quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

Luiz Damo (Trovas do Sul) XXI

A amizade não tem preço
nem é tão perene assim,
assim como tem começo
também pode ter um fim.
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Alguém diz: eu sonho e espero
ser um grande vencedor,
bem melhor um não sincero,
do que um sim enganador.
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Aquela aragem fresquinha
que a noite sempre irradia,
eu sinto qual fosse minha
a despedida do dia.
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Borboletas sobrevoam
rente as matas perfumadas,
tal aroma elas povoam
suas frondosas ramadas.
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Deus não dá, mas oferece
sua luz pra iluminar
a vida, quando escurece
e a força pra caminhar.
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É no outono que acontece
a colheita do produto,
porque nele amadurece
o sonho em forma de fruto.
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Escrevo, falo e não minto,
debruçado sobre um tema.
Em versos, tudo o que sinto
posso expressar num poema.
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Levo a mensagem distante,
pra perto trago a amizade,
tal a estrela cintilante
brilhando na eternidade.
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Luz é vida, paz e amor,
porém só, também não basta,
do Sol vem luz e calor
que das trevas nos afasta.
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Mesmo que nunca mereça
alcançar nobre conquista,
devo erguer minha cabeça
e seguir sempre otimista.
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Muita paz eu vim trazer,
assim no mundo nasci,
se mais não pude fazer
foi porque não consegui.
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"Nada podemos fazer";
afirmam os fracassados.
Tudo, sem nada dizer,
alcançam os esforçados.
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Nas estradas, quem caminha,
se dispõe a tropeçar,
embora a roseira espinha,
tem a flor pra compensar.
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No alvorecer da existência
os grandes sonhos florescem,
logo após a florescência
alguns definham, fenecem.
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O inverno quando está perto
a natureza descansa,
aguarda o momento certo
de renovar a esperança.
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O mundo mostra dois lados:
um devemos escolher,
não sejamos enganados
durante o nosso viver.
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O sol, sobre a terra fria,
lança seu grande fulgor,
espalha luz e energia
misturadas com calor.
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Para que sua premissa
não lhe seja refutada,
siga a linha da justiça
sendo à luz sempre pautada.
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Primavera faz da flor
a grande ornamentação,
enche de perfume e cor
toda e qualquer plantação.
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Que a dor não se dissemine
contaminando o viver,
queira Deus, não contamine
a essência do nosso ser.
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Se temermos o perigo,
dele nos afastaremos,
e andando com um amigo
o temor superaremos.
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Somos sumamente gratos
pelos dons que recebemos,
sejamos sempre sensatos
com a vida que hoje temos.
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Tantos passos foram meus,
dados com estes meus pés,
pés que me levam a Deus
sem temer qualquer revés.
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Tenho o dever de cumprir
o que me cabe, até o fim,
se do meu papel fugir
ninguém o fará por mim.
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Verão de tantas culturas
numa mesma melodia,
tem altas temperaturas
na maior parte do dia.

Fonte:
Luiz Damo. A Trova Literária nas Páginas do Sul. Caxias do Sul/RS: Palotti, 2014.
Livro enviado pelo autor.

Eduardo Affonso (Conflito de gerações)

– Maria Eduarda, eu e seu pai precisamos ter uma conversa com você.

– Já sei. Vão começar tudo de novo.

– Não, Maria Eduarda, não vamos começar tudo de novo. Vamos continuar a conversa que vimos tentando ter com você faz tempo, mas você é rebelde, não quer conversar nem ouvir seus pais.

– …

– Quando é que você vai parar com essa teimosia? Até onde vai seguir com essa vontade de ser “diferente”?

 – Mãe, eu sou diferente!

– Não, Maria Eduarda, não é. Você é uma menina de 17 anos, igual a todas as meninas de 17 anos, com os mesmos anseios de toda menina de 17 anos. Não faz sentido você continuar se recusando a fazer uma tatuagem! Todas as suas amigas estão tatuadas da cabeça aos pés, e você aí… com a pele intacta. Até onde você vai querer ir com isso, Maria Eduarda?

– Mãe, eu não gosto. Eu acho feio. Só isso.

– Maria Eduarda, que mal faz uma mandala? Um ying e yang? Uma caveira?

– Mãe…

– Uma borboleta na nuca não mata ninguém, Maria Eduarda! Um dragão, uma fênix, qualquer coisa, mas… acho horrível ver você assim, com a pele toda… toda…

– Mãe, não começa a chorar, por favor!

– Choro, sim, Maria Eduarda. Choro de vergonha. Onde foi que eu errei na sua criação? Todas as filhas de todas as minhas amigas estão completamente rabiscadas e você aí, com a pele… virgem.

– Mas eu não sou mais virgem, tá, mãe?

– Nem sei como alguém conseguiu se interessar por você, com a pele imaculada desse jeito. No mínimo foi um daqueles rapazes esquisitos que querem ser dentistas ou – deusmilivre – engenheiros civis. Desse jeito que você anda, de cabelo castanho, com roupa sem um rasgão ou um pircinzinho que seja, você nunca vai arrumar um grafiteiro, um uebidizáiner, um crosfiteiro. Ou um confeiteiro.

– Mãe, fica tranquila…

– Como eu posso ficar tranquila sabendo que você não vai ao tatuador uma vez por semana, nem que seja para fumar narguilé? Que não tem uma serpente subindo pelo pescoço, uma flor de lótus na virilha, uma frase em latim no omoplata, nada!

– Mãe…

– Faz pelo menos uma tribal no tornozelo, filha!

– Mãe, eu…

– Um infinito no pulso, uma âncora no antebraço, qualquer coisa…

– Mãe, eu acho que…

– Você não sabe a vergonha que eu passo na frente das minhas amigas na yoga. Todas têm filhas tatuadas. A Gislaine tem uma filha que fechou o braço. Fechou o braço, sabe o que é isso? A filha da Marta tatuou toda a fauna do cerrado, em protesto pelos incêndios no Pantanal. Ela não é boa em Geografia, eu sei, mas o tatuador fez uma jaritataca linda no ombro dela, e um teiú que sobe pelas costelas e vai até o seio. Quando ela colocar implante, o teiú vai ficar com uma cara enorme, linda. Você vai colocar implante, não vai?

– Não, mãe, não vou.

– Maria Eduarda! Sem tatuagem aos 17 e sem implante antes dos 20! O que você quer da vida, minha filha? Sabe como as pessoas vão te olhar? Como uma aberração!

– Mãe, eu…

– Tatua nem que seja um “Fellyppe, amor eterno”, por favor!

– Eu não conheço nenhum Fellyppe, mãe.

– Não interessa. Tatua só para arrepender e tatuar alguma coisa por cima. Aposto que todas as suas amigas já se arrependeram de uma tatuagem dessas e tatuaram outra maior por cima.

– Sim, todas fizeram isso. Aos prantos.

– Viu? Custa fazer? Escolhe um nome qualquer, porque vai fazer outra por cima mesmo. Bernnardho, Artthur, Karollayne, qualquer coisa. Mas tatua, exibe, chora dizendo que se arrependeu e faz uma de rosas vermelhas, ou de uma onça, em cima. Pronto. É só isso que estou te pedindo. Para eu não ser a mãe da menina esquisita que não tem tatuagem. Faz isso por mim, Maria Eduarda. Pelo seu pai, que vem fazendo uma poupança para essas tatuagens desde que você tinha 15 anos.

– Mãe…

– Um código de barras na coxa, filha… O que é que custa? Um ideograma, uma logomarca, um pacote de miojo, qualquer coisa…  Você quer chegar à velhice como sua avó, sem parecer um muro de periferia? Sem lembrar uma obra do Dali, com relógios derretendo porque o peito caiu?

– Tá, mãe, semana que vem eu faço.

– Promete, Maria Eduarda?

– Vou pigmentar aquela manchinha branca que eu tenho no peito do pé, aí fica da cor da pele.

– Faz uma caranguejeira, filha! Fica lindo uma caranguejeira bem realista subindo pelo peito do pé!

– Não, mãe. No máximo, uma joaninha.

– Bem colorida?

– Ok, mãe, uma joaninha bem colorida. Já posso voltar a estudar?

