segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

Adega de Versos 71: Mifori (Maria Inês Fontes Rico)

 

Moacyr Scliar (Cobrança)

Ela abriu a janela e ali estava ele, diante da casa, caminhando de um lado para outro. Carregava um cartaz, cujos dizeres atraíam a atenção dos passantes: “Aqui mora uma devedora inadimplente.”

– Você não pode fazer isso comigo! — protestou ela.

– Claro que posso! — replicou ele — Você comprou, não pagou. Você é uma devedora inadimplente. E eu sou cobrador. Por diversas vezes tentei lhe cobrar, você não pagou.

– Não paguei porque não tenho dinheiro. Esta crise…

– Já sei. — ironizou ele — Você vai me dizer que por causa daquele ataque lá em Nova York seus negócios ficaram prejudicados. Problema seu, ouviu? Problema seu. Meu problema é lhe cobrar. E é o que estou fazendo.

– Mas você podia fazer isso de uma forma mais discreta…

– Negativo. Já usei todas as formas discretas que podia. Falei com você, expliquei, avisei. Nada. Você fazia de conta que nada tinha a ver com o assunto. Minha paciência foi se esgotando, até que não me restou outro recurso: vou ficar aqui, carregando este cartaz, até você saldar sua dívida.

Neste momento começou a chuviscar.

– Você vai se molhar. — advertiu ela — Vai acabar ficando doente.

Ele riu, amargo:

– E daí? Se você está preocupada com minha saúde, pague o que deve.

– Posso lhe dar um guarda-chuva…

– Não quero. Tenho de carregar o cartaz, não um guarda-chuva.

Ela agora estava irritada:

– Acabe com isso, Aristides, e venha para dentro. Afinal, você é meu marido, você mora aqui.

– Sou seu marido, — retrucou ele — e você é minha mulher, mas eu sou cobrador profissional e você é devedora. Eu a avisei: não compre essa geladeira, eu não ganho o suficiente para pagar as prestações. Mas não, você não me ouviu. E agora o pessoal lá da empresa de cobrança quer o dinheiro. O que quer você que eu faça? Que perca meu emprego? De jeito nenhum. Vou ficar aqui até você cumprir sua obrigação.

Chovia mais forte, agora. Borrada, a inscrição tornara-se ilegível. A ele, isso pouco importava: continuava andando de um lado para outro, diante da casa, carregando o seu cartaz.


Fonte:
Moacyr Scliar. O imaginário cotidiano. SP: Global, 2001.
Livro enviado pelo autor.

Luiz Damo (Trovas do Sul) XXV

A criança, meiga e pura,
não se envolve na maldade,
ao crescer gera a ruptura
dos votos de lealdade.
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A pedra, quando atirada,
tem poder demolidor,
volta com força dobrada
contra o próprio atirador.
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A vida que nós levamos
pode até não ser aquela
que na vida mais sonhamos,
mas de todas é a mais bela.
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Como as nuvens, eu também,
procurei sombras levar
e ao campo que água não tem
chuvas quis precipitar.
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Da solidez pactual
entre as partes envolvidas,
depende o dom nupcial
para as relações vividas.
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Debruçado lendo um texto
mesmo não sendo exegeta,
devo obter do seu contexto,
a interpretação correta.
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Enfrentar ventos contrários
requer muita habilidade,
sopram sem itinerários
nos campos da falsidade.
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Labor, fonte do progresso,
sonho, motor de uma ação,
movendo a luta ao sucesso
transcende à imaginação.
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Mesmo em idade avançada
o idoso não quer ceder.
diz:  – Tem muita criançada
no esquife a me preceder.
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Mesmo que pareça estranho,
sem largura ou comprimento,
o mundo tem o tamanho
do nosso conhecimento.
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Nada vale a rebeldia
se faltar a solução,
escuro acabava o dia
sem o sol da inovação.
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Na escassez a fome cresce,
também sofre com o excesso,
perde a paz, de luz carece,
quando cai num insucesso.
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Não precisas de proezas
para externar a amizade,
se agires com gentilezas
ganharás a outra metade.
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Ninguém faça à tenra idade,
do inocente um sofredor
e do idoso, à sociedade,
um objeto sem valor.
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Numa chegada sofrida
é difícil não lembrar,
de quem ficou na partida
pelo retorno a esperar.
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Num pedido, nada espero,
além do solicitado,
é melhor um NÃO sincero
que um SIM falso, adocicado.
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O homem teme o semelhante,
mas de Deus não tem temor.
julga-se forte o bastante
pra vencer seu Criador.
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Quando o ser humano atinge
seus cem anos de existência,
embora cansado, finge,
reviver a adolescência.
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Quanto mais tiveres pressa
de o teu destino alcançares,
o próprio tempo começa
dar sinais falimentares.
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Se à noite luzem os campos
com pisca-piscas nos ares,
não passam de pirilampos
fazendo seus malabares.
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Se este mundo que vivemos
não reflete o que buscamos,
é porque nem conhecemos,
aquele aonde nós estamos.
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Sejam cristãos, de verdade,
ou verdadeiros ateus,
nada abala a humanidade
mais que desprezar a Deus.
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Se o seu sonho se perdeu
nas crateras abissais,
talvez, nem asas lhe deu,
pra chegar às siderais.
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Talvez, a maior barreira,
que o cego tem a enfrentar,
não seja a sua cegueira
mas seu tato aprimorar.
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Vive bem este momento.
outro igual podes não ter,
prudência e discernimento
sempre integrem o teu ser.

Fonte:
Luiz Damo. A Trova Literária nas Páginas do Sul. Caxias do Sul/RS: Palotti, 2014.
Livro enviado pelo autor.

A. A. de Assis (100 anos de arte moderna)

No início do século 20 a arte era bem-comportada, parnasianamente certinha, em todas as suas formas de expressão. Inclusive, ou principalmente, a literatura, e primeiro que tudo a poesia, com as suas rimas ricas, sua metrificação matematicamente esmerada, seu vocabulário erudito, suas ousadas metáforas e o charme das suas belas musas.

De repente, porém, o coreto começou a balançar. Com o fim da Primeira Guerra Mundial (1914-18), uma alegre sensação de liberdade espalhara-se por todo o planeta, alvoroçando impulsos e costumes. Veio em seguida (1922) o início das comemorações pelo centenário da Independência do Brasil. Ingredientes bastantes para assanhar ideias de geral mudança.

Foi aí que apareceu uma rapaziada meio que topetuda pregando a aposentadoria do passado e a simultânea inauguração do futuro.

Até então o Brasil era visto como uma extensão de Portugal, a começar pelo idioma. Então os moços acharam que era hora de “desvairar a Pauliceia”, romper com o formalismo tradicional, abrasileirar a gramática, popularizar a estética, enfim deixar solta a inspiração para produzir uma arte mais viçosa, desamarrada de peias e cabrestos.

Para oficializar o agito, organizou-se a barulhosa Semana de Arte Moderna, sediada no Teatro Municipal de São Paulo, nos dias 13 a 18 de fevereiro de 1922. Ou seja, há exatos 100 anos. Poesia, música, pintura, escultura. No palco um time da pesada: Mário e Oswald de Andrade, Graça Aranha, Victor Brecheret, Anita Malfatti, Menotti Del Picchia, Ronald de Carvalho, Guilherme de Almeida, Heitor Villa-Lobos, Di Cavalcanti, Guiomar Novaes.

A repercussão, porém, não foi nada boa. Vaias do auditório, críticas zangadas da imprensa. “Arrogantes”, “irreverentes”... de tudo foram chamados. O público não estava preparado para aceitar tão atrevidas experiências assim de uma hora para outra.

Os críticos diziam: 1. que eram riquinhos esnobes, filhos rebeldes da aristocracia rural; 2. que falavam em desatrelar de Lisboa a cultura brasileira, mas tentavam implantar aqui os modismos trazidos de Paris: futurismo, cubismo, dadaísmo, surrealismo; 3. que poderiam brincar de moderninhos mas sem debochar dos que preferiam o clássico. E por aí afora.

De fato a moçada cometeu alguns erros. Mas o mais grave foi a ideia de que seria preciso desconstruir o antigo para introduzir o novo. Algo assim como demolir Roma para no seu lugar erguer uma Dubai. Ou seja, faltou respeito à arte tradicional. Faltou pedir a bênção aos grandes gênios que brilharam antes. Deveriam saber que ninguém “mata” um Luís de Camões, um Gonçalves Dias, um Castro Alves, um Olavo Bilac.

Porém a “Semana” rendeu também muitos bons frutos. A partir dela ganhamos uma superestrelada geração de megacraques das artes: Portinari, Tarsila, Bandeira, Drummond, Cecília, Guimarães Rosa, Vinícius, Quintana...
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 10-2-2022)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

domingo, 20 de fevereiro de 2022

Daniel Maurício (Poética) 22

 

David J. Pollay (A lei do caminhão de lixo)

Este texto foi erroneamente atribuído na internet a Arnaldo Jabor.
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Um dia peguei um táxi e fomos direto para o aeroporto. Estávamos rodando na faixa certa quando de repente um carro preto saltou do estacionamento na nossa frente. O motorista do táxi pisou no freio, deslizou e escapou do outro carro por um triz!

O motorista do outro carro sacudiu a cabeça e começou a gritar para nós.O motorista do táxi apenas sorriu e acenou para o cara. E ele o fez bastante amigavelmente.

Assim eu perguntei: “Porque você fez isto? Este cara quase arruina o seu carro e nos manda para o hospital!”

Foi quando o motorista do táxi me ensinou o que eu agora chamo “A Lei do Caminhão de Lixo”.

Ele explicou que muitas pessoas são como caminhões de lixo. Andam por ai carregadas de lixo, cheias de frustrações, cheias de raiva, e de desapontamento. À medida que suas pilhas de lixo crescem, elas precisam de um lugar para descarregar, e às vezes descarregam sobre a gente. Não tome isso pessoalmente. Apenas sorria, acene, deseje-lhes bem, e vá em frente. Não pegue o lixo delas e espalhe sobre outras pessoas no trabalho, em casa, ou nas ruas.

O princípio disso é que pessoas bem sucedidas não deixam os seus caminhões de lixo estragar o seu dia.

A vida é muito curta para levantar cedo de manhã com remorso, assim…

Limpe os sentimentos ruins, aborrecimentos do trabalho, picuinhas pessoais, ódio e frustrações.

Ame as pessoas que lhe tratam bem. Ore pelas que não o fazem. E tenha um dia abençoado, livre de lixo!

Lembrem-se da sabedoria da água: “Ela nunca discute com seus obstáculos, simplesmente os contorna”.

Fonte:
David J. Pollay. The law of the garbage truck. 2010.

Angela Dondoni (Poemas Avulsos)

A JORNADA


A vida é constante
Movimento
Tudo nasce
Renasce
A vida é um constante
Construir e
Reconstruir
A vida é um constante
Chorar e sorrir
Um eterno
Comprometimento
Um eterno trilhar e
Agradecer.
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ALINHAVOS

Nas mãos da avó
um pedaço de pano
se tornava um vestido
calça ou casaco
Roupas especiais
Costuradas com as lembranças
De uma infância distante
Os retalhos unidos
Com tanta ternura
Se transformavam
nas mais belas costuras
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ARTÍSTICO

Colore meu rosto
De arco-íris
Borda meu coração
Com estrelas de felicidade
Desenhe nos meus olhos
A esperança
Toque uma música
Para minha alma
Pinte uma aurora Boreal
E me dê de presente
Com a sua companhia
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INFINITO

Olhe para o Alto
Olhe para cima
Preste atenção
O universo é imenso
O cosmos
Observe algo além…

Olhe o movimento das estrelas
O nascimento do sol e da lua
Nada é estável
No ventre da criação

É fantástico!
É milagre!
Observe
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MIGRAÇÕES  

Reconcilie-se
com os seus sonhos
O céu nunca é o mesmo
Às vezes, a lua se mostra
Durante o dia
A primavera pode
Despertar mais cedo
E o vento sempre busca novas rotas
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Angela Dondoni nasceu em Cascavel, no Paraná, tem formação em Letras, é professora e mestre em Letras. Publica poemas e contos em algumas Coletâneas, também publica no Recanto das Letras e Instagram. É autora dos livros “Encontros com Poesia” e “O mundo precisa de poesia”. Membro da Academia Internacional de Literatura Brasileira de Nova Iorque.

