quarta-feira, 12 de maio de 2021

Cecília Meireles (Antologia Poética) V

CANÇÃO I


Nunca eu tivera querido
dizer palavra tão louca:
bateu-me o vento na boca,
e depois no teu ouvido.

Levou somente a palavra,
deixou ficar o sentido.

O sentido está guardado
no rosto com que te miro,
neste perdido suspiro
que te segue alucinado,
no meu sorriso suspenso
como um beijo malogrado.

Nunca ninguém viu ninguém
que o amor pusesse tão triste.
Essa tristeza não viste,
e eu sei que ela se vê bem...
Só si aquele mesmo vento
fechou teus olhos, também...
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

CANÇÃO II

No desequilíbrio dos mares,
as proas giraram sozinhas...
Numa das naves que afundaram
é que tu certamente vinhas.

Eu te esperei todos os séculos,
sem desespero e sem desgosto,
e morri de infinitas mortes
guardando sempre o mesmo rosto.

Quando as ondas te carregaram,
meus olhos, entre águas e areias,
cegaram como os das estátuas,
a tudo quanto existe alheias.

Minhas mãos pararam sobre o ar
e endureceram junto ao vento,
e perderam a cor que tinham
e a lembrança do movimento.

E o sorriso que eu te levava
desprendeu-se e caiu de mim:
e só talvez ele ainda viva
dentro dessas águas sem fim.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

FIM

Ó tempos de incerta esperança
que assim vos desacreditastes!
Cresceram nuvens sobre a lua
e o vento passou pelas hastes.

Vinde ver meu jardim sem flores
no presente nem no futuro,
e a mão das águas procurando
um rumo pelo solo escuro!

Vinde ouvir a história da vida
no sopro da noite deserta.
Caíram as sombra das vozes
dentro da última estrela aberta.

Ai! tudo isto é letra do horóscopo...
E só tu, Estátua, resistes!
— Mas, embora nunca te quebres,
terás sempre os olhos mais tristes
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

MURMÚRIO

Traze-me um pouco das sombras serenas
que as nuvens transportam por cima do dia!
Um pouco de sombra, apenas,
— vê que nem te peço alegria.

Traze-me um pouco da alvura dos luares
que a noite sustenta no seu coração!
A alvura, apenas, dos ares:
— vê que nem te peço ilusão.

Traze-me um pouco da tua lembrança,
aroma perdido, saudade da flor!
— Vê que nem te digo — esperança!
— Vê que nem sequer sonho — amor!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

SOLIDÃO

Imensas noites de inverno,
com frias montanhas mudas,
e o mar negro, mais eterno,
mais terrível, mais profundo.

Este rugido das águas
é uma tristeza sem forma:
sobe rochas, desce fráguas,
vem para o mundo, e retorna...

E a névoa desmancha os astros,
e o vento gira as areias:
nem pelo chão ficam rastros
nem, pelo silêncio, estrelas.

A noite fecha seus lábios
— terra e céu — guardado nome.
E os seus longos sonhos sábios
geram a vida dos homens.

Geram os olhos incertos,
por onde descem os rios
que andam nos campos abertos
da claridade do dia.

Fonte:
Cecília Meirelles. Viagem. Lisboa: Império, 1938.

Sílvio Romero (Manoel da Bengala)

Uma vez um rei teve um filho que nasceu logo muito grande e robusto. No fim de oito dias já o menino comia um boi inteiro. O rei ficou muito assustado e mandou chamar os conselheiros para lhe dizerem o que se havia de fazer, pois aquele filho lhe acabava com toda a fortuna.

Os conselheiros foram de opinião que o rei mandasse o filho procurar a sua vida. O príncipe pediu que lhe mandasse fazer uma bengala de ferro muito grossa e pesada, um machado e uma foice também grandes e pesadas, e partiu.

Chegando na casa de um senhor de engenho, pediu serviço, e o dono da casa o aceitou. Foi o moço derrubar uma roça e deitou com três ou quatro foiçadas quase todas as matas do engenho abaixo. O dono ficou muito assustado, e não o quis mais no seu serviço. Além disto, na hora de jantar, o príncipe não quis comer o que lhe deram por não chegar nem para o buraco de um dente, e pediu um boi e um alqueire de farinha. O senhor do engenho, pensando que ele não pudesse comer tudo, mandou dar-lhe para o experimentar, e ainda mais espantado ficou quando o viu devorar tudo, e o despediu.

Voltou o príncipe para o palácio de seu pai. Aí esteve alguns dias, até que o rei mandou de novo reunir os conselheiros, que foram de opinião que o rei mandasse o príncipe pegar seis leões bravos nas matas. Isto era para ver se os leões davam cabo dele.

O moço pediu um carro e uma junta de bois. Chegando nas matas dos leões passou lá seis dias. Em cada dia matava um boi do carro e pegava um leão, botava no lugar, e o amansava. Depois cortou umas árvores muito grandes e botou no carro e largou-se para trás.

Quando o rei o viu foi aquela zoação que parecia que queria vir tudo abaixo. Era o barulho das árvores e dos leões que vinham com Manoel da Bengala. Assim se ficou chamando o príncipe, por causa da bengala de ferro.

Afinal o rei ordenou-lhe que ganhasse o mundo e não lhe voltasse mais em casa. O príncipe partiu.

Chegando adiante, viu um homem passando um rio cheio, mas sem se molhar, e disse:

– Alô, Passa-vau.

– Alô, Manoel da Bengala.

– Passa-vau, você quer andar na minha companhia?

– Quero.

– Pois então me passe para banda de lá.

Passa-vau o passou e seguiram juntos. Mais adiante encontraram um homem cortando muito cipó e emendando para fazer um laço, e Manoel da Bengala disse:

– Alô, Arranca-serra.

– Alô, Manoel da Bengala.

– Arranca-serra, você quer andar comigo?...

– Pois não, Manoel da Bengala!

– Então vamos.

E partiram.

Cada dia um dos três ia buscar comida para todos. Quando foi uma vez, Passa-vau foi buscar mantimento e encontrou no caminho um moleque muito preto, de carapuça de latão, que lhe pediu fogo para o cachimbo. Passa-vau não quis dar, e o moleque trepou-lhe o cachimbo na cabeça e o derrubou no chão, como morto. Daí a muito tempo é que ele veio a si, voltou e contou aos companheiros o que lhe tinha acontecido.

Arranca-serra disse:

– Ora, Passa-vau, você é muito mofino; amanhã quem vai sou eu.

Assim foi. Quando andava ao longe, apareceu-lhe aquele moleque da cabeça de latão, que lhe pediu fogo para o cachimbo. Ele não quis dar, e travaram luta. O moleque acertou-lhe com o cachimbo na cabeça e o deitou por terra. Daí a muito tempo é que ele acordou e voltou para os outros.

Manoel da Bengala o debicou muito, chamando-o de mofino, e no dia seguinte quando foi buscar mantimento foi ele. Lá bem longe encontrou o moleque da cabeça de latão, que lhe disse:

– Como vai, Manoel da Bengala?

– Vou bem. Você como está?

– Bom; muito obrigado, Manoel da Bengala, você me dá fogo para o meu cachimbo?

– Não te dou, moleque; sai-te daqui.

E meteu-lhe a bengala e o moleque meteu-lhe o cachimbo. Travaram uma briga desesperada. Afinal Manoel da Bengala arrumou-lhe uma cacetada na cabeça, e arrancou-lhe a carapuça de latão. O moleque, então, dizia:

– Manoel da Bengala, me dê minha carapuça.

– Não te dou, moleque.

E assim foram andando, até que Manoel da Bengala lhe disse:

– Só te dou a carapuça se me deres as três princesas que tu tens presas.

Aí o moleque, que era o cão, respondeu:

– Isto não, porque não são minhas.

E foram andando até que o moleque entrou por um buraco a dentro, e Manoel da Bengala seguiu atrás. Lá dentro foram dar num palácio muito rico, onde havia um engenho em que estavam trabalhando muitas pessoas. Era o inferno. E sempre o moleque a pedir a carapuça de latão, e o príncipe a pedir as princesas.

O cão, que conheceu que não podia com a vida dele, deu-lhe as moças, mas o príncipe lhe disse:

– Agora só lhe dou a carapuça se me botar lá fora no meu caminho.

O moleque não quis e ele meteu-lhe a bengala. Afinal consentiu. Mas os companheiros, que tinham ficado do lado de fora do buraco, logo que viram sair as três moças que o cão tinha levado para fora, fugiram com elas, querendo enganar Manoel da Bengala, que as queria para casar com uma, e dar aos outros a cada um a sua.

Quando ele chegou do lado de fora, deu a carapuça de latão ao demônio, e este sumiu. Procurou as moças, mas não as encontrou, e ficou desapontado. Os dois companheiros de Manoel da Bengala tinham ido com elas, que eram princesas, para as entregar ao rei, seu pai, e dizerem que eles é que as tinham salvado, e por isso deviam se casar com elas.

O rei ficou muito alegre com a chegada das filhas que não via há muito tempo, mas as moças muito tristes e a chorar, disseram ao pai que não tinham sido aqueles que as tinham salvado.

Manoel da Bengala tinha três lenços que as moças lhe tinham dado. Pegou num deles e disse:

– Voa e vai cair no colo de tua dona.

O lenço virou um papagaio e voou e foi cair no colo da princesa mais velha e lá virou-se no lenço outra vez. A princesa ficou muito contente e disse:

– Eu só me caso com o dono deste lenço.

Manoel da Bengala pegou no outro lenço e disse:

– Voa e vai cair no colo de tua dona.

O lenço virou um papagaio e foi cair no colo da princesa do meio. Ela ficou muito contente e disse:

– Eu só me caso com o dono deste lenço.

Manoel da Bengala então pegou no terceiro lenço e disse:

– Voa e bota-me na casa das três princesas.

De repente lá se achou. Houve muita alegria. Ele se casou com a mais bonita das moças, e os outros dois foram expulsos, depois de muito castigados, e as duas princesas se casaram com outros príncipes.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
Nota do Blog:
Conto de origem europeia, popular no Sergipe.
Há uma versão deste conto no livro Histórias da Tia Nastácia, de Monteiro Lobato, em 1937. Postado neste blog em abril de 2011, em https://singrandohorizontes.blogspot.com/2011/04/monteiro-lobato-historias-de-tia_12.html


Fonte:
Sílvio Romero. Folclore brasileiro: cantos e contos populares do Brasil. 
RJ: José Olympio, 1954.

