quinta-feira, 3 de março de 2022

Gislaine Canales (Glosas Diversas) XXXIX

A FORÇA DA TROVA...


MOTE:
Trabalho!... e fazendo trova,
já nem sinto meus cansaços,
pois São Francisco me aprova,
pondo mais força em meus braços...

Ercy Maria Marques de Faria
(Bauru/SP)


GLOSA:
Trabalho!... e fazendo trova,
eu me sinto renascer,
em qualquer ideia nova
que, então, consiga escrever!

Numa alegria estonteante
já nem sinto meus cansaços,
e feliz, me sinto diante
do calor de mil abraços!

O amor à trova, renova,
faz da trova uma oração,
pois São Francisco me aprova,
e aumenta a minha emoção!

Ó meu Santo Padroeiro,
tu preenches meus espaços,
com ares de feiticeiro
pondo mais força em meus braços…
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A TERRA É UM ALTAR

MOTE:
A terra toda é um altar,
onde Deus, dia após dia,
distribui, sem vacilar,
a comunhão da energia!

Flávio Roberto Stefani
(Porto Alegre/RS)


GLOSA:
A terra toda é um altar

de belezas naturais:
as montanhas, selva e mar...
altares belos, demais!

É nosso o mundo tão lindo
onde Deus, dia após dia,
com o seu poder infindo
faz brotar, nele, a harmonia!

Manda bênçãos pelo ar
com seu amor e carinho.
distribui, sem vacilar,
flores em nosso caminho!

O mundo recebe, então,
a Divinal sintonia
que faz nascer da emoção
a comunhão da energia!
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CAMBORIÚ, SEREIA…

MOTE:
Camboriú, linda sereia,
sou teu poeta a cantar,
deitando trovas na areia,
banhando rimas no mar...
Gerson Cesar Souza
(São Mateus do Sul/PR)


GLOSA:

Camboriú, linda sereia,
praia mais bela do Sul,
minha alma, por ti, passeia
envolta em teu mar azul!

Vibra de amor o meu peito,
sou teu poeta a cantar,
e poetando é o meu jeito
de, em versos, te sublimar!

Sigo, em cada maré cheia,
colhendo nova ilusão,
deitando trovas na areia,
escritas com o coração!

Teu Sol, enfeita meu dia;
minha noite – o teu luar;
me extasio de alegria,
banhando rimas no mar…
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CUMPLICIDADE

MOTE:
É quando a noite se aquieta
que eu sinto a cumplicidade,
do amor que me faz poeta,
com a dor que me faz saudade!
João Paulo Ouverney
(Pindamonhangaba/SP)


GLOSA:

É quando a noite se aquieta
na languidez das estrelas
que a minha visão de esteta
me deixa feliz, por vê-las!

É sempre em noite silente,
que eu sinto a cumplicidade,
pareço um adolescente,
sonhando em profundidade!

Encontro na estrada reta,
os pedacinhos de sonhos,
do amor que me faz poeta,
que faz meus dias risonhos!

Me identifico também,
com a dor e a ansiedade
e sofro, como ninguém,
com a dor que me faz saudade!
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SOMOS...

MOTE:
O nosso amor sem recatos,
é uma loucura, porém
nós somos dois insensatos
felizes como ninguém!...

José Tavares de Lima
(Juiz de Fora/MG)


GLOSA:

O nosso amor sem recatos,
é verdadeiro, incomum...
Nós vivenciamos os fatos
do nosso amor, um por um!

Muitos dizem que é loucura!
é uma loucura, porém
toda cheia da ternura,
que uma loucura contém!

Aos olhos estupefatos
do mundo, em indagação,
nós somos dois insensatos
movidos pela emoção!

É grande o nosso carinho,
nosso amor vai mais além,
seguimos nosso caminho
felizes como ninguém!…

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas Virtuais de Trovas XXIV. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. http://www.portalcen.org. Março 2005.

Júlia Lopes de Almeida (O Caso de Rute)

A Valentim Magalhães


Pode abraçar sua noiva! disse com bambaleaduras* na papeira* flácida a palavrosa* baronesa Montenegro ao Eduardo Jordão, apontando a neta, que se destacava na penumbra da sala como um lírio alvíssimo irrompido dentre os florões grosseiros da alcatifa.

Ele não se atreveu, e a moça conservou-se impassível.

– “Não se admire daquela frieza. Olhe: eu sei que Rute o ama, não porque ela o dissesse – esta menina é de um recato e de um melindre de envergonhar a própria sensitiva –, mas porque toda ela se altera quando ouve o seu nome. O corpo treme-lhe, a voz muda de timbre e os olhos brilham-lhe como se tivessem fogo lá por dentro. Outro dia, porque uma prima mais velha, senhora de muito respeito, ousasse por em dúvida o seu bom caráter, a minha Rute fez-se de mil cores e tais coisas lhe disse que nem sei como a outra a aturou! Toda a gente percebe que ela o ama; mas é uma obstinada e lá guarda consigo o seu segredo... Agora, que o senhor vem pedi-la, é que eu lhe declaro que estava morta por que chegasse este momento. Apreciei-o sempre como um coração e um espírito de bom quilate.”

– “Oh! Minha senhora...”

– “Não lhe faço favor. Além disso, Rute está com vinte e três anos; parece-me ser já tempo de se casar. Há de ser uma excelente esposa: é bondosa, regularmente instruída, nada temos poupado com a sua educação; e se não aparece e não brilha muito na sociedade é pelo seu excesso de pudor. Eu às vezes cismo que esta minha neta é pura demais para viver na terra. Todas as pessoas de casa têm medo de lhe ferir os ouvidos e escolhem as palavras quando falam com ela.

Não admira: a mãe teve só esta filha e foi rigorosíssima na escolha das mestras e das amigas; o padrasto tratava-a também com muita severidade, embora fosse carinhoso. Um santo homem! Desde que ele morreu que nos falta a alegria em casa... A mulher, coitada, como sabe, ficou paralítica; e esta pequena mesmo tornou-se melancólica e sombria. Às vezes penso que ela fez voto de castidade, tal é o seu recato; desengano-me lembrando-me de quanto é moderada na religião e de que o seu bom senso se revela em tudo! O que tenho a dizer-lhe, portanto, é isto: afirmo-lhe que Rute o adora e que não há alma mais cândida, nem espírito mais virginal que o seu. Aí a deixo por alguns minutos; se é o respeito por mim que lhe tolhe as palavras, concedo-lhe plena liberdade.”

Eduardo fixou na noiva um olhar apaixonado. Na sua brancura de pétala de camélia não tocada, Rute continuava em pé, no mesmo canto sombrio da sala. Os seus grandes olhos negros chispavam febre e ela amarrotava com as mãos, lentamente, em movimentos apertados, o laço branco do vestido.

A baronesa acrescentou ainda, carregando nas qualidades da neta e fazendo ranger a cadeira de onde se erguia:

– “Rute nunca foi de lastimeiras e, apesar de mimosa e de aparentemente frágil, tem boa saúde. Um bom corpo ao serviço de uma excelente alma. Dirão: “Estas palavras ficam mal na tua boca!...” Pouco importa; são a verdade. Tenho outras netas, filhas de outras filhas; tenho criado muitas meninas, minhas e alheias, mas em nenhuma encontrei nunca tanta doçura, tanta altivez digna e tanta pudicícia. Aí lhe a deixo; confesse-a!”

A velha saiu.

Todos os rumores da rua rolaram confusamente pela sala. A porta que se abriu e fechou trouxe, num raio de luz, os repiques dos sinos, o rodar dos veículos, o sussurro abominável da cidade atarefada; mas também tudo se extinguiu depressa. A porta fechou-se, as janelas voltadas para o jardim mal deixavam entrar a claridade, coada por espessas cortinas corridas, e os noivos ficaram sós, silenciosos, contemplando-se de face.
* *

O finado barão fora um colecionador afinco de móveis e de outros objetos dos tempos coloniais. Súdito de D. João VI, de que a sua adorável memória acusava ainda todos os traços já aos noventa anos, era sempre o seu assunto predileto a narração dos sucessos históricos presenciados por ele. À proporção que se ia afastando dos seus dias de moço, mais aferrado se fazia aos gostos e às modas do seu tempo. Só se servia em baixela assinada com os emblemas da casa bragantina e a propósito de qualquer coisa dizia, fincando o queixo agudo entre o indicador em curva e o polegar: – “Lembro-me de uma vez em que a D. Carlota Joaquina”... Ou então: – “Em que D. João VI, ou D. Pedro I”, etc. E em seguida lá vinha a descrição de um Te Deum, ou de uma procissão, a que a sua imaginação facultosa emprestava as mais brilhantes pompas. A família tinha um sorriso condescendente para aquele apego, já sem curiosidade, à força de ouvir repetir os mesmos fatos. Os amigos evitavam tocar, de leve que fosse, em assuntos políticos, receosos da longura do capítulo que o barão a propósito lhes despejasse em cima; mas só ele, o bom, o fiel, nada percebia, e, com os olhos no passado, toca a citar ditos e atitudes dos imperadores e a curvar-se numa idolatria pelo espírito boníssimo da última imperatriz.

Alguma coisa disso se refletia em casa: tudo ali era sóbrio, monótono e saudoso. Cadeiras pesadas, de moldes coloniais, largas de assento, pregueadas no couro lavrado de coroas e brasões fidalgos, uniam as costas às paredes, de onde um ou outro quadro sacro pendia desguarnecido e tristonho.

Assim o quisera ele, que até mesmo na hora suprema rejeitara um belo crucifixo que lhe oferecia o padre, voltando os olhos suplicemente para um outro crucifixo mais tosco, erguido sobre a cômoda, e que pertencera a D. Pedro I.

Para ele, naquela cruz não estava só o Cristo; estava, de envolta com o respeito pelos monarcas extintos, a lembrança dos seus folguedos de moço. Talvez mesmo, num volteio súbito da memória, se lembrasse das festas religiosas em que namorara, à sombra dos conventos, a sua primeira mulher, e beliscara com freimas amorosas os braços gordos de Janoca, a mulatinha mais faceira de então... Quem sabe? talvez que na hora da morte não se possa só a gente lembrar das coisas sérias.

Qualquer hora vivida pode ser recordada rapidamente, sem tempo de escolha. Como a Janoca não pertencera à história, a família ignorou-a; e pelo ar gélido daquela galeria de espectros palacianos não apareceu nem um requebro quente de mulatinha risonha, que lhes desmanchasse a compostura.