Fonte:
Enviado por Isabel Furini

Charles Perrault (Riquete do Topete)


Era uma vez uma rainha que deu à luz um filho tão feio e tão deformado que, durante muito tempo, se duvidou que tivesse forma humana. Uma fada que estava presente quando ele nasceu assegurou que, apesar do seu aspecto, seria amável e muito inteligente. Acrescentou ainda que, graças ao dom que ela lhe concedera, poderia dar à pessoa que mais amasse uma inteligência igual à sua. Estas palavras consolaram um pouco a pobre mãe que estava muito triste por ter posto no mundo uma criança tão feia. Com efeito, mal começou a falar, o menino disse logo coisas engraçadas e inteligentes, causando grande admiração entre quem o escutava.

Já me esquecia de dizer que o menino nasceu com um tufo de cabelo na cabeça, o que fez com que lhe chamassem Riquete do Topete, uma vez que Riquete era o seu nome de família.

Alguns anos mais tarde, a rainha de um reino vizinho deu à luz duas meninas. A primeira era mais bela do que o dia e a rainha ficou tão feliz que temeu que tanta alegria lhe fizesse mal. Estava presente a mesma fada que assistira ao nascimento do pequeno Riquete do Topete e, para moderar a alegria da mãe, disse-lhe que a princesa teria pouca inteligência e que seria tão estúpida quanto era bonita.

A rainha ficou muito triste mas, momentos depois, teve um desgosto ainda maior porque a segunda filha que deu à luz era muito feia.

- Não se aflija, Majestade, – disse a fada – a vossa filha será tão inteligente que a sua fealdade quase não será notada.

- Deus o queira, – respondeu a rainha – mas não haverá meio de conceder um pouco de inteligência à mais velha que é tão bela?

- Não posso fazer no que toca à inteligência, – disse a fada – mas posso fazer tudo em relação à beleza. E como não há nada que eu não faça para vos satisfazer, concedo-lhe o dom de poder tornar bonita a pessoa que ela quiser.

À medida que as duas princesas foram crescendo, cresceram também os seus dotes, e não se falava senão da beleza da mais velha e da inteligência da mais nova. Também é verdade que os seus defeitos aumentaram muito com a idade.

A mais nova estava cada vez mais feia e a estupidez da mais velha crescia de dia para dia: ou não respondia ao que se lhe perguntava ou então dizia uma bobagem qualquer. Além disso, era tão desajeitada que não conseguia pousar quatro xícaras na borda da chaminé sem partir uma, nem conseguia beber um copo de água sem entornar metade por cima do vestido.

Ainda que a beleza seja uma grande vantagem numa jovem, o certo é que a mais nova suplantava quase sempre a mais velha quanto a companhias durante os serões. A princípio, as pessoas rodeavam a mais velha para a verem e admirarem mas, pouco depois, iam para junto da mais inteligente escutar as mil e uma coisas espirituosas que ela dizia. Em menos de um quarto de hora a mais velha ficava sozinha, enquanto que mais nova tinha toda a gente em seu redor.

A mais velha, apesar de ser muito estúpida, apercebia-se do que se passava e teria dado de bom grado toda a sua beleza em troca de metade da inteligência da irmã. A rainha, ainda que ponderada, não conseguia deixar de a repreender pela sua estupidez, o que entristecia ainda mais esta pobre princesa.

Um dia, foi para o bosque para poder chorar à vontade. Nisto, aproximou-se dela um homenzinho muito feio e desajeitado, mas ricamente vestido. Era o jovem príncipe Riquete do Topete que tinha se apaixonado perdidamente por ela, depois de ver os seus retratos que circulavam por todo o mundo. Abandonara o reino do seu pai para ter o prazer de a ver e de falar com ela. Encantado por a ter encontrado sozinha, dirigiu-lhe a palavra com muita delicadeza. Notando a sua melancolia, disse-lhe:

- Senhora, não compreendo como é que uma pessoa tão bela como vós pode estar tão triste. Asseguro-vos que nunca vi beleza semelhante à vossa.

- Isso diz o senhor. – respondeu a princesa.

- A beleza constitui um tal privilégio que supera tudo o resto. Quando alguém a possui, não acredito que exista alguma coisa que a possa afligir muito. – acrescentou Riquete do Topete.

- Preferia ser feia como vós e ser inteligente, em vez de ser tão bela e estúpida como sou. – confessou a princesa.

- Se é só isso que vos aborrece, posso facilmente por fim à vossa dor.

- E como o farias? – Perguntou a princesa.

- Tenho o dom de dar inteligência à pessoa que mais amar. E, como vos amo, dar-vos-ei o que pretendes se aceitares casar comigo.

A princesa ficou sem palavras, tal foi o seu espanto.

- Vejo que este pedido vos desagrada, o que não me admira nada – continuou Riquete do Topete. – Contudo, dou-vos um ano para decidires.

A princesa era tão pouco inteligente e ao mesmo tempo desejava tanto sê-lo que pensou que um ano seria demasiado tempo para esperar. Por isso, aceitou logo a proposta que lhe fora feita.

Assim que ela prometeu que casaria com Riquete do Topete dentro de um ano naquele mesmo lugar, sentiu-se uma pessoa diferente, sem dificuldade em dizer tudo o que lhe apetecia, de uma maneira elegante, clara e natural. Iniciou logo um diálogo de tal forma espirituoso, que Riquete pensou ter-lhe dado mais inteligência do que a que ele próprio possuía.

Quando regressou ao palácio, a corte nem sabia o que pensar da sua extraordinária mudança. Em situações onde outrora ouviam uma quantidade de bobagens, ouviam agora pensamentos claros e muito espirituosos. A única pessoa que não ficou totalmente satisfeita com esta mudança foi a irmã mais nova, porque havia perdido a única vantagem que tinha em relação a ela. O rei passou a ouvir as suas opiniões e, por vezes, pedia-lhe conselhos. Os rumores sobre esta transformação espalharam-se pelo reino e os jovens príncipes dos reinos vizinhos esforçavam-se por conquistar a sua afeição. Muitos pediram-na em casamento, mas a princesa não os achou suficientemente inteligentes e recusou todos os pedidos.

Por fim, houve um príncipe tão poderoso, tão rico, tão inteligente e tão belo que a pediu em casamento, que a ela não pode deixar de pensar no seu pedido. O pai notou o seu interesse pelo príncipe e disse-lhe que podia ser ela a escolher o noivo que entendesse. Só teria que dizer de quem gostava.

Para poder decidir com calma, foi passear, por acaso, para o bosque onde tinha conhecido Riquete do Topete. Foi então que ouviu vozes em surdina, mesmo por baixo dos seus pés, como se aí estivessem muitas pessoas atarefadas, andando de um lado para o outro.

Prestou mais atenção e ouviu alguém pedir:

- Traz-me essa panela.

E logo a seguir:

- Dá-me aquele pote.

E outra pessoa:

- Põe lenha na fogueira!

Nesse preciso momento o chão abriu-se e ela viu lá embaixo um enorme espaço semelhante a uma cozinha cheia de cozinheiros, de criados e de todo o gênero de ingredientes que são necessários para se fazer um festim magnífico. Um grupo de vinte ou trinta cozinheiros dirigiu-se para uma alameda do bosque. Puseram-se à volta de uma mesa muito comprida e começaram a trabalhar ao ritmo de uma bela canção.

A princesa, espantada com o que via, perguntou-lhes para quem trabalhavam.

- O nosso amo é o príncipe Riquete do Topete que se casa amanhã. – respondeu-lhe o mais vistoso do grupo.

Foi então que a princesa se lembrou que tinha prometido casar-se com Riquete do Topete naquele mesmo dia. Quase desmaiou! Porém, havia uma razão para o seu esquecimento: naquela altura, era apenas uma tonta. Assim que recebeu do príncipe uma nova inteligência, esqueceu todas as tolices que dizia.

Ainda não dera trinta passos quando Riquete do Topete surgiu diante de si, em trajes magníficos, conforme convém a um príncipe que se vai casar.

- Aqui estou, Senhora, pronto a cumprir a minha palavra. Não duvido que também vieste cumprir a vossa e, assim, tornar-me o homem mais feliz do mundo.

- Confesso, com toda a franqueza, que ainda não me decidi e penso que nunca poderei tomar a decisão que deseja. – respondeu a princesa.

- Muito me admiro, Senhora! – Respondeu Riquete do Topete.

- Acredito que, se estivesse a falar com um homem grosseiro e bruto, estaria agora bastante embaraçada. «Uma princesa deve cumprir a sua palavra - dir-me-ia ele.» Mas como estou a falar com o homem mais inteligente do mundo, estou certa que me compreenderá. Sabe que, quando era tonta, nem ao menos pude decidir se queria casar consigo ou não. Se pretendia casar comigo não me devia ter livrado da minha estupidez. Agora vejo as coisas com mais clareza!

- Alteza, quereis que me contenha no momento em que a minha felicidade está em jogo? Será razoável que as pessoas inteligentes se encontrem em desvantagem em relação às que o não são? Mas vejamos os fatos, se o permitis. Além da minha fealdade há mais alguma coisa que não vos agrade? Desagrada-vos a minha origem, as minhas capacidades, o meu caráter ou as minhas maneiras?

- Não, pelo contrário, todas essas características me agradam. - respondeu a Princesa, sem hesitar.

- Então, serei feliz, – continuou Riquete do Topete – pois está na vossa mão tornar-me o mais atraente dos homens. Basta que me ames o suficiente. A mesma fada que me concedeu o dom de tornar inteligente a pessoa de quem mais gostasse, também vos concedeu, a vós, o dom de tornar bonito aquele a quem ames.

- Se o que dizes é verdade, desejo do fundo do coração que vos torneis o príncipe mais bonito do mundo. – declarou a princesa.

Ainda a princesa não tinha acabado de falar e já Riquete do Topete parecia, aos seus olhos, o homem mais bonito e fascinante que alguma vez vira.

Há quem diga que esta mudança do príncipe não aconteceu graças ao feitiço da Fada, mas que só por amor se pode obter uma metamorfose assim. Dizem que a Princesa, depois de pensar nas qualidades do seu namorado, deixou de ver o seu corpo deformado.

A Princesa prometeu que casaria com ele de imediato, desde que o seu pai concordasse. O Rei, quando soube que a filha sentia grande admiração por Riquete do Topete, príncipe muito conhecido pela sua grande sabedoria, aceitou-o com prazer como genro.

No dia seguinte, celebrou-se a boda, tal como Riquete tinha previsto e de acordo com as ordens que dera há já muito tempo.
 
Nenhuma beleza e nenhum talento tem poder sobre um encanto indefinido, só pelo amor percebido.

Fonte:
Charles Perrault. Contos de tempos passados. Publicado originalmente em 1697.

sábado, 19 de fevereiro de 2022

Isabel Furini (Poema 24) Ocultos

 

Stanislaw Ponte Preta (À beira-mar)

Por que será que tem gente que vive se metendo com o que os outros estão fazendo? Pode haver coisa mais ingênua do que um menininho brincando com areia, na beira da praia? Não pode, né?