Aparecido Raimundo de Souza (Parte 41) A preciosidade ocultada

BELINHA ERA UMA CRIATURINHA encantadoramente sensual. Seu perfil de menina do interior, com seu sorriso terno e maroto, deixava os homens endoidecidos, principalmente os mais avançados na idade. Não à toa, desde que viera de Araguarí, em Minas Gerais, para trabalhar no Rio de Janeiro, na casa de tolerância de dona Rosa (por indicação de uma ‘amiga’ de infância que vivia, há tempos, no meio libertino), a freguesia masculina aumentara de forma assustadora.

Em razão disto, em menos de três meses, dona Rosa, a cafetina, começou a ver, com olhos esbugalhados, seus negócios passarem de um simples comércio capenga para deslanchar, de vento em popa, numa escala de progressão incrivelmente estonteante e meteórica. A rapaziada, a cada noite, aumentava mais e mais o rebuliço, fazendo com que a cáften enchesse as burras e saísse do vermelho à passos de Golias.

De repente, dona Rosa trocou de carro, aumentou a casa de alvenaria onde funcionava a muvuca, acrescentando mais de uma dúzia de quartos aos treze existentes. Mudou de uma residência relativamente simples, em Pedra de Guaratiba, para um condomínio de luxo, na avenida das Acácias, na Barra da Tijuca. Da noite para o dia, se firmou a alimentar uma conta bancária com numerários vultuosos, num banco onde, meses atrás, mantinha na conta corrente, o suficiente para os gastos com a manutenção e o sustento de suas ‘colaboradoras’ na requintada morada de prostituição.

A mineirinha Belinha se tornara a mais solicitada e a que contribuía com o maior acréscimo de programas para que os rendimentos do rendez-vous triplicassem num abrir e fechar de olhos. Caminho paralelo, a rapaziada só queria a Belinha e havia até uma fila de espera bastante significativa para conseguir subir com ela para o andar superior, onde ficavam dispostos os aposentos dos prazeres mais envolventes.

As outras partícipes da fratria da carne fraca, e fresca, não permaneciam ociosas. Pelo contrário, não davam conta, tamanha a movimentação que varava das cinco da tarde (hora em que o ‘inferninho’ abria) só terminando o tráfico do ‘entra e sai’ dos usuários, quase às primeiras horas de um novo amanhecer. Apesar da Belinha ser a ‘número um’, a azeitona da empada na preferência da plebe dos machos simpatizantes, as demais do grupo de ninfetas, num total de dezoito rameiras, careciam trabalhar dobrado.

Todas, sem exceção, se viravam literalmente nos trinta, para darem conta dos tresloucados que desembolsavam uma nota violenta por algumas horas de sexo e prazer regadas a bebidas importadas da zona franca de Manaus e até uns produtos diferenciados vindos diretamente da Cracolândia Paulista. O fato é que, entre trancos e barracos, altos e baixos, em pouco tempo, a Belinha igualmente fez seu pé de meia. Comprou um apartamento no bairro do Leme, um carro quase zero quilômetro e abriu uma conta poupança para, num futuro próximo, largar de vez daquela vida que ela, de antemão, sabia de cor e salteado, não a levaria muito longe.

Os caminhos da perdição são largos e desafogados, lucrativos e vantajosos, contudo, os passos dados, não permitem que se vá muito longe. Vida de quenga tem dia certo para começar, às vezes se vê interrompido, num abrir e fechar de olhos. Além da grana fácil (a maior parte vinda dos jovens em busca de aventuras), existiam os tais ‘coroas e idosos tarados’ que, por algumas horas de prazer, lhe abarrotavam de presentes os mais diversos, lembrancinhas generosas que ela, não se desfazia, ao contrário, guardava à sete chaves e com esmerado carinho.

Foi numa destas, que um velhusco conhecido no pedaço como ‘seu Perdulário Porreta’, de setenta e lá vai fumaça, os bolsos abarrotados e etc e tal, ao provar da fruta viciosa, se assanhou de vez com os deleites e arroubos da deidade. Os mimos, a cada encontro, se tornavam mais audaciosos até que, num final de semana, ganhou do ilustre senhorzinho, um colar de ouro puro, cujo valor (mandado à verificação depois, numa loja de comercialização de joias), descobriu que, se tivesse que comprar uma igual àquela, precisaria vender o apartamento, o carro, fechar a poupança e, ainda assim, não cobriria o valor da ‘prenda’ que lhe viera em troca de algumas horas em cima de uma cama redonda de um prostíbulo de segunda.

Flávia, a sua melhor amiga e confidente, em face da amizade nascida desde os tempos de Araguari e, como sempre, a primeira a tomar conhecimento das proezas do sessentão, aconselhou, com um sorriso mais escancarado que futricagem de vizinha de língua solta:

— Que legal, Belinha. Como você bem viu, na avaliação que fizemos em duas joalherias conceituadas aqui no Barra Shopping, este adorno vale uma pequena fortuna.

— Sei disso, Flavinha. Quando a vendedora revelou o valor, quase tive um piripaque... faltou pouco...

E completou, colocando o valioso presente em volta do pescoço, enquanto explicava que fim daria ao aparatoso tesouro:

— Por isto, vou colocar esta relíquia naquele lugarzinho do meu corpo (como um talismã da sorte) para me lembrar sempre de como esta coisa maravilhosa veio mudar a minha vida. Posso até parar de fazer programas amanhã, se eu quiser...

Flavinha saltou da cadeira, num gesto impensado e quase teve, de fato, um chilique:

— Tá louca, amiga? Pirou o cabeção?

E se fazendo, inteira, numa espécie de alegria falsificada e repleta de inveja, completou, enfática:

— Se você fizer isto, sua bobinha, só os seus clientes é que poderão ver, tocar e... apreciar...

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

terça-feira, 11 de maio de 2021

Rubem Penz (Revisor de Plantão)

Há uma regra não escrita, mas que parece ter validade mundial ontem, hoje e sempre: quando o leitor esbarra em um erro ortográfico ou de gramática, o livro inteiro desce um degrau no conceito. Milhares de palavras íntegras e orações perfeitas são maculadas por um deslize. Ou, o que é pior: as ideias expostas, a história contada, as teses defendidas sofrem um abalo sísmico. Quando a compreensão é atingida pelo erro, vá lá, estamos diante de muitos graus na Escala Richter. Porém, na maioria acachapante dos casos, a falha passa despercebida por muita gente, e em nada afeta o conteúdo. O que minimiza o fato, mas não destrói a questão de que haverá desmerecimento.

Por isso sempre fui e sempre serei um fã incondicional dos revisores. Eles estão ali para garantir a saúde do texto oferecendo uma segunda opinião. Os brilhantes, e não são muitos, leem palavras, frases e parágrafos permanecendo vigilantes ao sentido. Manuseiam as vírgulas com a delicadeza de um ourives; notam os acentos como um maestro a escutar cada detalhe da orquestra; caçam falhas de digitação como a tricotadeira que não perde um só ponto. São atentos como o analista, seguros de que o discurso poderá trair o desejo do escritor (para o bem ou para o mal). Então, apontando a falha no ato, darão ao autor a rara oportunidade de pensar melhor antes de o livro ser impresso.

Sei que não é fácil receber o original de volta da revisão. É triste ver que poucas páginas escapam virgens – o que exige muita humildade no momento de aceitar ou recusar as modificações sugeridas. A primeira reação é um enorme "não é possível, eu redijo bem, o revisor quer escrever por mim". Depois, aos poucos, domamos a fera e baixamos a crista, reconhecendo que a vaidade sempre foi péssima conselheira. Quando redator publicitário, eu implorava por revisão considerando o próprio autor o menos qualificado para o trabalho. Em uma agência consegui que a coordenadora de produção lesse os textos, e muita dor de cabeça foi evitada. Desconfie dos que odeiam revisores; achar-se infalível é a primeira de muitas falhas. E a maior delas.

Pena que na vida não tenhamos essa figura tão útil a marcar em vermelho nossas palavras e atitudes. Para muitos, revisor de plantão seria luxo. Para outros, porém, necessidade. O problema é que o revisor acabaria mal visto ou mal interpretado justamente por quem mais precisa dele.

- Olha, lá, que linda! Vou chegar nela e dizer "Que tal darmos as mãos para mim dançar contigo"?

" O certo seria "eu dançar contigo".

- Eu dançar com você? Jamais!

- Não, você não entendeu: é "eu" com ela.

- Nada disso! Vi primeiro. Além do mais, sou o autor da cantada. Você, no máximo, revisa.

- Tá bom, tá bom. Vou sugerir outra forma, já que você não alcançou; "que tal dançarmos juntos".

- Ih, olha aí o cara! Só pode estar de brincadeira. Homenagem atroz, só comigo e duas mulheres, compreendeu?

- Ménage à trois. É francês.

- Só podia ser mesmo: coisa de fresco. Levo outro homem para cama e, quando vejo, a vaca torce o rabo.

- É a porca quem torce o rabo. A vaca vai para o brejo.

- Bem isso. Olha lá: outro cara pegou a menina na frente de eu.

- Na minha frente.

- Que seja, então, na frente de nós dois. Ei, espera, aonde você vai ?

- "Mim" precisa de um uísque…

Fonte:
Rubem Penz. Enquanto tempo: crônicas. 
Porto Alegre: BesouroBox, 2013.

A. A. De Assis (88 Poeminhas) – 4, final


67.
Serra-serra,
será dor.
Cessa a serra,
será flor.

68.
Tem começo,
não the end,
o filme da vida.
Que responsabilidade.

69.
Ismo, ismo, ismo...
Experimentem lirismo,
que talvez
dê certo.

70.
Um pingo de luz
no topo do arranha-céu.
Brincando de estrela.

71.
A partilha é a senha.
Alarga o furo da agulha
e o camelo passa.

72.
The simpler, the better.
Sereno e sem risco segue
aquele que segue à risca
esse ditadinho.

73.
Ninguém é grande
sozinho.
Mesmo o Amazonas,
gigante,
de afluentes precisou.

74.
Curvada a vovó
cata a caca do cãozinho.
Civilização.

75.
In excelsis Deo.
Girassóis em oração
namorando o céu.

76.
Fantástico evento:
 o fascinante momento
em que o botão
vira rosa.

77.
Longindo-se vai,
suminte,
o barquinho a vela.
Quem será com quem?

78.
Saudade?
Ela é assim
como se fosse
uma ex-felicidade.

79.
Apressados
passos
passam.
Por que
não passeiam?

80.
Vaga
o vaga-lume.
Vaga luz
num vago mundo
procurando
vaga.

81.
Ostras
e palavras.
Conteúdo:
pérolas.

82.
E agora, vovô?
– Agora,
nas mãos dos netos,
sou que nem ioiô.

83.
Chocados os ovos,
há o choque
dos seres novos.
E a vida prossegue.

84.
Cada tique-taque
leva um tiquinho da gente.
Para o céu, espero.

85.
Terra prometida.
A fé abre ao meio o mar
para o amor passar.

86.
Simplesinho assim:
Eu creio que Deus existe
porque Deus existe.

87.
Levinhas,
levinhas,
voam as garças em V.
Vitória da paz.

88.
Um tempo de luz virá.
Se depender dos poetas,
começa esse tempo é já.

Fontes:
Ebook enviado pelo poeta quando da comemoração de seus 88 anos, 
em 21 de abril de 2021.
Imagem: montagem por José Feldman com fotos obtidas no livro de Assis, "Vida, Verso e Prosa" e enviadas pelo poeta.

