é de dia ainda e o menino que vá brincar com sua bola na rua.

Como é que se dá um cachorro de presente de Natal? Claro, tem de ser pequeno e embrulhável. O papel deve ser azul e plastificado, e envolver o cachorro até o pescoço, ficando apenas a cabeça de fora.O embrulho tem de ser feito pouco antes do presente ser ofertado. Não se deve pendurar o cachorro na árvore: cai árvore e cai cachorro.

Soldadinho de chumbo não existe mais. De plástico tem. Não é a mesma coisa, claro. Mas, em todo caso, esses dão para se pendurar na árvore. Um por um ficava engraçado, se você tem senso de humor, pendure-os em lugar das lâmpadas. Não dão curto-circuito, nem ficam só com a cabeça de fora, nem podem ser chutados. Quer dizer, poder pode, mas não se deve.

Cuidado com o arco e flecha, o garoto, se não acertar no cachorro ou em você, vai direto para a parede recém pintada ‒ ali perto daquela reprodução da Ceia do Senhor. O menino vai arrancar a flecha e, então já sabe, vem um pedaço de reboco desse tamanho junto.

Brinquedo desses de corda criam caso se o pai não tomar o cuidado de não dar corda de jeito nenhum. Geralmente o pai, com um ar de perito, dá corda demais e quebra o carrinho, o tanque, ou seja lá o que for. As crianças abrem uma boca desse tamanho: “Quebrou meu brinquedo! Quebrou meu brinquedo!”.

 Claro, Papai Noel existe, sim senhor. Veja só no espelho: o rosto vermelho (tomou ponche demais), os cabelos brancos, a longa barba (pegaram sua lâmina para abrir presentes), o roupão vermelho (presente de sua mulher), o ar bonachão (de quem vai sair de casa).

O trenó e as renas ficam para o ano que vem.

Fonte:
Diário Carioca. RJ: 25 dezembro 1965.

Estante de Livros (O Largo da Palma, de Adônias Filho) – 5 –

QUINTO EPISÓDIO: OS ENFORCADOS


Esta narrativa está localizada temporalmente. Através de um cego, a história da revolução dos alfaiates é contada numa perspectiva de pessoas que assistiram ao enforcamento dos revolucionários acusados.

O ceguinho do Largo da Palma, como era chamado, sentiu que o largo estava vazio, que a igreja tinha poucos fiéis e todos saíram apressados. Ficou sabendo que era o dia dos enforcados.

Como não recebe nenhuma esmola, vai para a Piedade, mas antes para na birosca do Valentim. É o Valentim que vai narrar o enforcamento para o ceguinho, ele que tinha uma voz de sermão, hoje fala baixo, tem medo fruto das prisões e das torturas. A cidade traz a marca da tragédia:

— A cidade parece triste.

— A Bahia nunca foi alegre — Valentim, abaixando a voz disse por sua vez. — Uma cidade com escravos é sempre triste. É muito triste mesmo.

Quando os quatro condenados estão chegando, a multidão se agita. O cego tudo tomava conhecimento pela voz de Valentim, voz emocionada, afinal era ele quem via. Quando a morte do último condenado aconteceu
Valentim sumiu, deixando o ceguinho só, tão só, apenas com o porrete na mão. Andou até reconhecer o Largo da Palma. Tudo o que queria era seu canto do pátio da igreja.

E ao aproximar-se, ao sentir o cheiro de incenso, pensou que naquele momento já cortavam as cabeças e as mãos dos enforcados. Colocadas em exposição, no Cruzeiro de São Francisco ou na Rua Direita do Palácio, até que ficassem os ossos. O Largo da Palma, porque sem povo e movimento, seria poupado. Ajoelhou-se, então, pondo as mãos na porta da Igreja.

E, única vez em toda a vida, agradeceu à Santa Palma ter ficado cego.