Pois estávamos nós deitados a dourar a pele para endoidar mulher, sob o sol de Copacabana,em decúbito ventral (não o sol, mas nós) a ler "Maravilhas da Biologia", do coleguinha cientista Benedict Knox Ston, quando um camarada se meteu com uma criança, que brincava com a areia.

Interrompemos a leitura para ouvir a conversa. O menininho já estava com um balde desses de matéria plástica cheio de areia, quando o sujeito intrometido chegou e perguntou o que é que o menininho ia fazer com aquela areia.

O menininho fungou, o que é muito natural, pois todo menininho que vai na praia funga, e explicou pro cara que ia jogar a areia num casal que estava numa barraca lá adiante. E apontou para a barraca.

Nós olhamos, assim como olhou o cara que perguntava ao menininho. Lá, na barraca distante, a gente só conseguia ver dois pares de pernas ao sol. O resto estava escondido pela sombra, por trás da barraca.

Eram dois pares, dizíamos, um de pernas femininas, o que se notava pela graça da linha, e outro masculino, o que se notava pela abundante vegetação capilar, se nos permitem o termo.

- Eu vou jogar a areia naquele casal por causa de que eles estão se abraçando e se beijando-se muito - explicou o menininho, dando outra fungada.

O intrometido sorriu complacente e veio com lição de moral.

– Não faça isso, meu filho – disse ele (e depois viemos a saber que o menino era seu vizinho de apartamento). Passou a mão pela cabeça do garotinho e prosseguiu: - Deixe o casal em paz. Você ainda é pequeno e não entende dessas coisas, mas é muito feio ir jogar areia em cima dos outros.

O menininho olhou pro cara muito espantado e ainda insistiu:

– Deixa eu jogar neles.

O camarada fez menção de lhe tirar o balde da mão e foi mais incisivo:

- Não senhor. Deixe o casal namorar em paz. Não vai jogar areia não.

O menininho então deixou que ele esvaziasse o balde e disse:

- Tá certo. Eu só ia jogar areia neles por causa do senhor.

– Por minha causa? - estranhou o chato. - Mas que casal é aquele?

– O homem eu não sei – respondeu o menininho. – Mas a mulher é a sua.

Fonte:
Stanislaw Ponte Preta. Gol de padre. Atica, 1997.

Mário Quintana em Prosa e Verso – 19 –

CANÇÃO DE INVERNO


O vento assovia de frio
nas ruas da minha cidade
enquanto a rosa-dos-ventos
eternamente despetala-se...

Invoco um tom quente e vivo
- lacre num envelope? -
e a névoa, então, de um outro século
no seu frio manto envolve-me

Sinto-me naquela antiga Londres
onde eu queria ter andado
nos tempos de Sherlock - o Lógico
e de Oscar - pobre Mágico...

Me lembro desse outro Mario
entre as ruínas de Cartago.
mas me indago - Aonde irão
morar os nossos fantasmas?

E o vento, que anda perdido
Nas ruas novas da Cidade,
ainda procura, em vão,
ler os antigos cartazes...
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O ESPELHO

E como eu passasse por diante do
espelho
não vi meu quarto com as suas
estantes
nem este meu rosto
onde escorre o tempo.

Vi primeiro uns retratos na parede:
janelas onde olham avós hirsutos
e as vovozinhas de saia-balão
como para-quedistas às avessas que
subissem do fundo do tempo.

O relógio marcava a hora
mas não dizia o dia. O Tempo,
desconcertado,
estava parado.

Sim, estava parado
em cima do telhado...
como um catavento que perdeu as asas!
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O AUTO-RETRATO

No retrato que me faço
- traço a traço -
as vezes me pinto nuvem.
às vezes me pinto árvore…

às vezes me pinto coisas
de que nem há mais lembrança...
ou coisas que não existem
mas que um dia existirão.

E desta lida, em que busco
- pouco a pouco -
minha eterna semelhança,

no final, que restará?
Um desenho de criança...
Corrigido por um louco!
= = = = = = = = = = = = =

MUNDOS

Um elevador lento e de ferragens
Belle Époque
me leva ao antepenúltimo andar do
Céu,
cheio de espelhos baços e de
poltronas como o hall
de qualquer um antigo Grande Hotel,

mas deserto, deliciosamente deserto
de jornais falados e outros fantasmas
da TV,
pois só se vê, ali, o que ali se vê
e só se escuta mesmo o que está bem
perto:

é um mundo nosso, de tocar com os
dedos,
não este - onde a gente nunca está, ao
certo,
no lugar em que está o próprio corpo

mas noutra parte, sempre do lado de
lá!
não, não este mundo - onde um perfil
é paralelo ao outro
e onde nenhum olhar jamais
encontrará...
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PEQUENO POEMA DIDÁTICO


O tempo é indivisível. Dize,
Qual o sentido do calendário?
Tombam as folhas e fica a árvore,
Contra o vento incerto e vário.

A vida é indivisível. Mesmo
A que se julga mais dispersa
E pertence a um eterno diálogo
A mais inconsequente conversa.

Todos os poemas são um mesmo
poema,
Todos os porres são o mesmo porre,
Não é de uma vez que se morre...
Todas as horas são horas extremas!

Fonte:
Mário Quintana. Apontamentos de história sobrenatural. Porto Alegre: Globo & Instituto Estadual do Livro, 1976.

Minha Estante de Livros (“O Barão”, de Branquinho da Fonseca)


Além da prosa por que é conhecido, Branquinho da Fonseca fez também poesia; sua novela O Barão foi lançada em 1942.

O Barão é uma novela inquietante, cuja base é uma grande metáfora: o encontro de duas criaturas, dois tempos e duas maneiras de estar no mundo.

Estruturalmente, não há divisões em episódios ou capítulos: é contada em primeira pessoa e o tempo, nela, transfunde-se numa tentativa de juntar o passado (o Barão) e o presente (o inspetor de alunos).

O Dicionário de Literatura de Jacinto do Prado Coelho observa que O Barão é a obra-prima de Branquinho da Fonseca e que, antes de tudo, é também “uma das mais notáveis espécimes da novelística portuguesa de todos os tempos.” Não deixa de ter razão o comentário: O Barão é uma das alegorias mais magníficas da novela portuguesa do século XX.

Um inspetor de escolas sem nome e que não gosta de viagens , mas que é obrigado a fazê-lo é a personagem-narradora. Não se pode dizer que ele seja também a personagem-protagonista pelos motivos que explicaremos adiante.

O inspetor representa o mundo contemporâneo e vivenciará um outro, antigo, através de uma estratégia simples: o encontro com uma criatura que vive, ainda, num tempo passado, cujos valores certamente já se perderam: o Barão, personagem também sem nome, mas rica, intensa e de força pessoal poderosa e transformadora.

História:

O inspetor sem nome, nosso narrador em primeira pessoa, é chamado à Serra do Barroso para proceder uma sindicância na escola da pequena vila. Lá, encontra-se com uma professora e fica penalizado com sua aparência e o seu suposto sentir, observando seus modos e tentando entender-lhe o que vai na alma, julgando-a em contraste com o mundo exterior que habita, naquele lugar de ninguém, distante da 'civilização'. Mas suas preocupações parecem, no entanto, ser desmentidas quando observa-a integrada àquilo tudo, tomando seu “café ruim” como se coubesse perfeitamente naquele universo estático, sem cor.

Ainda na hospedaria onde ambos se encontram, a professora apresenta-o ao Barão: Era uma figura que intimidava. Ainda novo, com pouco mais de quarenta anos, tinha um aspecto brutal, os gestos lentos como se tudo parasse à sua volta durante o tempo que fosse preciso. O ar de dono de tudo.

Mas, observando-o detidamente, bebendo-lhe as palavras, os gestos inquietos ou brutais, o inspetor de escolas descobre nele, o Barão, um encantamento, uma simpatia que não fosse, talvez, observado ou compartilhado pelos demais habitantes da pequena vila. Saem da hospedaria e se dirigem ao castelo do Barão.

No caminho, este lhe conta, excitado, a história de seu cavalo Melro, doutorado em Direito pela Universidade de Coimbra, numa clara alusão à burrice estar no mundo, morar em qualquer canto e que a estupidez de alguns é, muitas vezes, transformada em “doutoramento”. Mesmo que esse alguém seja um cavalo. Observe que o cavalo tem nome de pássaro…

Anoitece e chegam ao castelo, um solar medieval, rústico e denso, atmosfera de um tempo perdido. Os cães os recebem; estão em festa porque seu dono chegou e, surpreso, o narrador percebe que o Barão é delicado e carinhoso com cada um deles.

O Barão começa a contar histórias sem parar. E bebe também sem parar enquanto conta. Ocorre que o Inspetor não bebia a não ser durante as refeições e, morto de fome, sentia-se incomodado com aquilo tudo, sem ao menos poder prestar atenção às histórias que o barão contava. Por sua vez, o Barão também não se importava em ser ouvido ou não, o que dava à conversa um tom grandioso de solidão e desacerto com o mundo. Impaciência por parte do inspetor; desacerto por parte do Barão...

Até que, já passadas as 10 horas, o Inspetor acaba vencendo a sua timidez e diz ao Barão que tem fome. O Barão interrompe aos gritos a narrativa e chama sua criada, Idalina, a fim de que ela sirva ao hóspede um belo galo assado com batatas louras.

O Inspetor observa que ela o faz com “ares de dona da casa”. Comem na mesa enorme, como tudo lá era e, saciada a fome, o Inspetor passa a ver na conversa daquele homem um motivo de prazer intenso: há naquele homem uma mistura de todas as circunstância: o passado e o presente, a ferocidade e a brandura de caráter, a sofisticação dos modos e a rudeza.

Ao se referir a Ela, sua amada, a Bela Adormecida, o Barão deixa ver sua emoção mais funda e chora. No entanto, é interessante que ele considera as mulheres todas umas animalescas. Apenas Ela é digna de todo amor. Só a bela Adormecida (veja aqui a conotação do tempo: a que adormecida espera pelo ser amado, alienado dos acontecimentos e do mundo que a cerca).

A conversa entre ambos chega ao máximo da emoção. Neste instante, o Barão pede que Idalina chame a Tuna, ou seja, um bando de 50 homens ou mais, todos de rosto semi-escondido, de tamancos, que retiram de seus capotes os instrumentos mais inesperados: violinos, bandolins, gaitas, grandes tambores, violões.

A música é tão intensa que contagia Idalina, o hóspede e o Barão; eles passam, então, a dançar em ritmo desenfreado, acercando-se de um grande êxtase. O Barão toma, como se num ritual sem explicação, um banho de vinho branco, a fim de purificar-se e poder visitar sua amada Bela Adormecida.

O Inspetor, embriagado, vaga pelo castelo. Sozinho, perde-se pelos corredores. Encontra, entre o sonho e a fantasia, Idalina e a convida para ir ao quarto com ele. Mas acorda aos berros do Barão que o salva de um pequeno incêndio ocasionado pelo cigarro que o Inspetor fumava quando adormecera sem querer.

Depois que lhe salva a vida, o Barão escuta os detalhes da vida amorosa do Inspetor que havia, durante o jantar, confessado que jamais amara nenhuma mulher ou tivera um grande amor. Saem ambos do castelo e o Inspetor ajuda o barão a colher rosas brancas que este quer levar à Bela Adormecida (Ela).

