sexta-feira, 27 de maio de 2022

Ana Lúcia Merege Correia (Uma História do Livro no Brasil)

Na virada entre os séculos XIX e XX, Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, conheceu um rápido desenvolvimento urbano e econômico. A imigração fez crescer o número de habitantes; foram criadas faculdades de Direito, Engenharia e Medicina; a rede de transporte marítimo e ferroviário cresceu e se tornou mais eficaz, e vários setores econômicos foram estimulados, incluindo a produção e o comércio de livros.

O “Almanach rio-grandense” publicado em 1874 pela tipografia Deutsche Zeitung arrola apenas três livrarias em Porto Alegre: a de Joaquim Alves Leite, aberta em 1850, que vendia vários produtos além de livros; a de Madame Marcus, frequentada por estudantes; por fim, a Livraria Rodolfo José Machado, fundada em 1854, que também atuava como editora. Nas décadas seguintes, porém, esses números iriam crescer, passando a incluir várias novas casas, entre as quais as filiais porto-alegrenses da Livraria Americana e da Livraria Universal.

Segundo Eduardo Arriada, da UFPel, a mais importante editora gaúcha daquela época era a Livraria Americana, de Carlos Pinto. Fundada em 1871 na cidade de Pelotas – um dos maiores centros comerciais do estado --, a Livraria foi responsável pela edição do “Almanaque Literário e Estatístico do Rio Grande do Sul” entre 1889 e 1917, atuou no setor de livros didáticos e publicou literatura nacional e estrangeira, com nomes como Daudet, Maupassant, Zola e Dostoievsky. Suas obras saíam na série de bolso Biblioteca Econômica, com baixo preço e pequeno formato. Laurence Hallewell afirma que as traduções e edições não eram autorizadas pelos detentores dos direitos de publicação, configurando-se no que hoje conhecemos como “pirataria”.

Em 1917, a Americana passou a ser propriedade da Livraria Universal, fundada em 1887 pelos irmãos Carlos e Guilherme Echenique. A Universal seguiu um caminho parecido com o da empresa de Carlos Pinto: inicialmente sediada em Pelotas, abriu filiais em Rio Grande e em Porto Alegre, publicou obras didáticas e de literatura e até mesmo seu próprio almanaque: o “Almanaque Popular Brasileiro”, dirigido por Alberto Ferreira Rodrigues. Encerrou suas atividades em 1929, quando Porto Alegre já contava com várias importantes livrarias. A maior parte se concentrava na Rua dos Andradas, também conhecida como Rua da Praia.

A Livraria do Globo também ficava nesse endereço. Fundada em dezembro de 1883 pelo português Laudelino Pinheiro Barcelos, era, a princípio, um negócio modesto, que anunciava a venda de “livros, músicas, papel, miudezas e objetos de escritório”. Pouco depois, Barcelos ampliou o negócio por meio de uma oficina tipográfica, na qual passou a realizar impressões por encomenda. Em 1890 contratou o jovem e dinâmico José Bertaso, que rapidamente galgou degraus na empresa, tornando-se sócio de Laudelino e, com a morte deste em 1919, proprietário da Livraria do Globo. Segundo Hallewell, Bertaso previu a escassez de papel que se seguiria à Primeira Guerra Mundial e fez um bom estoque, depois vendido com lucro. Também adquiriu a primeira máquina de linotipo do estado.

Em 1917, a Livraria do Globo abriu sua primeira filial, na cidade de Santa Maria. Em 1922, começou a publicar novas vozes da literatura gaúcha: Telmo Vergara, Darcy Azambuja, Ernani Fornari e vários outros. Ao mesmo tempo, visando à maior projeção da empresa, Mansueto Bernardi, encarregado do departamento de propaganda, fez publicar também alguns livros traduzidos, contratou editores especializados e artistas gráficos e fundou a “Revista do Globo”, um periódico de variedades que contou com colaboradores de renome, tanto nas ilustrações quanto na redação de artigos e colunas.