Aparecido Raimundo de Souza (Coriscando) 17: Banguela

LOGO QUE Furdelungo Gonozor deu a dentada certeira no pedaço de filé que estava em seu prato, o dente de cima, exatamente o do meio, foi junto, de roldão, com o naco de carne. Furdelungo fechou a boca correndo, segurou a carne para não engolir e se levantou como que impulsionado por um par de molas. Correu ao banheiro, com a mão direita tampando a boca, enquanto com a esquerda, fingia tirar alguma coisa movimentando um palito invisível.

Os amigos não entenderam bem seu pedido de desculpas balbuciado às carreiras, dito à boca torta, mas como estavam todos à deriva e entregues aos vapores do álcool, continuaram com seus copos bebendo tranquilamente como se nada de anormal tivesse acontecido.

Na verdade não aconteceu mesmo. O fato de Furdelungo ter mordido a carne e, na mesma abocanhada deixado ir junto o dente, o problema era dele, só dele. Os amigos de farra não tinham nada a ver com o problema. Desta forma, ao galgar o reservado, se trancou na primeira privada que viu aberta. Em seguida, depois de se certificar de que não havia ninguém estranho por perto, se aproximou do espelho a fim de analisar o tamanho do estrago.

Cuspiu nas mãos a carne mastigada e procurou, no que restara dela: o pedaço do dente. Só então se propôs a encarar diretamente a lâmina de cristal diante de si. Arregalou os olhos. Ficou assustado com a cratera aberta. Parecia maior que o buraco deixado pelo Word Trade Center em Nova York, depois dos operários terem retirado a última viga de concreto que pertencera às saudosas Torres Gêmeas.

O que fazer? Não poderia retornar à mesa daquele jeito. Jamais! Nem encarar os colegas. A não ser que ficasse de boca fechada, mudo, feito uma porta mal humorada o resto do dia. Não daria certo. Lembrou-se de um tubo de Super Bonder que pegara a mania de carregar na bolsa junto com os documentos pessoais, depois que levara um coice de um cavalo num acampamento onde fora passar um final de semana com alguns colegas e seus óculos, nessa ocasião, devido ao incidente com o quadrúpede, foram parar longe, quebrados e amassados, com as lentes cada uma para um canto, mais sobressaltadas que a própria armação.

O negócio, agora, era ir até o carro, discretamente pegar a bolsa no bagageiro e tentar colar o pedaço no lugar de onde se soltara. Antes de deixar o WC, lavou bem lavado o valioso caquinho, assoprou e enxugou cuidadosamente em seu lenço, e então seguiu até seu automóvel. Passou a mão na bolsa e retornou ao lavatório.

Gastou quase uma eternidade para fazer a operação “tapa buraco” improvisando uma espécie de restauração paliativa que, pelo menos, aguentasse até o dia seguinte, segunda-feira e não o fizesse passar uma vergonha maior diante da galera. Se os amigos dessem com ele, daquele jeito e, pior, naquele estado desesperador, sem o dente da frente, certamente iriam cair na gargalhada e a gozação seria inevitavelmente fulminante. Dentinho colado e reposto novamente no lugar de origem, voltou a se olhar no vidro metalizado.

Sorriu largamente. O trabalho ficara perfeito. Ninguém notaria a diferença. Precisaria agora, ter só um pouco de atenção, mastigar devagar e pausadamente os alimentos e não abusar muito da sorte. Qualquer descuido seria fatal, inclusive se não tomasse o mínimo de cuidado, poderia vir a engolir o pedaço de dente e aí sim, até que um profissional moldasse outro, obviamente ficaria uns dias em seu quarto trancafiado e longe de todos. Tudo pronto, tudo em cima, tudo legal, como mandava o figurino. Guardou a cola salvadora e se dispôs a sair.

O diabo quando não vem, manda o secretário. Dito e feito. No que chega à porta vai e vem, eis que, sem esperar, surge a rapaziada em sentido contrário (os amigos que ele deixara na mesa) que, embora tivessem bebido um pouco além da conta, acabaram sentindo a ausência um tanto prolongada de Furdelungo Gonozor. O que encabeçava a frente do grupo, estabanadamente, empurrou com toda a força as duas bandas da portinhola, e o fez com vontade e sem nenhum tipo de aviso. Também, avisar a quem?  

Desta sorte, o troço, ao ser aberto, foi de encontro à boca de Furdelungo, que sem esperar, recebeu literalmente uma pancada igual, ou pior que o coice do quadrúpede do acampamento. Pego de surpresa pela segunda vez, escorregou e voou diretamente para o chão caindo de boca no piso ladrilhado.  

Um pequeno filete de sangue pôs-se a escorrer intermitentemente. Os amigos se dignaram indignadamente a socorrê-lo, apavorados, gritando, espavoridos, alarmados, boquiabertos e, de certa forma, apatetados diante daquela cena inesperada. Sem saber exatamente o que acontecia, um dos rapazes pisou nos óculos de Furdelungo. Um segundo que se posicionara logo atrás, calcou (sem querer, claro), a sola de seu tênis em cima de uma chusma de sangue, exatamente onde caíra o caquinho de dente recém-colado.

— Furdelungo, meu brother... você está bem? Foi mal! Acabei de quebrar seus óculos.

“Minha Santa Luzia Protetora dos olhos, e agora???...” — resmungou intimamente Furdelungo Gonozor. Queria sumir, escafeder, virar purpurina. Ser abduzido, morrer, se pudesse optar por uma escolha. Acabara de perder seu precioso pedacinho de dente. Os óculos, os óculos que se danem pra lá.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

segunda-feira, 10 de maio de 2021

Adega de Versos 20: Olivaldo Júnior (SP)

 

Leandro Bertoldo Silva (Maternidade)

Maternidade era uma das palavras esquecidas no seu dicionário. Era fácil demais para algumas pessoas pensarem nisso, não para ela, de corpo perfeito e vida em liberdade. Por isso, seu ventre crescido estava na contramão de todos e recordava sua rejeição. Daquele invólucro perfeito, ficariam cicatrizes, marcas que sobreporiam ao efemeramente físico e atingiriam sonhos interrompidos.

Dejanira era mulher do mundo. Esse era o resguardo que nunca pensou em abandonar, nem sequer substituí-lo por um momento que fosse. Sentia-se sem vida, apesar da vida que crescia dentro de si. E, agora, mesmo sendo duas, teimava em sua solidão. O tempo passava, mas não levava a angústia que aumentava a cada dia que a circunscrição de seu estado apontava. Já dividia seu alimento, mesmo sem sua permissão, como seria dividir o resto? Era o que pensava desolada e inquieta. Só havia um jeito: acabar logo com aquilo. Porém, o feto crescido já era uma criança e, antes mesmo de pensar em qualquer outra coisa, de seu corpo redondo começou a emergir um líquido que, ao rebentar da bolsa, jorrou junto com uma sensação indefinível que a urgência do momento não permitiu reflexões. Elas só vieram quando, já com a criança liberta deitada em seu peito em meio aos médicos, começou a cantarolar uma cantiga de ninar no mesmo momento em que seus seios saciavam o filho que calava a ouvir.

Seus olhos recém-maternos se iluminaram, e o coração, que antes rejeitava, agora acalentava e se punha a descobrir uma desconhecida impressão felina e protetora.

A mulher do mundo sem fronteiras não sabia se o choro convulso que irrompia naquele instante era amor ou remorso, talvez fossem os dois. Aquele momento eternizado na música que embalava sua criança fazia pensar: afinal, é a mãe quem dá à luz um filho ou é o filho que faz nascer a mãe?

Fonte:
Texto enviado pelo autor, do livro de
Leandro Bertoldo Silva. "Entrelinhas contos mínimos".

Silmar Böhrer (Caderno de Versos) – 3

A CONDOREIRA

É manhãzinha e a pequena
já está em louvação,
a corruíra em bom tom
numa cantiga açucena.

Acordo junto com a corruíra
nesta manhã sabatina,
e como canta essa menina
ali no pé de guajuvira.

A condoreira sempre feliz
cantando como quem diz,
voltei forte ao tabuleiro

Ali na cumeeira do rancho,
apenas eu - nada de ancho,
é quem manda no terreiro.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

CANETA NOVA

Eis que surge um versinho
para inaugurar nova caneta,
verso pobrete do esteta
recebido com carinho.

O verso pobrete do esteta
tem sido o meu diapasão,
os dias vêm, os dias vão,
vou tentando cobrir a meta.

Os dias vão, os dias vêm,
no versejar itinerante
estou vivendo como ninguém,

Caneta nova entre os dedos
é realmente contagiante,
tecemos versos sem arremedos.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

MANHÃ DOMINICAL
             
Nos páramos infinitos do nascente
emerge a primeira alva do arrebol,
trazendo em si a panda luz do sol
que evolve no belo céu do Oriente.

Para dar um toque bucólico ao dia
surge o doce responso de cantigas
em acorde com as sinfonias amigas
dos pássaros a trissar na ramaria.

Emana um contaminado olor agreste
das ervas enquanto a aura celeste
esparge do orvalho o último pingo.

A natureza em modelar consonância
impregna nos ares leve fragrância
nesta evangélica manhã de domingo.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

OH SORTE !

As rimas andam ausentes
nestas primícias de agosto,
estarão - será - descontentes
ou mesmo com algum desgosto ?

Não consigo os mais saborosos
dos meus versos companheiros,
por isso andam desgostosos
aqueles versinhos brejeiros.

Um versejador de paus-quebrados
não pode querer assim tantos
mais do que uns mal rimados,

Mas oh sorte, a Poesia tem benevolência
me borrifando com seus encantos
algum bálsamo pura essência.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

PORFIA

Desafiei-me um certo dia
a rabiscar alguns sonetos,
dois quartetos, dois tercetos,
lançando-me então à porfia.

E o versejador giramundo
pensando ter destreza
ergueu com toda a rudeza
o soneto mais vagabundo.

É que, amigo das musas,
eu vivo fazendo alaúzas*
pensando saber rimar...

São tantas chances preciosas
delas, as minhas formosas,
e não aprendo a sonetar.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

TARDINHAS

Andam ventos ventantes
a ventar nesta noitinha,
até os versos, coisa minha,
são versos ventarolantes.