“O Barão começou a procurar, agora, uma rosa. Eu fui também cortando rosas e ensanguentando as mãos nos espinhos, sem intenção nenhuma, pois não tinha ninguém a quem oferecer aquelas flores. Comecei uma longa divagação sobre as mulheres e o amor, uma espécie de monólogo trágico e delirante. Ele continuava a procurar, silencioso e indiferente às minhas explicações. De súbito, interrompeu-me como quem continua um pensamento:

- Já quis fugir com Ela... Mas agora já não quero... [ Fez uma pausa e continuou, com a voz mais triste]: Tem medo... tem medo de mim…”


No meio da madrugada, longe do castelo, perdem-se um do outro, o que faz o Inspetor sentir raiva do Barão que, de certo modo, o abandonara.

Dorme e , quando amanhece, aluga um burro para voltar ao castelo. Ao chegar, fica sabendo que o Barão tinha recebido um tiro no ombro e que batera a cabeça com tanta força que se imaginava uma fratura. Mas pode contar-lhe, ainda que monossilabicamente, que deixara uma rosa na janela da Bela Adormecida, seu único e grande amor.

A narrativa se encerra quando o Inspetor anuncia que voltará a visitar o Barão e que vem ajuda-lo a depositar a rosa na janela de sua amada.

“Sim, Barão! Hei de voltar um dia. E haveremos de tornar a perdermo-nos pelos caminhos sombrios do nosso sonho e da nossa loucura: e mais uma vez haveremos de cantar às estrelas e de dar a vida para ires depor outro botão de rosa lá na alta janela da tua Bela Adormecida!”

De qualquer modo, você concluiu que esta 'viagem' do Inspetor, sempre avesso a elas, diz respeito à sua própria viagem, o desmascaramento de um ser que se faz de duro, mas que, ao encontrar o Barão, reconhece que dentro de si moram criaturas outras tão distintas dele mesmo.

Ambas as personagens se completam, embora pertençam a mundos e épocas completamente distintas, de certo modo formam um único ser onde passado e presente moram.

Em tempo: a bela Adormecida e o Barão não podiam estar juntos por motivos de rixas familiares.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

A. A. de Assis (Saudade em Trovas) n. 31: Elton Carvalho

 

Aparecido Raimundo de Souza (Quando a vida se resume a ligações de um celular)

ERAM, AO TODO, onze irmãos, dos quais Paulo só conheceu oito. Com o passar dos anos, foram morrendo, até que restou somente a Maria José, ou carinhosamente, como ele a chamava, de “Zezé”. Zezé não descuidava. Ligava todos os dias. Quando ela demorava em dar sinais de vida, ele se antecipava. Pegava o telefone, acionava à câmera, e, assim que lhe aparecia enfocada o rosto consanguíneo na pequena tela do aparelho, trocavam um bom dia, ou uma boa tarde.

Ambos, a bem da verdade, sequiosos por uma boa conversa, imploravam, ávidos uma gota que fosse de carinho e atenção. Por assim, se completavam e se tornavam uma só alma irmanada numa angústia que beirava às malhas da aflição. Nessas horas, aproveitavam para flertarem lembranças adormecidas, muitas das vezes com os olhares em lágrimas e palavras aquecidas de ternura e afeto. Em outras, se mostravam visivelmente contidos pela imensidão de estarem separados por um espaço invisível e igualmente invencível.

Falavam também de trivialidades, de coisas fúteis que pretendiam realizar vindouramente. Trocavam rascunhos de mimos que reviviam os tempos áureos da mocidade, evocavam a vida na fazenda dos idos da inocência, quando ainda pai e mãe faziam parte do plano terreno. Fato é que nunca passavam um dia sem comunicação visual. Em brincadeiras, Zezé dizia que iria embora primeiro. Que ele ficaria para semente, portanto, “que aprendesse a se virar sozinho no mundo, quando ela não estivesse mais contígua, para responder aos seus chamados via WhatsApp”.

Ironia ou não, Zezé partiu na frente, vítima de um súbito AVC. Coincidentemente viajou num domingo de manhã límpida, com um céu azul de sol bonito por todo o infinito espalhado. Se viu, do nada, expulsa da sua vidinha simples e pacata, levando na bolsa uma passagem sem volta, justo no dia do aniversário dele. Paulo desde então, ficou sozinho, trancado no seu espaço vazio, preso, acorrentado não só à operação que deu errada, em face de um médico irresponsável, como agarrado a um pau de arrimo, que passou a ser seu companheiro fiel de todas as horas.

De repente, num piscar de olhos, Paulo se descobriu estranho e incapaz dentro da sua pequenez. Sentimentos como esses, de não pertencer à lugar nenhum, exatamente por ter deixado escapar alguma coisa boa que o mantinha vivo e alegre, sem ter outra alternativa à altura, para superar o vazio inesperado, fez com que se sentisse rejeitado, abandonado esquecido esmagado, enroscado numa percepção completamente distorcida. Embora não professasse nenhuma religião conhecida, tinha mania de ler a Bíblia.

Esse empenho salvador o ajudava a acreditar piamente que um dia, se desapegaria da deserção da irmã que resolvera se ausentar tão prematuramente. Cedo, após o desjejum, por volta das nove, se levantava, se sentava no quintal debaixo de um abacateiro, ou na porta na sala, que acessava à varanda. À tarde, dependendo do calor, repetia o gesto, se reclusava na cozinha, ladeado por uma garrafa de refrigerante. Lia, de novo, por uma hora, uma hora e meia, o Livro Sagrado e, no final desse tempo, ligava para a irmã distante.

Fazia isso maquinalmente. Sem pensar. Sem se dar conta. Virou mania essa rotina destrambelhada. Belo, dia, havia acabado de ler alguns versículos, ato contínuo, passou a mão no celular e discou para a irmã. O telefone de Zezé tocou, tocou, até que a ligação caiu. Tentou a câmera, mas a adesão não prosperou. Foi quando Paulo, num momento de nitidez da mente, se deu conta que havia esfacelado seu senso de limite. Parecia um endoidecido, a procura de uma sombra acolhedora, como um sedento suando em bicas em meio de um deserto escaldante.

Voltou à realidade. Regressou mal, abatido, em pandarecos. Lembrou que Zezé não atenderia mais. Morrera fazia tempo. Esse sem pé nem cabeça de ligar sem reembolso da outra parte, de ficar à deriva, sem a abordagem da resposta, se repetiu por muitas e inúmeras vezes. Como um doido, sem se aperceber, instintivamente grudava no celular e buscava o número da falecida. Nada de resposta. Só a taciturnidade da quietude. De contrapeso, um abrandamento com respingos de petrificação despertando uma espécie asquerosa de demônio invocando o contraditório.

E novamente aquele estertor enorme, doido, ingrato, perverso, desumano, inexorável e sufocante, vinha à tona e ele sentia bailando na atmosfera uma espécie de medo mórbido, uma sensação de presença-ausente tomando conta de tudo, inundando com formas obscuras o seu coração fulminado e carcomido pela angústia lancinante e empedernida. O tempo, para Paulo, até hoje, no agora dos sessenta anos, continua como partículas imponderáveis desprendidas de um ontem nefando e tenebroso.

Um escuro negro demais povoado por fantasmas que não dão trégua, amedronta. O degredo não para, o exílio não se abranda num armistício. O arredio não apazigua, tampouco o inabitado pensa em retornar com esperanças de paz. Tudo, como num carrossel gigantesco, insiste em girar rápido demais e mostrar, nesse trânsito desconexo, a cada instante, o abismo medonho que ficou palpável e intransponível. O oco folozado* e abissal, cada vez mais profundo e majestoso, se engrandece diante de seus dias que se tornaram frios e áridos, gélidos e sem cor, como a cara pálida e o sorriso prescrutante da morte à espreita.
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*folozado: Laceado, folgado, alargado.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Professor Garcia (Reflexões em Trovas) 1

Ah, se essa distância fosse
ponte, entre a nascente e a foz;
como seria mais doce
essa distância entre nós!
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Ao vê-lo, em meio aos escombros,
a ajudá-lo, eu me propus,
sentindo o peso nos ombros
do peso daquela cruz!
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A sensação dos afetos
que recebi de meus pais...
Oferto aos filhos e netos,
por serem todos iguais!
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Busquei, na fonte de um templo,
a paz de um novo horizonte;
e achei essa paz no exemplo
que há no silêncio da fonte!...
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Da sorte, nunca lamente.
Ame a vida com seus ais,
que a sorte de muita gente
cresce em falsos pedestais!
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Dizem que a justiça é cega.
Não creio, é falsa premissa;
cega, àquele que se apega,
aos infiéis da justiça!
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Em meio às indiferenças,
dar bons exemplos preciso,
jogando fora as ofensas
dentro da fonte do riso!
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Enquanto, tu buscas rindo,
a paz do azul desse mar...
Eu busco esse abismo infindo
do verde do teu olhar!
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Entre esperas e demoras,
vi passar tanta quimera!.,.
Que, a primavera das horas,
já nem é mais primavera!
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Essa constante ansiedade
que ao fim da tarde, caminha...
É a velha dor da saudade
que eu sinto toda tardinha!
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Eu amo as gotas serenas
do orvalho que beija a flor,
porque sei que são apenas
serenas gotas de amor!
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Eu ouço em tuas demoras,
vozes de outros rituais...
Na ressonância das horas
do martelar dos meus ais!
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Exemplo bom é o exemplo,
que as almas bondosas dão,
rezando no altar do templo
pelas outras que se vão!
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Lembrando canções antigas,
de volta ao meu velho chão...
Vi muitas sombras amigas
na orquestra da solidão!
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Meus dias!... Feliz por tê-los
na vida que se refaz,
no branco dos meus cabelos
aos ventos pedindo paz!
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Meu sertão não tem floresta,
é pobre o pó deste chão...
Mas esta paz que me empresta
me faz amar meu sertão!
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Na estrada em que a luz palmilha,
é que a verdade se inspira;
e ante a luz que, tanto brilha,
jamais se esconde a mentira!
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No mosteiro abandonado,
na solidão da clausura,
o silêncio é tão calado
que à solidão se mistura!
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Pelos teus gestos fanados,
para voltar não me peças;
sinto em teus sins camuflados,
o olhar de falsas promessas!
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Pobreza dói mas não mata,
não faz vergonha a ninguém;
pobre, é quem tem ouro e prata,
mas quer ter mais do que tem!
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Por longa que seja a espera,
calma, que tudo se alcança!
Enquanto houver primavera
não morre a flor da esperança!
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Pregado à cruz, por seus atos,
ante falsa acusação...
Jesus perdoa Pilatos
e ensina ao mundo o perdão!
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Se a esperança é paz no outono,
sê paciente na espera;
que a flor desperta do sono
na eclosão da primavera!
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Sei que a velhice me alcança;
e, entre uns sins e outros senões..,
Enquanto houver esperança
vou cultivando ilusões!
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Sem saber se tu me esperas,
cada verso que componho,
tem sabor das vãs quimeras
do tempero do meu sonho!
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Teu adeus, roubou-me a cena,
de toda a beleza agreste,
de tua pele morena
queimada ao sol do Nordeste!
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Velho mar, meu confidente,
entre nós, tudo se arruma,
quando a queixa que se sente
vaga entre os cachos de espuma!

Professor Garcia. Versos para refletir. Natal/RN: Trairy, 2021.
Livro enviado pelo trovador.

Aluísio de Azevedo (O Macaco Azul)


Ontem, mexendo nos meus papéis velhos, encontrei a seguinte carta:

Caro Senhor.
Escrevo estas palavras possuído do maior desespero. Cada vez menos esperança tenho de alcançar o meu sonho dourado. - O seu macaco azul não me sai um instante do pensamento! É horrível! Nem um verso!
Do amigo infeliz
PAULINO


Não parece um disparate este bilhete?