Ao deixar a firma, Bernardi foi substituído no setor editorial por Henrique, filho de José Bertaso. Em 1932, a direção da revista passou às mãos de um jovem escritor, Érico Veríssimo, já então colaborador e tradutor de vários livros publicados pela Globo. Entre os de maior sucesso estavam as histórias policiais da Coleção Amarela, iniciada em 1931 e que publicou 85 títulos em 18 anos. Em 1936, segundo Hallewell, a empresa contava com quinhentos funcionários e ocupava um prédio de três andares, e Henrique Bertaso viajava pela Europa a fim de adquirir os direitos de publicação de obras alemãs, italianas, espanholas e francesas.

Em 1938, após seu livro “Olhai os Lírios do Campo” se tornar um sucesso de vendas, Veríssimo assumiu o papel de conselheiro literário, uma espécie de curadoria principalmente dos livros a traduzir, que saíam pelas coleções Nobel e Biblioteca dos Séculos. Esta publicou obras de vulto, como “A Comédia Humana”, de Balzac. A edição de dezoito volumes foi considerada pelo crítico Nelson Werneck Sodré a maior realização da Globo até então, com destaque para o coordenador, Paulo Rónai. Além das traduções, a editora continuava a publicar autores brasileiros, principalmente locais, desde uma edição crítica dos “Contos Gauchescos e Lendas do Sul”, de João Simões Lopes Neto (1865 – 1916), até livros de estreia, como “A Rua dos Cataventos”, de Mário Quintana, que saiu em 1940.

No início dos anos 1950, a quantidade de obras traduzidas se reduziu bastante, visto que medidas tomadas pelo Governo dificultavam o pagamento feito a autores e editores residentes no exterior. Os números voltaram a crescer na década seguinte, porém a Globo havia mudado seu foco para a produção de livros didáticos, publicações técnicas e obras de referência. O departamento de Dicionários e Enciclopédias era um dos mais ativos na empresa, e contou com a colaboração de autores e pesquisadores renomados, tais como Leonel Valandro, Francisco Fernandes e Álvaro Magalhães, organizador da “Enciclopédia Brasileira Globo”, que, segundo Hallewell, foi a primeira a contar com verbetes elaborados exclusivamente por especialistas brasileiros. Outro nome de relevo foi Edgard Cavalheiro, que mais tarde viria a ser gerente da Editora Cultrix.

Em 1972, Érico Veríssimo publicou “Um Certo Henrique Bertaso”, livro em que narrava sua experiência na Editora Globo e homenageava o editor. Este faleceu em 1977, e pouco depois se iniciou uma grande reformulação, com a mudança da sede da firma para o Rio de Janeiro e a abertura de franquias. Em 1986 a empresa foi vendida à Rio Gráfica Editora, pertencente a Roberto Marinho, dono do conglomerado midiático também chamado Globo, que passou a utilizar a marca para os produtos da gráfica. Assim, o nome e a história da pequena livraria fundada em Porto Alegre continuam através de uma editora pertencente ao Grupo Globo, com sede em São Paulo, que publica livros de literatura e de não-ficção e revistas como a Época e a Galileu.

quinta-feira, 26 de maio de 2022

Dorothy Jansson Moretti (Album de Trovas) - 6

 

Aluísio de Azevedo (Músculos e Nervos)


Terminava a primeira parte do espetáculo, quando D. Olímpia entrou no circo, pelo braço do pai.

Havia grande enchente. O público vibrava ainda sob a impressão do último trabalho exibido, que devia ter sido maravilhoso, porque o entusiasmo explodia por toda a plateia e de todos os lados gritavam ferozmente: “Scot! À cena Scot!” Dois sujeitos de libré azul com alamares dourados conduziam para o interior do teatro um cavalo que acabava de servir. Muitos espectadores, de chapéu no alto da cabeça, estavam de pé e batiam com a bengala nas costas das cadeiras; as cocotes pareciam loucas e soltavam guinchos, que ninguém entendia; das galerias trovejava um barulho infernal, e, por entre aquela descarga atroadora, só o nome do idolatrado acrobata sobressaía, exclamado com delírio por mil vozes.

– Scot! Scot!

Olímpia sentiu-se aturdida; o pai, no íntimo, arrependia-se de lhe ter feito a vontade, consentindo em levá-la ao circo, mas o médico recomendara tanto que não a contrariassem… e ela havia mostrado tanto empenho no capricho de ir aquela noite ao Politeama…

De repente, um grito uníssono partiu da multidão. Estalaram as palmas com mais ímpetos; choveram chapéus; arremessaram-se leques e ramalhetes, Scot havia reaparecido.