Os tico-ticos ali no fio
parecem todos gordinhos,
são mesmo emplumadinhos
na boca-noitinha com frio.

Viajam chumaços ao léu
perambulando de déu em déu
as nuvenzinhas passageiras,

E vou em liturgia gostosa
versejando sem rebordosa
nestas tardinhas fagueiras.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
* Alaúzas – algazarras, balbúrdias, celeumas.

Marcelo Spalding (Um exímio pianista)

Quando certa manhã Wesley acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado em um exímio pianista.

Não se deu conta de imediato, afinal nunca gostara muito de música, sequer violão, nos tempos de adolescente, conseguira aprender. Mas foi só sentar-se à mesa com a fatia de pão em frente que sentiu seus dedos se movimentarem e logo percebeu estar dedilhando na toalha. Deve ter permanecido ali por alguns instantes, pois quando se deu conta a mulher gritava: presta atenção, traste, tô atrasada e hoje é teu dia de levar as crianças!

Wesley ergueu as mãos, olhou seus dedos, depois virou-se para a esposa e assentiu com a cabeça. Ela, antes de sair, ainda perguntou alguma coisa sobre o irmão de Wesley, se ele já tinha aparecido, mas agora um assobio melódico saía dos lábios do homem, que irritou-se menos com a porta batendo do que com o grito estridente e desafinado da mulher.

Caminhou até a escola das crianças assobiando, e elas se divertiram, ainda que não conhecessem as músicas ou as melodias. Bom não terem perguntado: nem Wesley saberia responder. Seguiu da escola para a parada de ônibus, e agora eram ambas as mãos se movendo pelo espaço, como a seguir um maestro invisível e nervoso.

No caminho para o trabalho, deparou-se com uma loja de instrumentos musicais. Ficou pensando se ela sempre estivera ali e ele nunca notara, mas o fato é que dessa vez as teclas brancas e pretas o atraíram de forma irresistível, e quando se deu conta estava sofregamente executando uma bela e difícil sinfonia, ouvindo os acordes de olhos fechados, suor na testa. A mão esquerda alternava com energia as notas, enquanto a direita dedilhava com elegância. Sequer notou que o teclado estava desligado da tomada, ali exposto por alguns dinheiros. E só voltou a si quando um enorme segurança lhe deu um safanão, e depois, com a ajuda de um vendedor, o tirou carregado da loja. Ouviu alguma ameaça sobre chamar a polícia, pensou até ter ouvido alguém chamá-lo de macaco. Mas preferiu virar as costas para aquelas teclas brancas e pretas, em êxtase pela brilhante apresentação feita só para si, em si.

Já no trabalho, sua desconcentração era evidente. Ao invés de ficar parado com braços cruzados e cara de mau, sorria para quem entrasse no prédio, virava-se a qualquer assobio e por vezes não conseguia evitar seus próprios assobios e o movimento dos dedos. Não demorou para o supervisor o fazer de posto, e ele foi para a frente do monitor. Depois de alguns minutos olhando aquela tela dividida em 12 pequenas imagens, Wesley esfregou os olhos, esfregou mais uma vez: via teclas no lugar do movimento ritmado dos que entravam e saíam, não distinguiu a senhora entrando com um cachorro, o rapaz com um skate. O tal supervisor chamou Wesley para conversar: são as normas, são as normas, você não tá bem, vai pra casa descansar hoje, mas se amanhã fizer isso de novo vai ser difícil segurar os caras, é capaz de te botarem na rua que nem fizeram com o Zé.

No caminho de volta, aproveitou o ônibus quase vazio para escolher um toque melhor para seu celular. Nunca se incomodara com os estridentes toques padrões, mas agora analisava com calma cada uma das opções e, sem saber, optou por uma versão eletrônica da As quatro estações.

O caminho até a casa fez pensando em quanto custaria um daqueles pianos com tomada. Não chegou a reparar no preço, mas sabia não ser esse tipo de coisa para homens como ele. Talvez para o irmão, que tinha ar-condicionado e computador. Mas não para ele.

Chegou em casa ainda antes das crianças e da mulher, foi até a cozinha, abriu gavetas, escolheu garfos, colheres, facas, alinhou-os sobre a mesa e experimentou o dedilhar no cabo dos talheres. Gostou da sensação dos dedos encontrando as teclas, mas achou o som abafado e estava tirando a toalha da mesa quando ouviu batidas fortes na porta. Ficou com medo de que sua música estivesse repercutindo fora da casa, atrapalhando a sesta de algum vizinho nervoso. Mas a voz era inconfundível: porra, mano, eu vi que tu tá sozinho aí, abre a porta pelamordedeus.

Wesley suspirou, olhou para os talheres alinhados na mesa sem toalha e foi abrir a porta. Dessa vez iria reclamar do irmão, sempre aprontando das suas. Mas não teve tempo: mal girou a maçaneta e ouviu um ranger de pneus arrastado, cinco estouros secos e ritmados e um grito agudo da voz inconfundível. Num impulso, Wesley escancarou a porta e abraçou o corpo do irmão, observando o carro preto se afastar roncando o motor. Mas depois viu o mesmo carro preto parar, dois homens olharem para trás e o carro dar ré até parar diante de si, sem dó.

Eu juro não falar nada, não vi nada, eu juro, Wesley dizia e as mãos nervosas, erguidas sobre a cabeça, dedilhavam.

Olhos fechados, não viu quando o homem ergueu a pistola e, jurando voltar se alguém fosse atrás deles, deu um tiro em cada mão de Wesley, acertando em cheio a palma da enérgica mão esquerda e os elegantes dedos da mão direita.

Estante de Livros (A Bela e a Fera)

“A Bela e a Fera” é um romance adulto originalmente escrito pela francesa Gabrielle-Suzanne Barbot, em 1740.

Em 1956, uma versão mais simplificada foi escrita por Jeanne-Marie LePrince de Beaumont, em que ela encurtou transformando em conto e direcionado para crianças.

Devido ao sucesso dessa versão, o conto resultou na produção do musical “a Bela e a Fera” para o cinema.

"A Bela e a Fera", na versão original, contêm elementos que foram omitidos por Beaumont. O que ela fez foi retirar detalhes que eram considerados insignificantes para a estória e diminuiu o número de personagens.

Na versão escrita por Gabrielle-Suzanne Barbot, a Fera era um príncipe que perdeu o pai logo cedo, e sua mãe o largou para ir lutar em uma guerra.

O príncipe ficou aos cuidados de uma fada malvada que enquanto ele crescia tentou seduzi-lo, mas por ter sido recusada o transformou em uma fera.

Enquanto Bela, não era a filha de um mercador, mas a descendente de um rei. A mesma fada tentou matá-la para se casar com esse rei. Para se proteger, Bela assumiu a posição da filha de um mercador.

RESUMO DA VERSÃO ADAPTADA PARA O TEATRO E CINEMA

Era uma vez um jovem príncipe que vivia em seu luxuoso e lindo castelo. Contudo, era egoísta e por isso não tinha amigos.

Em uma noite muito chuvosa, recebeu a visita de uma velhinha que pediu abrigo durante a tempestade. Mal-humorado, recusou ajudá-la.

Mas ele não sabia que aquela velhinha era, na verdade, uma feiticeira disfarçada e que já sabia do egoísmo daquele príncipe.

Sendo justa, lançou um feitiço transformando-o em uma fera monstruosa. O encanto apenas poderia ser desfeito no dia em que ele recebesse um beijo de amor verdadeiro.

Enquanto isso, em uma vila distante dali, vivia um comerciante com suas três lindas filhas. Contudo, a mais caçula, era a que mais se destacava não somente pela sua beleza, mas pela bondade e humildade.

Diante tamanho beleza, era chamada de Bela. Ela gostava muito de ler e contava histórias para as crianças da vila.

Em uma das diversas viagens que seu pai fazia para vender os seus produtos, perguntou para as filhas o que elas queriam de presente. As mais velhas pediram coisas luxuosas, enquanto Bela apenas uma rosa.

Durante viagem, o pai da Bela enfrentou uma tempestade e encontrou um castelo que parecia abandonando e se abrigou durante o temporal.

No dia seguinte, quando estava de partida, avistou uma árvore com muitas rosas e resolveu pegar uma para a sua filha Bela. Mas ele não sabia que o palácio era a morada do príncipe que fora transformado em fera.

Enfurecido, a Fera o prende como seu prisioneiro, mas ele pede para se despedir de suas filhas, e a Fera deixa. Ao retorno para despedida, Bela insiste em voltar ao castelo com seu pai.

No castelo, devido as condições de saúde do pai, ela propôs a Fera que o deixasse ir e que ficaria no lugar dele como prisioneira. O príncipe enfeitiçado acata o pedido, enquanto o comerciante vai embora, mas promete voltar para resgatar a filha.

A Bela se tornou prisioneira da Fera, mas não era mantida dentro de uma sela. Ela podia circular pelo grande palácio, foi acomodada em um dos melhores quartos e tinha acesso à biblioteca, local que amava, pois adorava ler.

Após o pedido de casamento feito pela Fera, ela recusa e oferece bondosamente a sua amizade, e ele aceita.

Com o passar do tempo, a Bela e a Fera foram se tornando amigos, enquanto ele se encantava com sua beleza, inteligência, gentileza e bondade, ela percebia que a Fera, apesar da feiura, era uma criatura bondosa e a tratava muito bem.

Apesar dos dias agradáveis que  Bela passava no castelo, sentia saudade de seu pai. Então, ela pede a Fera permissão para visitar o comerciante e ele concede o pedido.

A viagem de Bela durou dias, pois seu pai tinha adoecido. Mas ao retornar ao castelo encontra também a Fera doente, pois ele achou que a tinha perdido para sempre.

Nesse momento, Bela percebe o quanto é amada e que também sentia algo muito forte pela Fera. Amizade, amor, compaixão.

E chorando, pede que a Fera não morra e se case com ela. Então, ela o beija e o feitiço é desfeito. A Fera volta a ser o belo príncipe, eles se casam e vivem felizes para sempre.

MORAL DA ESTÓRIA

O resumo feito acima é uma das versões contada sobre “a Bela e a Fera”. Ou seja, há vários detalhes e situações que são diferentes de uma versão para a outra, mas todas são focadas em uma única base: o amor verdadeiro.

O enredo é sobre a verdadeira beleza que se encontra no coração. O amor não escolhe aparência, pois, apesar da aparência monstruosa, a Fera foi amado por Bela.

Na mitologia grega havia uma rainha e um rei que tinham três filhas, a mais caçula era a mais bela e perfeita, chamada de Psiqué.