– Pode. Te amo, Maria Eduarda. Mesmo você sendo estranha desse jeito, mamãe te ama. Mas por que você não aproveita que vai fazer a joaninha e coloca um pírcim no umbigo?

quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

Adega de Versos 62: Fernando Pessoa

 

Pablo Neruda (Poemas Escolhidos) – 1 -

Pablo Neruda é o pseudônimo de Ricardo Eliécer Neftalí Reyes Basoalto


I
 
MATILDE, nome de planta ou pedra ou vinho,
do que nasce da terra e dura,
palavra em cujo crescimento amanhece,
em cujo estio rebenta a luz dos limões.

Nesse nome correm navios de madeira
rodeados por enxames de fogo azul-marinho,
e essas letras são a água de um rio
que em meu coração calcinado desemboca.

Oh! Nome descoberto sob uma trepadeira
como a porta de um túnel desconhecido
que comunica com a fragrância do mundo!

Oh! Invade-me com tua boca abrasadora,
indaga-me, se queres, com teus olhos noturnos,
mas em teu nome deixa-me navegar e dormir.

II

Amor, quantos caminhos até chegar a um beijo,
que solidão errante até tua companhia!
Seguem os trens sozinhos rodando com a chuva.
Em Taltal* não amanhece ainda a primavera.

Mas tu e eu, amor meu, estamos juntos,
juntos desde a roupa às raízes,
juntos de outono, de água, de quadris,
até ser só tu, só eu, juntos.

Pensar que custou tantas pedras que leva o rio,
a desembocadura da água de Boroa*,
pensar que separados por trens e nações

tu e eu tínhamos que simplesmente amar-nos,
com todos confundidos, com homens e mulheres,
com a terra que implanta e educa os cravos.

III

Áspero amor, violeta coroada de espinhos,
cipoal entre tantas paixões eriçado,
lança das dores, corola da cólera,
por que caminhos e como te dirigiste a minha alma?

Por que precipitaste teu fogo doloroso,
de repente, entre as folhas frias de meu caminho?
Quem te ensinou os passos que até mim te levaram?
Que flor, que pedra, que fumaça, mostraram minha morada?

O certo é que tremeu a noite pavorosa,
a aurora encheu todas as taças com seu vinho
e o sol estabeleceu sua presença celeste,

enquanto o cruel amor sem trégua me cercava,
até que lacerando-me com espadas e espinhos
abriu no coração um caminho queimante.

IV

Recordarás aquela quebrada caprichosa
onde os aromas palpitantes subiram,
de quando em quando um pássaro vestido
com água e lentidão: traje de inverno.

Recordarás os dons da terra:
irascível fragrância, barro de ouro,
ervas do mato, loucas raízes,
sortílegos espinhos como espadas.

Recordarás o ramo que trouxeste,
ramo de sombra e água com silêncio,
ramo como uma pedra com espuma.

E aquela vez foi como nunca e sempre:
vamos ali onde não espera nada
e achamos tudo o que está esperando.

V

Não te toque a noite nem o ar nem a aurora,
só a terra, a virtude dos cachos,
as maçãs que crescem ouvindo a água pura,
o barro e as resinas de teu país fragrante.

Desde Quinchamalí* onde fizeram teus olhos
aos teus pés criados para mim na Fronteira
és a greda escura que conheço:
em teus quadris toco de novo todo o trigo.

Talvez tu não saibas, araucana*,
que quando antes de amar-te me esqueci de teus beijos
meu coração ficou recordando tua boca

e fui como um ferido pelas ruas
até que compreendi que havia encontrado
amor, meu território de beijos e vulcões.
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* Notas:
Araucana = Relativo à Araucânia, região da América do Sul que abrange a província de Arauco, no Chile.
Boroa = é um povoado situado no município de Nueva Imperial, Região da Araucanía (Chile), nas ribeiras do rio Cautín.
Quinchamalí = é um pequeno povoado localizado na região de Ñuble, província de Diguillín , dependente do município de Chillán (Chile).
Taltal = é um município da província de Antofagasta, localizada na Região de Antofagasta, Chile.


Fonte:
Pablo Neruda. Cem sonetos de amor. Publicado em 1959.

terça-feira, 14 de dezembro de 2021

Varal de Trovas n. 539

 

Contos e Lendas do Mundo (Índia: O tigre, o brâmane e o chacal)

Um tigre ficou preso em uma armadilha. Tentou, em vão, atravessar as grades, girou e as mordeu com fúria e tristeza quando não conseguiu.

Por acaso, estava passando por ali um pobre brâmane.

– Tire-me dessa jaula, por piedade! – suplicou o tigre.

– Não, amigo – respondeu o brâmane de maneira amável. – É provável que me devore se eu o
fizer.

– De jeito nenhum! – prometeu o tigre. – Pelo contrário, serei eternamente grato e o servirei como um escravo!

O tigre soluçava, suspirava, chorava e suplicava, e o coração do piedoso brâmane amoleceu. Enfim concordou em abrir a porta da jaula. Dela saiu o tigre que, capturando o pobre homem, gritou:

– Como é tolo! Como evitará que o devore agora, já que estou faminto depois de ficar tanto
tempo preso?!

Em vão, o brâmane implorou que o tigre lhe poupasse a vida. O máximo que conseguiu foi a promessa de que o tigre obedeceria a decisão das primeiras três coisas que ele escolhesse para questionar se era ou não justa aquela ação.

O brâmane primeiro perguntou a uma figueira o que ela achava da questão, mas a figueira
respondeu com frieza:

– Do que está reclamando? Eu não forneço sombra e abrigo a todos que passam por aqui, e eles, em troca, não cortam meus galhos para alimentar o gado? Não choramingue. Seja homem!

O brâmane, abatido, caminhou mais um pouco até encontrar uma búfala girando uma roda d’água. Mas não foi muito melhor, pois ela respondeu:

– Se espera gratidão, é um tolo! Olhe para mim! Enquanto eu lhes dava leite, eles me alimentavam com sementes de algodão e bolo prensado, mas agora que estou seca, me deixam presa aqui e me alimentam com lavagem!

O brâmane, ainda mais triste, pediu à estrada que desse sua opinião.

– Meu caro, senhor – disse a estrada –, que tolo é por esperar algo mais! Cá estou, útil a todos, e ainda assim ricos e pobres, grandes e pequenos, pisam em mim ao passar, sem me dar nada além das cinzas de seus cachimbos e cascas de suas sementes!

Com isso, o brâmane retornou com pesar e no caminho encontrou um chacal que lhe perguntou:

– Ei, qual é o problema, senhor brâmane? Parece deprimido como se fosse um peixe fora d’água!

O brâmane contou todo o ocorrido.

– Que confuso! – exclamou o chacal, quando ele terminou a história. – Poderia contar tudo de novo, pois não entendi nada?

O brâmane repetiu tudo, mas o chacal balançou a cabeça de maneira distraída e ainda assim não compreendeu.

– É muito estranho – disse ele com tristeza. – Mas parece que entra tudo por um ouvido e sai pelo outro! Vou ao local onde tudo aconteceu, talvez assim consiga dar minha opinião.

Eles então voltaram à jaula, perto da qual o tigre esperava o brâmane afiando os dentes e as garras.

– Você demorou muito! – rugiu a fera selvagem. – Mas agora podemos iniciar nosso jantar.

“Nosso jantar?”, pensou o pobre brâmane, enquanto seus joelhos batiam um contra o outro de medo. “Que maneira delicada de se expressar!”

– Peço-lhe cinco minutos, meu senhor! – suplicou. – Para explicar a questão ao chacal, que tem o raciocínio um pouco lento.

O tigre concordou, e o brâmane contou toda a história novamente, sem deixar nenhum detalhe de fora, demorando-se o máximo possível.

– Ah, meu pobre cérebro! Ah, meu pobre cérebro! – gritou o chacal, retorcendo as patas. – Deixe-me ver! Como tudo começou? Você estava na jaula e o tigre veio passando…

– Aaaah! – interrompeu o tigre. – Como é idiota! Eu estava na jaula.

– É claro! – exclamou o chacal, fingindo tremer de medo. – Sim! Eu estava na jaula. Não, eu não estava. Minha nossa! Minha nossa! Onde estou com a cabeça? Deixe-me ver. O tigre estava no brâmane, e a jaula veio passando. Não, também não é isso! Bem, não se importem comigo. Iniciem seu jantar, pois nunca entenderei!

– Sim, entenderá! – retrucou o tigre, com raiva da estupidez do chacal. – Eu farei você entender! Veja só. Eu sou o tigre…

– Sim, senhor!

– E aquele é o brâmane…

– Sim, senhor!

– E esta é a jaula…

– Sim, senhor!