COMENTÁRIO

O cego da narrativa pode ser a representação do poeta itinerante, uma visão de renúncia às coisas externas fugidias. Para explicar o que o cego não vê é preciso falar: a narrativa se faz necessária. É a justificativa para uma história ser contada, no caso,“costurando a revolução”, tecendo os fatos.

O cego sem poder ver os fatos exteriores, tem a capacidade de ver a verdade interior.

A Revolta dos Alfaiates ou Inconfidência baiana ocorreu em 1798, cujos participantes pertenciam às camadas pobres. Dois soldados; Lucas Dantas e Luís Gonzaga das Virgens; dois alfaiates João de Deus do Nascimento e Manuel Faustino dos Santos, que tinha dezoito anos lutavam pela República. Eram todos mulatos. Os intelectuais e os ricos da Loja Maçônica Cavaleiros da Luz foram perdoados. O castigo aos pobres deveu-se ao medo de que houvesse uma rebelião dos negros como havia acontecido nas Antilhas.

O dia dos enforcados, na Piedade, 08/11/1799.

Na narrativa, o nome do governador D. Fernando José de Portugal e Castro, os atos que praticava para impor respeito: a chibata, os grilhões, a forca o esquartejamento, fazem parte do mundo de violência que não deve ser visto. Por isso o cego agradece à Santa.

Como dois dos revolucionários eram alfaiates, mulatos, vítimas de discriminação, pode-se relacionar este episódio com o filme Concorrência Desleal de Scola, quando há uma lição de solidariedade entre um alfaiate e seu concorrente, quando sofre a discriminação por ser judeu.

Fonte:
– ARAÚJO, Vera L. R. in Cultura, Contextos e Contemporaneidade. Disponível no Portal São Francisco.

sábado, 2 de janeiro de 2021

José Feldman (Versejando) – 16 –

 


Olivaldo Júnior (Crônica de um Ano Realmente Novo)


Não, não sei como é que foi que tudo isso começou. Só sei que, mesmo que não pareça, ainda estamos em plena pandemia, e a alegria tem sido conquistada a cada dia, a cada hora, a cada instante, como se Monalisa de um simples sorriso sem graça tivesse que sorrir e até rir do que é trágico. Mágico, talvez fosse assim que quiséssemos que um ano realmente novo começasse. Um ano em que fôssemos realmente mais irmãos e tivéssemos aprendido “algo”.

Muito tem-se falado em esperança e em folhas, flores e frutos novos no jardim. Há de se acreditar nisso, há de se acreditar que, sim, valeu a pena ter passado por tudo que temos passado e, ainda assim, tocar em frente pois muitos já não podem mais fazer o mesmo. De novo, já nos basta o vírus, dirão alguns. E, talvez, estejam mesmo certos. Talvez fosse melhor cantar aquela música de outro jeito: “Adeus, Ano Novo / Feliz, Ano Velho!”, se nos fosse adiantar.

A vida, em verdade, parece feita de dificuldades. Atravessá-las parece ser a sina do ser humano. Humanos, damo-nos virtualmente as mãos, ora contentes, ora nem tanto. E, mesmo sabendo do perigo, enchemos os barzinhos, ficamos em casa, isolamo-nos, festejamos, numa dupla realidade que se instalou desde que vimos tudo virar de cabeça para baixo e voltar, num giro de 360 graus, sem direito à escolha. Estamos na dança, brinquemos de roda e... de viver.

Tudo promete mudar. E a esperança é mesmo a última que morre. “Alegria era o que faltava em mim”, diz um samba antigo e muito lindo. Lindo. Belo. Incrível. Talvez seja isso o que buscamos todos. A beleza em nós, a beleza em outros, a beleza em todos, quando ainda há tanto de feio e de triste no mundo. “Mas vamos fechar os olhos / E pensar numa noutra coisa”, diria Quintana, do Céu dos Poetas, caso pudesse. Só se pedisse a um passarinho para cantar.