Ela era tão bela que chamou atenção e inveja da Deusa Afrodite, deusa do amor e da beleza. Enfurecida, Afrodite quis se vingar fazendo Psiqué se casar com um monstro e prendendo-a em um castelo no alto das montanhas.

O monstro com quem Afrodite a fez casar era tão horrível que somente aparecia à noite para o rosto não ser visto. Ao passar dos dias, Psiqué percebe que o marido era gentil e tinha um bom coração, e resolve dar uma espiadinha enquanto estava dormindo.

Ao se aproximar do rosto do monstro com uma vela, descobre que não se casou com um monstro, e sim com um cupido, o próprio deus do amor, Deus Eros.

Essa estória de Eros e Psiqué deu origem aos mais diversos contos e lendas em que envolvia uma pessoa e um monstro. Assim, dessa tradição surgiu “A Bela e a Fera”.

O conto de amor entre Eros e Psiqué entrou para posteridade após um romano chamado Lúcio Apuleio incluir a estória dentro do romance “O Asno de Ouro”.

Por conta desse registro o romance de Eros e da Psiqué foi imortalizado em todo tipo de obra de arte, de todas as épocas, do renascimento até a atualidade.

ADAPTAÇÕES

“A Bela e a Fera” foi encenado, filmado e adaptado diversas vezes, sendo que cada uma com versões diferentes.

A mais famosa é a produção da Walt Disney, que produziu o musical de animação em 1991. Desde então, o conto “a Bela e a Fera” ficou conhecida, tornando-se umas das estórias de amor mais bonita das animações.

A mais recente das versões foi o filme live-action da Disney, estreado em 2017. Com a Bela sendo interpretada pela famosa atriz Emma Watson, mundialmente conhecida pelo personagem de Hermione Granger da saga Harry Potter.

 VERSÃO ESCRITA X VERSÃO CINEMATOGRÁFICA

Na versão clássica dos livros não há o personagem do “Gaston”, um belo príncipe que busca o amor de Bela, mas não consegue. Ele representa a beleza exterior que esconde uma monstruosidade de alma.

Na versão cinematográfica existem personagens que são transformados em mobílias falantes e apenas uma fada. Já na versão escrita existiam duas fadas e não tinham as mobílias.

Fonte:
A Bela e a Fera. Disponível em Guia Estudo. Acesso em 10 de maio de 2021.

domingo, 9 de maio de 2021

Varal de Trovas 499

 

Emílio de Meneses (O Poliglota)

Estava Emílio de Menezes numa roda na Paschoal, quando chegou um amigo e lhe apresentou um rapaz que vinha em sua companhia:

— Apresento-te Fulano: é nosso patrício e tem corrido o mundo inteiro. Fala corretamente o inglês, o espanhol, o italiano, o alemão e o francês.

O rapaz sorria modesto ante os elogios, e a palestra prosseguiu.

Ao fim de uma hora, durante a qual apenas proferira alguns monossílabos, o viajante despediu-se e se foi embora.

— Que tal o camarada? — perguntou a Emílio um do grupo.

— Inteligentíssimo e, sobretudo, muito criterioso, opinou o rei dos boêmios.

— Mas ele não disse um níquel.

— Pois é por isso mesmo, — tornou Emílio.

E rindo:

— Você não acha que é ter talento saber ficar calado mais de uma hora em seis línguas?

Fonte:
Emílio de Meneses. O último boêmio (seleção e organização Iba Mendes). 
São Paulo: Projeto Livro Livre, 2019.

Therezinha Dieguez Brisolla (Trovas com Humor)

Ao pai dela, o cafajeste
Explica: – "Foi num pagode"...
O velho é um "cabra da peste"
e a moça lhe diz: – "Deu bode"!
= = = = = = = = = = =

Ao ver que estava em perigo,
fechou, a Jane, a matraca...
É que o Tarzã, sempre amigo,
hoje "tava com a macaca"!
= = = = = = = = = = =

A peruca e a dentadura
ele tira e perde o viço...
Ela pergunta e ele jura
que o resto... não é postiço!
= = = = = = = = = = =

A porquinha se casou
e chora o tempo inteirinho!...
Bem que a mãe dela avisou;
– Não case com porco-espinho.
= = = = = = = = = = =

Cai da escada (algo o sustenta)
– Francisco de Assis... tô frito!...
O santo o solta e lamenta:
– Perdão... sou São Benedito.
= = = = = = = = = = =

Cai no trilho e a triste sina
maldiz tanto o beberrão:
– Essa escada não termina
e é tão baixo o corrimão!
= = = = = = = = = = =

Deita e fala em natação!
A esposa, recém-casada,
num sufoco espera em vão...
E o marido... nada... nada...
= = = = = = = = = = =

Desdentado, velho e fraco,
toda noite "deita e rola",
mas não acerta o buraco...
Triste fim... de um tatu-bola!
= = = = = = = = = = =

"Deu bode" a vaidade dela...
A plástica a esticou tanto
que agora só faz novela,
que exige... cara de espanto!!!
= = = = = = = = = = =

Diz sem olhar pro cliente:
–  Você tá sendo traído...
Só que a cigana "vidente",
leu a mão... do seu marido!
= = = = = = = = = = =

Eu não mandei a criada
tirar a roupa na rua.
Ela contava a piada
e eu só disse: - Conti... nua!
= = = = = = = = = = =

"Eu quero uma bênção" diz
o andarilho, no convento.
Com a mão tampando o nariz,
o monge lhe diz: – Sê bento!
= = = = = = = = = = =

Foi, de corrida, ao local
pensando em bumbuns... artistas...
"Noite do Fio Dental"
era um curso... pra dentistas!
= = = = = = = = = = =

Gera corrida e surpresa
notícia mal pontuada:
"A mulata Globeleza
visita a Serra... Pelada".
= = = = = = = = = = =

Gritei "Pare, seu Joaquim"
quando o trem apareceu.
Ele ainda olhou pra mim,
falou "ímpare"... e morreu!
= = = = = = = = = = =

Já velho, o Sansão estrila:
– Minha mulher tá caduca...
Mal cochilei e a Dalila
tosou a minha peruca!
= = = = = = = = = = =

"Meu anjo corre comigo"...
Na curva ele foi direto
sem ler a placa "Perigo".
Seu anjo?... era analfabeto!
= = = = = = = = = = =

Na "guerra" pela conquista
de um bom salário, valentes,
a manicure e o dentista
lutam "com unhas e dentes".
= = = = = = = = = = =

Não sobrou uma peninha!!!
E o galo, machão, despista:
– Saio pelado da rinha
quando é verão... Sou nudista.
= = = = = = = = = = =

Pensei no jogo "e deu galho"
quando ela gritou: – Tarado!
Só disse, ao ver o baralho:
– Mocinha, você tem dado?
= = = = = = = = = = =

Pergunta o "maitre", polido:
(no prato, a vespa... tostada!!!)
– E qual foi o seu pedido?
– O prato da vez passada.
= = = = = = = = = = =

- "Qualquer santo... eu tenho fé"!
grita ao cair de uma grade,
– "Eu te ouvi, mas sou Tomé...
Só vim ver se era verdade"!
= = = = = = = = = = =
Quando a vida se distrai
ou dá tudo ou tudo nega:
– Rico... pega o carro e sai
~ Pobre sai... e o carro pega!
= = = = = = = = = = =

Querendo ver o acidente
ele abriu caminho a murro...
Foi dizendo: – Sou parente...
Mas, quem morreu... foi um burro!
= = = = = = = = = = =

"Quero algo que me deleite"!
diz, ao leiteiro... e o panaca:
– Vista a roupa... não se deite...
que eu vou buscar minha vaca.
= = = = = = = = = = =

Um remédio envenenado
e a Julieta morreu.
O Romeu foi condenado
porque ela disse: - Erro... meu!
= = = = = = = = = = =

Vamos, ao circo, sozinhos
e, por favor, fiquem calmas...
E as mães dos dois mosquitinhos:
– É que o povo... bate palmas!
= = = = = = = = = = =

Vendo a fera, fica um "gelo"...
retira a cruz do pescoço...
Mas, o leão ante o apelo:
- Só rezo depois do almoço,
= = = = = = = = = = =

– Venha, tigresa, pra cama...
(o velho rico resvala)
e a garota de programa:
– Mais um tigre... de Bengala.

Fonte:
Therezinha Dieguez Brisolla. À procura de estrelas. 
Porto Alegre/RS: Odisséia, 2014.

Leon Eliachar (O segredo)

Jorge chegou da rua irritado, descarregou em cima da mulher:

— Não aguento mais as despesas. O ônibus subiu, o cigarro aumentou, os impostos se multiplicam, o cafezinho não para, só o meu lucro não cresce.

A mulher simplificou tudo:

— Por que você não faz greve?

Ele quis rir, mas a vontade era pouca, acabou gritando:

— Se eu fizer greve, Ester, morremos os dois de fome. Não vê que a minha profissão é liberal? Se eu não trabalhar, não ganho nada. Ainda não inventaram o sindicato particular pra defender os direitos individuais. Além do mais, greve particular não pega, se a gente não trabalha, perde a clientela.

Ester virou o rosto, começou a abrir os embrulhos de compras:

— Olha, você se queixa, mas as costureiras estão cobrando os olhos da cara. Esse vestidinho aqui, simples, simples, só de feitio foi quinhentas pratas, fora a fazenda. E esta sandália italiana, feita no Brasil, foi seiscentos e cinquenta, a italiana mesmo custa mil e quinhentos, pra fazer economia comprei duas nacionais. E esta bolsa, olha aí, sem nada, nenhum enfeite, novecentos e um, tive de implorar pro homem deixar por novecentos, você me conhece, passo qualquer vexame pra fazer poupar o seu dinheirinho. E esta calcinha de lycra...

— Chega! Não quero ver nem ouvir mais nada. Me arrebento feito um cão pra fazer frente à inflação e você me aparece com esse luxo todo. Cadê a mesada que lhe dei?

Ester abriu a bolsa e contou as notas:

— Está aqui. Ainda tem duzentos e vinte cruzeiros e oitenta centavos. E ainda estamos no dia 15.

Jorge se queimou:

— E onde é que você vai arranjar o resto? Ela fez ar de superioridade:

— Pode deixar que me ajeito. Nunca lhe pedi mais do que você me dá, pedi?

Jorge não se conteve:

— Então me explica esse milagre que o papai aqui também quer fazer, tá, meu bem?