– Bravo! Bravo, Scot!

E os aplausos recrudesceram ainda.

O ginasta, que entrara de carreira, parou em meio da arena, aprumou o corpo, sacudiu a cabeleira anelada, e, voltando-se para a direita e para a esquerda, atirava beijos, sorrindo, no meio daquela tempestade gloriosa.

Depois de agradecer, estalou graciosamente os dedos e retirou-se de costas, a dar cambalhotas no ar.

Desencadeou-se de novo a fúria dos seus admiradores, e ele teve de voltar à cena ainda uma vez, mais outra, cada vez mais triunfante.

Olímpia, entretanto, com a cabeça pendida para a frente, o olhar fito, os lábios entreabertos, dir-se-ia hipnotizada, tal era a sua imobilidade. O pai tentou chamá-la à conversa; ela respondeu por monossílabos.

– Queres… vamos embora.

– Não.

Na segunda parte do espetáculo, a moça parecia divertir-se. Não despregava a vista de Scot, a quem cabia a melhor parte dos trabalhos da noite.

O mais famoso era a sorte dos voos. Consistia em dependurar-se ele de um trapézio muito alto, deixar-se arrebatar pelo espaço e, em meio do trajeto, soltar as mãos, dar uma cambalhota e ir agarrar-se a um outro trapézio que o esperava do lado oposto.

Cada um destes saltos levantava sempre uma explosão de bravos.

Scot havia feito já por duas vezes, o seu voo arriscado; faltava-lhe o último e o mais perigoso. Diferenciava este dos primeiros em que o acrobata, em vez de lançar-se de frente, tinha de ir de costas e voltar-se no ar, para alcançar o trapézio fronteiro.

O público palpitava ansioso, até que Scot afinal assomou no alto trampolim armado nas torrinhas, junto ao teto.

Cavou-se logo um fundo silêncio nos espectadores. Os corações batiam com sobressalto; todos os olhos estavam cravados na esbelta figura do artista, que, lá muito em cima, parecia, nas suas roupas justas de meia, a estátua de uma divindade olímpica. Destacava-se-lhe bem o largo peito, hercúleo, guardado pelos grossos braços nus, em contraste com os rins estreitos, mais estreitos que as suas nervosas coxas, cujos músculos de aço se encapelavam ao menor movimento do corpo.

Com uma das mãos ele segurava o trapézio, enquanto com a outra limpava o suor da testa. Depois, tranquilamente, sem o menor abalo, prendeu o lenço à sua cinta bordada e de lantejoulas e deu volta ao corpo.

Ouvia-se a respiração ofegante do público.

Scot sacudiu o braço do trapézio, experimentando-o, puxou-o afinal contra o colo e deixou-se arrebatar de costas.

Em meio do circo desprendeu-se, gritou: “Hop!” deu uma volta no ar e lançou-se de braços estendidos para o outro trapézio.

Mas, o voo fora mal calculado, e o acrobata não encontrou onde agarrar-se.

Um terrível bramido, como de cem tigres a que rasgassem a um só tempo o coração, ecoou por todo o teatro. Viu-se a bela figura de Scot, um instante solta no espaço, virar para baixo a cabeça e cair na arena, estatelada, com as pernas abertas.

O recinto do circo encheu-se logo. Nos camarotes mulheres desmaiaram, em gritos; algumas pessoas fugiam espavoridas, como se houvesse um incêndio; outras jaziam pálidas, a boca aberta e a voz gelada na garganta. Ninguém mais se entendia; nas torrinhas passavam uns por cima dos outros, numa avidez aterrada, disputando ver se conseguiam distinguir o acrobata.

Este, todavia, sem acordo e quase sem vida, agonizava por terra, a vomitar sangue.