– E eu estava na jaula. Entendeu?

– Sim… não… Por favor, senhor…

– O que foi? – gritou o tigre, impaciente.

– Por favor, senhor! Como entrou na jaula?

– Como? Do modo habitual, é claro!

– Ah, pobre de mim. Minha cabeça está começando a girar de novo! Por favor, não fique zangado, meu senhor. Mas qual é o modo habitual?

Com isso, o tigre perdeu a paciência e, pulando dentro da jaula, berrou:

– É assim! Agora entendeu como foi?

– Perfeitamente! – O chacal sorriu e, com destreza, fechou a porta. – E, se me permite dizer, acho que as coisas permanecerão como estavam!
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J. P. Steel e R. C. Temple, no Wide-Awake-Stories, Bombay e Londres, 1884, recolheram uma versão popular no Panjap. O Tigre, ajudado pelo Brâmane, quer devorá-lo. Árvore, Vaca e Caminho opinam pelo Tigre. O Chacal, pretendendo reconstituir a cena, prende o Tigre para sempre. Couto de Magalhães ouviu o mesmo episódio entre os indígenas brasileiros do idioma tupi, O Selvagem, Rio de Janeiro, 1876, onde a Onça, posta em liberdade pela Raposa, quer devorá-la. O Homem manda a Onça voltar ao fosso, deixando-a presa. O prof. Espinosa colheu uma variante em Espanha, Un bien con un mal se paga, León; a Cobra quer morder ao Homem que a salvou do frio. O Asno e o Boi foram pela Cobra mas a zorra (Raposa) exigiu a encenação inicial e a Cobra regressou ao alforje do Homem que a matou, ás pauladas, Cuentos Populares ‘Españolen, III.0, 264.°. Na Argentina, Rafael Cano, Del Tiempo de Ñaupa, Buenos Aires, 1930, quem fixou o conto, tendo como personagens o Tigre, o Homem e o zorro (raposa). Na África Oriental Portuguesa, Moçambique, o padre Francisco Manuel de Castro registrou uma variante, ouvida aos pretos Macuas e transcrita pelo jornalista brasileiro Amon de Melo, Africa, Rio de Janeiro 1941. O Perú Bravo, solto de uma armadilha pelos meninos Narrapurrapu e Nantetete, filhos de Moxia, ia comê-los quando o Coelho duvidou que ele tivesse cabido dentro da armadilha. O Peru Bravo, desafiado, voltou à prisão e ainda lá deve estar. Leo Frobenius, no African Génesis, seleção de Douglas C. Fox, New York, 1937, tem uma versão dos negros Nupes do Sudão. O caçador livrando um crocodilo de morrer fora do Niger está condenado a morte. Asubi (esteira colorida do Kutigi) e um pedaço de pano, votam a favor do Crocodilo. O Boaji (almíscar) obtém a representação da cena e deixa o crocodilo no seco, escapando o Homem.
 
Fonte:

Barão de Itararé (Versos Diversos) 5

O ACUSADO

O réu está abatido. E o promotor,
Ao tomar a palavra, diz que aquela ave
Está acusada d’um crime muito grave
E é necessário puni-la com rigor.

Logo depois, o advogado da defesa
Levanta-se, tosse, cospe para o lado
E, dando um soco violento sobre a mesa,
Suplica ao júri a soltura do acusado.

O réu, comovido, adoece de repente...
Todos os presentes tapam o nariz,
Porque a atmosfera fica um tanto impura.

O médico legista examina o doente
E declara in fidei gradi* ao senhor juiz
Que aquilo é de fato, um caso de soltura.
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* Fidei Gradi = graus de confiança
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 A POLÍTICA

Não sei porque tu queres me proibir
Que em política meta o meu bedelho.
Perdoa, mas não posso consentir,
Que tu me venhas dar um tal conselho.

A política é a causa do progresso
De todas as nações civilizadas.
O que a deprime e avilta é o excesso
De perseguições torpes e infundadas.

O meu amor, portanto, não se zangue.
O ser político, isso está em meu sangue…
Não me vás, só por isso, deixar só...

Pois, gostando de ti desta maneira,
Serei um dia, mesmo que não queira,
Politicamente, neto de tua avó.
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COMPROMETIDO

Esta paixão recolhida,
Que de novo veio a furo,
Estragou-me toda a vida,
Anarquizou-me o futuro.

Tive fortuna e um nome...
Agora não tenho nada!
Tudo o que tinha roubou-me
Essa mulher, essa fada...

Tenho o peito em polvorosa!
Preso ao rochedo da dor,
Eu sou um novo Prometeu!

Que futuro cor-de-rosa!
Que futuro encantador,
Pafúncia comprometeu!
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PERDEU

Eu tinha uma pequena (já crescida)
Que eu não podia desejar mais bela.
Era ela que alegrava a minha vida,
Era eu que alegrava a vida dela.

Mas um dia chegou ao nosso porto
Uma galera. Cheia do aspirantes,
E o meu prestígio, em breve, ficou morto
Ou, pelo menos, não era como antes.

Deixou-me... Deixei-a... Os candidatos
Eram dois aspirantes e a covarde
Esses dois namorou d’uma só vez.

Foi-se a galera... Foram-se os ingratos...
Ela tentou voltar, mas era tarde:
A recompensa foi perder os três…
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A RENDIÇÃO DA PRAÇA

O forte está sitiado. Um flanco avança,
Fazendo-lhe temíveis investidas.
Logo depois uma carga de lança.
A metralha e as balas ceifam vidas.

O bravo comandante não se cansa
Mas, ao ver as paredes já fendidas,
Perde o ultimo raio de esperança,
De retomar as posições perdidas.

O forte já está fraco... E o inimigo,
Percebendo que o forte está em perigo,
Volta à carga com força redobrada.

Rendem-se, enfim, os últimos, feridos,
E (fato extraordinário!) entre os rendidos
Não há sequer uma hérnia estrangulada.

Fonte:
Apporelly (Barão de Itararé). Pontas de cigarros: livro de versos diversos. Rio de Janeiro: O Globo, 1925.

André Kondo (A Boneca)


A neve caía sobre o norte de Honshu, congelando os caminhos de Sendai. Um vulto carregando um embrulho se esgueirou até a entrada do castelo de Akihiro, senhor da província. Uma das sentinelas, percebendo o ato suspeito, ordenou que o estranho se identificasse. Ao ouvir a voz do guarda, o vulto ergueu a cabeça. Era uma mulher, que deitou o pacote sobre a neve e fugiu.

Um choro de bebê cortou o ar congelado. O soldado pegou em seus braços uma menina. Uma menina sem braços nem pernas. Surpreso, levou a criatura ao interior do castelo. Seu comandante foi chamado e proferiu o destino da criança. Como já não tinha braços nem pernas, ficaria também sem a cabeça. Ordenou que a decapitassem. Para um guerreiro, aquele ato não seria nada além do que um gesto de piedade. Quando um samurai comete seppuku, cortando o ventre com a própria espada, tem diante de si uma dolorosa morte, que pode se arrastar por horas de agonia. É justamente para evitar esse sofrimento prolongado que a sua morte é abençoada com a decapitação.

Que vida poderia ter aquela criatura infeliz? Como poderia ela brincar? Como poderia ela viver? A morte, nessas condições, seria o melhor brinquedo, e a espada em seu pescoço, o único afago de carinho. O samurai ergueu a espada. Durante toda a vida havia sido treinado para matar e morrer sem hesitação. Mas, naquele instante, sua mão hesitou.

O que se passou na cabeça daquela mulher ao abandonar a menina em frente ao castelo? O castelo pertencia a Akihiro, um samurai que não havia conquistado a província com a espada, mas com o coração. O povo dizia que nunca houve um daimyo mais justo e gentil do que ele. Provavelmente, a mulher tinha a esperança de que o bondoso coração de Akihiro pudesse amar uma criatura incapaz de receber o amor da própria mãe. O comandante deve ter chegado a essa conclusão e suspendeu, com grande alívio do executor, a sentença de morte. O destino da menina foi entregue nas mãos de Akihiro. Sem dizer palavra, ele tomou a criança em seus braços. E foi para Akihiro que a menina deu o primeiro sorriso de sua vida.

A menina cresceu. Tinha já quatro anos quando ganhou a primeira boneca. Era uma boneca de cabelos negros, vestindo um quimono vermelho. E a menina sorria para a boneca. Aquele brinquedo era o mais próximo de outra criança que ela já havia visto.