Ester deu uma gargalhada, foi pro quarto com os embrulhos, meteu tudo dentro do armário. Jorge ficou andando de um lado para o outro, impaciente. Chamou várias vezes, a mulher não respondeu. Duas horas depois, ela apareceu, elegantemente vestida, cercada de perfume por todos os lados. Jorge impediu sua passagem:

— Aonde é que você vai assim toda bacana? Ela ajeitou o broche de ouro, piscou os olhos com os cílios postiços, falou com voz pausada:

— Vou buscar o resto da mesada, meu caro. Você não queria saber o milagre? Pois fique sabendo que o santo de casa também faz milagre. Entra aí no quarto, tem um vestido que é o seu tamanho exato, por que não tenta?

Ester bateu a porta e deixou Jorge trancado no seu silêncio e na sua humilhação. Pegou uma garrafa de uísque e durante muito tempo passou bebendo, diante do vestido vazio. Duas horas depois, abriu a porta do apartamento com dificuldade. Quando ia entrar no elevador tropeçou e caiu em cima da vizinha que chegava:

— Que é isso, Dr. Jorge? Com salto sete e meio o senhor precisa andar com mais cuidado. Além disso, anágua não se usa mais e a sua está aparecendo.

Morto de vergonha, Jorge voltou pra casa e foi se olhar no espelho. Tinha esquecido de raspar o bigode.

Fonte:
Leon Eliachar. A mulher em flagrante. (desenhos e paginação de Fortuna). Publicado em 1965.

sábado, 8 de maio de 2021

Olavo Bilac (Os óculos)

O velho e austero doutor Ximenes, um dos mais sábios professores da Faculdade, tem uma espinhosa missão a cumprir junto da pálida e formosa Clarice...

Vai examiná-la: vai dizer qual a razão da sua fraqueza, qual a origem daquele depauperamento, daquela triste agonia de flor que murcha e se estiola.

A bela Clarice!... É casada há seis meses com o gordo João Paineiras, o conhecido corretor de fundos, — o João dos óculos —, como o chamam na Praça por causa daqueles grossos e pesados óculos de ouro que nunca deixam o seu forte nariz de ventas cabeludas. Há seis meses ela mingua, e emagrece, e tem na face a cor da cera das promessas de igreja — a bela Clarice. E — ó espanto! — quanto mais fraca vai ficando ela, mais forte vai ficando ele, o João dos óculos, — um latagão que vende saúde aos quilos. Assusta-se a família da moça. Ele, com seu imenso sorriso vai dizendo que não sabe... que não compreende... porque, enfim, — que diabo! — se a culpa fosse sua, ele também estaria na espinha...

E é o velho e austero Dr. Ximenes, um dos mais sábios professores da Faculdade, um poço de ciência e discrição, quem vai esclarecer o mistério. Na sala, a família ansiosa espia com rancor a gorda face do João impassível. E na alcova, demorado e minucioso exame continua.

Já o velho doutor, com a cabeça encanecida sobre a pele nua do peito da enferma, auscultou longamente os seus pulmões delicados: já, levemente apertando entre os dedos aquele punho macio e branco, tateou o pulso, tênue como um fio de seda... Agora, com o olhar arguto, percorre a pele da bela Clarice — branca e cheirosa pele — o colo, a cinta, o resto... De repente — que é aquilo que o velho e austero doutor percebe na pele, abaixo... abaixo... abaixo do ventre?... Leves escoriações, quase imperceptíveis arranhaduras avultam aqui e ali vagamente... nas coxas...

O velho e austero doutor Ximenes funga uma pitada, coça a calva, olha fixamente os olhos da sua doente, toda alvoroçada de pudor:

— Isto que é, filha? Pulgas? Unhas de gato?

E a bela Clarice, toda de confusão, enrolando-se no penteador de musselina como n’uma nuvem, balbucia, corando:

— Não! Não é nada... não sei... isto é... talvez seja dos óculos do João…

Fonte:
Bob (Olavo Bilac). Contos para velhos. Belém/PA: UNAMA.

Lairton Trovão de Andrade (Enxurrada de Poemas) – 2

MEU NINHO

"Meu bem é para mim
um ramalhete de mirra,
que repousa entre meus
seios."(Ct, 1.13)


Inocente e puro
Como um serafim*,
Encontrei amor
Em gentil menina;
Bem feliz eu posso
Te dizer, enfim:
"Como é bom te amar,
Minha estrela alpina*!"

E chegou a noite
Pra cobrir a terra,
Com seu manto negro
Sem nenhum luar;
Um segredo afável
A minh'alma encerra:
"Tem razão a vida,
Se eu puder te amar!"

Meu olhar se encanta
Com real candura,
Eu te vejo em graça,
Qual do lírio o odor;
Com beleza tanta
E com tal doçura,
Eu queria, apenas,
Ser teu beija-flor.

Ser teu beija-flor
- Servo pequenino -
Pra, com jeito, dar
Afeições às pétalas...
E da flor mais bela
Ganharia um mimo...
E teria o gosto
De sugar teu néctar*.

A minh'alma, agora,
Já prevê descanso
No jardim sereno
Do oriental Sinear*...
Foi tu'alma amiga
Meu maior remanso*,
Onde eu fiz meu ninho
Para eu morar...

De emoção sobeja*,
Soluçar no peito,
Qual saudoso canto
De gentil jaó*...
Este ninho meu
É o sonhado leito...
Estarei feliz
Eu contigo só...
___________________________________

ÚLTIMO OLHAR
"Tu me fazes delirar com um só
dos teus olhares."(Ct, 4.9)


Ó flor mimosa de pele clara,
De andar gracioso e espírito ardente,
Vejo-te sempre ao cair da tarde,
Na mesma hora do sol poente.

Caminhas, meiga, pela calçada,
Levando afeto no coração;
Queria ser companheiro amigo
Pra dissipar tua solidão.

Carregas tanto, tanto pudor,
Que a elegância te é um presente;
Ninguém percebe que estás passando,
Mas eu, parado, te vejo sempre.

Muito tranquila, só na aparência,
Pela calçada vais caminhando;
Leva o destino ao lado oposto
A doce musa que está amando.

Quando aproximas daquela esquina,
Com ansiedade queres voltar;
Contendo o impulso, ao dobrar a rua,
Volves pra dar o último olhar.

Jamais me esqueço daqueles olhos,
Que bem me olharam em fugaz momento;
Ali, parado, fico sonhando,
Sem perceber que foste com o vento.

E vais descendo ladeira abaixo,
No rumo triste da solidão...
Tanto queria conter-te a lágrima
Pra não molhardes teu lenço em vão.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
Vocabulário do poeta:
Estrela Alpina: Nome de uma flor da cadeia de montanhas dos Alpes,
situada na Europa.
Jaó: Pássaro de canto nosstálgico.
Néctar: Suco adocicado de algumas plantas. Bebida dos deuses.
Fig.: Delícia, encanto, refrigério.
Remanso: Descanso, quietude, sossego, tranquilidade.
Serafim: Anjo da primeira hierarquia celeste.
Sinear: Região da antiga Caldeia (Oriente Médio).
Sobejo: Demasiado, excessivo, em demasia.

= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
Fonte:
Lairton Trovão de Andrade. Madrigais: poesias românticas. 
Londrina/PR: Ed. Altha Print, 2005.
Livro enviado pelo autor.

João do Rio (Uma mulher excepcional)

– Está a brincar!

– Sério. É irrevogável. Preciso um pouco de ar, um pouco de descanso, de repouso, de sossego. A vida desta cidade ataca-me muito os nervos…

Era no salão de Irene de Souza, o salão em que a esplêndida atriz fundira o confortável inglês com o luxo do antigo, espalhando entre os divãs fartos da casa Mapple, bergeres mais ou menos autênticas do século XVIII, contadores do tempo de Carlos V, e por cima das mesas, por cima dos móveis, nos porta-bugigangas de luxo, marfins orientais, esmaltes árabes, estatuetas raras, fotografias com dedicatórias notáveis. Irene de pé, diante da secretária, sorria, estendendo-me as duas mãos finas, nervosas, enquanto os seus dois grandes olhos ardiam mais loucos e mais passionais.

Irene de Souza! Que legenda e que beleza! Os seus inimigos asseguravam-na apanhada como criada de servir perto de um quartel para os lados de S. Cristóvão; outros diziam-na filha de uma família muito distinta do Sul. Ao certo porém ninguém sabia senão aquela aparição brusca no teatro, bela como a Vênus de Médicis, a arrastar nos decadentes tablados cariocas vestidos de muitos bilhetes de mil, criados pelo Paquin e pelo Ruff. Não era uma pequena qualquer. Era a bela Irene de Souza que queria ser a boa, a humilde, a simpática, a talentosa Irene. A critica fora jantar a sua "vila" de Copacabana, onde Irene, ao nascer do sol, num regime essencialmente esportivo, fazia duas horas de bicicleta e sessenta minutos de natação. E a critica suportara o seu companheiro Agostinho Azambuja, empreiteiro, rico, casado; a crítica elogiara Irene, e de chofre todas as atrizes, todos os cabotinos sentiram-se diminuídos lendo no cartaz, em grossas letras, o nome de Irene en vedette, de Irene repentinamente footlight. Ela continuava tão boa porém, tão amiga, tão simples, tão séria… Tão séria? Deram-lhe todos os amantes imagináveis em vão, por vingança afirmaram que os seus dentes como os seus sapatos eram feitos em Paris, emprestaram-lhe instintos perversos, e foi célebre a frase de um jornalistinha desprezado: De pé é a Vênus de Médicis, deitada é a Vênus Andrógina. Mas Irene mostrava o claro fio da dentadura com uma despreocupação tal, tratava tão camarariamente os homens que a calúnia tombou.

De resto Agostinho Azambuja tinha uma confiança muito elegante. A lenda era esse homem vulgar, possuído de uma paixão devoradora, agarra uma pobre rapariga no mais relés alcouce (prostíbulo) e fizera-a uma obra sua para dominar a cidade, uma mulher perfeita, falando quatro ou cinco línguas, conhecendo música, vibrante de arte e de elegância que é a arte de ser sempre a tentação. Mas a paixão, o ciúme, esses paroxismos fatais de quem quer muito bem, Azambuja encobria-os numa serenidade de bom tom, talvez mesmo para Irene, deixando-a sair só, não lhe perguntando nunca de onde viera, recebendo na própria casa os apaixonados que a ela poderiam ser úteis para o reclamo, colocando-a numa posição verdadeiramente superior, sem esquecer o lado prático porque lhe assegurava o futuro, comprava-lhe casas, joias.

No dia em que correu ter o Azambuja presenteado Irene com uma baixela de ouro lavrado, herdada do avô, um vago judeu argentário, as mulheres tiveram a certeza da superioridade da rival, e foi notada a resposta do Azambuja a Etelvina, primeira ingênua casada e adúltera da companhia:

– Minha filha, já não estou na idade de satisfazer os caprichos de uma mulher. A Irene quem a fez tal qual fui eu. Vivo do orgulho que ela me dá. É o meu chic.