O homem atrás do bigode / é sério, simples e forte. / Quase não conversa. / Tem poucos, raros amigos / o homem atrás dos óculos e do bigode.”, diria Drummond. Não, não abandono Drummond. Não, não sou Drummond, nem queria ser ele. Queria ser eu. Ah, se eu fosse eu!... Se eu fosse eu, talvez fosse um filho melhor para meus pais, e um irmão melhor para meu irmão, e um amigo melhor para meus amigos, para quem realmente gostasse de mim, no ano novo.

Mogi Guaçu, São Paulo, 31 de dezembro de 2020.

Fonte:
texto enviado pelo autor.

Baú de Trovas XXIV


Tua promessa fingida
foi razão do meu sofrer.
— Esperei toda uma vida
para poder te esquecer!
ANTENOR JOSÉ DIAS
- - - - - -
A poesia sempre alcança
o seu maior esplendor
no riso de uma criança,
nos olhos do meu amor!
ANTÔNIO MAIA
- - - - - -
Se no amor foste iludida,
não deves guardar rancor.
— Mais triste é passar a vida
sem ter um beijo de amor!...
APARÍCIO FERNANDES
- - - - - -
Não se deve amar ninguém
só para o tempo passar.
— Passa o tempo e nós também,
mas o amor pode ficar...
ELZIO COELHO
- - - - - -
Pode crer, Maria Rosa,
hoje em dia ninguém vê
mulher sincera e bondosa,
bonita como você.
FRANCISCO DE MATOS
- - - - - -
Solitário ele vagueia,
entre as dunas, a sonhar...
E a praia é o convés de areia
do velho Lobo-do-Mar.
FRANCISCO MADUREIRA
- - - - - –
Teu amor só me deu mágoa...
Mas eu sou grato à maior:
foi com os olhos rasos d'água
que te pude ver melhor...
GENTIL FERNANDO DE CASTRO
- - - - - -
A todos repito e ensino
a minha definição:
o beijo é o til pequenino
da palavra coração.
GODOFREDO MENDES VIANA
- - - - - -
Como tudo é passageiro,
como tudo é enganador...
Quem dera que fosse eterna
toda promessa de amor!
GUILHERMINA DE FIGUEIREDO
- - - - - -
Debalde as mulheres tentam
saber, ansiosas, aflitas,
como é que os poetas inventam
tantas mentiras bonitas!
GUIOMAR MACHADO
- - - - - -
Depois que te amo, há quem jura
que perdi todo o meu siso.
Se isso que sinto é loucura,
lamento quem tem juízo...
HEITOR BELTRÃO
- - - - - -
Amor é simples afeto,
mas de poder tão profundo,
que torna as almas unidas
nos desertos deste mundo.
HÉLIO GARCIA DE MATTOS
- - - - - -
Uma rosa — sua face.
Um sonho — seu caminhar.
Se isso tudo não bastasse,
tem o céu dentro do olhar!
JANDIRA GRILLO
- - - - - -
Às vezes sofro contigo,
mas deixo bem claro aqui:
se a teu lado vivo mal,
pior seria sem ti!
J. CASSIMIRO DE OLIVEIRA
- - - - - -
Por tua boca adorada,
por teu olhar feiticeiro,
minha alma vive ajoelhada
num eterno cativeiro!
JOSÉ FERREIRA BAPTISTA
- - - - - -
Não faço fé nas Marias,
descreio delas até:
a que destruiu meus dias
era Maria da Fé!
JOSÉ MARQUES
- - - - - -
Olhos verdes peregrinos,
olhos de estranha emoção!
São dois punhais pequeninos
que ferem meu coração.
JULY JÁCOME DE MELO
- - - - - -
Olhos profundos, estranhos,
sempre em cismares imersos,
esses teus olhos castanhos
já não são olhos... são versos!
LAURA MARGARIDA DE QUEIRÓS
- - - - - -
Ave noturna, agoureira,
não me apavora o teu canto.
— Mais desastres não receia
quem de amor desfaz-se em pranto.
LOURIVAL AÇUCENA
- - - - - -
Recebi tua cartinha,
mas, confesso, não gostei,
pois nela de volta vinha
o beijo que te mandei...
MARIO CEZAR DUARTE
- - - - - -
Desde que te conheci,
apenas isto é que sei:
fiquei perdido por ti
e nunca mais me encontrei.
MÁRIO GRAÇA
- - - - - -
Posso estar muito zangado,
mas, vendo o sorriso teu,
fico todo enamorado...
e penso que o mundo é meu!
PEDRO BRAILE
- - - - - –
Quando passas, criatura,
altiva, faceira e bela,
se é dia, o sol mais fulgura;
se é noite, o céu se constela!
RAIMUNDO ARAÚJO
- - - - - -
Esta verdade me ocorre
pelos amores que eu tive:
quanto mais de amor se morre,
tanto mais de amor se vive.
TEIXEIRA LEITE
- - - - - -
De tudo que iá sofri,
sofro mais o dissabor
de um grande amor que perdi,
por culpa de um falso amor.
TONINHO BITTENCOURT