Depois de viúva, a segunda baronesa reformara algumas coisas e confundira os estilos, pondo no mesmo canto um contador Luís XV, um móvel da Renascença e uns tapetes modernos, entre largos reposteiros de seda cor de marfim.

Aquela extravagância não conseguira quebrar a severidade do todo. Tinha uma fisionomia casta e grave aquela sala. As virgens dos quadros, de longo pescoço arqueado e rosto pequenino, gozavam ali o doce sossego de uma meia tinta religiosa. Mas, lá dentro, os dias passavam-se entre o tropel da criançada, os sons do piano de Rute e a confusão dos criados.

E era por isso que todos fugiam lá para dentro e que só Rute, nas suas horas de inexplicável tristeza, se encerrava ali, em companhia da Madona da Cadeira e da Virgem de S. Sisto.

Era nessa mesma sala que ela estava ainda, muda e pálida, em frente do seu amado.

– “Rute...” - balbuciou Eduardo.

Mas a moça interrompeu-o com um gesto e disse-lhe logo, com voz segura e firme:

– “Minha avó mentiu-lhe.”

O noivo recuou, num movimento de surpresa; foi ela quem se aproximou dele, com esforço arrogante e doloroso, deslumbrando-o com o fulgor dos seus olhos belíssimos, bafejando-lhe as faces com o seu hálito ardente.

– “Eu não sou pura! Amo-o muito para o enganar. Eu não sou pura!”

Eduardo, lívido, com latejos nas fontes e palpitações desordenadas no coração, amparou-se a uma antiga poltrona, velha relíquia de D. Pedro I, e olhou espantado para a noiva, como se olhasse para uma louca. Ela, firme na sua resolução, muito chegada a ele, e a meia voz, para que a não ouvissem lá dentro, ia dizendo tudo:

– “Foi há oito anos, aqui, nesta mesma sala... Meu padrasto era um homem bonito, forte; eu uma criança inocente... Dominava-me; a sua vontade era logo a minha. Ninguém sabe! Oh! Não fale! Não fale, pelo amor de Deus! Escute, escute só; é segredo para toda a gente... No fim de quatro meses de uma vida de luxúria infernal, ele morreu, e foi ainda aqui, nesta sala, entre as duas janelas, que eu o vi morto, estendido na eça*. Que libertação, que alegria que foi aquela morte para a minha alma de menina ultrajada! Ele estava no mesmo lugar em que me dera os seus primeiros beijos e os seus infames abraços; Ali! Ali! Oh, o danado! Mais do que nunca lhe quero mal agora! Não fale, Eduardo! Minha avó morreria, sofre do coração; e minha mãe ficou paralítica com o desgosto da viuvez... Desgosto por aquele cão! E ela ainda me manda rezar por
sua alma, a mim, que a quero no inferno! Às vezes tenho ímpetos de lhe dizer: “Limpa essas lágrimas; teu marido desonrou tua filha, foi seu amante durante quatro meses...” Calo-me piedosamente; e acodem todos: que não chorei a morte daquele segundo pai e bom amigo! – É isto a minha vida. Cedi sem amor, pela violência; mas cedi. Dou-lhe a liberdade de restituir a sua palavra à minha família.”

Rute falara baixo, precipitando as palavras, toda curvada para Eduardo, que lhe sentia o aroma dos cabelos e o calor da febre.

Em um último esforço, a moça fez-lhe sinal que saísse e ele obedeceu, curvando-se diante dela, sem lhe tocar na mão.
* *

O outro está morto há oito anos... ninguém sabe, só ela e eu... Está morto, mas vejo-o diante de mim; sinto-o no meu peito, sobre os meus ombros, debaixo de meus pés, nele tropeço, com ele me abraço em uma luta que não venço nunca! Ninguém sabe... mas por ser ignorada será menor a culpa? Dizem todos que Rute é puríssima!

Assim o creem. Deverei contentar-me com essa credulidade? Bastará mais tarde, para a minha ventura, saber que toda a gente me imagina feliz? O meu amigo Daniel é felicíssimo, exatamente por ignorar o que os outros sabem. Se a mulher dele tivesse tido a coragem de Rute, ama-la-ia ele da mesma maneira? Se a minha noiva não me tivesse dito nada, não seria o morto quem se levantasse da sepultura e me viesse relatar barbaramente as suas horas de volúpia, que me fazem tremer de horror! E eu, ignorante, seria venturoso, amaria a minha esposa, à sombra do maior respeito e com a mais doce proteção... E assim?!

Poderei sempre conter o meu ciúme e não aludir jamais ao outro? Ele morreu há oito anos... ela tinha só quinze... ninguém sabe! Só ela e eu! ...e ela ama-me, ama-me, ama-me! Se me não amasse e fosse em todo caso minha noiva dir-me-ia do mesmo modo tudo? Não... parece-me que não... não sei... se me não amasse... nada me diria! Daí, quem sabe? Amo-o muito para o enganar... parece-me que lhe ouvi isto!

Se eu pudesse esquecê-la! Não devo adorá-la assim! É uma mulher desonrada. A pudica açucena de envergonhar sensitivas é uma mulher desonrada... E eu amo-a! Que hei de fazer, agora? Abandoná-la... não seria digno nem generoso... Aquela confissão custou-lhe uma agonia!

Se ela não fosse honesta não afrontaria assim a minha cólera, nem se confessaria àquele que amasse só para não sentir a humilhação de o enganar. E o que é por aí a vida conjugal senão a mentira, a mentira e, mais ainda, a mentira?

O outro está morto... ninguém sabe, só ela e eu! Ela e eu! E que nos importam os outros, tendo toda a mágoa em nós dois só?! Antes todos os outros soubessem... Não! Que será preferível – ser desgraçado guardando uma aparência digna, ou...? Não! em certos casos ainda há alguma felicidade em ser desgraçado... Ela ama-me... eu amo-a... ele morreu há oito anos... já nem lhe falam sequer no nome... Ninguém sabe! ninguém sabe... só ela e eu!

Eduardo Jordão passava agora os dias em uma agitação medonha. Atraía e repelia a imagem de Rute, até que um dia, vencido, escreveu-lhe longamente, amorosamente, disfarçando, sob um manto estrelado de palavras de amor, a irremediável amargura da sua vida. “Que esquecesse o passado... ele amava-a... o tempo apagaria essa ideia, e eles seriam felizes, completamente felizes.”

O casamento de Rute alvoroçava a casa. A baronesa ocupava toda a gente, sempre abundante em palavras e detalhes. Só Rute, ainda mais arredia e séria, se encerrava no seu quarto, sem intervir em coisa alguma. Relia devagar a carta do noivo, em que o perdão que ela não solicitara vinha envolvido em promessas de esquecimento. Esquecimento! Como se fosse coisa que se pudesse prometer!

A moça, de bruços na cama, com o queixo fincado nas mãos, os olhos parados e brilhantes, bem compreendia isso.

Entraria no lar como uma ovelha batida. O perdão que o noivo lhe mandava revoltava-a. Pedira-lhe ela que lhe narrasse a sua vida dele, as suas faltas, os seus amores extintos? Não teria ele compreendido a enormidade do seu sacrifício? Seria cego? Seria surdo?... dono de um coração impenetrável e de uma consciência muda? As suas mãos estariam só tão afeitas a carícias que não procurassem estrangulá-la no terrível instante em que ela lhe dissera – eu não sou pura? Ou então por que não a ouvira de joelhos, compenetrado daquele amor, tão grande que assim se desvendava todo?! Ele prometia esquecer! Mas no futuro, quando se enlaçassem, não evocariam ambos a lembrança do outro? Talvez que, então, Eduardo a repelisse, a deixasse isolada no seu leito de núpcias, e fugindo para a noite livre fosse chorar lá fora o sonho da sua mocidade... Sim, a sua noite de núpcias seria uma noite de inferno! Se ele fosse generoso ela adivinharia através da doçura do seu beijo os ressaibos da lembrança do primeiro amante; e quanto maior fosse a paixão, maior seria a raiva e o ciúme.

Esquecimento!... sim... talvez, lá para a velhice, quando ambos, frios e calmos, fossem apenas amigos.

Rute pensou em matar-se. Viver na obsessão de uma ideia humilhante era demais para a sua altivez. Desejou então uma morte suave, que a levasse ao túmulo com a mesma aparência de cecém* cândida, de envergonhar a própria sensitiva.

Queria um veneno que a fizesse adormecer sonhando; e quanto dera para que nesse sonho fosse um beijo de Eduardo que lhe pousasse nos lábios!
* *

De luto a casa. Ramos e coroas virginais entravam a todo o instante. Quem saberia explicar a morte de Rute? foram achá-la estendida na cama, já toda fria.

Agora estava entre as duas janelas, na grande sala sombria, espalhando sobre o fumo da eça as suas rendas brancas e o seu fino véu de noiva. Parecia sonhar com o desejado esposo, que ali estava a seu lado, pálido e mudo.

Entravam já para o enterro e foi só então que uma voz disse alto, saindo da penumbra daquela sala antiga:

– Vai ficar com o padrasto, no mesmo jazigo...

Eduardo fixou a morta com doloroso espanto. Estava linda! Na pele alvíssima nem uma sombra. Os cabelos negros, mal atados na nuca, desprendiam-se em uma madeixa abundante, de largas ondas.

Quê! seria ainda para o outro aquele corpo angélico, tão castamente emoldurado nas roupas do noivado? Seria ainda para o outro aquela mocidade, aquela criatura divina, que deveria ser sua?!

E a mesma voz repetiu:

– Vai ficar com o padrasto...

Com o padrasto, noites e dias... fechados... unidos... sós! Fora para isso que ela se matara, para ir ter com o outro! Aquele outro de quem via o esqueleto torcendo-se na cova, de braços estendidos para a reconquista da sua amante!

Alucinado, ciumento, Eduardo arrancou então num delírio o véu e as flores de Rute, e inclinando um tocheiro pegou fogo ao pano da eça.

E a todos que acudiram nesse instante pareceu que viam sorrir a morta em um êxtase, como se fosse aquilo que ela desejasse…
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* Vocabulário (Dicionário Houaiss eletrônico – 2009):

Bambaleaduras
= mover mexendo os quadris; balancear; gingar.
Cecém = Significa açucena, uma flor que simboliza a nobreza, a altivez, a distinção e a elegância.
Eça =  Estrado onde se colocavam os caixões para os corpos serem velados.
Palavrosa = faladora; tagarela.
Papeira = tireomegalia, aumento no volume da glândula tireoide.