Olímpia, lívida, trêmula, estonteada, quando deu por si, achou-se, sem saber como, ao lado do moribundo. Ajoelhou-se no chão, tomou-lhe a cabeça no regaço, e vergou-se toda sobre ele, procurando sentir nas faces frias o derradeiro calor daquele belo corpo escultural e másculo. E, desatinada, ofegante, apalpava-lhe o peito, o rosto, a bronzea carne dos braços, e, com um grito de extrema agonia, molhava a boca no sangue que ele expelia pela boca.

Scot teve um estremecimento geral de corpo, contraiu-se, vergou a cabeça para trás, volveu para a moça os seus límpidos olhos comovidos, agora turvados pela morte, soltou o gemido derradeiro.

E o corpo do acrobata escapou das mãos finas de Olímpia, inanimado.

Fonte:
Aluísio de Azevedo. Aos vinte anos. Publicado em 1895.

Caldeirão Poético XLVI: Argentina


Alfonsina Storni
Suiça (1892-1938) Argentina

A SÚPLICA


Senhor, Senhor, há muito tempo, um dia,
sonhei o amor, como ninguém houvera
ainda sonhado, amor que fosse e que era
a vida toda todo uma poesia.

Passa o inverno e esse amor não chegaria,
passaria também a primavera;
o verão persistente volveria...
E o outono ainda me encontra à sua espera.

Ó Senhor, sobre minha espádua nua,
faze estala, por mão que seja crua,
o látego que mandas aos perversos,

que já anoitece sobre minha vida
e esta paixão ardente e desmentida
eu a gastei, Senhor, fazendo versos!

(Tradução de Oswaldo Orico)
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Arturo Capdevilla
(1889-1967)

EM VÃO


Quanto verso de amor, cantado em vão!
Como minha alma está ficando velha
ao recordar a história em que se espelha
a insensatez dos tempos que se vão!

Quanto verso de amor, gemido em vão!
A princípio, o nectário e eu, a abelha...
Depois... Meu coração todo se engelha
na neve amarga em que se fez ancião.

Quanto verso de amor, perdido em vão!
 — Minha janela em luzes se recorta...
Ainda vivo... que flores!... é verão...

Dá-me pena, entretanto, à minha porta,
como uma triste borboleta morta,
tanto verso de amor, chorado em vão!

(Tradução de Mello Nóbrega)
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Carlos Alberto Leumann
(1886-1952)
 
TRAGÉDIA SIMPLES


Tinham ambos quinze anos. Com delírio
queriam-se; porém, ela escondia
sua enorme ternura, e ele temia
dizer-lhe o seu segredo, o seu martírio.

O tempo ia correndo, enquanto Sírio
com reflexos de prata o céu feria.
E passaram-se os dias... Certo dia
ela ficou tão branca como um lírio.

Morreu sonhando... E ele, com passo tardo
buscando-a pela fúnebre pradeira,
achou a tumba entre o crescido cardo.

E ali, junto da amada companheira,
alma ferida de pungente dardo,
falou de seu amor a vez primeira.

(Tradução de Jacy Pacheco)
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Héctor Pedro Blomberg
(1899-1955)

VELHAS CARTAS DE AMOR


Ah, queimá-las não pude... É que elas — quem diria? —
guardam murchas assim, tua morta paixão,
— a febre de uma noite, as lágrimas de um dia —
como o eco já sem voz de urna última canção.

Tuas cartas! — num tempo a que eu retornaria —
fizeram palpitar de amor meu coração...
Depois, veio o silêncio, a distância, a agonia,
e o bálsamo do tempo — a cruel consolação!

Vivem nelas ainda um romance apagado,
a luz da mocidade, o fogo de um passado,
a glória de uma vida aos vinte anos em flor...

Ontem, contava-as, sim — com um gesto indiferente...
Mas, sobre elas caiu uma lágrima ardente...
E não pude queimar tuas cartas de amor...

(Tradução de J. G. de Araújo Jorge)
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Luís Cané
(1897-1957)

METAMORFOSE


Sufocar este amor, enriqueceu
meu coração de canto e de harmonia,
e em claro manancial de poesia
sua secreta dor se converteu.

Tornou-se canto tudo o que sofreu;
a pena sem consolo, em alegria,
minha noite por dentro, fez-se dia,
e se pôs a lembrar do que esqueceu...

A sofrer por amor, fez disto um gozo,
na face, a flor de um riso, invés de pranto,
e oculta na raiz, a alma ferida...