Fonte:
Aparício Fernandes. A Trova no Brasil: história e antologia. São Cristovão/RJ: Artenova, 1972.

A. A. de Assis (Maluf, o Pioneirão)


No princípio era assim: na colina o Maringá Velho, na planície o Maringá Novo. No meio havia um bom pedaço da floresta original, por onde passava uma trilha que ligava os dois povoados. Deu-se, porém, que um dia um funcionário do Maluf se perdeu na travessia e precisou-se de um dia inteiro de busca para reachar o moço.

Foi nessa ocasião que o megapioneiro Maluf entrou nervoso no escritório da Companhia Melhoramentos, dirigiu-se ao Dr. Hermann Morais de Barros e desabafou: “Não vim aqui pra morar no mato”. Imediatamente o Dr. Hermann deu ordem para que se transformasse a trilha numa avenidona, unindo finalmente os dois Maringás. Na época ainda não tínhamos prefeito.

Alfredo Moysés Maluf nasceu em 1900, na Síria; veio para o Brasil com menos de um ano de idade e viveu suas primeiras décadas em Piracicaba. Entrou na história de Maringá no mesmo ano em que a cidade oficialmente entrou no mapa – 1947.

Aqui comprou um terreno bem na divisa entre o Maringá Velho e o Novo e ali montou o famoso Posto Santo Antônio, distribuidor da Esso. O posto passou logo a ser um ponto de referência. Onde fica isso ou aquilo? Respondiam: Fica perto do Maluf, pra cá do Maluf, em frente ao Maluf... A própria praça, de nome José Bonifácio, na boca do povo passou a ser conhecida como “Redondo do Maluf”. Um marco geográfico e um marco histórico.

A cidade toda era uma aventura naqueles primeiros anos. Motoristas vindos de todo o Brasil chegavam no Maluf e paravam. Em épocas de chuvas ninguém podia ir para a frente nem para trás. Por isso, ao lado do posto, além da oficina e da loja de peças, havia um restaurante e um dormitório. Para distrair os primeiros moradores da cidade e os caminhoneiros em trânsito, Maluf comprou um projetor e exibia filmes todas as noites. Sempre de graça, mas os espectadores precisavam trazer cadeiras de casa.

O Maringá Velho, habitado desde 1942, já era uma vila movimentada, centralizando o desbravamento da região vizinha. No Maringá Novo, apenas montes de tocos deixados pela derrubada, ensaios de ruas e avenidas e umas poucas casinhas de madeira. Maluf entre os dois Maringás participando intensamente de tudo o que acontecia na jovem comunidade. Enquanto isso a sua empresa continuava crescendo. Nos anos 1953 e 1954 ele se classificou em primeiro lugar na revenda de gasolina da Esso em todo o Brasil.