Pois não é. Ouçam o caso e verão!

Uma noite - isto vai há um bom par de anos - conversava eu com o Artur Barreiros no largo da Mãe do Bispo, a respeito dos últimos versos então publicados pelo conselheiro Otaviano Rosa, quando um sujeito de fraque cor de café com leite, veio a pouco e pouco, aproximando-se de nós e deixou-se ficar a pequena distância, com a mão no queixo, ouvindo atentamente o que conversávamos.

- O Otaviano, sentenciou o Barreiros, o Otaviano faz magníficos versos, lá isso ninguém lhe pode negar! Mas, tem paciência! O Otaviano não é poeta!

Eu sustentava precisamente o contrário afiançando que o aplaudido Otaviano fazia maus versos, tendo aliás uma verdadeira alma de poeta, e poeta inspirado.

O Barreiros replicou, acumulando em abono da sua opinião uma infinidade de argumentos de que já me não lembro.

Eu repliquei firme, citando os alexandrinos errados do conselheiro.

O Barreiros não se deu por vencido e exigiu que eu lhe apontasse alguém no Brasil que soubesse arquitetar alexandrinos melhor que Sua Excelência.

Eu respondi com esta frase esmagadora:

- Quem? Tu!

E acrescentei, dando um piparote na aba do chapéu e segurando o meu contendor, com ambas as mãos pela gola do fraque:

- Queres que te fale com franqueza?... Isto de fazer versos inspirados e bem feitos; ou, por outra: isto de ser ou não ser poeta, depende única e exclusivamente de uma coisa muito simples...

- O que é?

– É ter o segredo da poesia! Se o sujeito está senhor do segredo da poesia, faz, brincando, a quantidade de versos que entender, e todos bons, corretos, fáceis, harmoniosos; e, se o sujeito não tem o segredo, escusa de quebrar a cabeça pode ir cuidar de outro ofício, porque com as musas não arranjará nada que preste! Não és do meu parecer?

- Sim, nesse ponto estamos de pleno acordo, conveio o Barreiros. Tudo está em possuir o segredo!...

E, tomando uma expressão de orgulho concentrado, rematou, abaixando a cabeça e olhando-me por cima das lunetas: - Segredo que qualquer um de nós dois conhece melhor que as palmas da própria mão!...

- Segredo que eu me prezo de possuir, como até hoje ninguém o conseguiu, declarei convicto.

E com esta frase me despedi e separei-me do Artur. Ele tomou para os lados de Botafogo, onde morava, e eu desci pela rua Guarda Velha.

Mal dera sozinho alguns passos, o tal sujeito de fraque cor de café com leite aproximou-se de mim, tocou-me no ombro, e disse-me com suma delicadeza:

- Perdão, cavalheiro! Queria desculpar interrompê-lo. Sei que vai estranhar o que lhe vou dizer, mas...

- Estou às suas ordens. Pode falar.

- É que ainda há pouco quando o senhor conversava com o seu amigo, afirmou a respeito da poesia certa coisa que muito e muito me interessa... Desejo que me explique...

Bonito! pensei eu. É algum parente ou algum admirador do conselheiro Otaviano, que vem tomar-me uma satisfação. Bem feito! Quem me manda a mim ter a língua tão comprida?...

- Entremos aqui no jardim da fábrica, propôs o meu interlocutor; tomaremos um copo de cerveja enquanto o senhor far-me-á o obséquio de esclarecer o ponto em questão.

O tom destas palavras tranquilizou-me em parte. Concordei e fomos assentar-nos em volta de uma mesinha de ferro, defronte de dois chopes, por baixo de um pequeno grupo de palmeiras.

- O senhor, – principiou o sujeito, depois de tomar dois goles do seu copo - declarou ainda há pouco que possui o segredo da poesia... Não é verdade?

Eu olhei para ele muito sério, sem conseguir perceber onde diabo queria o homem chegar.

– Não é verdade? – insistiu com empenho. – Nega que ainda há pouco declarou possuir o segredo dos poetas?

- Gracejo!... Foi puro gracejo de minha parte... respondi, sorrindo modestamente. Aquilo foi para mexer com o Barreiros, que - aqui para nós - na prosa é um purista, mas que a respeito de poesia, não sabe distinguir um alexandrino de um decassílabo. Tanto ele como eu nunca fizemos versos, creia!
 
- Ó senhor! Por quem é não negue! Fale com franqueza!
 
- Mas juro-lhe que estou confessando a verdade...
 
- Não seja egoísta!
 
E o homem chegou a sua cadeira para junto de mim e segurou-me uma das mãos.
 
- Diga! – suplicou ele - Diga por amor de Deus qual é o tal segredo, e conte que, desde esse momento, o senhor terá em mim o seu amigo mais reconhecido e devotado!

- Mas, meu caro senhor, juro-lhe que...

O tipo interrompeu-me, tapando-me a boca com a mão, e exclamou deveras comovido:

- Ah! Se o senhor soubesse, se o senhor pudesse imaginar quanto tenho até hoje sofrido por causa disto!

- Disto o quê? A poesia?

- É verdade! Desde que me entendo, procuro a todo o instante fazer versos!... Mas qual! em vão consumo nessa luta de todos os dias os meus melhores esforços e as minhas mais profundas concentrações!... É inútil! Todavia, creia, senhor, o meu maior desejo, toda a ambição de minha alma, foi sempre, como hoje ainda, compor alguns versos, poucos que fossem, fracos muito embora. Mas, com um milhão de raios! Que fossem versos! E que rimassem! E que estivessem metrificados! E que dissessem alguma coisa!

- E nunca até hoje o conseguiu?... interroguei sinceramente pasmo.

- Nunca! Nunca! Se o metro não sai mau, é a ideia que não presta; e se a ideia é mais ou menos aceitável, em vão procuro a rima! A rima não chega nem à mão de Deus Padre! Ah! Tem sido uma campanha! Uma campanha sem tréguas! Não me farto de ler os mestres; sei de cor o compêndio do Castilho; trago na algibeira o Dicionário de consoantes; e não consigo um soneto, uma estrofe, uma quadra! Foi por isso que pensei cá comigo: "Quem sabe se haverá algum mistério, algum segredo, nisto de fazer versos?... algum segredo, de cuja posse dependa em rigor a faculdade de ser poeta?..." Ah! e o que não daria eu para alcançar semelhante segredo?... Matutava nisto justamente, quando o senhor, conversando com o seu amigo, afirmou que o segredo existe com efeito, e melhor ainda, que o senhor o possui, podendo por conseguinte transmiti-lo adiante!

- Perdão! Perdão! O senhor está enganado, eu...

- Oh! não negue! Não negue por quem é! O senhor tem fechada na mão a minha felicidade! Se não quer que eu enlouqueça confie-me o segredo! Peço-lhe! Suplico-lhe! Dou-lhe em troca a minha vida, se a exige!

- Mas, meu Deus! O senhor está completamente iludido... Não existe semelhante coisa!... Juro-lhe que não existe!

- Não seja mau! Não insista em recusar um obséquio que lhe custa tão pouco e que vale tanto para mim! Bem sei que há de prezar muito o seu segredo mas dou-lhe minha palavra de honra que me conservarei digno dele até à morte! Vamos! declare! Fale! Diga logo o que é, ou nunca mais o largarei! Nunca mais o deixarei tranquilo! Diga ou serei eternamente a sua sombra!

- Ora esta! Como quer que lhe diga que não sei de semelhante segredo?!

- Não me negue por tudo o que o seu coração mais ama neste mundo!

- O senhor tomou a nuvem por Juno! Não compreendeu o sentido de minhas palavras!

- O segredo! O segredo! O segredo!

Perdi a paciência. Ergui-me e exclamei disposto a fugir:

- Quer saber o que mais?! Vá para o diabo que o carregue!

- Espere, senhor! Espere! Ouça-me por amor de Deus!

- Não me aborreça. Ora bolas!

- Hei de persegui-lo até alcançar o segredo!
* * *

E, como de fato, o tal sujeito acompanhou-me logo com tamanha insistência, que eu, para ver-me livre dele, prometi-lhe afinal que lhe havia de revelar o mistério.

No dia seguinte já lá estava o demônio do homem defronte da minha casa e não me largava a porta.

Para o restaurante, para o trabalho, para o teatro, para toda a parte, acompanhava-me aquele implacável fraque cor de café com leite, a pedir-me o segredo por todos os modos, de viva voz, por escrito e até por mímica, de longe.

Eu vivia já nervoso, doente com aquela obsessão. Cheguei a pensar em queixar-me à polícia ou empreender uma viagem.

Ocorreu-me porém, uma ideia feliz, e mal a tive disse ao tipo que estava resolvido a confiar-lhe o segredo.

Ele quase perdeu os sentidos de tão contente que ficou. Marcou-me logo uma entrevista em lugar seguro; e, à hora marcada, lá estávamos os dois.
– Então que é?... perguntou-me o monstro, esfregando as mãos.

- Uma coisa muito simples, segredei-lhe eu. Para qualquer pessoa fazer bons versos, seja quem for, basta-lhe o seguinte: - Não pensar no macaco azul. - Está satisfeito?

- Não pensar no...

- Macaco azul.

- Macaco azul? O que é macaco azul...?

- Pergunta a quem não lhe sabe responder ao certo. Imagine um grande símio azul ferrete, com as pernas e os braços bem compridos, os olhos pequeninos, os dentes muito brancos, e aí tem o senhor o que é o macaco azul.

- Mas que há de comum entre esse mono e a poesia?...

- Tudo, visto que, enquanto o senhor estiver com a ideia no macaco azul, não pode compor um verso!

- Mas eu nunca pensei em semelhante bicho!...

- Parece-lhe, é que às vezes a gente está com ele na cabeça e não dá por isso.

- Pois hoje mesmo vou fazer a experiência... Ora quero ver se desta vez...

- Faça e verá.
* * *

No dia seguinte, o pobre homem entrou-me pela casa como um raio. Vinha furioso.

- Agora, – gritou ele - é que o diabo do bicho não me larga mesmo! É pegar eu na pena, e aí está o maldito a dar-me voltas no miolo!

- Tenha paciência! Espere alerta a ocasião em que ele não lhe venha à ideia e aproveite-a logo para escrever seus versos.

- Ora! Antes o senhor nunca me falasse no tal bicho! Assim, nem só continuo a não fazer versos, como ainda quebro a cabeça de ver se consigo não pensar no demônio do macaco!
* * *

E foi nestas circunstâncias que Paulino me escreveu aquela carta.

Fonte:
Aluísio de Azevedo. Demônios. Publicado em 1895.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

Varal de Trovas n. 548

 

Otto Lara Resende (Mãe, filha, amiga)


Acordei ontem e disse à minha mulher: “Acho que a Clarice morreu”. (Anteontem, tinha mais uma vez combinado com Rubem Braga de ir visitá-la. Tão pertinho, e não fomos.)

Daí a pouco telefonou Evandro Carlos de Andrade: “Clarice morreu”. Levei um choque.

O telefone tocou e fiquei com medo de ser a Clarice, para me passar um pito. Há tempos ela me telefonou: queria vir jantar aqui em casa. Não veio. Há dias, pouco antes de saber-se doente, telefonou para um amigo e começou a chorar. Queria ouvir uma voz humana, disse ela. E tinha sido atendida com um alô tão doce, tão bom, que se pôs a chorar.