Fonte:
Júlia Lopes de Almeida. Ânsia eterna. 2. ed. rev. Brasília : Senado Federal, 2020. Publicada originalmente em 1903.

quarta-feira, 2 de março de 2022

A. A. de Assis (Saudade em Trovas) n. 33: Alonso Rocha

 

Leandro Bertoldo Silva (Diário de Viagem que bem poderia ser: Pare o ônibus que eu quero descer)

Existem muitas histórias em nossas vidas e até dariam um filme. Como não sou cineasta e sim escritor, deixo registrada aqui uma viagem a começar com meus itens básicos em minha bolsa tiracolo...

Livro, diário, caneta, caderno de anotações, carteira, dinheiro, passagens. Chiclete, celular, lenços de papel e óleo essencial. Máscara, vidro de álcool.

— Nossa, parece até bolsa de mulher! — disse com um sorriso minha esposa na rodoviária, ao aguardar comigo a chegada do ônibus que teimava atraso. Junto dela, meu sogro, minha sogra e minha filha também esperavam pacientemente – meu sogro nem tanto assim – o momento de despedirmos, pois chegava a hora de iniciar uma longa jornada de viagem de Minas a São Paulo até a casa dos meus pais.

Sim, a distância é longa, no entanto mais longo é o incompreensível atraso típico dos brasileiros presente em todas as ocasiões, e isso se deu logo no início antes mesmo de começar. O ônibus estava marcado para sair às 21h30 de Padre Paraíso com destino a Belo Horizonte e lá estava eu às 21 horas pronto para o embarque. O ônibus, porém, proveniente de Araçuaí, ainda estava a caminho. E a caminho ficou por 15... 25... 30... 45 minutos, 1 hora sem nada acontecer a não ser uma chuvinha miúda e fina para aumentar o frio.

Quando finalmente o ônibus apontou na pista, as despedidas se sucederam, para total alívio do meu sogro, o qual rapidamente se transformou em agonia ao escutar o agente de viagem falar ao me aproximar com as bagagens:

— Sua passagem é de 21h30?

— Sim...

— Então aguarde, por favor, porque este é o ônibus das 20 horas.

Fiquei perplexo por 45 segundos, mas logo consegui convencer minha esposa e todos a fazer valer aquelas despedidas e, assim, lá fiquei eu sozinho no frio e na chuva por mais algum tempo até a chegada do ônibus das 21h30.

Tempo, tempo, tempo, tempo... Já cantava Maria Bethânia! E eu precisei fazer um pedido ao senhor sentado no meu lugar quando, após uma longa espera, enfim poder entrar no ônibus às 22h40.

— É... O senhor está sentado no meu lugar.

— Jura?! Eu jurava ter lido o número do assento certo. Espere um pouquinho, vou conferir...

— Olha, não precisa; eu não me importo! Eu sento aqui do lado mesmo. É só o senhor arredar um pouquinho, e...

— De jeito nenhum! O certo é o certo. Se o senhor está dizendo que eu estou sentado no seu lugar, precisamos conferir.

— Meu senhor, não precisa. Eu só disse porque...

— Ahá! Viu só? Se disse é porque o senhor quer viajar no seu lugar, certo?

— Todo lugar é lugar, meu senhor... Eu só quero é começar logo a viagem.

— Mas ela já começou...

— Para o senhor sim, mas para mim... Bem, pode ficar em seu lugar. Eu me sento aqui ao lado mesmo.

— Mas o senhor não disse: “o senhor está sentado no meu lugar”?  Então o lugar é seu!

— Disse, mas pode ficar com ele.

— De jeito nenhum!

Nisso o ônibus pelo menos já tinha partido e eu lá em pé sem conseguir convencer o homem a não se incomodar. Depois de aproximadamente cinco minutos ou um pouco mais e de revirar todos os cantos das bolsas em seu colo, ele finalmente encontrou a passagem no bolsinho da camisa.

— Olha, que cabeça a minha... Eu jurava ter colocado a passagem em alguma das bolsas. Ih, olha só... — disse ajeitando os óculos — Eu também jurava ter lido certo o número da poltrona. A minha é essa outra. Mas uma vez aqui, se importa se eu ficar nessa mesma e o senhor ir aí ao lado?

Ou aquele homem não batia bem ou estava gozando da minha cara! Apenas me sentei e disse a ele:

— O senhor jura demais!

— Sou muito religioso, sim senhor.

A partir daí, acomodei no lugar, coloquei o cinto de segurança, borrifei álcool para todo lado, fechei os olhos, indiferente ao som longe de um ronco, e...

— Moço, desculpe, mas o senhor poderia trocar de lugar comigo?

Já ia perder as estribeiras quando vi se tratar de outra pessoa a me chamar. Dessa vez era uma moça bem nova ainda, quase menina, e me olhava com olhos um pouco assustados. Nem foi preciso esforço para adivinhar: ela, moça, ao viajar sozinha pela primeira vez, estava insegura, para não dizer medo mesmo, de ficar lá atrás do ônibus na companhia de pessoas desconhecidas. Tudo bem na frente também serem pessoas desconhecidas, mas...

— Minha mãe disse para eu tentar trocar de lugar com alguém caso eu...

— Sim, sim, tudo bem, eu compreendo. Onde você estava sentada?

Ela estava sentada muito atrás, bem ao lado do dono do ronco cujo som já não era mais longe, mas perto, insuportavelmente perto, sem contar o cheiro igualmente insuportável do banheiro. Desconfio daquela moça... Ela até podia ser uma menina ainda, mas suspeitei ter caído no maior conto do vigário. Não por acaso os olhos assustados e pedintes dela me lembraram de um certo gato do filme Shrek, mas quem poderia ter certeza? E se a suposta simulação existisse apenas na minha cabeça? Assim, passei a viagem toda sem pregar o olho e sem o roncador acordar sequer nas paradas. Ao chegar a Belo Horizonte debaixo de chuva, ainda bem para esfriar a minha cabeça, ouvi do incômodo companheiro:

— Nossa! Já chegou? Como passou rápido...

E era apenas a metade do caminho...

Tempo, tempo, tempo, tempo... Assim esperei pelas ruas e rodoviária de BH de 8h. até às 21h45 quando, por fim, chegou a hora de embarcar para a cidade de Marília, em São Paulo. Bem, “chegou a hora” é modo de dizer. Na verdade, a passagem havia sido marcada para esse horário e, antes mesmo de chegar a Belo Horizonte recebi uma mensagem da empresa de ônibus a perguntar se eu me importava em trocar o meu horário para 20h., mas sem explicar bem o motivo. Respondi positivamente, pois esperaria menos tempo para iniciar a viagem para Marília.

Ao desembarcar na rodoviária em BH, dirigi-me ao guichê da companhia para certificar aquela mensagem e pedido. Dois funcionários lá estavam, mas não sabiam do ocorrido. Porém, ao verificarem no sistema de passagens viram que os horários já estavam trocados conforme minha autorização. Tudo resolvido, e apesar daquela desconfiançazinha típica do mineiro, esperei até a hora do embarque com a pulga atrás da orelha.

Às 19h45 o sistema de som da rodoviária anunciou: “senhores passageiros, faltam 15 minutos para a próxima partida. Ocupem seus lugares”. Lá fui eu para a plataforma de embarque ocupar meu assento — dessa vez esperava ser o correto —, quando, ao querer ligar para minha esposa e dizer que tudo estava bem, percebi o celular sem bateria. Certo, 15 minutos é o suficiente para conectar o celular na carga, falar com ela e entrar no ônibus. Subi novamente com toda a bagagem as escadas até ao saguão onde ficam as tomadas de recarga, conectei rápido o celular que teimava em demorar a ligar. Nisso aquele friozinho na barriga já começava, pois o ônibus esperava ligado lá embaixo. Já estava ali mesmo, então insisti na ligação, pois minha esposa ficaria muito preocupada se eu não desse notícias. Finalmente consegui falar com ela, puxei rapidamente o telefone da tomada e fui desembestado tropicando pelas escadas em direção ao ônibus batendo as bolsas em todo mundo.

O motorista e o agente, após conferirem a passagem e acomodarem as malas no bagageiro, me autorizaram a entrar e eu, coração acelerado, sentei-me aliviado até perceber algo o qual me fez rir de nervoso: em todas as poltronas, inclusive a minha, havia entradas USB para recarregar celular... Seria cômico se não fosse trágico! E não digo isso pelo fato acabado de ocorrer, mas de um problema de última hora, o qual fez com que o ônibus antes marcado para às 21h45 e passado para 20h., saísse somente às 22h30.

A viagem transcorreu normalmente sem percalços nem nada, tirando apenas duas chateações... Os vinte e oito reais pagos em uma xícara de café com pão em uma parada, onde só então entendi o porquê de nos entregar na entrada uma plaquinha com um código de barras e só anunciar o valor do pedido no caixa na hora de pagar e, consequentemente, depois de ter comido, e a distância que era longa, longa demais! Parecia até aqueles probleminhas de matemática do tempo de escola... “Leandro saiu de Padre Paraíso, em Minas Gerais, às 21h45 de quinta-feira para chegar a Marília/SP, sábado, às 11h30, com parada prevista de 14 horas e 30 minutos em Belo Horizonte até a próxima partida. Considerando que o ônibus espacial da NASA até à lua, passando por Júpiter e fazendo uma escala pelos anéis de Saturno é 10 vezes mais perto, quanto tempo levaria para ele gritar SOCORRO??”

Brincadeira à parte, a viagem se mostrava mesmo muito longa, e o motorista a cada rodoviária na qual entrávamos – e entramos em todas, cidade por cidade – gritava duas vezes como se fosse para certificar a distância: “Rodoviária de Ribeirão Preto, Ribeirão Preto; Rodoviária de Baurú, Baurú...”. E de repetição em repetição, de cidade em cidade, cheguei ao meu destino muitas horas à frente do previsto e com muita história para contar.

A volta? Bem, até contaria se não fosse o frio do ar condicionado do ônibus e eu sem blusa por tê-la esquecido na casa dos meus pais. Além disso, a minha companheira de assento, devido ao seu porte físico um tanto avantajado, ocupava o dela e a metade do meu. E eu ali, espremido entre o anelo e o suspiro, ou melhor, entre a minha sobra e o braço da cadeira. Assim, não pensava em mais nada. Eu só lembrava a minha irmã ao dizer:

— Tudo pronto para iniciar a viagem planetária? Saindo hoje para chegar só sábado, se fosse de avião chegaria ao Japão.

Seria uma boa pedida se na minha cidade existisse aeroporto... Como não tem, fui a novas aventuras, intercalando em minha cabeça novos probleminhas matemáticos que no meu tempo ainda mantinham todos os atrativos de uma boa história como aquelas que eu vivia.