Quando a menina completou cinco anos, Akihiro achou que seria bom ela conhecer outras crianças. A menina ficou encantada com todas aquelas “bonecas” que falavam. Ficou ainda mais encantada ao ver que as meninas andavam! Mas o encanto maior estava em um movimento sublime, um gesto que ela nunca havia sentido: um abraço.

Até mesmo Akihiro nunca a havia abraçado. Nunca lhe passou pela cabeça realizar esse gesto com a menina, afinal de contas, abraços não fazem parte da cultura de um senhor feudal. E também não poderia dar um abraço de verdade na menina, pois um abraço de verdade requer quatro braços – um par de cada pessoa. Sendo assim, abraços não faziam parte da vida da menina.

Mesmo assim, a menina sem braços adorava ver abraços. As outras crianças se abraçavam. Mas o que chamou a sua atenção é que as meninas abraçavam as bonecas também! E as bonecas tinham braços, mas não retribuíam os abraços. Sendo assim, será que ela não poderia ser abraçada também? Como se fosse uma boneca? Ela sorriu. Pediu um abraço. Não recebeu sequer um.

– Não dá pra abraçar você – disse uma menina.

– Por que não? Você pode fingir que eu sou uma boneca...

– Mas você é uma boneca quebrada...

Desde esse dia, a menina não sorriu mais. Descobriu que era uma boneca quebrada. Olhava para a sua boneca, com os braços saindo do quimono vermelho. Desejou ser ela, uma boneca com braços. Ninguém quer brincar com uma boneca quebrada. Ela não comia mais, não falava mais, não sorria mais. Adoeceu.

Akihiro procurou os conselheiros para curá-la. Comprou presentes e agrados, mas nada adiantava. O sorriso da menina sumiu, talvez tivesse partido para o mesmo lugar em que estavam os seus braços e pernas. Em algum lugar, algum lugar...

A notícia de que a menina sem braços estava doente se espalhou. Comovida, uma mulher pediu para entregar, pessoalmente, um presente para a pobrezinha. Ela era uma famosa artífice de bonecas.

A artesã enxugou as lágrimas ao olhar para a menina. Com dificuldade, a criança abriu os olhos e viu uma boneca nas mãos da mulher. Era uma boneca diferente. Uma boneca especial. A menina piscou os olhos. Nunca havia visto uma boneca tão linda quanto aquela. Seus lábios tremeram, lutando para esboçar um sorriso.

– Como... ela... se chama? – perguntou a menina.

A artesã respondeu:

– Ela se chama Kokeshi...

A menina comemorou:

– Nós temos o mesmo nome!

– Eu sei...

A artesã abraçou Kokeshi, enquanto falava algo que a menina não ouvia, porque eram palavras ditas apenas com o coração: “Perdoe-me filhinha... perdoe-me... Mamãe te ama muito”. Mas a menina não ouviu nada disso, apenas sentiu um grande calor em seu peito. Um calor que nunca havia sentido antes – o calor do abraço materno.

Quando Kokeshi nasceu, o pai da menina havia ameaçado matar a criança. Se a mulher não se livrasse do bebê, ele acabaria com mãe e filha. Desde esse dia, a mãe de Kokeshi começou a fazer bonequinhas de madeira. Ela sentia saudades e era essa a única maneira de amenizar a sua dor, a única maneira de pintar um sorriso no rosto da filha. E era uma dessas bonequinhas que a mãe levou de presente naquele dia. A boneca era tão bonita que todas as meninas quiseram ter uma.

As bonecas Kokeshi ficaram famosas por toda a província de Sendai. Bonequinhas cilíndricas de madeira, sem braços nem pernas... Só com uma linda e sorridente cabecinha redonda, porque o sorriso é o que importa na magia de uma boneca. As meninas de Sendai, maravilhadas com essas bonequinhas, passaram a brincar sempre com elas.

Desde então, todas as crianças querem abraçar, também, a sorridente menina Kokeshi.

Minha Estante de Livros (Livros de André Kondo)


Além do Horizonte

O livro narra a história real de alguém que tentou fugir da realidade. Mas para onde se pode fugir quando o que o persegue está cravado em seu peito? Até onde se pode chegar quando o dinheiro acaba e tudo o que resta é a roupa do corpo e uma surrada mochila, que carrega o peso de uma desilusão amorosa, o desprezo de um pai e a culpa pela morte do melhor amigo?

O autor tentou fugir escalando o selvagem Monte Roraima, navegando para uma paradisíaca ilha do Caribe, cruzando a selva amazônica, seguindo os trilhos da morte da Madeira - Mamoré, buscando proteção nas muralhas de uma fortaleza perdida nos confins do Brasil, pegando carona nas estradas mais remotas, pedalando uma velha bicicleta pelo Pantanal, caminhando 400 quilômetros pelas tortuosas vias do Caminho da Fé, tentando se perder na multidão da festa dos bois de Parintins e dos touros do rodeio de Barretos, se enterrando em um cemitério abandonado de uma cidade fantasma, dormindo nas ruas entre mendigos, acampando no mato entre malucos na grande Chapada dos Guimarães... e encontrando, pelo caminho, pessoas incríveis que lhe ensinaram a ter a coragem necessária para nunca mais fugir da vida. Pessoas que lhe mostraram o caminho que o levaria à paz de espírito, em algum lugar, “além do horizonte”...
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O pequeno samurai

Os samurais eram guerreiros japoneses que se destacavam pelo rigoroso código de conduta, defendendo a justiça, a coragem, a compaixão, a cortesia, a sinceridade, a lealdade e a honra. Em O pequeno samurai, Yuji narra como descobriu, com a ajuda de seu avô, que era um pequeno samurai e como isso o ajudou em sua longa jornada rumo ao Brasil. De forma sensível e emocionante, o menino descreve como foi a despedida de sua terra natal, a aventura de viajar de navio até o outro lado do mundo e a descoberta de que no Brasil também existiam samurais.

Finalista do Prêmio Jabuti, em 2009, Dupla Menção Honrosa (júri técnico e júri infantil) no Prêmio Nacional de Literatura João-de-Barro.
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Contos do Sol Poente

Após Contos do Sol Nascente e Contos do Sol Renascente, com milhares de exemplares vendidos e vários prêmios recebidos, chega aos leitores Contos do Sol Poente, que já recebeu o Prêmio Humberto de Campos, concedido pela UBE no Rio de Janeiro, como melhor original inédito de contos. Individualmente, as 18 histórias desta obra receberam outros 29 prêmios literários. Para além das premiações, a obra traz a força dos imigrantes, neste caso, os japoneses, de quem André Kondo é descendente. O sonho, a determinação, os valores e todos os componentes que perfazem a jornada de um povo em busca de uma vida melhor são encontrados nesta obra.

O Sol Poente, em contraposição ao Sol Nascente, traz a metáfora do ocaso da vida, mas não se trata de um fim, mesmo para esta já consagrada trilogia. Afinal de contas, quando o sol se põe em um lugar, significa apenas que ele está nascendo em outro.

Contos do Sol Poente ainda conta com ilustrações de Alessandro Fonseca e textos de um notável trio, todos detentores do Prêmio Jabuti: Oscar Nakasato (orelha), Antônio Torres (texto biográfico) e Célia Sakurai (prefácio).

Esta obra é um convite para buscarmos as nossas próprias sagas, antes que o Sol se ponha...
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André Kondo nasceu em Santo André e foi criado em Taubaté, filho de imigrantes japoneses. É autor de 13 obras, sendo 12 premiadas, incluindo uma tradução desta obra em japonês e outra finalista do Prêmio Jabuti. Morou na Austrália, onde fez pós-graduação pela University of Sydney, e no Japão, tendo visitado desde a gélida Hokkaido no Norte, passando por Honshu, Shikoku e Kyushu, até as ilhas tropicais de Okinawa ao Sul. A convite do Governo do Japão, recebeu a prestigiosa bolsa Gaimusho Kenshusei em 2020, tendo a honra de ser recepcionado por membros da família imperial japonesa. Recebeu mais de 400 prêmios literários, incluindo o Prêmio ProAC por Histórico de Realização em Literatura, concedido pelo Governo de São Paulo. Foi autor homenageado da 2.ª Festa Literária de Jundiaí. É membro correspondente de entidades como a ATL, ASES, AMLAC e membro da Comissão de Atividades Literárias do Bunkyo, fazendo parte da diretoria da Associação Cultural e Literária Nikkei Bungaku e da Associação Brasileira de Ex-Bolsistas Gaimusho Kenshusei. Como autor, chegou a receber o Selo Cátedra Unesco de Leitura PUC-RIO e o Altamente Recomendável da FNLIJ, em uma obra em coautoria, na qual escreveu sobre a sua família. É editor da Telucazu Edições, pela qual tem publicado autores e autoras que estão despontando no cenário literário contemporâneo, com várias obras premiadas. Site: www.andrekondo.com

domingo, 12 de dezembro de 2021

Daniel Maurício (Poética) 13

 

Carlos Drummond de Andrade (Trem de Contos) 44, 45 e 46


CASAMENTO POR CINCO ANOS


Da ideia de prorrogar os mandatos populares defluiu a ideia de prorrogar o casamento de Bertoldo Seixas, cujo contrato matrimonial estipulava o prazo de cinco anos de vigência.