E a fingir um destino venturoso
e a parecer que o canto era só canto,
acabou alegrando a própria vida!

(Tradução de J. G. de Araújo Jorge)

Fonte:
Vasco de Castro Lima. O mundo maravilhoso do soneto. 1987.

Sílvio Romero (Barceloz)

(Folclore do Pernambuco)


EM UMA NOITE CHUVOSA de fazer horror estavam três fadas cumprindo o seu fado no jardim que ficava ao lado da casa de Barceloz, namorador das flores em botão, no que levava as noites todas velando. Como eram, por esse motivo, as fadas privadas de cumprir com sua missão naquele lugar, combinaram encantar a Barceloz na ocasião em que estivesse namorando o bogari. Apareceram nessa noite tenebrosa as três fadas, e na ocasião em que chegou o moço à janela puseram-se a julgá–lo.

Dizia a primeira: “Este, que nos tem atrapalhado, há de sete anos não falar, e tendo esta flor para seu sustento.”

A segunda disse: “Neste tempo há de tornar-se em mato virgem, não vindo alma viva nestes ermos durante os sete anos.”

A terceira disse: “Só há de ser desencantado pela filha da Peregrina, que está cumprindo a mesma pena.”

Ditas estas palavras Barceloz encantou-se, a casa e todos que nela existiam. Quando Barceloz estava com seis anos de encanto a Ninfa, filha da Peregrina, completou os sete, e seguiu o mesmo destino de sua mãe, retirando-se em direção ao Reino da Torre de Ouro.

Anoitecendo-lhe no meio do caminho, e sendo noite escura e chuvosa, ela, como mulher, teve medo de ficar nas matas medonhas, e continuou a andar, a ver se encontrava alguma casa. Perdendo a esperança de a encontrar procurou uma árvore bem copuda e agasalhou-se debaixo à espera do sol.

Alta noite chegaram as fadas, e então disse a primeira: “Fademos, manas, fademos; no Reino da Torre de Ouro tem de haver uma grande festa, e tem-se de fazer uma escolha para desencantarem a mata que foi Barceloz, o Campo Negro, e a Bela das Belas. Estes três reinos têm de ser desencantados pelas três Peregrinas. Ninfa desencanta a Barceloz, a Morena desencanta a Bela das Belas, e Nandi o Campo Negro.”

Ninfa que aí estava ouviu toda a conversa, pôs-se quieta e assustada. Ao romper do dia pôs-se em caminho, e chegou trêmula de fome à beira de um rio, onde estava uma velha lavando roupa.

A velha disse: “Minha netinha, o que faz você por aqui? Como é tão bonitinha! Eu quero levá-la para minha casa: quer morar comigo?”

A moça respondeu: “Não posso ficar morando, posso ficar uns dias para descansar da viagem.”

— “Eu”, disse a velha, “só quero ter o gosto de te ver em minha casa.”

Seguiram ambas. Chegando elas à casa, tiniam todas as coisas como se fossem repiques de sinos, e a Peregrina ficou pasmada de ouvir tanto rumor em sua chegada.

A velha respondeu: “Isto é meu filho que te desconheceu.”

A velha apresentou a Peregrina ao filho, e este perguntou-lhe para onde ia.

“Vou”, respondeu a moça, “ao Reino da Torre de Ouro; vou desencantar a um infeliz que está encantado no Reino das Matas.”

Disse então o moço: “Ainda este ano lá não chegarás, e podes ir descansada que não hás de desencantar a Barceloz, pois só um beija-flor que ele tem a beijar; o bogari dar-te-á cabo da pele, e também uma serpente ao pé da janela, que só o vê-la faz horror; mas como minha mãe muito te quer, eu te vou dar alguns esclarecimentos. Leva este bogari e esta bola de vidro; acharás por estes dois objetos avultada quantia, que não deves aceitar. O rei também há de querer comprá-los; também lho não vendas. Ao chegares a Barceloz deve ser ao meio-dia, hora em que o beija-flor foi à fonte, e a serpente dorme; põe a flor na boca de Barceloz, e a bola na boca da serpente, e espera que venha o beija-flor; na chegada dele tira a flor do ramo e guarda. Quando o passarinho beijar a flor que está na boca de Barceloz, o passarinho cai, e a serpente acorda e quer morder, mas quebra os dentes na bola. Barceloz então se desencanta, aparece o palacete, e deves tirar do dedo do moço um anel que deves guardar para quando fores chamada pelo rei, e ele há de servir de sinal para casares com o moço, vencendo as invejosas.”