Algumas vezes passamos anos sem nos ver. Um sábado dou com ela na Rua Prado Júnior. Saltei do carro e rimos e falamos e nos abraçamos. Tinha comigo um dos meus filhos, então com seis anos. Esquecera-se da Clarice, que não via há muito. “Quem é aquela moça loura?” – me perguntou ele. E antes que eu respondesse: ‘Ela tem dentro dela uma coisa que pula o tempo todo. Ela tem filho?

Uns dois anos depois, alta noite, eu estava batendo papo com Clarice em seu apartamento do Leme e, de repente, ela me deu uma resposta: “Diga ao seu filho que eu posso ser mãe, sim. Posso ser mãe dele. Posso ser sua mãe, Otto. Posso ser mãe da humanidade. Eu sou a mãe da humanidade”. Foi tudo num crescendo avassalador.

Uma vez eu estava aqui mesmo onde me encontro e o telefone tocou. Era de tarde. Clarice me passou a maior espinafração e desligou. Ficamos amuados, achei que ela foi muito injusta comigo. Meses depois, fui visitá-la. Sentado no chão, batemos um papo interminável, maior que a noite. Clarice sabia tudo. “Eu sou burra” – disse ela muitas vezes. Tinha a centelha do gênio. Era um exemplo brutal da singularidade da pessoa humana.

Clarice era Clarice. Nunca, em tempo algum, haverá outra, haverá duas Clarices. Com seu jeito brusco e carinhosíssimo. Amiga insuperável, de generosidade oceânica. E toda mediúnica, adivinhante. Sabia tudo. Depois do incêndio em que se queimou, fomos almoçar com ela, Antonio Callado e eu, e de repente ela explodiu para cima de mim: “Que é que você está me olhando? Quer ver as minhas cicatrizes?” E exibiu as pernas de que ela e nós tentávamos fugir. Mãe da humanidade. Sim, ela podia ser. Podia tudo. Estou destroçado.

Clarice, minha filha. A vida separa, isola. A morte talvez junte, congregue. Clarice, minha amiga de toda a vida. Minha amiga na morte. Felizes os que foram convidados para sempre. Até já, Clarice.

Fonte:
Jornal O Globo. Rio de Janeiro: 10 dez 1977.

Hinos do Brasil (Paraná e Santa Catarina)

HINO DO ESTADO DO PARANÁ

Letra por Domingos Virgílio Nascimento
Melodia por Bento João de Albuquerque Mossurunga


Entre os astros do Cruzeiro,
És o mais belo a fulgir
Paraná! Serás luzeiro!
Avante! Para o porvir!

O teu fulgor de mocidade,
Terra! Tens brilho de alvorada
Rumores de felicidade!
Canções e flores pela estrada.

Entre os astros do Cruzeiro,
És o mais belo a fulgir
Paraná! Serás luzeiro!
Avante! Para o porvir!

Outrora apenas panorama
De campos ermos e florestas
Vibras agora a tua fama
Pelos clarins das grandes festas!

Entre os astros do Cruzeiro,
És o mais belo a fulgir
Paraná! Serás luzeiro!
Avante! Para o porvir!

A glória... A glória... Santuário!
Que o povo aspire e que idolatre-a
E brilharás com brilho vário,
Estrela rútila da Pátria!

Entre os astros do Cruzeiro,
És o mais belo a fulgir
Paraná! Serás luzeiro!
Avante! Para o porvir!

Pela vitória da mais forte,
Lutar! Lutar! Chegada é a hora.
Para o Zenith! Eis o teu norte!
Terra! Já vem rompendo a aurora!

Entre os astros do Cruzeiro,
És o mais belo a fulgir
Paraná! Serás luzeiro!
Avante! Para o porvir!
= = = = = = = = = = = = =

 
HINO DO ESTADO DE SANTA CATARINA
Letra por Horácio Nunes
Melodia por José Brazilício de Souza


Sagremos num hino de estrelas e flores
Num canto sublime de glórias e luz,
As festas que os livres frementes de ardores,
Celebram nas terras gigantes da cruz.

Quebram-se férreas cadeias,
Rojam algemas no chão;
Do povo nas epopeias
Fulge a luz da redenção. (bis)

No céu peregrino da Pátria gigante
Que é berço de glórias e berço de heróis
Levanta-se em ondas de luz deslumbrante,
O sol, Liberdade cercada de sóis.

Pela força do Direito
Pela força da razão,
Cai por terra o preconceito
Levanta-se uma Nação. (bis)

Não mais diferenças de sangues e raças
Não mais regalias sem termos fatais,
A força está toda do povo nas massas,
Irmãos somos todos e todos iguais.

Da liberdade adorada.
No deslumbrante clarão
Banha o povo a fronte ousada
E avigora o coração. (bis)

O povo que é grande mas não vingativo
Que nunca a justiça e o Direito calou,
Com flores e festas deu vida ao cativo,
Com festas e flores o trono esmagou.

Quebrou-se a algema do escravo
E nesta grande Nação
É cada homem um bravo
Cada bravo um cidadão. (bis)

Fontes:
Wikipedia
PR
SC

Trovas enviadas por A. A. de Assis

Jaqueline Machado (O criador e a criatura: Frankestein, de Mary Shelley)

O Criador esboçou o homem à sua semelhança, isto é, a imagem espiritual da paz e do amor.

Sim. Nem sempre a beleza dotada de formas, cortes e molduras possui graciosidade. Os sentimentos, precursores da harmonia fazem florescer sorrisos, olhares doces e alguns gestos nobres, que fazem do ser humano, um sagrado e brilhante tesouro de Deus. O paraíso está instalado no íntimo de cada um. E Deus só enxerga o nosso interior... Mas eis que a cobiça e a soberba, com frequência tornam as pessoas brutas e sem fulgor.

No livro, Frankenstein, da autora Mary Shelley, o cientista cujo nome vai no título da obra, imerso em seus delírios e vaidades exclama: “Fui surpreendido pelo fato de que dentre tantos homens de gênio que assim como eu, dedicam –se à ciência, somente a mim foi reservado um segredo tão surpreendente”. Tal segredo consistia em dar vida a coisas mortas.

Depois de passar meses confinado num laboratório fazendo experimentos com pedaços de pessoas mortas, de suas mãos, ele vê surgir o milagre. Finalmente o Dr. Victor Frankenstein dá vida e sentido a sua criação.

A façanha estava cumprida. Porém, ao se deparar com aquele ser gigante, de pele amarelada, olhos fundos e lábios enegrecidos, seus nervos se ruborizam de pavor e, ele acaba fugindo da própria obra.

Ao brincar de Deus, a Natureza volta-se contra o cientista e o monstro cuja personalidade era um misto de fera e gente, sentindo –se em completo abandono, parte em vingança assassinando vários membros da família do cientista.

Essa história nos remete a refletir sobre a pobre e triste trajetória da humanidade que, dando as costas para a luz, partiu rumo às guerras, aos homicídios, as confecções de bombas, até chegarmos aos avanços científicos atuais, onde o homem revestido em sua tecnologia de ponta está prestes a se auto substituir por uma nação de androides fleumáticos e artificiais em suas ideias emocionais.

Victor, arrependido e imergido nas dores de seu remorso, parte para os Alpes afim de isolar-se do mundo. Mas como toda ação é portadora de múltiplas reações, ele tornara–se uma espécie de reinvenção do mitológico Prometeu que ao roubar a luz de Zeus para dar aos homens, teve que suportar sentir o seu fígado sendo devorado diariamente por sua própria consciência.

Em suma, a mensagem de Mary Shelley consiste no seguinte recado:

“Humanidade, não brinque de Deus. Seja humilde. Cuidado com suas criações! Se tiver que inventar, invente novas formas de amar. Porque somente o amor perpetua a verdadeira felicidade.

Fonte:
Texto enviado pela autora.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

Solange Colombara (Portfólio de Spinas) 16

 

Cecília Meireles (Antologia Poética) = 4 =

ALVA

DEIXEI meus olhos sozinhos
nos degraus da sua porta.
Minha boca anda cantando,
mas todo o mundo está vendo
que a minha vida está morta.

Seu rosto nasceu das ondas
e em sua boca há uma estrela.
Minha mão viveu mil vidas
para uma noite encontrá-la
e noutra noite perdê-la.

Caminhei tantos caminhos,
tanto tempo e não sabia
como era fácil a morte
pela seta do silêncio
no sangue de uma alegria.

Seus olhos andam cobertos
de c9res da primavera.
Pelos muros de seu peito,
durante inúteis vigílias,
desenhei meus sonhos de hera.

Desenho, apenas, do tempo,
cada dia mais profundo,
roteiro do pensamento,
saudade das esperanças
quando se acabar o mundo…
= = = = = = = = = = = = =

DESAMPARO

DIGO-TE que podes ficar de olhos fechados sobre o meu peito,
porque uma ondulação maternal de onda eterna
te levará na exata direção do mundo humano.

Mas no equilíbrio do silêncio,
no tempo sem cor e sem número,
pergunta a mim mesmo o lábio do meu pensamento:

quem é que me leva a mim,
que peito nutre a duração desta presença,
que música embala a minha música que te embala,
a que oceano se prende e desprende
a onda da minha vida, em que estás como rosa ou barco...?
= = = = = = = = = = = = =

ÊXTASE

DEIXA-TE estar embalado no mar noturno
onde se apaga e acende a salvação.

Deixa-te estar na exalação do sonho sem forma:
em redor do horizonte, vigiam meus braços abertos,
e por cima do céu estão pregados meus olhos, guardando-te.

Deixa-te balançar entre a vida e a morte, sem nenhuma saudade.
Deslizam os planetas, na abundância do tempo que cai.
Nós somos um tênue pólen dos mundos...

Deixa-te estar neste embalo de água geando círculos.
Nem é preciso dormir, para a imaginação desmanchar-se em figuras
ambíguas.

Nem é preciso fazer nada, para se estar na alma de tudo.
Nem é preciso querer mais, que vem de nós um beijo eterno
e afoga a boca da vontade e os seus pedidos…
= = = = = = = = = = = = =

GARGALHADA

HOMEM vulgar! Homem de coração mesquinho!
eu te quero ensinar a arte sublime de rir.
Dobra essa orelha grosseira, e escuta
o ritmo e o som da minha gargalhada:

Ah! Ah! Ah! Ah!
Ah! Ah! Ah! Ah!

Não vês?
É preciso jogar por escadas de mármore baixelas de ouro.
Rebentar colares, partir espelhos, quebrar cristais,
vergar a lâmina das espadas e despedaçar estátuas,
destruir as lâmpadas, abater cúpulas,
e atirar para longe os pandeiros e as liras...

O riso magnífico é um trecho dessa música desvairada.

Mas é preciso ter baixelas de ouro,
compreendes?
— e colares, e espelhos, e espadas e estátuas.
E as lâmpadas. Deus do céu!
E os pandeiros ágeis e as liras sonoras e tremulas...

Escuta bem:
Ah! Ah! Ah! Ah!
Ah! Ah! Ah! Ah!

Só de três lugares nasceu até hoje esta música heroica:
do céu que venta,
do mar que dança,
e de mim.
= = = = = = = = = = = = =

ORFANDADE

A MENINA de preto ficou morando atrás do tempo,
sentada no banco, debaixo da árvore,
recebendo todo o céu nos grandes olhos admirados.

Alguém passou de manso, com grandes nuvens no vestido,
e parou diante dela, e ela, sem que ninguém falasse,
murmurou: “A MAMÃE MORREU”.

Já ninguém passa mais, e ela não fala mais, também.
O olhar caiu dos seus olhos, e está no chão, com as outras pedras,
escutando na terra aquele dia que não dorme
com as três palavras que ficaram por ali.

Fonte:
Cecília Meirelles. Viagem. Lisboa: Império, 1938.