Não partiu de Bertoldo a iniciativa, mas de sua mulher Eufórbia, que alegou ser muito exíguo o período de cinco anos para se decifrar a verdadeira sociedade conjugal. Bertoldo respondeu que contrato é contrato, e como tal deve ser cumprido, a menos que haja motivo justo para rescisão.

Como Eufórbia insistisse em seu ponto de vista, Bertoldo anuiu sem convicção, e prorrogou-se o casamento por prazo indeterminado, isto é, para a eternidade.

Ao fim de seis meses de prorrogação, a mulher sentiu o peso da eternidade e propôs o cancelamento da união. Bertoldo opôs-se, alegando mais uma vez que os contratos merecem ser cumpridos. Discutiram bastante, e acordaram afinal em dissolver o vínculo.

Bertoldo e Eufórbia voltaram a casar-se por cinco anos improrrogáveis, mas com outra parceira e outro parceiro, respectivamente. Parece que são razoavelmente felizes.
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CRIME E CASTIGO

Interrogado pelo comissário, jurou inocência. Inquirido pelo delegado, voltou a jurar. Não acreditaram. Foi indiciado, pronunciado, julgado,condenado. Sempre gritando que estava inocente.

No fim de cinco anos de prisão, acabou convencido de que era mesmo culpado. Pediu que o julgassem novamente, para agravamento de pena. Em vez disto, soltaram-no porque findara a pena.

Saiu confuso, já não tinha certeza se era culpado ou inocente, ou as duas coisas ao mesmo tempo. Como toda gente.
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DESEMPREGO

— Não está me reconhecendo? Sou a terceira mulher do sabonete Araxá. Aquelas do anúncio.

— Eu sei. As três mulheres do poema de Manuel Bandeira.

— Não, do anúncio do sabonete. O poema veio depois, nós já existíamos antes.

— E que foi feito das duas outras?

— A primeira passou a trabalhar para a Sentinela Juropapo. A segunda está no galarim, só trabalha para a Secom. Eu estou desempregada, não dá para me arranjar uma boa mordomia no INPS? Sei que é difícil me aposentar, porque já tenho idade de sobra, mas…

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. Publicado em 1981.

Baú de Trovas XXXVIII


Se a moda seguir assim,
sempre encurtando os vestidos,
está bem próximo o fim
das fábricas de tecidos...
A. A. DE ASSIS
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Moça sabida, a Nair
também sabe gracejar:
diz que o dia é pra dormir
e a noite... pra trabalhar.
ADERBAL DE QUEIRÓS
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Vejo em ti, coroa rica,
dois males que não têm cura:
— capa de pura pelica,
— cara de pelanca pura!
ALOISIO ALVES DA COSTA
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Ele opina sobre tudo.
Gesticula, ordena, fala...
De repente, fica mudo,
porque a sogra entrou na sala..
AMÉLIA TOMAS
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Homem gordo é o "seu" Tadeu,
nunca vi tamanha pança.
— Foi com razão que nasceu
sob o signo da balança!
ANTÔNIO ROSALVO RIBEIRO ACCIOLY
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Com uma festinha à toa,
que não requer muito estudo,
qualquer secretária boa
vence um patrão carrancudo...
APARÍCIO FERNANDES
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Quando te vejo, vizinha,
corpo bem feito a gingar,
eu lembro um violão que eu tinha,
sem nunca poder tocar...
ARAÍFE DAVID
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Beijo-te a carta e bendigo
tuas juras, desta vez,
com tal amor, que mastigo
teus erros de português...
ARLINDO BARBOSA
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Sete mulheres por homem,
o censo afirma e repete.
— Gostaria de saber
quem levou as minhas sete...
ARY DE OLIVEIRA
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O furto, se praticado
pela alta aristocracia,
toma um nome arrevezado:
passa a ser cleptomania...
BENEDITO R. ARANHA
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Vem, Maria, ao meu amor,
que, com jeito, a gente arranja
botar no congelador
tuas flores de laranja...
CARLOS GUIMARÃES
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Cama nova, bem limpinha...
Nome dela numa fronha...
Ela própria, engraçadinha...
Que beleza, hein, sem-vergonha?
CHICO VEIGA
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Com aquele rebolado
que é tão fora do comum,
a mulher do delegado
também prende qualquer um...
COLBERT RANGEL COELHO
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Não tenhas medo, querida,
que agora eu quero é viver:
com este custo de vida,
quem é que pode morrer?!
EURICLES BARRETO
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Ordena a viúva triste:
— "Vistam-lhe o mais rico terno!"
Pergunto: será que existe
tanta festa lá no inferno?...
HERALDO LISBÔA
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O Eterno, lá dos confins,
é credor das nossas loas:
se fez tantos homens ruins,
fez muitas mulheres boas!...
JACY PACHECO
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Teus foros de sapiência
a outros têm iludido.
Não a mim, tenho ciência
que não és sábio, és sabido...
J. DIAS DE MORAES
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Em plástica, o doutor diz:
— Que operação oportuna!
Diminuo este nariz
e aumento minha fortuna!...
MAGDALENA LÉA
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Sobre a pinga, tagarela,
falava um pau d'água assim:
— Eu já não gosto mais dela,
ela é que gosta de mim!
NELSON FERREIRA DA LUZ
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Quero uma casa pequena,
que seja só de nós dois.
O resto, minha morena,
eu só te digo depois...
OSWALDO VALPASSOS
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Se as sogras más desta terra
se unissem num batalhão,
venceriam qualquer guerra,
sem fuzil e sem canhão...
P. DE PETRUS
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Eras do João e eu dizia:
– Que sorte tem o ladrão!
Hoje que és minha, Maria,
que inveja tenho do João!...
PAULO EMÍLIO PINTO
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Na história do educandário
há um milagre convincente:
o do professor primário,
que transforma um burro em gente.
PAULO FÉNDER
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Nos braços que me prenderam
passei anos de alegria.
Duas letras se inverteram
e fiquei com alergia...
RODRIGUES CRÊSPO
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Quem casa com mulher feia
ganha em dobro, na jogada:
mesmo cobiçando a alheia,
nunca a dele é cobiçada...
SERAFIM SOFIA
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Era coisa já sabida
que ele nascera em São João:
por isso venceu na vida
à custa do pistolão…
SEBASTIÃO VASCONCELLOS
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Seu critério nas consultas
— talvez um dos mais sutis —
é cobrar contas adultas,
pelas curas infantis.
SYLVIO MACHADO
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Todo homem é um diabo,
não há mulher que o negue.
Mas todas elas procuram
um diabo que as carregue!
TROVA POPULAR ANÔNIMA

Fonte:
Aparício Fernandes. A Trova no Brasil: história e antologia. São Cristovão/RJ: Artenova, 1972.

Sammis Reachers (Cavalo ou égua?)

O motorista Marcão havia há pouco tempo saído da manobra ou escolinha. Como é de praxe na empresa Ingá, foi posto para trabalhar no sereno ou bacurau (o turno da madrugada}, para ganhar experiência.

Em mais uma noite de serviço, após rodar pra lá, rodar pra cá, lá pelas cinco da manhã, nosso amigo Marcão, homem tímido porém mulherengo, segue sonolento, carro vazio, já em sua última viagem. A linha é a 24, Palmeiras x Gragoatá. O dia começava a clarear, e Marcão apagou as luzes do salão, deixando o carro na penumbra.