Fonte:
Texto enviado pelo autor. Disponível na Árvore das Letras. Espaço da Literatura Independente.

Paulo Leminski (Versos Diversos) 15

nada que eu faça
altera este fato

a folha de alface
é a última no prato
= = = = = = = = = = = = =

no chão
minhas sandálias
pegadas
como pegá-las?
= = = = = = = = = = = = =

furta a flor
ao crepúsculo cor de fruta
pássaro tecnicolor
= = = = = = = = = = = = =

as coisas estão pretas

uma chuva de estrelas
deixa no papel
esta poça de letras
= = = = = = = = = = = = =

o assassino era o escriba

Meu professor de análise sintática era o tipo do sujeito inexistente.
Um pleonasmo, o principal predicado da sua vida, regular como um paradigma da 1a conjugação.
Entre uma oração subordinada e um adjunto adverbial, ele não tinha dúvidas: sempre achava um jeito assindético de nos
torturar com um aposto.
Casou com uma regência.
Foi infeliz.
Era possessivo como um pronome.
E ela era bitransitiva.
Tentou ir para os eua.
Não deu.
Acharam um artigo indefinido em sua bagagem.
A interjeição do bigode declinava partículas expletivas, conetivos e agentes da passiva, o tempo todo.
Um dia, matei-o com um objeto direto na cabeça.
= = = = = = = = = = = = =

aviso aos náufragos

Esta página, por exemplo,
não nasceu para ser lida.
Nasceu para ser pálida,
um mero plágio da Ilíada,
alguma coisa que cala,
folha que volta pro galho,
muito depois de caída.

Nasceu para ser praia,
quem sabe Andrômeda, Antártida,
Himalaia, sílaba sentida,
nasceu para ser última
a que não nasceu ainda.

Palavras trazidas de longe
pelas águas do Nilo,
um dia, esta página, papiro,
vai ter que ser traduzida,
para o símbolo, para o sânscrito,
para todos os dialetos da Índia,
vai ter que dizer bom-dia
ao que só se diz ao pé do ouvido,
vai ter que ser a brusca pedra
onde alguém deixou cair o vidro.
Não é assim que é a vida?
= = = = = = = = = = = = =

a lei do quão

Deve ocorrer em breve
uma brisa que leve
um jeito de chuva
à última branca de neve.
Até lá, observe-se
a mais estrita disciplina.
A sombra máxima
pode vir da luz mínima.

Fontes:
Distraídos Venceremos. 1987.
Contos semióticos. in Polonaises. 1980.
ideolágrimas. in Polonaises. 1980.

Minha Estante de Livros (Primo Basílio, de Eça de Queirós)


“O Primo Basílio” narra a história de amor entre o casal Jorge e Luísa, e a infidelidade da esposa com seu primo, Basílio. A obra de Eça de Queirós, publicada em 1878, consiste na análise da família burguesa da época e faz parte dos clássicos da literatura portuguesa.

RESUMO

A história de “O Primo Basílio” gira em torno de Jorge e Luísa, um típico casal burguês da classe média da sociedade lisboeta do século XIX. Jorge é um engenheiro, pertencente a burguesia abastada de Lisboa,  assim como sua esposa Luísa.

Quando sua mãe morreu, porém, começou a achar-se só: era no inverno, e o seu quarto nas traseiras da casa, ao sul, um pouco desamparado, recebia as rajadas do vento na sua prolongação uivada e triste, sobretudo à noite, quando estava debruçado sobre o compêndio, os pés no capacho, vinham-lhe melancolias lânguidas, estirava os braços, com o peito cheio de um desejo, queria enlaçar uma cinta fina e doce, ouvir na casa o frufru de um vestido! Decidiu casar. Conheceu Luísa, no verão, à noite, no Passeio. Apaixonou-se pelos seus cabelos louros, pela sua maneira de andar, pelos seus olhos castanhos muito grandes. No inverno seguinte foi despachado, e casou.

Luísa recebe uma carta informando que em breve seu primo Basílio a visitaria. Nesse mesmo período, o seu marido  faz uma viagem de trabalho, a deixando em companhia do primo e dos serviçais.

Além de primos, Luísa e Basílio namoraram durante a juventude, antes dele se mudar para Paris. Tomados pelos sentimentos do passado, os dois desenvolvem um caso extraconjugal.

Luísa era uma ávida leitora e tinha uma visão romântica da vida. Sonhadora, começa a vislumbrar em Basílio uma história de amor como as dos romances que lia.

“Que vida interessante a do primo Basílio!” – pensava. – “O que ele tinha visto!” Se ela pudesse também fazer as suas malas, partir, admirar aspectos novos e desconhecidos, a neve nos montes, cascatas reluzentes! Como desejaria visitar os países que conhecia dos romances – a Escócia e os seus lagos taciturnos, Veneza e os seus palácios trágicos; aportar às baias, onde um mar luminoso e faiscante morre na areia fulva, e das cabanas dos pescadores de teto chato, onde vivem as Grazielas, ver azularem-se ao longe as ilhas de nomes sonoros! E ir a Paris! Paris sobretudo! Mas, qual! Nunca viajaria decerto, eram pobres. Jorge era caseiro, tão lisboeta!

Para tornar a relação mais discreta, os amantes alugam um quarto bastante simples no subúrbio de Lisboa, que chamam de “paraíso”. Os encontros acontecem a partir da troca de cartas de amor.

Apesar da cautela de ambos, uma das cartas é interceptada por Juliana, a governanta da casa de Luísa, que já havia notado o romance entre a patroa e o primo.

Juliana buscava uma oportunidade de ascensão social, desta forma, passa a chantagear Luísa. Com o passar do tempo,  a prima começa a sentir que a paixão de Basílio já não é tão forte. Tenta convencê-lo a ficar, mas ele decide voltar para Paris.

O que havia de infeliz em abandonar a sua vida estreita entre quatro paredes, passada a examinar róis de cozinha e a fazer crochê, e partir com um homem novo e amado, ir para Paris! Para Paris! Viver nas consolações do luxo, em alcovas de seda, com um camarote na Ópera! … Era bem tola em se afligir! Quase fora uma felicidade aquele “desastre”! Sem ele nunca teria tido a coragem de se desembaraçar da sua vida burguesa; mesmo quando um alto desejo a impelisse, haveria sempre uma timidez maior para a reter! E depois, fugindo, o seu amor tornava-se digno! Seria só de um homem; não teria de amar em casa e amar fora de casa!

Com o retorno de Jorge, Luísa passa a sofrer ainda mais com as chantagens da governanta, que até transforma a senhora mimada em escrava, obrigando-a a realizar alguns serviços domésticos.

O marido estranha o comportamento da criada e decide despedi-la. Desempregada e em posse das cartas, Juliana intensifica as chantagens pedindo uma alta quantia em dinheiro para não revelar o segredo da ex-patroa.

Cansada das chantagens após tentar todas as soluções possíveis, Luísa não vê outra alternativa senão pedir ajuda. Ela  recorre a Sebastião, conta sobre o adultério e a história das chantagens realizadas por Juliana.  

Sebastião era um velho amigo de Jorge, e mesmo surpreso, se dispõe a ajudar.  O homem logo pressiona a empregada que mesmo resoluta, resolve devolver as cartas.

Desesperançada por perder a oportunidade de enriquecimento, Juliana entra em colapso e morre de desgosto. Luísa, por sua vez, também acaba adoecendo.

Tempos depois, Luísa, que está acamada pelas altas febres, recebe a resposta de uma das cartas escrita há meses ao primo. Curioso, Jorge recebe e a abre, descobrindo o adultério da esposa nas palavras amorosas e cheias de saudade de Basílio.

Jorge foi heroico durante toda essa tarde. Não podia estar muito tempo na alcova de Luísa, o desespero trazia-o num movimento contraditório, mas ia lá a cada momento, sorria-lhe, aconchegava-lhe a roupa com as mãos trêmulas, e ela adormecia, ficava imóvel a olhá-la feição por feição, com uma curiosidade dolorosa e imoral, como para lhe surpreender no rosto vestígios de beijos alheios, esperando ouvir-lhe nalgum sonho da febre murmurar um nome ou uma data, e amava-a mais desde que a supunha infiel, mas de um outro amor, carnal e perverso. Depois ia-se fechar no escritório, e movia-se ali entre as paredes estreitas, como um animal numa jaula. Releu a carta infinitas vezes, e a mesma curiosidade roedora, baixa, vil, torturava-o sem cessar: Como tinha sido? Onde era o Paraíso? Havia uma cama? Que vestido levava ela? O que lhe dizia? Que beijos dava?

Por fim, o marido conforta Luísa. O frágil estado de saúde e o forte amor que lhe tem fazem Jorge perdoar a traição da esposa, que morre dias depois.

Com a morte da amada, ele demite as empregadas e vai morar com Sebastião. Basílio retorna a Lisboa e, ao saber da morte da amante,  faz pouco caso, pois não considerava Luísa adequada para sua classe.

ANÁLISE DA OBRA

Publicado em 1878 por Eça de Queirós, o livro “O Primo Basílio” trata-se de um romance que analisa a sociedade burguesa urbana do século XIX. A construção da obra através de personagens aparentemente felizes e perfeitos, retrata a futilidade daquela época.

O livro inovou a criação literária, oferecendo uma crítica subversiva e sarcástica dos costumes da pequena burguesia de Lisboa, atacando uma das instituições consideradas mais sólidas, o casamento.

A figura dessa sociedade é estereotipada em personagens decadentes, desprovidos de virtudes, desfrutando de sentimentos fúteis. Pertencente ao movimento do realismo em Portugal, a obra de Eça explora o adultério, a hipocrisia, o caráter, a mediocridade e os valores morais.

PRINCIPAIS PERSONAGENS

Basílio: conquistador e irresponsável, primo de Luísa que mora em Paris, foi seu namorado na infância e torna-se amante da mesma durante uma visita a Lisboa, contudo nunca a amou;

Luísa: jovem romântica, dona de casa, burguesa, casada com Jorge e adúltera. Amou seu primo Basílio, mas não foi correspondida;

Jorge: jovem engenheiro, homem simples e marido dedicado, casado e traído por Luísa com o primo Basílio;

Juliana: empregada do casal Luísa e Jorge, mulher feia, solteirona e bastarda. Inconformada com sua posição social passa a chantagear a patroa e acaba morrendo de desgosto;

Sebastião: fiel amigo de Jorge.

ADAPTAÇÕES

Em 1988, a Rede Globo produziu a minissérie “O Primo Basílio”. A trama foi adaptada por Gilberto Braga e Leonor Bassères, com direção de Daniel Filho.