Eça de Queirós (Um Poeta Lírico)

Aqui está, simplesmente, sem frases e sem ornatos, a história triste do poeta Korriscosso. De todos os poetas líricos de que tenho notícia, é este, certamente, o mais infeliz. Conheci-o em Londres, no hotel de Charing-Cross, uma madrugada regelada de Dezembro. Tinha eu chegado do continente, prostrado por duas horas de Canal da Mancha… Ah! que mar! E era só uma brisa fresca de Noroeste: mas ali, no tombadilho, sob uma capa de oleado de que um marujo me tinha coberto, como se cobre um corpo morto, fustigado da neve e da vaga, oprimido por aquela treva tumultuosa que o paquete ia rompendo aos roncos e aos encontrões — parecia-me um tufão dos mares da China…

Apenas entrei no hotel, gelado e estremunhado, corri ao vasto fogão do peristilo, e ali fiquei, saturando-me daquela paz quente em que a sala estava adormecida, com os olhos beatamente postos na boa brasa escarlate… E foi então que vi aquela figura esguia e longa, já de casaca e gravata branca, que do outro lado da chaminé, de pé, com a taciturna tristeza duma cegonha que cisma, olhava também os carvões ardentes, com um guardanapo no braço. Mas o porteiro tinha rolado a minha bagagem, e eu fui inscrever-me ao bureau. A guarda-livros, tesa e loura, com um perfil antiquado de medalha safada, pousou o seu crochê ao lado da sua chávena de chá, acariciou com um gesto doce os dois bandós louros, assentou corretamente o meu nome, de dedinho no ar, fazendo rebrilhar um diamante, e eu ia subir a vasta escadaria, — quando a figura magra e fatal se dobrou num ângulo, e murmurou-me num inglês silabado:

— Já está servido o almoço das sete…

Mas eu não queria o almoço das sete. Fui dormir.

Mas tarde, já repousado, fresco do banho, quando desci ao restaurante para o lanche, avistei logo, plantado melancolicamente ao pé da larga janela, o indivíduo esguio e triste. A sala estava deserta numa luz parda; os fogões flamejavam; e fora, no silêncio do domingo, nas ruas mudas, a neve caía sem cessar de um céu amarelento e baço. Eu via apenas as costas do homem; mas havia na sua linha magra e um pouco dobrada uma expressão tão evidente de desalento, que me interessei por aquela figura. O cabelo comprido, de tenor, caído sobre a gola da casaca, era, manifestamente, de um meridional; e toda a sua magreza friorenta se encolhia ao aspecto daqueles telhados cobertos de neve, na sensação daquele silêncio lívido… Chamei-o. Quando ele se voltou, a sua fisionomia, que apenas entrevira na véspera, impressionou-me: era um carão longo e triste, muito moreno, de nariz judaico e uma barba curta e frisada, uma barba de Cristo em estampa romântica; a testa era destas que, em boa literatura, se chama, creio eu, fronte: era larga e era lustrosa. Tinha o olhar encovado e vago, com uma indecisão de sonho nadando num fluido enternecido… E que magreza! quando andava, a calça curta torcia-se em torno da canela como pregas de bandeira em torno dum mastro: a casaca tinha dobras de túnica ampla; as duas abas compridas e agudas eram desgraçadamente grotescas. Recebeu a ordem do meu almoço, sem me olhar, num tédio resignado: arrastou-se para o balcão onde o maitre do hotel lia a Bíblia, passou a mão pela testa com um gesto errante e dolente, e disse-lhe numa voz surda:

— Número 307. Duas costeletas. Chá…

O maitre do hotel afastou a Bíblia, inscreveu o menu — e eu acomodei-me à mesa, e abri o volume de Tennyson que trouxera para almoçar comigo — porque, creio que lhes disse, era domingo, dia sem jornais e sem pão fresco. Fora continuava a nevar sobre a cidade muda. A uma mesa distante, um velho cor de tijolo e todo branco de cabelo e de suiças, que acabara de almoçar, dormitava de mãos no ventre, boca aberta, e luneta na ponta do nariz. E o único som vinha da rua, uma voz gemente que a neve abafava mais, uma voz pedinte que à esquina defronte garganteava um salmo… Um domingo de Londres.

Foi o magro que me trouxe o almoço — e apenas ele se aproximou, com o serviço do chá, eu senti logo que aquele volume de Tennyson nas minhas mãos o tinha interessado e impressionado; foi um olhar rápido, gulosamente fixado na página aberta, um estremecimento quase imperceptível, — emoção fugitiva, decerto, porque depois de ter pousado o serviço, rodou sobre os calcanhares e foi plantar-se, melancolicamente, à janela, de olho triste e posto na neve triste. Eu atribuí aquele movimento curioso ao esplendor da encadernação do volume, que eram os Idílios de El-Rei, em marroquim negro, com o escudo de armas de Lançarote do Lago — o pelicano de ouro sobre um mar de sinopla.

Nessa noite parti no expresso para a Escócia, e ainda não tinha passado Iorque, adormecida na sua gravidade episcopal, já me esquecera o criado romanesco do restaurante de Charing-Cross. Foi só daí a um mês, ao voltar a Londres, que entrando no restaurante, e revendo aquela figura lenta e fatal atravessar com um prato de rosbife numa das mãos e na outra um pudim de batata, senti renascer o antigo interesse. E nessa noite mesmo, tive a singular felicidade de saber o seu nome e de entrever um fragmento do seu passado. Era já tarde e eu voltava do Covent-Garden, quando no peristilo do hotel encontrei, majestoso e próspero, o meu amigo Bracolletti.

Não conhecem Bracolletti? A sua presença é formidável; tem amplidão pançuda, o negro cerrado da barba, a lentidão, o cerimonial dum paxá gordo; mas esta ponderosa gravidade turca é temperada, em Bracolletti, pelo sorriso e pelo olhar. Que olhar! Um olhar doce, que me faz lembrar o dos animais da Síria: é o mesmo enternecimento. Parece errar no seu fluido macio a religiosidade meiga das raças que dão os Messias… Mas o sorriso! O sorriso de Bracolletti é a mais completa, a mais perfeita, a mais rica das expressões humanas; há finura, inocência, bonomia, abandono, ironia doce, persuasão, naqueles dois lábios que se descerram e que deixam brilhar um esmalte de dentes de virgem!… Ah! mas também este sorriso é a fortuna de Bracolletti.

Moralmente, Bracolletti é um hábil. Nasceu em Esmirna de pais gregos; é tudo o que ele revela: de resto, quando se lhe pergunta pelo seu passado, o bom grego rola um momento a cabeça de ombro a ombro, esconde sob as pálpebras cerradas com bonomia o seu olho maometano, desabrocha o sorriso duma doçura de tentar abelhas e murmura, como afogado em bondade e em enternecimento:

— Eh! mon Dieu! Eh! mon Dieu!…

Nada mais. Parece, porém, que viajou, — porque conhece o Peru, a Crimeia, o Cabo da Boa Esperança, os países exóticos — tão bem como Regent-Street: mas é evidente para todos que a sua existência não foi tecida, como a dos vulgares aventureiros do Levante, de ouro e estopa, de esplendores e pelintrices. É um gordo e, portanto, um prudente: o seu magnífico solitário nunca deixou de lhe brilhar no dedo, nenhum frio jamais o surpreendeu sem uma peliça de dois mil francos, e nunca deixa de ganhar, todas as semanas, no Fraternal Clube, de que é um membro querido, dez libras ao whist. É um forte.

Mas tem uma debilidade. É singularmente guloso de rapariguinhas de doze a catorze anos, gosta delas magrinhas, muito louras, e com o hábito de praguejar. Coleciona-as pelos bairros pobres de Londres, com método. Instala-as em casa, e ali as tem, como passarinhos na gaiola metendo-lhe a papinha no bico, ouvindo-as palrar todo baboso, animando-as a que lhe roubem os xelins da algibeira, gozando o desenvolvimento dos vícios naquelas flores da lama de Londres, pondo-lhes ao alcance as garrafas de gin para que os anjinhos se embebedem; — e quando alguma, excitada, de álcool, de cabelo ao vento e face acesa, o injuria, o arrepela, baba obscenidades, — o bom Bracolletti encruzado no sofá, de mãos beatamente cruzadas na pança, o olhar afogado em êxtase, murmura no seu italiano da costa síria:

— Piccolina! Gentilleta!

Querido Bracolletti! Foi, realmente, com prazer, que o abracei, nessa noite, em Charing-Cross: e como nos não víamos há muito, fomos cear juntos ao restaurante. O criado triste lá estava no seu balcão, curvado sobre o Journal des Débats. E apenas Bracolletti apareceu, na sua majestade de obeso, o homem estendeu-lhe silenciosamente a mão; foi um aperto de mãos solene, enternecido e sincero.

Bom Deus, eram amigos! Arrebatei Bracolletti para o fundo da sala, e vibrando de curiosidade, interroguei-o com sofreguidão. Quis primeiro o nome do homem.

— Chame-se Korriscosso — disse-me Bracolletti, grave.

Quis depois a sua história. Mas Bracolletti como os deuses da Ática que, nos seus embaraços no mundo, se recolhiam à sua nuvem. Bracolletti refugiou-se na sua vaga reticência.

— Eh! mon Dieu!… Eh! mon Dieu!…

— Não, não, Bracolletti. Vejamos. Quero-lhe a história… Aquela face fatal e byroniana deve ter uma história…

Bracolletti então tomou todo o ar cândido que lhe permitem a sua pança e as suas barbas — e confessou-me, deixando cair as frases às gotas, que tinham viajado ambos na Bulgária e no Montenegro… Korriscosso foi seu secretário… Boa letra… Tempos difíceis… Eh! mon Dieu!…

— De onde é ele ?

Bracolletti respondeu sem hesitar, baixando a voz, com gesto repassado de desconsideração:

— É um negro de Atenas.

O meu interesse sumiu-se com a água que a areia absorve. Quando se tem viajado no oriente e nas escalas do Levante, adquiri-se facilmente o hábito, talvez injusto, de suspeitar do grego: aos primeiros que se veem, sobre tudo tendo uma educação universitária e clássica, o entusiasmo acende-se um pouco, pensa-se em Alcibíades e em Platão, nas glórias duma raça estética e livre, e perfilam-se na imaginação as linhas augustas do Pártenon. Mas, depois de os ter frequentado, às mesas redondas e nos tombadilhos das Messageries, e principalmente depois de ter escutado a lenda de velhacaria que eles têm deixado desde Esmirna até Tunes, os outros que se veem provocam, apenas, estes movimentos: abotoar rapidamente o casaco, cruzar fortemente os braços sobre a cadeia do relógio, e aguçar o intelecto para rechaçar a escroqueria.

A causa desta reputação funesta é que a gente grega, que emigra para as escalas do Levante, é uma plebe torpe, parte pirata e parte lacaia, bando de rapina astuto e perverso. A verdade é que apenas soube Korriscosso um grego, lembrei-me logo que o meu belo volume de Tennyson, na minha última estada em Charing-Cross, me desaparecera do quarto, e recordei o olhar de gula e de presa que cravara nele Korriscosso… Era um bandido!

E durante a ceia não falamos mais de Korriscosso. Serviu-nos outro criado, rubro, honesto e são. O lúgubre Korriscosso não se afastou do balcão, abismado no Journal des Débats.

Nessa noite aconteceu, ao recolher-me ao meu quarto, que me perdi… O hotel está atulhado, e eu tinha sido alojado naqueles altos de Charing-Cross, numa complicação de corredores, escadas, recantos, ângulos, onde é quase necessário roteiro e bússola.