Chegando em frente ao Plaza Shopping, no sentido de quem ia para o bairro do Gragoatá, àquelas horas, tranquilo e deserto, uma mulher dá sinal. Marcão para, abre a porta, ainda sonolento e desinteressado. A moça passa na roleta. Ao perceber que não havia outros passageiros no veículo, ela diz:

- Carro vazio, hein! Que legal. Bom para namorar... E aí, como você vai querer que eu pague a passagem, no dinheiro ou... Quer fazer alguma outra coisa?

Ao ouvir tal pergunta indiscreta, nosso sonolento e tímido Marcão deu como que um pulo no banco, entre assustado e já eriçado. Pensou em seu coração;

- É hoje! É hoje que eu tiro o atraso!

Já prestes a responder à moça, Marcão, agora sim bastante interessado, acende as luzes do salão e olha bem para a menina, pelo espelho retrovisor. Era bonita, a danada! Mas Marcão nota algo estranho, olhando para o pescoço dela: a "moça" possui um enorme pomo-de-adão, um enorme gogó, como se diz. Bem, para um bom entendedor, um pomo basta: aquilo significava que aquela Coca-Cola era Fanta, que aquela égua era na verdade um cavalo: um tremendo traveco...

Já murchinho em seu banco, Marcão respondeu:

– Dinheiro mesmo...

Fonte:
Ron Letta (Sammis Reachers). Rodorisos: histórias hilariantes do dia-a-dia dos Rodoviários. São Gonçalo: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

sábado, 11 de dezembro de 2021

Versejando 92

 

A. A. de Assis (A Santa “Cola”)

A turminha do terceiro ano do ginásio entrou assustada na sala. Haveria prova de matemática na primeira aula. O professor distribuiu a folha com as questões. Momentos após flagrou um dos alunos entregando um papelzinho ao colega que estava na carteira ao lado e que parecia muito nervoso. O mestre foi lá, pegou o papel, enfiou no bolso, deu a maior bronca: “Vão os dois para a diretoria. Tudo admito, mas cola não. E logo você, Valtinho, que sempre me pareceu um aluno exemplar. Já para fora os dois. Nota zero”.

Os meninos tentaram explicar, não adiantou, saíram os dois chorando. Só então o professor tirou do bolso a “cola” e leu o que estava escrito. Empalideceu de vergonha. Era só um bilhetinho de encorajamento de colega para colega: “Entregue suas preocupações ao Senhor” (Salmo 55:22). Bem sem graça ao reconhecer seu ato falho, chamou de volta os garotos e mandou que fizessem a prova. Pediu desculpas na frente de todos. A classe aplaudiu. Valtinho, como de costume, ganhou 10; o colega que recebeu o bilhetinho com o salmo ganhou nota 8.

Passaram-se os anos. Já morando em Maringá, fiquei sabendo que Valtinho se tornara pastor. Hoje ele mora no céu e de lá certamente continua recomendando a cada amigo: “Entregue suas preocupações ao Senhor”.

Essa historinha aconteceu há mais de 70 anos, mas continua nítida em minha velha memória. Toda vez que me lembro dela fico pensando no sofrimento daquele professor. Ele tinha fama de bravo, porém no fundo era muito gente boa. Deve ter perdido algumas preciosas horas de sono remoendo remorsos pela injustiça involuntariamente cometida.

Por ser a ”cola” uma prática tão antiga quanto a própria escola, qualquer professor, vendo um aluno passar um papelzinho a outro durante a prova, de pronto supõe tratar-se de uma tentativa desleal de ajuda ao colega. Todavia no caso não era. E deu no que deu.

Decerto foi para evitar situações embaraçosas como essa que Jesus, o máximo sábio, alertou os seus discípulos: “Cuidado… não julguem pelas aparências”. As aparências muita vez enganam. Daí a generalizada aceitação do princípio segundo o qual “in dubio pro reo” (na dúvida, decida-se a favor do réu), ou seja: “melhor um culpado solto do que um inocente preso”. Claro: há sempre o risco de alguém desvirtuar o “in dubio”, usando-o indevidamente em benefício de pessoas comprovadamente culpadas. Mas, mesmo assim, até em nome da civilização, é fundamental que se mantenha válida a bela máxima jurídica.

Julgar é muito difícil – implica enorme responsabilidade. Um mínimo erro de interpretação pode levar o julgador a tomar decisões gravemente defeituosas.

E todos nós, por algum lapso, ou mais frequentemente por boa-fé, estamos sujeitos a cair nas teias de enganosas aparências. Conclusões apressadas são, portanto, arriscadas demais. Nem sempre o que parece “cola” é realmente “cola”. Pode ser um belíssimo salmo.

Obrigado, Valtinho. Valeu a lição.

(Crônica publicada no Jornal do Povo, 15/07/2021)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

E-Book Tertúlia da Saudade: Cláudio de Cápua


Ebook em homenagem a Cláudio de Cápua, com trovas, poemas, letras de músicas, crônicas, contos, etc. obtidos em seus livros e site que possuía, a maioria postada neste blog.

Cláudio de Cápua, aviador, jornalista cultural, participou de filme e novelas, júri em programas de TV, editor da Revista Santos, Arte e Cultura, foi um dos fundadores da Seção cidade de São Paulo da União Brasileira dos Trovadores.

Veja mais sobre ele no ebook, você pode ler na tela de seu aparelho ou fazer o download dele (são 60 páginas em PDF) clicando AQUI.



Paulo Leminski (Versos Diversos) 14

Amor, então,
também, acaba?
Não, que eu saiba.
O que eu sei
é que se transforma
numa matéria-prima
que a vida se encarrega
de transformar em raiva.
Ou em rima.
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parem
eu confesso
sou poeta

cada manhã que nasce
me nasce
uma rosa na face

parem
eu confesso
sou poeta

só meu amor é meu deus

eu sou o seu profeta
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o barro
toma a forma
que você quiser

você nem sabe
estar fazendo apenas
o que o barro quer
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o poema
na página
uma cortina

na janela
uma paisagem
assassina
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inverno
primavera
poeta é
quem se considera
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à pureza com que sonha
o compositor popular

um dia poder compor
uma canção de ninar
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no que eu sinta
sim um pouco de papel
muito de fita
e um tanto de tinta

pego esse mundo
bato na cabeça
quem sabe eu esqueça
quem sabe ele enfim

haikai do mundo
haikai de mim
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duas folhas na sandália
o outono
também quer andar
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hoje à noite
até as estrelas
cheiram a flor de laranjeira
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a palmeira estremece
palmas para ela
que ela merece
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relógio parado
o ouvido ouve
o tic tac passado
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passa e volta
a cada gole
uma revolta
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bateu na patente
batata
tem gente
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verde a árvore caída
vira amarelo
a última vez na vida
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no espelho
    de relance
a cor do sonho
    de ontem

Fonte:
Paulo Leminski. caprichos & relaxos. Publicado em 1983.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

A. A. de Assis (Saudade em Trovas) n. 21: Sophia Irene Canalles

 

Silmar Böhrer (Croniquinha) – 38 –

Sabemos que no sul do Brasil os invernos são rigorosos, inclementes, como dizem muitos. Nos dias de céu limpo, aqueles céus-azul-inspiração, mal cai a tarde já o frio investe até no garrão dos viventes.

Chega a noite, sai-se à rua onde encontra os jardins com interessantes coberturas - panos, toalhas, lençóis - feitas proteção dos verdes e flores que serão acossados pela tradicional geada. A paisagem noturna torna-se pitoresca com a visão de lobisomens e duendes varando madrugadas.