Em 2007, a obra de Eça de Queirós ganhou uma adaptação para o cinema brasileiro. Com direção de Daniel Filho, o romance foi adaptado por Euclydes Marinho e conta com atuação de Débora Falabella (no papel de Luísa), Fábio Assunção (no papel de Basílio), Reynaldo Gianecchini (no papel de Jorge) e Glória Pires (no papel de Juliana).

Faça o download do PDF do livro “O Primo Basílio”

Fonte:
O Primo Basílio; Disponível em Guia Estudo. Acesso em 02 de março de 2022 às 03:15.

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

Varal de Trovas n. 550



Humberto de Campos (O Vestido)

Uma das minhas primeiras crônicas nesta folha, há três ou quatro anos, versou, se bem me lembro, sobre o milagre realizado por certas senhoras elegantes, as quais, tendo recebido do esposo um simples corte de seda, conseguem fazer com ele, por processos que só elas conhecem, quatro ou cinco vestidos de cores diferentes. Os esposos que ignoram, em absoluto, esses curiosos fenômenos de química, fecham os olhos, inteiramente, a todos os prodígios desse gênero; outros querem, porém, apoderar-se do segredo, e o resultado é tentarem obtê-lo à força, esgaravatando a esposa com uma faca ou, o que é menos bárbaro, com uma bala de revólver.

Deste último gênero, fiscalizando a mulher como quem fiscaliza uma fronteira ameaçada era, felizmente ou infelizmente, o Dr. Cantidiano de Sampaio Gutterres, figura tão conhecida no foro da cidade, e, principalmente, nas altas rodas mundanas. Chefe de família exemplaríssimo, o notável advogado não admitia que lhe entrasse em casa, sequer um alfinete sem o seu consentimento. As compras, as mais insignificantes, era ele quem as fazia pessoalmente, e isso, menos pelo temor de ser enganado no preço dos objetos adquiridos do que pelo programa, que se traçara, de tomar conhecimento de tudo que lhe entrasse no lar.

Desse cuidado do ilustre advogado, dá ideia, para honra sua, o episódio que lhe ia perturbando, há poucos dias, a vida doméstica, depois de doze anos de casado. O Dr. Gutterres havia comprado para a mulher, há um mês antes de partir para São Paulo, um vestido de seda verde, de uma que esteve em moda, no máximo, oito dias. De regresso, ao entrar em casa, sem ser esperado, encontrou-se, na escada, com a esposa, que vestia uma "toilette" nova, e, essa, amarela, gema d'ovo, e sobretudo, riquíssima. Ao defrontarem-se, ficaram os dois mais amarelos do que o vestido.

- Que quer dizer isto, senhora? - trovejou o esposo, crispando os dedos, de cólera.

D. Antonieta encarou-o, sem dizer palavra.

- Que significa este luxo, na minha ausência? - tornou, terrível, o marido. - Quem lhe deu esse vestido?

- Foi você... - sussurrou a pobre senhora, tremelicando o beicinho vermelho de "rouge".

- Eu? O vestido que eu lhe dei, então, não era verde? Como é que, agora, a senhora se apresenta com um vestido amarelo?

Ao cérebro da moça acorreu, de súbito, uma ideia, que fugiu logo, deixando apenas o rastro. Os olhos brilharam-lhe, vivos, úmidos, penetrantes, numa floração de luz, tornando-a mais jovem, mais fresca, mais linda.

- Era... - confirmou a moça

O marido encarou-a, esperando a confissão abominável. O rosto de dona Antonieta irradiou, de repente, no anúncio de uma surpresa, que podia ser um sorriso, ou uma lágrima.

- Era verde, sim... tornou, baixando os olhos: - mas...

E, perturbadíssima, sem encontrar outra saída:

- Amadureceu, Cantidiano...

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925.

Plácido Ferreira do Amaral Júnior (1958 - 2022)

O poeta faleceu neste sábado, 26 de fevereiro, devido a complicações da covid.
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A chuva bate à janela…
Numa expressão de vitória,
a natureza singela
mostra Deus na minha história.
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Ainda tenho esperança
de ter os s teus,
pois o tempo de bonança
vem sempre após um adeus.
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A sua grande vitória
foi vencer uma doença
que roubava-lhe a memória
e causava-lhe a descrença.
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A trilha de um andarilho
é feita de solidão,
num caminho sem ter brilho,
só bolhas de pés no chão...
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A vergonha que uma algema
provoca ao preso orgulhoso,
é bem maior que o problema
que lhe fez ser criminoso.
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A virtude que seduz
um olhar à compaixão,
é misericórdia, a luz
do fundo de um coração.
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Foi querer brigar de galo
encrencando numa festa,
mas sofreu um forte abalo
pois ganhou "galo" na testa!
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Lá no funk que ele ia
e bebia de montão,
ao pensar que era Maria,
agarrou um "Ricardão"...
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Meus boletos reunidos
lado a lado, em linha reta,
neste planeta, os vencidos,
dão uma volta completa!
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Não esperes vir do chão
o peixe a te alimentar,
e sim as iscas que irão
encaminhar-te a pescar.
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No Brasil, o IBGE
revela o nosso retrato.
E nos demonstra como é
a nossa nação de fato.
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Noite... Deite-me na cama!!!
E indague desta mulher,
por que ela não nos chama...
para o que der e vier...
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Nossa dura travessia
ninguém sabe o quanto dura,
sabe apenas que Deus guia
desde o ventre à sepultura.
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Num trem da velha estação,
meu destino anunciava
que na Rua Solidão,
tua ausência me esperava.
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Ofereceu seus cuidados
com total sinceridade.
Recebeu em troca dados
viciados de maldade...
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O meu signo não combina
com o teu, minha querida,
mesmo assim, a nossa sina
é viver a mesma vida.
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O tom da chuva parece
algum recado de Deus
ao julgar o tom da prece
que ele ouviu dos filhos seus.
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O velho monge ajoelha
no altar de quem é devoto;
nele, um noviço se espelha
e faz, com fé, o seu voto.
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Para o meu maior espanto,
hoje eu vi um senador
dando esmola para um santo!
Era um cheque ao portador...
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Quando quis cantar de galo
lá no quarto da vizinha,
levou coice do "cavalo"
que é marido da "galinha"...
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Respeitar é garantia
que só nos guia à moral
e faz da moral, um guia,
que nos guia contra o mal.
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Se eu medisse a minha dor
com a força do meu grito,
certamente o meu clamor
chegaria no infinito.
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Sementes eu plantei tantas,
lá no jardim da ilusão...
Só brotaram duas plantas:
a saudade e a solidão.
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Somos dois, nesta calçada
desta história que vivemos.
Mas sem um, não somos nada,
pois sem um, sei que morremos...
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Tens razão quando me dizes
para de ti, me afastar.
Somos cores com matizes
diferentes a pintar.
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Tua vida em nossas vidas
é um porto de acalantos.
Teus cuidados são guaridas
onde eu ancoro os meus prantos.
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Um “furo” de reportagem
para jornalista é gloria
gravada feito mensagem
em todos livros de História.
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Um pinto verde surgiu
no galinheiro da granja
e o papagaio sumiu,
pois se não... seria canja!
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Você que lê estes versos
nas ruas desta cidade,
não deixe em mãos de perversos
a biodiversidade.

Aparecido Raimundo de Souza (parte 49) Bigode na Tuba

OSÓRIO ACHOU ENGRAÇADO a moça de bigode que pintou diante dele, no ponto, logo de manhã, enquanto esperava pela condução. Lembrou da mãe que não deixava de aconselhar: “Meu filho, com mulher de bigode, nem o diabo pode”. Aquela fêmea, contudo, trazia no rosto o sorriso descontraído da Joss Stone. Osório era gamado — gamado não, doido varrido maluco de pedra, embasbacado de carteirinha e não mudaria a sua preferência nem que a cantora inglesa pintasse diante dele de cueca samba canção, falando grosso, ou fumando um charuto cubano de Fidel Castro ou usando bigode à Olívio Dutra.

— Será que ela usa esses aparelhos que são vendidos por toda parte para fazer a barba? — cogitou com seus botões. Barba não, bigode... o dessa criatura está perfeito... pelo menos, ela cuida com apuro da epiderme...

Pensou, entretanto, em sua namorada, a Edifusa. A Edifusa, antes dele, havia namorado o Bigorna, um camarada alto e magro, grosso nos modos de tratar com as pessoas. Bigorna tocava tuba na Orquestra Sinfônica de São Paulo. Por isso, a Edifusa largou do sujeito. Sem contar que não parava em casa, vivia viajando para baixo e para cima e, quando dava o ar da graça, geralmente de quinze em quinze dias, não desgrudava da tuba. Edifusa reclamava que o cidadão queria que ela aprendesse a assoprar o instrumento. Edifusa, batia pé e nunca quis aprender coisíssima nenhuma, ainda mais tendo que botar na boca um “treco controlado por válvulas e feio pra chuchu igual aquele”.

— Prefiro assoprar um órgão! — disse certa vez à figura do ex ao seu ex.

— Órgão não se assopra. — de igual maneira teria respostado (*)  o mala sem alça, à contragosto. Órgão se toca com os dedos... tuba é melhor, Edifusa. Não cansa as mãos.

Ao que Edifusa insistia mudando o rumo da prosa:

— E quem toca tuba, o que é? Tubeiro, tumbeiro, tubista, ou tubuleiro?

— Músico, Edifusa. Músico. Quem toca tuba é músico. Eu toco tuba na Orquestra Sinfônica de São Paulo por partitura.

O primeiro ônibus se fez em carne e osso e a Cinderela de bigode não embarcou. Outros que esperavam levantaram acampamento. Só ficou ele e ela. Ela e ele. Ele, esperto e atento, aproveitou esse interregno de tempo e atentou melhor para a gazela. Um pedaço de mulher. Magra como ele gostava, altura mediana, atraente, dona de um lindo par de pernas, rosto bem trabalhado, e o mais espetaculoso. Os cabelos cor de mel compridos e bem cuidados, caindo sobre os ombros, em cascata estonteante. Só o bigodinho tirava um pouco a graça. No resto, estava longe de se jogar fora. Entre ela e a Edifusa, ganharia pontos, sem dúvida alguma, a incógnita deusa, apesar do bigode. Por um momento se imaginou nos braços dela, agarrado, como dois pombinhos apaixonados. Será que o bigode atrapalharia quando começasse a sentir a sua pele?