– E se o trair?

– Tem bastante espírito para o não fazer, e lucrarias mais se fosses sua amiga.

Mas isso é que ninguém concebia: a Irene sem enganar o Azambuja. Afinal era uma rapariga de vinte e cinco anos, um verão ardentíssimo, uma beleza que chamava paixões! Muita vez no seu camarim, forrado de seda cor-de-rosa, faziam-se comentários.

– Mas não ama o velho Agostinho?

– Está claro que não o posso amar como Julieta a Romeu. Há uma grande diferença de idades. Mas respeito-o e sou-lhe grata. É quanto basta. Eis a razão por que resisti a princípio e hoje sou invulnerável.

– Francamente?

– Deve compreender que seria muito parva se fosse perturbar a minha vida e a beleza que vocês proclamam com uma paixão. Ora só a paixão poderia influir. Essa não vem, não vem, e não virá nunca. Conheço os homens.

De fato, tinha razão. Como o seu sorriso tomava-se cortante, as narinas palpitavam e com o seu ar de Diana à caça, ela permitia-se abraços e beijos com as companheiras, mais falsas que a onda, logo se formou irrevogável a legenda.

– Irene? Amantes não… A Irene procura alguém de quem o Azambuja não tenha ciúmes. Lembrar-te da frase do Gomide?

A legenda foi mesmo tão espalhada que súbitas ternuras apareceram, e alguns camarotes eram insistentemente ocupados pelas mesmas damas nas noites das suas representações, e vários convites surgiram para tê-la na companhia de senhoras bem cotadas.

– És uma criatura imperfeita, disse-lhe eu um dia.

– Por quê?

– Porque não amas o amor. Lembra-te dos versos do Poeta:

Que os vossos corações aprendam a viver,
Amando o amor, amando a perfeição,
A perfeição da alma que nos traz o prazer
Supremo e a suprema ilusão!


Ela suspirou, tristemente.

– Se é assim? Que hei de eu fazer? Mas que romântico, Deus!

E todos nós, jantando nas suas pratas, escrevendo a respeito do seu talento, tínhamos aceitado o caso como definitivo. Até Irene mesmo, mostrando predileções excessivas, parecia sossegar com a esquisita calúnia e mostrava uma alegria, uma imensa satisfação na vida. De modo que aquela partida brusca, após seu último sucesso agradável numa comédia inglesa, era de desnortear.

Ao saber a resolução pelo velho Azambuja na rua, eu tomara um tílburi, interessado como diante da saída de um ministro, e estava ali, interrogando-a, no meio da desordem do salão, onde havia malas, chapéus, plumas e um intenso cheiro de heliotropo.

– Mas por que partir, Irene?

– Porque é preciso.

– Uma briga com o Azambuja? Não? Aquele ataque da Suzana Serny? Também não? Então? Querem ver que afinal tem uma paixão?

Irene sorriu, no seu quimono rosa, guarnecido de uma leve renda antiga.

– Paixão? Sabe o que estava a fazer, quando entrou? Estava a limpar a secretária, a rasgar declarações amorosas e a atirá-las para este cesto. Tudo quanto está vendo nesta secretária, tudo quanto vê neste cesto – é paixão!

Recuei assombrado. Nunca tinha visto tanta paixão reunida e um sorriso tão destruidor nos lábios de Irene.

– Oh! não se assuste! Essa paixão é uma das faces do meu amor ao teatro. O Azambuja sabe e, às vezes, lê as cartas comigo. Guardo os artigos de jornal num álbum e a chama amorosa na secretária. Algumas ainda não li, mas foi por falta de tempo…

– Cruel!

– Oh! É lá possível ler tudo quanto a tolice humana escreve? Recebo as cartas de bom humor porque é impossível zangar, e acabo considerando-as a homenagem anônima, uma espécie de palmas num teatro cheio. Quer lê-las?

Uma ansiedade invadiu-me.

– Irene, nunca amou? Francamente? Posso ler todas, todas?

– Todas, fez ela. Sem receio. Divirta-se! Eu vou mandar fazer um pouco de chá, feito da flor, enviado diretamente da China para um inglês rico que me adorou em vão.

Ergueu-se. Houve um deslocamento de perfumes. A meus pés o cesto abria a fauce (goela) abarrotada; diante das minhas mãos a secretária escancarava-se. Hesitei, olhei-a, não resisti.

Ah! o estranho capitulo de psicologia, a irritável página de análise! Daquela papelada subia como uma fúria de paixão, de doença, de loucura. Havia mais de quinhentas cartas, havia mais de mil postais e nesses quadriláteros de papel ardia um arco-íris passional desde a chama roxa da melancolia à chama rosa do amor precoce. A primeira carta que abri tinha ao canto um passarinho voando, e começava assim: "D. Irene, queira desculpar, ao receber esta mal traçadas linhas que lhe envio do Internato. Tenho quinze anos e vi-a ontem. Como é bonita!"

– Conheceu?

– Nunca o vi. Pobre pequeno! Do seu primeiro amor não guardará ao menos más recordações.

– Cá tenho outro: "Senhora. As horas fogem e a esperança fica. Quem a chamou de feia e a senhora não sabe quem é."

– Quantos nestas condições! Vá vendo…

Eu ia com efeito vendo. Peguei de outro: "Adeus, flor da minha vida! E que nas outras cidades deixe os mesmos corações despedaçados. – Maníaco."

– Este confessa-se maluco!

– O que não fazem os outros…

Mas as tolices, os gritos de paixão, que são sempre ridículos, não acabavam mais. Eu lia versos, lia pensamentos patetas, via toda a palpitação ingênua do coração dos homens; ameaças de suicídio, ofertas de dinheiro, descrições de vida futura, pedidos de uma humildade de rafeiro, agonias com erros de português, máximas idiotas e generosas: "A amizade da mulher tem um encanto mais suave do que a do homem: é ativa, vigilante, terna e durável", graças nevrálgicas de palhaço amoroso. Deus! O amor, que dolorosa moléstia… eu não sei por que um nervosismo incompreensível fazia-me trêmulos os dedos, eu procurava com ânsia, humilhado, espezinhado, como se fosse responsável por todas as sandices do meu fraco sexo.

– A carta anônima é às vezes melhor que a carta de amor!

– Sabe que teve um pensamento?

– Como os que acabou de ler?

– Não, um pensamento diamantino.

– Pois venha tomar chá.

A criada servia, com efeito, o chá num lindo "tête-à-tête" de porcelana com guarnições en vermeille. A encantadora Irene parada; os seus olhos pareciam levemente inquietos. Eu continuava a remexer a secretária. Uma das missivas era enorme. Abri-a. "Peço a V. Ex. que me perdoe a ousadia, e, genuflexo, reclamo o seu carinho para os queixumes de um coração sofredor. Não sei fazer poesia, sou imensamente avesso às flores de retórica e suponho que não me igualarei ao gorjeio dos rouxinóis ou às asas das borboletas inquietas…"

– Basta! Basta! fez Irene, tapando os ouvidos.

– É a paixão.

– Venha antes tomar chá. Olhe a frase de Ibsen, na Comédia do Amor: O amor é como o chá. Bebamo-lo!

– Ah! minha querida! Como os homens são idiotas! Essa mania de escrever cartas de amor é bem o sintoma de inferioridade. Se eles soubessem o fim das suas letras e o pouco caso que delas fazem as mulheres. Ainda não tive amante que com ela não rasgasse as cartas dos que me tinham precedido.

– Era uma afirmação de que pelo menos no momento não o enganavam.

– Quem sabe?

Ela sorria com a chávena na mão. Era realmente bela. Toda de rosa, naquele quimono de seda, lembrava uma flor maravilhosa, uma flor de lenda, inacessível aos mortais. Eu compreendia a futilidade, a tolice, a miséria lamentável dos homens, diante da sedução de Vênus Vingadora, da Vênus que não se entregara nunca, e era honesta sem amantes, sem crimes, sem calunias…

Mas por que ia ela para a Europa? Por que me humilhava com aquela intimidade de correspondência aberta? Por quê? Os meus dedos encontraram uma gaveta. Abri-a. Nunca a linda Irene de Souza amara um homem! Era honesta, era o polo do desejo! Ah! não… várias cartas. Apanho uma ao acaso. Um selo italiano. Tirei-a do invólucro: "Cruel. Hei de matar-te se alguma vez te encontrar ajeito. Não me quiseste e eu peno, peno há cinco anos. Conto que ainda hei de ver o teu sorriso indiferente, 6 8,6 8, oitavo do século, no mesmo lugar. Preciso muito…"

Não continuei.

– E olhe que tem também um doido.

– Palavra?

– Um sujeito que está na Itália, ao que parece. Fala do número 8, chama-a cruel.

– E eu que ainda não tinha lido! Com efeito. E curioso. E assina-se César! Não faz coleção de selos? A filatelia está em moda.

– Como todas as parvoices inofensivas. Ainda lá não cheguei.

Depois, parei. Ela estava preocupada, séria, um tanto fria talvez. Decididamente aborrecia a bela Irene de Souza. E era de compreender. Irene preparava a sua partida, desejava estar só. Curvei-me.

– Adeus, então. Seja mais humana lá fora.

– Eu? Com os espias e as agências de informação pagas pelo Azambuja? Da última vez que estive em Paris, Azambuja mostrou-me um dossiê tão copioso que eu pensei no Affaire Dreyffus. Qual, meu amigo, sou invulnerável. E rindo alegremente: já se vê que pour cause

Saí varado, porque afinal não há nada mais impertinente do que encontrar realmente honesta uma mulher que não tem o direito de o ser, e indo pela Avenida Beira-Mar a matutar naquela criatura excepcional encontrei o velho Justino Pereira, a passear também.

– Poesia?

– Não, ideias. Venho da casa da Irene.

– Boa pega!

– Oh! não, um espírito prático, incapaz de amar. Mostrou-me verdadeiras cascatas de amor.

– As mulheres nunca mostram todas as cartas. É o seu grande trunfo.

– Velho cético!

– Mesmo porque há cartas que os maridos e os amantes podem ler, cartas desvairadas, sem sentido… Que cara a tua! Pareces criança. Pois meu tolo basta uma combinação prévia, basta uma chave do sentido oculto. Por exemplo: Hei de matar-me. Tradução: Não deixes de vir. Peno há cinco anos. Tradução: Preciso de dinheiro.

– Ora o fantasista! Não me vai dizer que a Irene tem amantes.

– E se disser que tem mesmo uma espécie de gigolô, a quem sustenta?

Indignado, como se fosse uma questão de honra pessoal, estaquei.