Noite fria enluarada / eu saio à rua inspiração / e vejo tanta assombração / escondendo as flores da geada.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Professor Garcia (Poemas do Meu Cantar) Trovas – 12 –

Ama a vida sem temor,
foge dos vis malefícios...
Quem perde a essência do amor
ganha a existência dos vícios!
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Às vezes mantenho a calma,
com certos sorrisos falsos,
para evitar que minha alma
curve-se a tantos percalços!
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Confessa um nobre ao plebeu,
que de nada se maldiz:
És bem mais feliz do que eu,
que sou um nobre infeliz!
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Das vozes que Deus envia,
o mais suave estribilho
vem da mãe, que ao fim do dia,
consola o choro do filho!
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Faça o bem a quem merece
e ensine ao próximo, o bem;
triste daquele que cresce
pisando os pés de outro alguém!
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Justiça cega? Me assusto,
que vergonhosa ilusão:
Cega? E prende um pobre e justo,
mas solta um rico e ladrão!
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Justiça!… Que desencanto!...
E, em decisões desiguais,
há mais riso do que pranto
nesses velhos tribunais!
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Morre a tarde e ao fim do dia,
lá nos varais da ilusão...
Há muito mais nostalgia
nas fraldas da solidão!
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Ninguém diga que não ama,
nem que nunca amou ninguém...
Que é por amor, que se clama,
pelo perdão de outro alguém!
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No banco da praça antiga,
ao longe, uma voz sem graça,
repete a mesma cantiga
da saudade que não passa!
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No casebre arruinado,
fecho os olhos, que surpresa:
Vejo sombras do passado
repartindo o pão na mesa!
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Nos momentos mais tristonhos,
a solidão, sem cautela
tenta jogar nos meus sonhos
as cinzas dos sonhos dela!
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Nosso amor, desde criança
faz tudo quanto precisa,
para orvalhar de esperança
os passos por onde pisa!
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Ó, velho destino atroz,
por que me tratas assim?.,.
Não vês que existe entre nós,
princípios que não têm fim?!...
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O vento que beija a flor,
no galho onde a flor se arrancha,
nem deixa marcas no amor,
nem deixa mágoas, nem mancha!
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Por que sempre ao por do sol
a tristeza se revela,
se Deus, na luz do arrebol,
põe sempre a tinta mais bela?!...
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Quando o por do sol me acalma
no silêncio em que medito,
eu sinto que o sol tem alma,
e a alma dele, é o infinito!
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Revendo fotos antigas,
em meio a tantas lembranças...
Vi muitas almas amigas
brincando como crianças!
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Se a solidão não tem fim,
nem dela, se escuta a voz...
Então, por que mesmo assim,
há solidão entre nós?!...
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Se o nosso amor se rebela
e se desfaz sem queixume,
essa culpa se revela,
na culpa do teu ciúme!
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Se tu crês na mão do amor,
sintas na mão que te afaga...
Que a mão que esmaga uma flor,
é a mão que também te esmaga!
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Só se acabava essa dança,
da maldade e do desdém...
Se a inocência da criança,
fosse a do adulto também!
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Temente a Deus e sozinha,
curva-se a pobre pagã,
e canta uma ladainha,
no altar mor da fé cristã!
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Um grande amor se descobre,
quando o prazer se agasalha...
Não, no palácio do nobre,
mas num casebre de palha!
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Um tempo!... Tu me pediste!
E foi esse tempo dado,
o instante de amor mais triste,
dos que vivi a teu lado!

Fonte:
Professor Garcia. Poemas do meu cantar. Natal/RN: Trairy, 2020.
Livro enviado pelo autor.

Samuel da Costa (O Negro Caetano)


Em memória de Miguel Maria da Costa


l
Era um silêncio constrangedor que se abatera na sala de jantar. O requinte da mesa sugeria que aquela seria uma família abastada. Dos talheres de prata dispostos na mesa aos aparelhos de cristais importados do velho continente.

Mas o que permanecia na cabeça das pessoas ali sentadas eram os gritos ensurdecedores de dor, há poucas horas passadas. Mas no coração e na mente do rico fazendeiro Adamastor de Sousa Andrade, aquele negro tinha ido longe demais ao afrontá-lo em público. Por isso tinha que chicoteá-lo: — Aquele negro maldito teve o que mereceu — resmunga o velho coronel sem levantar a cabeça e transparecendo uma profunda irritação em seu tom de voz. Sua mulher, já com a saúde frágil, decide ficar quieta como sempre ficava, bem como a filha do casal Sousa Andrade. Ambas conformadas com os constantes excessos de fúria do coronel.

Para Adamastor, já não bastava ver seu único filho homem criado com tanto zelo, voltar-se contra ele, monarquista e escravocrata convicto. Não poderia abrigar em seu lar, um republicano e abolicionista, mesmo que fosse seu filho. Não restando outra saída senão expulsá-lo de casa. O fato, de não saber onde tinha errado na educação daquele menino, deixou Adamastor profundamente magoado.

Sentado à mesa ainda ressonava na cabeça do velho coronel as palavras do negro Caetano posto no tronco: “- Vosmecê vai morre por dentro, coroné!” Aquelas palavras foram demais e ele tinha que pegar na chibata e pessoalmente dar uma lição no mondongueiro, tinha que chicoteá-lo até a morte. E em público, para que todos soubessem quem realmente mandava ali era ele, Adamastor, e ninguém mais. O sangue do escravo negro jorrou no chão e respingou em quem estava por perto.

ll
Atordoado pelo efeito do álcool na mente do outrora poderoso coronel Adamastor de Sousa Andrade, trazia as lembranças das palavras do negro Caetano: “- Vosmecê vai morre por dentro, coroné!” — Maltrapilho e macambúzio, perambulando pelas ruas da cidade, o velho coronel revê em sua combalida mente a mulher e filha, acometidas de uma doença grave e misteriosa, morrerem lentamente, sem ele nada poder fazer. Revê seu filho e adversário político vencê-lo na política. Seus fiéis amigos de longa data, lhe virando as costas um a um.

Contudo o que mais doía no peito no velho curumba, foi ver sua fazenda de café, a maior e mais produtiva da região, arruinar-se por causa de uma praga desconhecida, que ninguém jamais vira antes na região.

Aquilo significava realmente que ele tinha morrido por dentro.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Jaqueline Machado (O Pacto)


Pela beleza, se for preciso,
minto, roubo, engano e mato.
Diante da fonte, morreu Narciso,
mas eu não resisto ao meu retrato
.

No livro, o Retrato de Dorian Gray, do célebre autor, Oscar Wilde, o protagonista que dá título ao nome da obra, era um rapaz rico, belo e bom. Até que certo dia numa festa, conhece um pintor que deslumbra-se com sua beleza e aos poucos sua mente começa a mudar. Na verdade, Dorian não tinha consciência de sua estética maculada e perfeita. Sua beleza era rara já que manifestava –se em seu físico e, em seu interior, expressando sempre bons sentimentos.

Mas os dias passaram, a sua pintura foi feita. E só então ele se deu conta do quanto era belo e passou a se admirar tal qual Narciso na frente daquele quadro. A narrativa do livro descreve esse momento com as seguintes palavras:

Um ar de felicidade surgiu em seus olhos, como se ele tivesse se reconhecido pela primeira vez. O sentimento da própria beleza o assaltou como uma revelação. Ele nunca tinha o sentido antes. – Como é triste, murmurou Dorian Gray, eu vou ficar velho, horrível e medonho. Ele já jamais envelhecerá além desse dia de junho. Se pudesse ser diferente. Se eu pudesse permanecer sempre jovem e o quadro envelhecesse em meu lugar? Por isso eu daria tudo, não há nada em todo o mundo que eu não daria. Daria a minha alma por isso”. Sem perceber ele selou um pacto. A partir desse dia o jovem não mais perderia a sua juventude. Os sinais dos anos passarão para o quadro que ficou escondido dentro de um quarto fechado.

Ao fazer o pacto, sua inocência adormeceu. E como toda pessoa desalmada, passou a cometer muitos atos de crueldade.

Tudo em vão. Ao término da história, Dorian se desintegra junto do retrato.

Eis aí, a prova de que até podemos ser importantes para o mundo, mas chegamos a menos que nada, quando trocamos as verdadeiras riquezas, para desfrutar do que a vaidade nos oferece.

Muitos podem ser belos, bons e humildes, no entanto, a maioria de nós, no decorrer da jornada, se deixa seduzir pelo tal fruto proibido. Mergulha no mar de lama da falsidade e vira as costas para a luz do amor.

Esses pobres coitados, estão adormecidos nas garras da ignorância. Colocam Deus como se fosse uma espécie de Satanás, quando na verdade ele é o Deus das coisas simples e do bem fraterno. Grandeza celestial é tudo o que o Grande Pai nos oferece e deseja receber.

A vaidade faz parte do mundo e sempre fará. A sua função é provar os seres que se dizem humildes mas não são. Revelar os lobos que circulam pela Terra em peles de cordeiro. Esses que se deixam levar pelas mentiras da vida, pensam estar certos. No caminho da razão. Consideram-se ricos, quando na verdade estão nus, miseráveis e cegos.

Não esqueçamos: “Nem tudo o que parece ser, realmente é...”