Deu asas a imaginação. O bigode faria cosquinha? Edifusa vivia reclamando que o do Bigorna, seu ex, tirava a sua concentração. O trocinho espetava, justo na hora das trocas das permutas dos afagos mais acentuados. Chegava mesmo a sentir arrepios, a ponto dos pelos de seu corpo encresparem de tanto que se assanhavam:

— Bigorna, não gosto de homem de bigode. Dá gastura... (*)  não adianta fazer a barba e não raspar a droga do bigode. Por que não faz, logo, de vez, barba, cabelo e bigode?

— Edifusa, o que você tem contra meu visual?

— Nada. Só maneira de falar....

Bigode, bigode, bigode. Tudo girava em torno dele. Pintou outro coletivo. De novo, por azar, a linha que o deixava na porta da empresa. Vazio, com meia dúzia de gatos pingados. A bela do bigode não deu sinal para o motorista. Nem ele.

Por certo, ao Osório a partir da perda desse buzu, ficava claro e evidenciado que chegaria fora do seu horário estabelecido. Diria ao chefe que o salto de seu sapato se soltara e, em razão disso, tivera que voltar em casa. Uau! Osório se mostrava contente com a sua decisão de ter se prostrado no ponto junto com aquela estrangeira que ele via pela primeira vez. E mais. Satisfeito com a mentira que contaria para engambelar o patrão. A do salto ter se soltado cairia como uma dádiva do céu. Mais criativa que a gafe contada por sua colega de serviço, a Fulmênia, na quarta passada. A funcionária chegou com uma hora e meia de retardo para bater o cartão contando a lorota de que haviam roubado seu aspirador de pó justo na hora em que trancava a porta da sala.

Meia hora depois, o terceiro ônibus sorrindo igual mala velha. Osório imaginou: “Agora a bigoduda se põem em marcha e eu pulo no seu vácuo”. Ledo engano! A dita cuja continuou ali, em pé, firme e plantada, sem se mover. Estaria esperando carona? Claro, alguém passaria e a arrastaria de carro. Suas suspeitas se confirmaram no instante em que, pela décima vez, a irrequieta  consultou o relógio de pulso. Osório, de repente, colocou em dúvida uma dúvida que até então ele mesmo tinha dúvidas se daria certo. Matutou: “E se essa história do meu sapato ter se soltado não colar? Vou ter o dia cortado”. O celular tocou. Osório encarou a moça, ou melhor, depositou as suas aflições no bigode dela. De novo, outra arrepsia (*), desta vez mais pirrônica (*) e contundentemente pertinaz: “Atendo ou não atendo? A droga da campainha não dava trégua. Espiou, sabendo de antemão, quem importunava. A Edifusa:

— O que você quer?

Edifusa parecia meio apreensiva e agitada:

— Amor, onde você está? Liguei no seu serviço e a secretária disse que você ainda não passou pela recepção!

— Perdi o ônibus.

— Perdeu como, amor?

— Perdendo, ora bolas.

— E agora?

— Meu sapato quebrou a sola... ou soltou, sei lá. Tive que voltar em casa e calçar outro par...

— Ta legal, amor. Mas você está bem?

— Ótimo.

— Ok, meu príncipe. Bom serviço. Beijos. Te amo!

Por azar, novo ônibus apontou na esquina. Diabos. Nada. A Majestosa do bigode não se decidia, nem ele. Firme e forte, ela se mantinha em pé e ele, idem, só filmando, os olhos atentos e esbugalhados no bigode. O celular novamente quebrou as suas divagações mais extravagantes:

— Edifusa, você de novo? O que foi dessa vez?

— Liguei para sua mãe, minha sogra. Ela está preocupada...

— Preocupada? Com o quê?

— Disse a ela que você chegaria depois da hora normal no emprego porque o seu sapato deu um problema no motor de arranque...

—... E ela?

— Garantiu, de pés juntos, que você não voltou em casa. E mais: seu quarto está do jeito que ela arrumou assim que você botou o nariz pra fora. O que é que está havendo?

Osório ia responder, mas se calou porque nesse exato momento, a estonteante do bigode se aproximou e puxou conversa. Constrangido, o rapaz não sabia se continuava falando com a namorada, ou se desligava e respondia à pergunta que a guria  lhe havia formulado. Optou por desligar. Porém, tarde demais. Edifusa, apesar do barulho reinante, conseguiu escutar a voz da outra. Fula da vida, Edifusa não se fez de rogada. Voltou à carga, agora com insistência descomedida. Sem jeito, Osório fez ouvidos de mercador. Por fim, como a praga da sua metade da maçã não desistia, resolveu. Mandaria a inconveniente da Edifusa às favas e fim de papo. Todavia...

— Sua mulher?

— Não.

— Namorada?

— Não tenho. Ando à cata de uma...

O caldo engrossou os ânimos:

— Osório seu filho de uma égua. A égua da sua mãe, minha sogra, que me perdoe. Quem é essa vagabunda que está ai ao seu lado?

Nessa altura da bomba estourada, surgiu um carro buzinando. A Rainha do bigode ficou faceira, ou melhor, ela toda em sua alegria infinda se abriu num gesto de alegria imensa que engalanou tudo ao seu redor. Até o bigode ficou mais envolvente:

— Legal te conhecer. Meu nome é Monique. A gente se “esbarra” outra hora...

Em seguida ela abriu a porta e acenou um adeus. Osório ia vomitar algo, mas estancou, atônito. Reconheceu, de imediato, aquele automóvel. E também atinou com quem pilotava o volante. O desgranhento do Bigorna. O ex da Edifusa, o tocador de tuba da Sinfônica de São Paulo. Mas alto lá: ele não estava viajando? Pois bem! A história do sapato não colou com o chefe. Osório se esqueceu que só usava tênis.
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* Vocabulário:
Respostado: dado em resposta,
Gastura:  arrepio, mal-estar,
Arrepsia:  dúvida, indecisão, vacilo
Pirrônica: Pessoa teimosa, cabeçudo, rabugento


Fonte:
Texto e vocabulário enviados pelo autor.
in Aparecido Raimundo de Souza. Comédias da Vida na Privada.

domingo, 27 de fevereiro de 2022

Adega de Versos 72: Thalma Tavares

 

Mia Couto (As lágrimas de Diamantinha)

Diamantinha chorava tão bem que as pessoas vinham de longe e lhe pediam:

— Chore por mim, Diamantinha.

O visitante sentava na sombra do djambalau e divulgava suas mágoas. Às vezes, pareciam tristezas de bichos. O homem, para ser humano, tem que ser desumano? O que é certo: ninguém tem ombro para suportar sozinho o peso de existir. Afinal, a vida se confirma à força de rasgão: ela dilacera logo no ato de nascer, separando mais que a própria morte. E assim, também naquela aldeia não havia quem não tivesse motivos para sentar no banco de Diamantinha, requerendo lágrimas na sombra da grande árvore.

Diamantinha gastava o tempo nesse desfilar de desgraceira. Única condição: ela devia olhar de frente o contador de tristezas, olhos nos olhos, lágrima de um umedecendo a alma do outro. No final, ela baixava o rosto, sacudindo os braços por cima da cabeça. E chorava. Cada lágrima aliviava o confessor, parecendo a mão de um anjo suavizando feridas.

Diamantinha chorava belo e aprazível: nunca ela ranhava, nem carantonheava (fazia caretas). Escorriam as lágrimas como simples transbordamento, trespassar de ondas sob as pálpebras, insuficientes diques. A tristeza despejava-lhe os olhos e lá vinha, abundante e gordo, o rosário das lagrimonas.

O marido, calculista, viu nos serviços da esposa uma hipótese de negócio. E havia até urgência: Dia mantinha se ia fatigando de brotar tanta água. Um dia, ela esgotaria as fontes. Antes que isso sucedesse, o marido decretou a seguinte ordem:

— Hoje em diante, você só chora para quem paga.

— Mas, marido, isso nem se pode.

— Não se pode!? Quem é você para saber destrançar o possível do impossível?

— É que lágrima é coisa sagrada...

— Conversa, mulher. Sagrados são os tacos, sejam cifrões, sejam cifrinhos.

— Não é desrespeito, mas me diga, marido: se é tão importante o dinheiro por que é que você não trabalha para o ganhar?

— Eu? Não posso, estou muito ocupado. Agora, por um exemplo, ando a deixar crescer os bigodes, um de cada lado.

— Você é quem sabe, marido.

O marido está sempre na mão de cima? Homem disfarça que comanda, mulher finge obediências. A ordem das coisas: mundo e vida são o inseparável casal.

E as pessoas continuaram afluindo, agora vertidas em clientes. O marido armara mesa, à entrada da sombra, e cobrava consulta. E se contentava, empilhando as moedinhas enquanto a esposa se derramava, liquidez feita. Aranha faz sua casa de quê? De lágrimas, aquilo parece seda mas não é senão o coração esfiapadinho. Disso sabia a lagrimeira Diamantinha.

Uma tarde, compareceu no djambalau um tal Florival, que mal se afamara como homem estranho, brutamonte. Dele se dizia ser bebedor de trevas, atravessado de serpente. Corria que o Florival fazia das outras vidas o que a jiboia faz com o cabritinho: enrolava-as e esmiudava-as até ficarem engolíveis. Diferença é que, depois, ele não engolia nada. Todavia, no caso real, o aspecto sobrava da aparência. O Florival tinha corpo magnífico mas era incompetente para maldades. O homem se aperfeiçoara a palerma, barata tonta, estupefato.

E tanto era que, aos domingos, o Florival se vestia de mulher, envergando sempre um mesmo vestido castanho com grandes girassóis amarelos. As flores no vestido contradiziam o aspecto malfeitor. O homem era alvo de zombarias gerais — dito, desdito e maldito. Até havia mãos que afagavam as falsas curvas do peito.

Pois nessa tarde, o Florival sentou-se na pedrinha, envergonhado a modos de justificar o vestido na conformidade de suas pernas peludas. O que ele confessou fez arrepiar a choradeira.

Disse assim: que ele desde há muitos anos lhe dedicava amor exclusivo, ímpar e imparável.

—Ama a mim, Florival?

Sacudindo a cabeça, ele lhe pediu para não ser interrompido. Pois, a cada dia lhe dava hoje, ele lhe rezava, lhe enviava as mais sutis prendas. Eram diminutas delicadezas: um raminho, um nó de capim, réstia de ninho. E ela, ela nem notava. E por razão de tanta indiferença o coração dele se encaroçou. Para poupança de sofrimento Florival se resolveu converter em mulher. Assim, colega do mesmo gênero, ele não a olharia como destino de seus desejos.

— Nós ambos somos iguais.