– Sr. Justino Pereira, nada de calúnias. Irene está acima de maledicência. O senhor calunia e é pelo menos incapaz de nomear o tal gigolô.

– Oh! filho, fez Justino a sorrir. Soube-o por um acaso, não tenho que guardar. É até um lindo rapaz, corpo de esgrimista, olhos devoradores. Nasceu em S. Paulo, chama-se Victorino Maesa e partiu há dois meses para a Itália.

Como me visse pálido, aturdido, sem saber o motivo daquela emoção,
sem saber que como um imbecil eu tivera a carta na mão:

– Estás apaixonado? Contrariei-te? Todas as mulheres são excepcionais quando se lhes quer prestar atenção. Mas no mundo não há uma que não tenha um segredo simples, que lhe mostra um reverso inteiramente diverso da aparência…

E desatou a rir enquanto eu esforçava-me por fazer o mesmo.

Fonte:
João do Rio. Dentro da Noite. Publicado em 1910.

Estante de Livros (Mayombe, de Pepetela)

Mayombe é um romance do escritor angolano Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos, mais conhecido como Pepetela.

Segundo Pepetela, Mayombe começou a ser escrito como um comunicado de guerra em 1970. A primeira versão, publicada em 1980, rendeu ao escritor o Prêmio Nacional de Literatura de Angola.

Além disso, pela primeira vez um autor africano faz parte das leituras obrigatórias do vestibular da Fuvest, sistema de seleção da Universidade de São Paulo.

Mayombe é o nome referente a uma região da África Ocidental e no livro trata-se de uma floresta.

PERSONAGENS

Mesmo a obra tendo o Comandante Sem Medo no foco de toda a narrativa, o livro não tem especificamente um protagonista.

Isto acontece porque a cada ação o foco fica em uma pessoa diferente. Até a própria floresta Mayombe surge em momentos exclusivos.

Os personagens não são identificados por nomes, mas por pseudônimos referentes as suas características e importância dentro da história.

Teoria: professor da base MPLA e filho de uma africana com um português.

Comissário: um dos líderes políticos do MPLA chamado João.

Chefe de Operações: um dos líderes do MPLA.

Comandante Sem Medo: o comandante do MPLA.

Lutamos: guerrilheiro do MPLA.

Ingratidão do Tuga: guerrilheiro do MPLA.

Vewê: guerrilheiro do MPLA.

Mundo Novo: guerrilheiro do MPLA.

André: responsável em conseguir os alimentos para a base e primo do comandante.

Ondina: professora e noiva do comissário.

 ESTRUTURA DA OBRA

Mayombe é estruturado em seis capítulos:
A missão ; A base; Ondina; A surucucu; A amoreira; Epílogo

RESUMO

O enredo se passa em um floresta chamada Mayombe, na região de Cabinda, em Angola, e a cidade de Dolisie, na república do Congo.

1 – A MISSÃO

O primeiro capitulo de título “A missão” começa com a chegada dos guerrilheiros do MPLA (Movimento Popular de Libertação por Angola).

A história situa-se na Guerra de Independência de Angola, em que os guerrilheiros angolanos lutaram contra os colonizadores portugueses ente 1961 e 1974.

O MPLA era um movimento de orientação marxista-leninista, o qual Pepetela também fazia parte. O intuito era livrar a Angola da exploração portuguesa e politizar os trabalhadores angolanos.

Para interromper a exploração de madeira feita pelos portugueses, os guerrilheiros invadiram, quebraram as máquinas, tomaram equipamentos e sequestraram os funcionários.

Mas o movimento não tinha o intuito de feri-los, pois também eram conterrâneos. Apenas explicaram a exploração de Portugal e os libertaram em seguida.

Contudo, o MPLA passou a não ser  bem visto após um dos trabalhadores libertos ter  seu dinheiro roubado, criando  uma crise no grupo.

Para mobilizar o povo, o Comandante Sem Medo organiza uma missão em ataque ao portugueses e vence. Então, descobrem que o guerrilheiro Ingratidão foi quem roubou o dinheiro. Ele é preso.

2 – A BASE

A base é formada no interior da floresta Mayombe e outros oitos guerrilheiros novos chegam. O capítulo descreve Mayombe como uma entidade e viva.

Nessa parte do livro são evidenciados os conflitos e as divergências dentro do próprio movimento, especificamente entre as ideias do Comissário e do Comandante Sem Medo. No entanto, os conflitos são resolvidos.

A falta de mantimentos é outro problema que aparece na base, então o Comandante Sem Medo pede auxílio ao primo André para enviar alimentos. O Comandante fica incomodado, pois a quantidade enviada pelo primo somente supria os guerrilheiros por alguns dias.

Além disso, no capítulo “A base”, o autor narra o seu cotidiano e os ensinamentos do professor do grupo, Teoria.

3– ONDINA

O terceiro capítulo recebe o nome da noiva do comissário, Ondina. Professora que lecionava na cidade de Dolisie, fingia sentir atração pelo noivo.

Enquanto isso, a base sofria com a falta de mantimentos, além dos desentendimentos entre os chefes e os guerrilheiros que cresciam cada vez mais.

Comissário já tinha ideia de tirar o André da sua posição, o que acentuou após ele ser pego com Ondina.

Então, Ondina deixa uma carta para o Comissário dizendo que irá deixar a cidade e o comissário narra a sua relação com ela.

Enquanto que André, por ser de tribos diferentes (Kikongo e Kimbundo), vai a julgamento em Brazaville pelo ato desonroso.

É nesse capítulo também que o guerrilheiro Ingratidão foge da base e os guerrilheiros descobrem que os portugueses instalaram uma nas proximidades do MPLA.

4– A SURUCUCU

Grande parte desse capítulo está voltado para a preparação e estratégias do MPLA. Após suposto ataque dos portugueses (Tugas) a base de guerrilheiros, o Comandante planeja uma contra-ataque.

E o grupo se divide em dois, sendo um liderado pelo Comandante Sem Medo que foi pelo Rio e o outro pelo Chefe de Operações que foi pelas montanhas.

Mas ao encontrar Teoria, descobrem que foi um engano, pois o mesmo tinha visto uma surucucu e atirado nela. E após Vewê, um dos companheiros que ouviu o tiro, se desespera e corre para pedir ajuda.

Contudo, o Comandante Sem Medo ainda planeja estratégias para o combate a base portuguesa, pois o mesmo sabe que mais cedo ou mais tarde Mayombe será descoberta por eles.

Vale ressaltar que nesse capitulo, Comandante Sem Medo começa a se envolver com Ondina. E eles conversa sobre a liberdade e o papel da mulher.  

5– A AMOREIRA

No quinto capítulo, o Comandante Sem Medo é transferido para o Leste e Mundo Novo assume seu posto. Enquanto que o Comissário foi encarregado de chefiar o ataque a base dos Tugas, no Pau Caído.

Até um certo momento, a missão foi bem sucedida, já que os guerrilheiros conseguiram adentrar  no território da base portuguesa. Em consequência, Comandante Sem Medo e Lutamos são mortos no ataque, e outros guerrilheiros saíram feridos.

O nome do capítulo “A amoreira” é devido ao pensamento do comandante antes de morrer. Para ele (Comandante), a amoreira tem um único tronco, assim como os homens. Ele e Lutamos foram enterrados ao pé de uma amoreira.

 O Comissário foi salvo, mesmo sendo da tribo Kimbundo, por dois homens de duas tribos diferentes: Cabinda e Kikongo. Eles conseguiram superar as diferenças étnicas.

6– EPÍLOGO

Por fim, após a morte do Comandante Sem Medo, o Comissário é enviado ao leste para assumir o posto do Comandante.

O Comissário também começa a refletir sobre a morte do Sem Medo.

ANÁLISE DA OBRA

O livro caracteriza-se como  reportagem ou texto documental porque trata da rotina e das lutas entre os guerrilheiros da MPLA e as tropas portuguesas.

Além disso, o autor não fala apenas das diferenças entre angolanos e portugueses, mas discute também os conflitos individuais, pessoais e entre as tribos angolanas diferentes.

Mayombe é narrado em primeira e terceira pessoa, pois há vários momentos em que os guerrilheiros fazem seus relatos. Contudo, é predominante a presença do narrador em terceira pessoa, narrador onipresente e onisciente.

Mayombe tem uma linguagem polifônica e o tempo de narrativa é cronológica, apresentando um certa linearidade as ações.

O Movimento Popular de Liberdade por Angola realmente existiu, sendo o autor um dos militantes.  Mesmo depois da libertação, ocorreu uma guerra civil que dividiu o país.

PERSONIFICAÇÃO E INTERTEXTUALIDADE

Pepetela mostra no livro a intertextualidade e  personificação definida  pela narração.

Personificação por atribuir características humanas a coisas, como é o caso da floresta Mayombe, dita pelo autor como um mãe para os guerrilheiros (abriga, mas também provoca desafios).

Já a intertextualidade é usada a fim de valorizar a bravura dos guerrilheiros.  Pepetela faz uso da mitologia grega com o Mito de Prometeu, uma tragédia grega para reforçar esta ideia. Os homens são caracterizados de Prometeu e Mayombe como o Zeus.

TRECHOS DA OBRA

Capítulo “A missão”

“Eu, O Narrador, Sou Teoria.
Nasci na Gabela, na terra do café. Da terra recebi a cor escura de café, vinda da mãe, misturada ao branco defunto do meu pai, comerciante português. Trago em mim o inconciliável e é este o meu motor. Num Universo de sim ou não, branco ou negro, eu represento o talvez. Talvez é não, para quem quer ouvir sim e significa sim para quem espera ouvir não. A culpa será minha se os homens exigem a pureza e recusam as combinações? Sou eu que devo tornar-me em sim ou em não? Ou são os homens que devem aceitar o talvez? Face a este problema capital, as pessoas dividem-se aos meus olhos em dois grupos: os maniqueístas e os outros. É bom esclarecer que raros são os outros, o Mundo é geralmente maniqueísta.”

 
Epílogo

    “O Narrador Sou Eu, O Comissário Político.
A morte de Sem Medo constituiu para mim a mudança de pele dos vinte e cinco anos, a metamorfose. Dolorosa, como toda metamorfose. Só me apercebi do que perdera (talvez o meu reflexo dez anos projetado à frente), quando o inevitável se deu.

Sem Medo resolveu o seu problema fundamental: para se manter ele próprio, teria de ficar ali, no Mayombe. Terá nascido demasiado cedo ou demasiado tarde? Em todo o caso, fora do seu tempo, como qualquer herói de tragédia”.


Baixe o livro em:
https://farofafilosofica.files.wordpress.com/2016/10/mayombe-livro-pepetela.pdf

Fonte:
Mayombe. Disponível em Guia Estudo . Acesso em 08/05/2021.