De castiçal na mão, penetrei num passadiço onde corria um bafo morno de viela mal arejada. As portas aí não tinham números, mas pequenos cartões colados onde estavam inscritos nomes: John, Smith, Charlie, Willie… Enfim, eram evidentemente as habitações dos criados. De uma porta aberta saía a claridade de um bico de gás; adiantei-me, e vi logo Korriscosso, ainda de casaca, sentado a uma mesa alastrada de papéis, de testa pendida sobre a mão, escrevendo.

— Pode-me indicar o caminho para o número 508? — balbuciei.

Ele ergueu para mim um olhar estremunhado e enevoado; parecia ressurgir de muito longe, de um outro universo; batia as pálpebras, repetindo:

— 508? 508?…

Foi então que eu avistei, sobre a mesa, entre papéis, colarinhos sujos e um rosário — o meu volume de Tennyson! Ele viu o meu olhar, o bandido! E acusou-se todo numa vermelhidão que lhe inundou a face chupada. O meu primeiro movimento foi não reconhecer o livro: como era um movimento bom, e obedecendo logo à moral superior do mestre Talleyrand, reprimi-o; apontando o volume com um dedo severo, um dedo de Providência irritada, disse-lhe:

— É o meu Tennyson…

Não sei que resposta ele tartamudeou, porque eu, apiedado, retomado também pelo interesse que me dava aquela figura picaresca de grego sentimental, acrescentei num tom repassado de perdão e de justificação:

— Grande poeta, não é verdade? Que lhe pareceu? Tenho a certeza que se entusiasmou…

Korriscosso corou mais. Mas não era o despeito humilhado do salteador surpreendido, era, julguei eu, a vergonha de ver a sua inteligência, o seu gosto poético adivinhados — e de ter no corpo a casaca coçada de criado de restaurante. Não respondeu. Mas as páginas do volume, que eu abri, responderam por ele; a brancura das margens largas desaparecia sob uma rede de comentários a lápis: Sublime! Grandioso! Divino!

— Palavras lançadas numa letra convulsiva, num tremor de mão, agitada por uma sensibilidade vibrante…

No entanto Korriscosso permanecia de pé, respeitoso, culpado, de cabeça baixa, com o laço da gravata branca fugindo para o cangote. Pobre Korriscosso! Compadeci-me daquela atitude, revelando todo um passado sem sorte, tantas tristezas de dependência… Lembrei-me que nada impressiona o homem do Levante, como um gesto de drama e de palco; estendi-lhe ambas as mãos num movimento à Talma, e disse-lhe:

— Eu também sou poeta!…

Esta frase extraordinária pareceria grotesca e impudente a um homem do Norte; o levantino viu logo nela a expansão de uma alma irmã. Porque, não lhes disse? O que Korriscosso estava escrevendo, numa tira de papel, eram estrofes: era uma ode.

Daí a pouco, com a porta fechada, Korriscosso contava-me a sua história - ou antes fragmentos, anedotas desirmanadas da sua biografia. É tão triste, que a condenso. De resto, havia na sua narração lacunas de anos; - e eu não posso reconstituir com lógica e sequência a história deste sentimental. Tudo é vago e suspeito.

Nasceu com efeito em Atenas; seu pai parece que era carregador no Pireu. Aos 18 anos, Korriscosso servia de criado a um médico, e nos intervalos do serviço frequentava a Universidade de Atenas; estas coisas são frequentes as menores, como ele dizia. Formou-se em leis: isto habilitou-o, mais tarde, em tempos difíceis, a ser um intérprete de hotel. Desse tempo datam as suas primeiras elegias num semanário lírico, intitulado Ecos da Ática. A literatura levou-o diretamente à política e às ambições parlamentares. Uma paixão, uma crise patética, um marido brutal, ameaças de morte, forçam-no a expatriar-se. Viajou na Bulgária, foi em Salônica empregado numa sucursal do Banco Otomano, remeteu endechas dolorosas a um jornal da província - a Trombeta da Argólida. Aqui há uma dessas lacunas, um buraco negro na sua história. Reaparece em Atenas, com fato novo, liberal e deputado.

Este período de glória foi breve, mas suficiente para o por em evidência; a sua palavra colorida, poética, recamada de imagens engenhosas e lustrosas, encantou Atenas. Tinha o segredo de florir, como ele dizia, os terrenos mais áridos, duma discussão de imposto ou de viação fazia saltar éclogas de Teócrito. Em Atenas este talento leva ao poder: Korriscosso era indicado para gerir uma alta administração do Estado, o ministério, porém, e com ele a maioria de que Korriscosso era o tenor querido, caíram, sumiram-se, sem lógica constitucional, num destes súbitos desabamentos políticos tão comuns na Grécia, em que os governos se aluem, como as casas em Atenas — sem motivo. Falta de base, decrepitude de materiais e de individualidades… Tudo tende para o pó num solo de ruínas…

Nova lacuna, novo mergulho obscuro na história de Korriscosso…

Volta à superfície, membro de um clube republicano de Atenas, pede num jornal a emancipação da Polônia, e a Grécia governada por um concílio de gênios. Publica então os seus Suspiros da Trácia. Tem outro romance de coração… E enfim — e isto disse-me, sem explicações, — é obrigado a refugiar-se em Inglaterra. Depois de tentar em Londres várias posições, coloca-se no restaurante de Charing-Cross.

— É um porto de abrigo! - disse-lhe eu, apertando-lhe a mão.

Ele sorriu com amargura. Era decerto um porto de abrigo, e vantajoso. É bem alimentado; as gorjetas são razoáveis; tem um velho colchão de molas, mas as delicadezas da sua alma são, a todo o momento, dolorosamente feridas…

Dias atribulados, dias crucificados, os daquele poeta lírico, forçado a distribuir numa sala, a burgueses estabelecidos e glutões, costeletas e copos de cerveja! Não é a dependência que o aflige; a sua alma de grego não é particularmente ávida de liberdade, basta-lhe que o patrão seja cortês. E, como ele me disse, é lhe grato reconhecer que os fregueses de Charing-Cross nunca lhe pedem a mostarda ou o queijo sem dizer “if you please”; e quando saem, ao passar por ele, levam dois dedos à aba do chapéu, isto satisfaz a dignidade de Korriscosso.

Mas o que o tortura é o contato constante com o alimento. Se ele fosse um guarda-livros dum banqueiro, primeiro caixeiro dum armazém de sedas… Nisso há uma sombra de poesia — os milhões que se revolvem, as frotas mercante, a brutal força do ouro, ou então dispor ricamente os estofos, os cortes de seda, fazer correr a luz nas ondulações das moiras, dar ao veludo as molezas da linha e da prega…. Mas num restaurante como se pode exercer o gosto, a originalidade artística, o instinto da cor, do efeito, do drama - a partir nacos de rosbife ou de presunto de Iorque?!… Depois, como ele disse, dar a comer, fornecer alimento, é servir exclusivamente a pança, a tripa, a baixa necessidade material: no restaurante, o ventre é Deus: a alma fica fora, com o chapéu que se pendura no cabide ou com o rolo de jornais que se deixou no bolso do paletó.

E as convivências, e a falta de conversação! Nunca se voltarem para ele senão para lhe pedirem salame ou sardinhas de Nantes! Nunca abrir os seus lábios, de onde pendia o parlamento de Atenas, senão para perguntar: - Mais pão? Mais bife? — Esta privação de eloquência lhe é dolorosa.

Além disso o serviço impede-lhe o trabalho. Korriscosso compõe de memória; quatro passeios pelo quarto, um repelão ao cabelo, e a ode sai-lhe harmoniosa e doce… Mas a interrupção glutona da voz do freguês, pedindo nutrição, é fatal a esta maneira de trabalhar. Às vezes, encostado a uma janela, de guardanapo no braço, Korriscosso está fazendo uma elegia: são tudo luares, roupagens alvas de virgens pálidas, horizontes celestes, flores de alma dolorida… É feliz; está remontado aos céus poéticos, nas planícies azuladas onde os sonhos acampam, galopando de estrela em estrela…. De repente, uma grossa voz faminta berra de um canto:

— Bife e batatas!

Ai! As aladas fantasias batem o voo como pombas espavoridas! E aí vem o infeliz Korriscosso, precipitado dos cimos ideais, de ombros vergados e as abas da casaca balançando, perguntar com o sorriso lívido:

— Passado ou meio cru?

Ah! é um amargo destino!

— Mas — perguntei-lhe eu — por que não deixa este covil, este templo do ventre?

Ele deixou pender a sua bela cabeça de poeta. E disse-me a razão que o prende: disse-me, quase chorando nos seus braços, com nó da gravata branca no cangote: Korriscosso ama.

Ama uma Fanny, criada de todo o serviço em Charing-Cross. Ama-a desde o primeiro dia em que entrou no hotel: amou-a no momento em que a viu lavando as escadas de pedra, com os braços roliços nus, e os cabelos louros, os fatais cabelos louros, deste louro que entontece os meridionais, cabelos ricos, de um tom de cobre, dum tom de ouro-mate, torcendo-se numa trança de deusa. E depois a carnação, uma carnação de inglesa de Yorkshire — leite e rosas…

E o que Korriscosso tem sofrido! Toda a sua dor exala-a em odes — que passa a limpo ao Domingo, dia de repouso e dia do Senhor! Leu-as. E eu vi quanto a paixão pode perturbar um ser nervoso: que ferocidade de linguagem, que lances de desespero, que gritos de alma dilacerada arremessados dali, daqueles altos de Charing-Cross, para a mudez do céu frio! É que Korriscosso tem ciúmes. A desgraçada Fanny ignora aquele poeta a seu lado, aquele delicado, aquele sentimental, e ama um policial. Ama um policial, um colosso, um Alcides, uma montanha de carne eriçada duma floresta de barbas, com o peito como o flanco de um couraçado, com pernas como fortalezas normandas. Este Polifemo, como diz Korriscosso, tem, ordinariamente, serviço no Strand; e a pobre Fanny passa o seu dia a espreitá-lo de um postigo, dos altos do hotel.

Todas as suas economias as gasta em quartilhos de gin, de brandy, de genebra, que à noite lhe leva em copinhos debaixo do avental. Mantém-no fiel pelo álcool; o monstro, plantado enormemente a uma esquina, recebe em silêncio o copo, atira-o de um golpe às faces tenebrosas, arrota cavamente, passa a mão cabeluda pela barba de Hércules, e segue taciturnamente, sem um obrigado, sem um amo-te, batendo o lajeado com a vastidão das suas solas sonoras. A pobre Fanny admira-o babosa… E talvez nesse momento, à outra esquina, o magro Korriscosso, fazendo no nevoeiro um esguio relevo de poste telegráfico, soluce com a face magra entre as mãos transparentes.

Pobre Korriscosso! Se ele ao menos a pudesse comover… Mas quê! Ela despreza-lhe o corpo de tísico triste; e a alma não lha compreende…Não que Fanny seja inacessível a sentimentos ardentes, expressos em linguagem melodiosa. Mas Korriscosso só pode escrever as suas elegias na sua língua materna… E Fanny não compreende grego… E Korriscosso é só um grande homem — em grego…

Quando desci ao meu quarto, deixei-o soluçando sobre o catre. Tenho-o visto depois, outras vezes, ao passar em Londres. Está mais magro, mais fatal, mais mirrado de zelos, mais curvado quando se move pelo restaurante com a travessa do rosbife, mais exaltado no seu lirismo… Sempre que ele me serve dou-lhe um selim de gorjeta: e depois, ao retirar, aperto-lhe sinceramente a mão.

Fonte:
Eça de Queirós. Contos. 1902. Publicado originalmente em 1880 em O Atlântico.