Diamantinha escutou tudo até ao fim. Levantou-se e espreitou entre os ramos do djambalaueiro. Puxou com força como se entendesse desventrar a árvore. Depois chorou, chorou como nunca havia feito. O marido, vendo a demora, espreitou e lhe fez sinal: havia mais para quem chorar. E fez ponto na sessão.

Na tarde seguinte, Florival regressou e foi o mesmo derrame de pranto. E de novo o marido, zeloso, ordenou parcimônia. Na terceira tarde, Diamantinha deixou que Florival se sentasse, em seus femininos trejeitos, e lhe disse:

— Não tenho mais lágrima.

E pediu um lugarzinho na pedra. Sentou-se, espremida no mesmo assento. Ficaram assim em silêncio até que Diamantinha pediu autorização para ajeitar um girassol que escapava do vestido.

—Está tão velhinho este meu vestidinho...

E trocaram conversas de mulher, os acertos que faltavam nos cabelos, o nó no lenço da cabeça, o anel que fugia pela magreza do dedo.

Diamantinha lhe pediu então:

—Dê me as suas mãos. Quero lhe dar uma coisa.

—Não precisa me dar nada, Diamantinha.

—São minhas últimas lágrimas. Me dê as suas mãos. Rápido antes que esfriem.

Florival estendeu as mãos em concha. E dos dedos de Diamantinha tombaram aqueles cristaizinhos, desfocadas águas tremeluzindo em fundo escuro. Afinal, aquilo eram diamantes, preciosos tesouros.

—São verdadeiros?

Em amor tudo é verdadeiro. Florival e Diamantinha se fitaram, até seus olhos perderem o pé. Sem dizerem palavra, se enfeitaram entre folhagens, furtando-se pelos matos. Dizem os caminhoneiros que, já noite, viram derivar pela estrada um casal de aparência estranha: ele vestido de mulher, e ela em roupas de macho. Tombava uma chuvinha leve, simulando fluir da terra para o céu. E Diamantinha, braços abertos, ajuntava novas gotas em seu peito choradeiro.

Fonte:
Mia Couto. Na berma de nenhuma estrada e outros contos. Publicado em 2001.

Ana Meireles (Caderno de Spinas)

CODINOME

Aturde meu corpo
velhas, renitentes dores.
Nenhuma tem nome.

Chegam sorrateiras, roubam meu descanso,
deitam sobre mim, são pesadas;
Querem subtrair até minha fome,
meus desejos, sonhos, minha alma
que suplica analgesia, um codinome.
= = = = = = = = = = = = =

DIAS DE RENASCER...

Auroro minha vida
pensando como parir
dias de renascer.

Ouço tocar aquela música bonita
que lembra ilusão, desejos, sonhos,
tempo que passou; melhor esquecer!
Nos planos de agora, mansidão,
a quietude para saber viver.
= = = = = = = = = = = = =

EFEMERIDADES!

Visitei teus olhos,
neles vi sonhos,
tristezas manchadas, saudades!

Um verbo que morreu sufocado
estrangulado, desdenhado por um amor
aprazível aos manejos das impetuosidades.
Os furacões que suplantam razões
guiam-se volúveis na paixão: efemeridades.
= = = = = = = = = = = = =

OLHAR DISTANTE!

Sensível demais sou,
doem-me as lembranças,
o tempo passa...

Rastreia meu deserto, páginas alheias
que me doem, rumo incerto...
Na pele que resseca, argamassa!
Sobre a ferida, uivo silenciosa,
Um olhar distante me perpassa.
= = = = = = = = = = = = =

PEQUENO COLIBRI

Esperei teu beijo,
meu pequeno colibri,
o dia inteiro.

Quanta falta faz teu carinho,
o teu amor me visitando
na solidão esquecida deste canteiro.
Espero-te com orvalho nas pétalas,
ansiando tua chegada, "seu" beijoqueiro.
= = = = = = = = = = = = =

ROSTOS RISONHOS

Sorrisos de Sol
embalam as memórias:
Primaveras de antanho.

Povoam de imagens, rostos risonhos,
coloridos sonhos; alegres crianças brincando...
Bebem alegria sem medir tamanho.
Olhares vividos, bailando, rodopiando animados…
Cabelos esvoaçando, tons de castanho.
= = = = = = = = = = = = =

TUAS MÃOS

Perfeitas são tuas
Mãos macias, ágeis
Quando me acariciam

Logo me fazem desejar mais!
Implorar que não parem; deslizam
Sobre meu corpo, ensaiando... Prefaciam
O texto dos nossos desejos
Encobertos nos gestos que evidenciam.
= = = = = = = = = = = = =

VESTIDA DE POESIA, SOU
AMOR, FANTASIA, PAIXÃO!


Imagens, melodia, paixão,
vestem minha vida,
revelam-me em poesia.

Sou de nome, combustão forte,
bailo nas músicas das sensações,
sinto na pele misteriosa ventania,
que sopra nos dias, paz.
Amar e renovar-se em alegria.

Fonte:
Ronnaldo de Andrade e Solange Colombara. Primeira Antologia Spina. SP: Ed. Areia Dourada, 2021
Livro enviado por Solange Colombara

Sammis Reachers (Cleomir e a saída do baile funk)

Cleomir era um camarada baixinho e magricela, antigo morador do morro do Juca Branco, em Niterói, Era a figura do malandro: bom de lábia, cheio de ginga e com as gírias na ponta da língua. Cleomir trabalhou durante alguns anos na empresa Ingá, como cobrador. No início da carreira, não teve jeito: o malandro magricela teve que trabalhar no sereno (horário da madrugada) por algum tempo. Das linhas de sereno da Ingá, a pior naquela época (e ainda hoje?) era com certeza a linha 26 (Caramujo x Centro). O bairro do Caramujo quase sempre foi um bairro chapa-quente.

Durante alguns anos, lá ocorreu um tradicional baile funk. O baile era tão requisitado e conhecido que vinham galeras de outras comunidades (controladas, claro, pela mesma facção criminosa) para curtir o baile. Se você é rodoviário, deve saber como são as festas: as pessoas vão chegando aos poucos, espalhadas. Mas, na hora de ir embora, parecem sair todas ao mesmo tempo, e lotam o primeiro ônibus que estiver na reta.

E assim era o tal baile, até porque não havia mesmo outro ônibus senão aquele único que fazia o sereno.

Num belo (pelo menos até ali) final de madrugada, já prestes a dar sua última viagem, por volta das 4h20 da manhã, eis que o motorista chega à pracinha do Caramujo, onde a carona rolava solta, até mesmo durante o dia. Final de baile. O motorista parou o veículo e, macaco velho e vacinado, diante daquela multidão, abriu as duas portas. Todos ali, claro, entraram pela porta dianteira, sem pagar. O Cleomir estava lá atrás, na roleta, tranquilamente observando a movimentação e tentando perceber algum conhecido naquela    multidão,    ou    ao    menos    alguma gatinha. Mas que nada: nem havia mulher alguma, nem algum conhecido, e olha que o Cleomir conhecia era malandro!

Parte então o velho carroção, indo em direção ao centro de Niterói, onde faria ponto final no Terminal Rodoviário João Goulart. Mas antes de sair do Caramujo, uma discussão se estabeleceu entre alguns passageiros. Enquanto o ônibus avançava,    o    tom rapidamente    foi    subindo;    algum desentendimento entre uma galera da Vila Ipiranga com uma turma vinda de São Gonçalo era o motivo do falatório, Ao sair do bairro para pegar a estrada, parece que    um    sinal    tocou    em    algumas    daquelas    cabeças alcoolizadas, e a pancadaria rufou, como se diz. O que era uma troca de sopapos entre dois elementos rapidamente foi crescendo e contaminando todo o ônibus, para susto e desespero de Cleomir, que era malandro, mas sempre correu de briga. Rapidamente a pancadaria chegou à parte de trás do busão, e Cleomir viu-se encurralado.

Tentou gritar para o parceiro:

- Pare esse ônibus aí, Alfredão!

Mas lá na frente alguns elementos já haviam dito ao motorista, Alfredo,    que se parasse ele também    iria apanhar, e deveria acelerar para chegar logo na Vila Ipiranga.

Acontece que o porradal estava tão intenso que até o Cleomir, coitado, acabou levando uma cipoada de raspão na cara. Não sabendo o que fazer e desesperado, o malandro pensou: "Em rosto que mamãe beijou ninguém mete a mão não!"

Em seguida pulou de seu trono, enfiou-se entre dois elementos que se esmurravam perto dele e abriu a janela. Era mesmo uma "janela de emergência": o malandro havia há muito tirado os parafusos que impediam que a janela se abrisse por completo, e assim o vidro abriu-se de par em par.

Mas haviam dois problemas: Um - o dinheiro. Este Cleomir resolveu pegando as notas que estavam na gaveta, e deixando para trás as muitas moedas e seus apetrechos, como o carimbo que se usava para carimbar os vales-transportes, que naquele tempo eram de papel.

O outro problema era mais indigesto: Seguindo as ordens da vagabundagem, o motorista Alfredão acelerara o ônibus à toda, e neste exato momento descia o morro da Caixa D'água por conta de Satã! Ao tomar mais uma pancada, o pequeno Cleomir não pensou duas vezes: tomou coragem (ou chegou ao limite o medo de apanhar?) e pulou pela janela do carroção encantado em alta velocidade, se esborrachando no chão!

Mas o malandro estava com o sangue tão quente que parece nem ter sentido o baque: levantou-se e saiu correndo, e correndo sem parar, da descida da Caixa D'água até a portão dos fundos da empresa (a Ingá), algumas centenas de metros distante.

Chegou na garagem esbaforido, ralado e sujo. Os poucos funcionários presentes o reconheceram, mas estranharam tanto seu estado quanto a ausência do ônibus.

- O que houve, Cleomir? Dormiu na rua? Cadê o ônibus?

Cleomir recuperava as forças para falar.

- Ah... ah... a porrada comeu... a porrada comeu dentro do ônibus... mais de trinta cabeças...

- Caramba! - disse um. - E o carro tá aí fora?

– ... Tá não... aff... tá não.

- Ué, e como você chegou aqui? Tá todo sujo e lanhado por quê? Te baixaram a porrada também???

- Não... é ruim hein?! Tô todo ralado mas porrada eu não levei não! Eu vi que não tinha jeito e pulei pela janela, que não sou otário!

- Mas mano, e o motorista, cara, e seu parceiro Alfredão? Deixou ele lá com os trinta?