Fonte:
Texto enviado pela autora.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

Adega de Versos 61: Solange Colombara

 

Maria Helena Ururahy Campos da Fonseca (Caderno de Trovas)

A brisa o perfume espalha
na planície em Goytacazes.
Esse odor de cana e palha
és tu, saudade, quem trazes.
= = = = = = = = = = =
A esperança que norteia
a vida sempre a girar
é a força que semeia
coragem pra caminhar...
= = = = = = = = = = =
Anoitecer da jornada,
quando desponta o cansaço,
eu me sinto renovada
no calor do teu abraço.
= = = = = = = = = = =
Antes de morrer na Cruz,
Jesus Cristo, nosso irmão,
mistério de fé e luz,
partilhou conosco o pão.
= = = = = = = = = = =
Ao cair da tarde fria,
e quando a luz já se evade
eu tenho por companhia
os suspiros da saudade...
= = = = = = = = = = =
As luzes do alvorecer,
em matiz resplandecente,
apagam-se ao entardecer,
levando os sonhos da gente...
= = = = = = = = = = =
Com retalhos de lembrança
eu costurei, sem maldade,
meus amores de criança
com suspiros de saudade...
= = = = = = = = = = =
Em uma gaiola encanta,
lindo pássaro a cantar!
Sem liberdade ele canta,
porque não sabe chorar...
= = = = = = = = = = =
E procurando ensinar,
a minha vida passei,
pra no final constatar;
aprendi mais que ensinei.
= = = = = = = = = = =
Estrela, eterna magia,
que traz à mente esquecida
lampejo que contagia
a saudade adormecida.
= = = = = = = = = = =
Eu relembro a mocidade
sem perjúrio e sem revolta,
mas como dói a saudade
do tempo que não mais volta…
= = = = = = = = = = =
Menina, que beijo doce!
Gostoso, vadio, arisco.
Teu beijo é como se fosse
saborear um chuvisco.
= = = = = = = = = = =
Meu peito pulsa saudade,
sem chance, mas sem revolta,
relembrando a mocidade
que já se foi... não tem volta.
= = = = = = = = = = =
Meu sorriso de beleza
com o tempo se apagou,
desgaste da natureza,
até meu espelho embaçou.
= = = = = = = = = = =
Na solidão do meu leito,
quando a esperança se evade,
eu pranteio o amor desfeito,
triste missão da saudade.
= = = = = = = = = = =
Niterói doce lembrança
que nem o tempo destrói.
Volto ao tempo de criança...
E como a saudade dói!
= = = = = = = = = = =
Na trilha da vida, as flores
encontradas nos caminhos,
às vezes, trazem sabores,
às vezes, trazem espinhos.
= = = = = = = = = = =
O abraço por gentileza
é bom até, quando dado,
mas bom mesmo, com certeza,
o abraço do ser amado!
= = = = = = = = = = =
O ciúme é sal da vida,
não sofra à toa, por favor,
quem não o sofre, querida,
é porque não tem amor.
= = = = = = = = = = =
O recado tão sonhado
que você tanto esperou
ficou sempre resguardado;
o correio não entregou.
= = = = = = = = = = =
Privado da liberdade
lindo pássaro cantador,
na gaiola, de saudade,
canta triste a sua dor…
= = = = = = = = = = =
Quando a bruma surge morna
e anuncia o fim do dia,
a saudade então se torna
a mais triste companhia.
= = = = = = = = = = =
Quando a vida já findando,
vai levando a nossa história,
o passado vai lembrando
que o viver é uma vitória.
= = = = = = = = = = =
Rosa flor, beleza ingrata,
nuance, perfume, cor!
Teu espinho que maltrata
mistura beleza e dor.
= = = = = = = = = = =
Tão longe, triste soava
aquele som cristalino...
Era a saudade, chorava,
nas cordas do violino.
= = = = = = = = = = =
Um dia a nossa amizade
em amor se transformou:
amor sublime, verdade,
que o tempo nunca apagou...
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Maria Helena Ururahy Campos da Fonseca, acadêmica fundadora do Ateneu Angrense de Letras e Artes e da Delegacia da UBT/Angra dos Reis, onde continua participando ativamente.

Presidiu o Ateneu Angrense de Letras e de Artes por dezessete mandatos (dois anos cada), alternadamente. Pertence, ainda, a outras instituições culturais. Integrou o Conselho de Cultura de Angra dos Reis de 1978 a 1991. Em 2007, retornou ao Conselho de Cultura, representando a setorial de Literatura.

Professora efetiva do Estado do Rio de Janeiro e do Município do Rio de Janeiro na área de Língua e Literatura Portuguesa. Exerceu o Magistério durante 47 anos. Durante a trajetória profissional dedicada ao Magistério, participou de cursos de especialização nas áreas pedagógica, linguística, literária e cultural.

Aposentada, participou do Curso de Extensão Cultural da Mulher, no Clube Militar do Rio de Janeiro, interrompido pela pandemia. Reside em Angra dos Reis.


Fonte:
Autores diversos da UBT-Angra dos Reis. Sementes poéticas. SP: Daya Ed., 2021.
Livro enviado por Jessé Nascimento.

Aparecido Raimundo de Souza (Porque?!)

EU QUERIA SABER o porquê de tantas coisas, e mais que saber, queria conseguir entender e, sobretudo, assimilar, perceber, compreender. Compreender, no sentido amplo de enlaçar, circundar, alcançar, ultrapassar aquela luminosidade forte e brilhante, densa e pesada, profunda e complexa que clareia todo meu ‘eu’ interior.

Mas, a mim me parece que, apesar de estar tudo desabrochado e ostensivamente manifesto, me pego amarrado. Digo tal coisa, porque sempre que procuro por respostas, cada vez que me empenho com certa ênfase em buscar o ‘xis’, desvendar o segredo, me deparar com a confidência do mistério, o enigma que me cerca e me rodeia, por todos os lados, não sei bem explicar qual a razão... desfalece.

Por assim dizer, observo que alguma coisa mais forte que a minha intenção me tolhe os movimentos, me embaralha as ideias, numa espécie de ebulição inquietante, ao tempo em que me obsta e acorrenta a vontade de seguir adiante. É como se algo incomensurável me podasse, me desviasse, me afastasse e me restringisse da rota programada. Apesar dos empecilhos que me sufocam e me tiram o ar, eu queria saber o porquê de tantas coisas...

Porque ser concebido, porque receber o ar benfazejo, porque esperar nove meses e nascer, se um dia nós vamos morrer? Porque viver, durar tantos e tantos anos, permanecer por aqui, se no decorrer, nós vamos sofrer? Afora isto, bem sei, chegará o tempo em que a esperança irá embora... como, igualmente, algum tempo depois, a nossa fé se extinguirá e se esgotará completamente.

E eu, na minha incerteza medonha e grandiosa, me questiono: e agora? Porque falar, falar, falar se não vai valer de nada, absolutamente de nada? Porque me posicionar, se ninguém vai me enxergar? Sou tão pequeno, tão comum, tão limitado e sem horizontes, que sequer serei notado, visto, encontrado, achado ou conhecido...

Desesperado, sem saber o que fazer, ou como agir, olho para o céu e tento falar com Deus. ‘Pai, porque me colocas em um lugar onde as pessoas só querem me pisotear, me alcachinar, me arrasar? Porque me deixa ao léu, para ser esmagado, enfraquecido, aniquilado e humilhado? Porque me provas e me martiriza, me afliges, me molesta e me oprime?...’

‘Senhor, porque me consterna e me angustia, se muitas vezes, não consigo suportar o peso do sofrimento; aguentar o desalento da depressão? Porque me vejo fraco, sem eira nem beira? Porque não encontro forças suficientes para me livrar do peso que me sufoca? Eu queria saber o porque de tantas coisas, e mais, queria saber, queria conseguir entender e, sobretudo, assimilar, perceber, compreender...’

‘Meu Pai, porque nascer, porque viver? Porque? Porque?’
Em resumo de tudo o que disse e escrevi acima,
eu queria saber o porquê
de tantas coisas...
Eu queria conseguir entender
e também compreender...

Porque nascer, se um dia
nós vamos morrer?
Porque viver, se no decorrer
nós vamos sofrer?

Chega o tempo, que a esperança
vai embora...
e chega o tempo
que a nossa fé
se esgota... e, agora?
Porque falar, se não vai valer de nada?
Porque me posicionar,
se ninguém vai me enxergar?

Porque me colocas
em um lugar em que as pessoas
só sabem me humilhar?
Porque me provas
se muitas vezes, não consigo aguentar?

Porque nascer?
Porque viver?
Porque?
Porque?!

Fonte:
Texto enviado pelo autor.