Trabalhando de dia e de noite para dar conta de tanto que fazer, assim mesmo ele achava tempo para ajudar a cidade, no que sempre contou com o firme apoio de uma das pessoas mais queridas que Maringá conheceu – sua simpaticíssima esposa Dona Tita.

Alfredo Moysés Maluf foi um dos que mais trabalharam para que Maringá se emancipasse de Mandaguari. Carregou muita madeira para a construção da primeira catedral. Foi um dos fundadores do Rotary Clube, da Associação Comercial e Industrial e do Lar dos Velhinhos. Um homem intimamente ligado às raízes de tudo o que aqui existe. Saudade enorme dele.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 03 -12-2020)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Estante de Livros (O Largo da Palma, de Adônias Filho) – 4 –


QUARTO EPISÓDIO: UM CORPO SEM NOME


É o único episódio narrado na primeira pessoa. “A tarde se acaba, é verdade, mas a noite ainda não chegou. E por que me encontro aqui, quem sou, isto não importa. O que importa é que estou na esquina do Bângala, de pé e a fumar, buscando trazer a paz do largo para mim mesmo”.

O enredo é simples: o narrador vê uma mulher que chega cambaleando e morre nos degraus da escadaria da igreja no Largo da Palma. Como testemunha, tendo a mulher morrido em seus braços vai até à delegacia, curioso para saber de quem se trata. A morta tem o rosto magro, “as órbitas fundas, os cabelos grisalhos, a boca murcha com três cacos de dentes. Os braços tão secos quanto os seios e as pernas. O vestido imundo, frouxo na cintura e descosido nas mangas”, sintomas de fome e cansaço.

Essa imagem faz com que ele rememore um fato com uma mulher assim quando fez dezoito anos.

Nos pertences da mulher estão um pente, um lenço de linho. Um maço de cigarros e uma nota de dez cruzeiros, uma caixa de fósforo com um pó branco, que logo se verifica ser cocaína, uma saboneteira com mais de dez dentes da criatura humana.

O laudo médico é conclusivo; a morte foi por tóxico.

Dois meses depois, o narrador volta ao Largo da Palma. A visão humanizada do largo cuja memória não abarca todos os acontecimentos, talvez tenha esquecido a mulher sem nome.

O narrador se aproxima de “A Casa dos Pãezinhos de Queijo”, o ar tem o perfume de trigo, misturado com o incenso que vem da igreja.

Ao falar com o inspetor fica sabendo que não identificaram a mulher, o corpo com tóxico em todos os poros, o mistério dos dentes guardados nunca foi desvendado, só há conhecimento de que eles pertenciam a ela mesma. Agora, à noite, o narrador vê os gatos, que na madrugada se tornam os donos do largo porque os homens e os pombos estão dormindo.

E sobre a mulher: “A morte não a matou, porque morreu fora do corpo. E, por isso, não morreu no Largo da Palma”.

COMENTÁRIO

Há um narrador que não se identifica, trata-se de um “eu” que se diz, se fala, fala dos fatos em torno da morte, mas não se nomeia. A rememoração que faz da época que tem dezoito anos, faz lembrar Marcel Proust em “La recherche du temps perdue” (A procura do tempo perdido), quando uma realidade do presente evoca uma imagem do passado, caracterizando o impressionismo tanto na linguagem quanto nos signos.

O Largo de Palma, que no episódio anterior, apesar da idade, antigo de muitos séculos, tem boa memória, nesta narrativa, velho como é, já a esqueceu porque não tem memória para todos os acontecimentos.

A presença dos gatos, simbolicamente, relacionado com o mistério da vida e da morte, segundo a tradição oriental, está encarregado de transportar as almas para o outro mundo.

Fonte:
– ARAÚJO, Vera L. R. in Cultura, Contextos e Contemporaneidade. Disponível no Portal São Francisco.