- Amigo, sei lá de Alfredão, quero saber lá de parceiro! Quem tem parceiro é bandido! Pulei pra salvar a minha vida e nem olhei pra trás! Farinha pouca, meu pirão primeiro!!!

Fonte:
Ron Letta (Sammis Reachers). Rodorisos: histórias hilariantes do dia-a-dia dos Rodoviários.
São Gonçalo: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

Estante de Livros ("Contos do Nascer da Terra", de Mia Couto)


Além de ser um dos maiores escritores de língua portuguesa dos nossos dias, recentemente agraciado com o prêmio Camões, Mia Couto trabalhou por alguns anos também como jornalista e contribuiu para diversos veículos de imprensa. A maior parte das histórias que compõem Contos do nascer da Terra foi publicada originalmente em jornais e revistas em 1996, e depois adaptada pelo escritor para este livro, que traz ainda um punhado de contos inéditos. Ao todo são 35 histórias breves que se baseiam no cotidiano quase mágico de Moçambique e exploram a sonora linguagem do português africano, revelando na escrita a identidade de um povo e o domínio muito próprio da cultura e da criatividade literária. Vemos aqui essa África que o Brasil tanto proclama como parte de sua própria matriz surgir na forma de contos que dão conta da diversidade e complexidade do mundo que, começando do outro lado do oceano, está tão presente na alma brasileira.

Contos do Nascer da Terra é exatamente um livro sobre começos, inícios, novas chances, agarrar oportunidades, esquecer o passado, viver o presente, sentir saudades do futuro, não se assustar com as estranhezas da vida, se manter na terra, no nascimento…

Aforismos, construções diferentes, muitas metáforas, comparações incomuns. Um texto rico, sobre simplicidades da vida. Assim é Mia Couto, pseudônimo de Antonio Emilio Leite Couto, escritor moçambicano, que nasceu em julho de 1955.

Ter no mundo escritores como ele é como uma grande oportunidade para entender o ser humano, mas de um jeito muito efêmero, pois no final de cada conto do livro Contos do Nascer da Terra, o leitor fica um pouco atordoado, como se tivesse entendido tudo, mas ao mesmo tempo lhe foge a compreensão pelas palavras, pois é um preenchimento que envolve a cabeça e o coração, que avisa a descoberta de algo muito especial, como uma pedra preciosa. Ler Mia Couto é mergulhar em um espaço silencioso e completo.

A linguagem do autor sempre é muito comentada entre admiradores de sua obra. Há inclusive um termo pra designar as construções gramaticais que ele faz e também sobre as palavras que ele inventa, é o FALIVENTAR. Outro termo literário usado para caracterizar as histórias de Mia Couto é o Realismo Animista que dá vida a coisas da natureza, que envolve a poderosa cultura africana.

A vida é uma goteira pingando ao avesso.”

RESENHA DE ALGUNS CONTOS:

Viúvo


O nome do primeiro conto do livro “Contos do nascer da Terra” chama-se Viúvo e narra a história de um homem muito solitário que “vivia nesse constante apagar-se de si”. Conforme informa o título da história, o leitor irá conhecer o momento em que ele se tornou viúvo e assim, adentrar na difícil tarefa de desapegar-se, mas ele, uma pessoa tão silenciosa, de poucos amigos e sem muitas ambições, fica totalmente perdido com a sua nova condição de vida. Entretanto, o conto é muito além disso tudo que consegui colocar em palavras aqui, porque a força metafórica – e fora do convencional – que Mia Conto consegue empregar em sua linguagem é de uma beleza tão profunda que deixa qualquer leitor atônito.

A menina sem palavra

O conto brinca com metáforas que relacionam sonho e realidade de um jeito muito cru e lúdico. A menina, tão quieta, deixa o pai preocupado, porém, durante uma conversa sobre o mar, a única palavra que a garota uma vez pronunciou, ela e o pai descobrem juntos o poder das águas salgadas, as ondas, os sonhos… De um lado o medo do pai por ter uma filha que não fala, de outro, a criança mostrando ao pai a beleza de seu mundo. Se falar é preciso, que seja por causa de uma boa história.

O derradeiro eclipse

“O derradeiro eclipse”, o terceiro e também maravilhoso conto é sobre um marido ciumento que, antes de viajar, pede ajuda a um padre e a um feiticeiro, sobre o que fazer com a desconfiança que ele possuía sobre a sua esposa, uma mulher “linda de fazer crescer bocas, águas e noites” (p. 13).

Neste conto, é forte a presença de um realismo mágico. O desenrolar da história, a forma que o marido desconfiado busca ajuda e os elementos surreais que aparecem na história, deixam tudo muito belo, poético e, o mais interessante, Mia Couto desenha um cenário simples e deixa toda a complexidade da vida nas atitudes desses personagens, que parecem tão mágicos, mas também possíveis.

A carteira de crocodilo

O conto parece um clássico, com “moral da história” e tudo mais, para mostrar o quanto a palavra é poderosa e, sendo assim, é muito perigosa.

Viver é muito perigoso, já dizia o nosso Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas. Aliás, a linguagem de Mia Couto lembra um dos nossos maiores escritores, que brinca com as palavras de um jeito tão singular, que torna o texto ao mesmo tempo erudito e popular.

Falas do Velho Tuga


Relata uma forte experiência com a cultura africana e seus rituais exóticos. Um senhor, que sabe que está para morrer, conta como foi salvo pelas mãos de uma africana. Mas antes de chegar no ritual em si, vamos compreender sobre a solidão, “me assaltou um vazio como se não houvesse mundo” (p. 23) e então recebemos doses maravilhosas de sonho e realidade, alucinações e medo, com se um ritual africano fosse realmente algo para te colocar em outro mundo.

Governados pelos velhos mortos

Um diálogo muito misterioso, que provoca o leitor a pensar muito diferentes sobre questões tão simples, como o nome de um beija-flor e de uma árvore. Em um mundo desolado e sem esperança, o diálogo caminha para o vazio que mora quando termina a esperança.

sou homem abastecido de solidões. Uns me chamam de bicho do mato. Em vez de me diminuir eu me incho com tal distinção. Como antedisse: a gente aprende do bicho a não desperdiçar. Como a vespa que do cuspe faz a casa” (p. 28)

Feliz é a vaca que não pressente que, um dia, vai ser sapato. Mais feliz é ainda o sapato que trabalha deitado na terra. Tão rasteiro que nem dá conta quando morre.” (p. 28)

O indiano dos ovos de ouro

Um conto que possui bom humor, mas também toda a profundidade dos outros contos do livro. Abadalah, o indiano dos ovos de ouro, faz conexão com o clássico infantil, porém, neste caso, “ovos” é no sentido pejorativo da sexualidade do personagem e uma poderosa maldição quando se troca um amor por dinheiro.

Minha crença é um pássaro. Sou crente só em chuva que cai e esvai sem deixar prova” (p. 29)

O baralho erótico


É um conto muito triste. Um marido violento se dá conta de que sua mulher só vai parar de sangrar, se parar de chorar. Mas ela chora porque ele mesmo bateu nela. E bate todos os dias. E é viciado em jogo, até que um dia, no próprio baralho erótico ele vê algo muito diferente do que poderia imaginar. E o que seria um acesso de fúria, o pior, que cairia diretamente em sua mulher, se transforma em um tipo de arrependimento, redenção, mas com muita vulgaridade.

A casa marinha

O conto parece um sonho maluco. Um velho, conhecido na cidade como louco, leva o narrador da história, um garoto, a caminhos muito diferentes, místicos, o que deixa os pais do garoto preocupados. O velho, como um ermitão, um guru, um monge, algo assim, passa para o garoto ensinamentos profundos por meio de uma linguagem estranha, com rituais e atitudes que, aparentemente, são simples, mas que nutrem grande valia, como procurar por galhos de madeira para construir um barco. A história é uma mistura de contemporaneidade, uma vez que não há a presença de elementos antigos, mas por outro lado, o nosso velho maluco tem alguma coisa de Noé.

“O que o homem tem do pássaro é inveja. Saudade é o que o peixe sente da nuvem.”

“Sono e fadiga: mãos que nos abrem janelas para o mundo.”

“Pois o futuro o que é? Se nem temos a palavra na nossa materna língua para nomear o porvir. O futuro, meu filho, é um país que não se pode visitar.”


Os negros olhos de vivalma

Mais um conto sobre violência doméstica. Vivalma, que possui um nome que já entrega para o leitor um pouco de sua personalidade, é uma mulher que vive com hematomas nos olhos, por apanhar do marido. As amigas do trabalho, ficam muito incomodadas com o sofrimento e também com a aparente inanição de Vivalma e decidem tomar uma atitude. Entre flores estragadas no chão, o mar, uma vida infeliz e conformada, Vivalma coloca o leitor na difícil tarefa de compreender o seu nome e a sua vida, de viva alma.

A vida é um por enquanto no que há de vir.

Gaiola de moscas

Um homem que vende a própria saliva para lustrar sapatos. É assim que começa o conto e se isso pode parecer estranho, a sequência dos acontecimentos deste conto é mais maluca ainda. Mas é aquela loucura boa de ler, curiosa, provocante, uma grande metáfora sobre o próprio nome do livro, o que vem da terra, o que nasce, o que transforma.

Há uma mulher triste por não ser beijada pelo marido, há um outro homem que decide comprar as moscas que irão repousar em seu corpo, depois que morrer. Há de tudo… e muitas loucuras, mas um sentido realista sobre a vida.

O homem da rua


Um acidente de carro que coloca dois homens a conversarem sobre a vida. O acidentado buscando vida no motorista que o atropelou, sem querer. E o motorista aprendendo sobre companhia, sobra a noite, o dia, a luz, algum tipo de iluminação surge, que acompanha também o maravilhoso estranhamento das frases de Mia Couto: “o homem sofre de incurável medo de ser noite”, mas a terra nasce, sempre nasce.

“Nem sabe como é bom haver um chão para a gente ter onde cair.”

“O homem sofre de incurável medo de ser noite.”


Contos do Nascer da Terra é exatamente um livro sobre começos, inícios, novas chances, agarrar oportunidades, esquecer o passado, viver o presente, sentir saudades do futuro, não se assustar com as estranhezas da vida, se manter na terra, no nascimento, por isso, e outras coisas que fogem à compreensão lógica, pois literatura é arte, a obra de Mia Couto consegue se manter tão forte em suas características moçambicanas e ao mesmo tempo contar uma história sobre o mundo inteiro.

A leitura de cada conto traz muita intensidade e vivência literária, o que transforma o livro numa leitura cuidadosa e muito especial.

Fonte:
Resenha por Francine Ramos, disponível em Livro & Café
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