Assim fez a Ninfa. Depois de tudo acabado, foi ela ter à presença do rei. Todos os sábios duvidaram que essa tivesse tanto ânimo. Ela mostrou o anel, que todos reconheceram. De repente chegou outra mulher, dizendo que ela é que tinha desencantado a Barceloz, e a Ninfa foi condenada à morte; mas foi livre por não ter a outra apresentado prova alguma; foi então aquela condenada à morte, casou-se Ninfa com Barceloz, havendo muita festa pra festa.

Fonte:
Sílvio Romero. Contos populares do Brasil. Coleção Acervo Brasileiro vol. 3. Jundiaí/SP: Cadernos do Mundo Inteiro, 2018. Publicado originalmente em 1954.

quarta-feira, 25 de maio de 2022

Edy Soares (Manuscritos (Di)versos) 09: Beija-Flores

 

Marina Colasanti (Uma ideia toda azul)


Um dia o rei teve uma ideia. Era a primeira da vida toda e, tão maravilhado ficou com aquela ideia azul, que não quis saber de contar aos ministros. Desceu com ela para o jardim, correu com ela nos gramados, brincou com ela de esconder entre outros pensamentos, encontrando-a sempre com alegria, linda ideia dele toda azul.

Brincaram até o rei adormecer encostado numa árvore.

Foi acordar tateando a coroa e procurando a ideia, para perceber o perigo. Sozinha no seu sono, solta e tão bonita, a ideia poderia ter chamado a atenção de alguém. Bastaria esse alguém pegá-la e levá-la. É tão fácil roubar uma ideia! Quem jamais saberia que já tinha dono?

Com a ideia escondida debaixo do manto, o rei voltou para o castelo. Esperou a noite. Quando todos os olhos se fecharam, ele saiu dos seus aposentos, atravessou salões, desceu escadas, subiu degraus, até chegar ao corredor das salas do tempo. Portas fechadas e o silêncio. Que sala escolher?

Diante de cada porta o rei parava, pensava e seguia adiante. Até chegar à sala do sono. Abriu. Na sala acolchoada, os pés do rei afundavam até o tornozelo, o olhar se embaraçava em gases, cortinas e véus pendurados como teias. Sala de quase escuro, sempre igual. O rei deitou a ideia adormecida na cama de marfim, baixou o cortinado, saiu e trancou a porta. A chave prendeu no pescoço em grossa corrente. E nunca mais mexeu nela.

O tempo correu seus anos. Ideias o rei não teve mais, nem sentiu falta, tão ocupado estava em governar. Envelhecia sem perceber, diante dos educados espelhos reais que mentiam a verdade. Apenas sentia-se mais triste e mais só, sem que nunca mais tivesse tido vontade de brincar nos jardins.

Só os ministros viam a velhice do rei. Quando a cabeça ficou toda branca, disseram-lhe que já podia descansar, e o libertaram do manto.

Posta a coroa sobre a almofada, o rei logo levou a mão à corrente.

Ninguém mais se ocupa de mim – dizia, atravessando salões, descendo escadas a caminho da sala do tempo. Ninguém mais me olha – dizia. Agora, posso buscar minha linda ideia e guardá-la só para mim.

Abriu a porta, levantou o cortinado. Na cama de marfim, a ideia dormia azul como naquele dia.

Como naquele dia, jovem, tão jovem, uma ideia menina. E linda. Mas o rei não era mais o rei daquele dia. Entre ele e a ideia estava todo o tempo passado lá fora, o tempo todo parado na sala do sono. Seus olhos não viam na ideia a mesma graça. Brincar não queria, nem rir. Que fazer com ela? Nunca mais saberiam estar juntos como naquele dia.

Sentado na beira da cama o rei chorou suas duas últimas lágrimas, as que tinha guardado para a maior tristeza. Depois, baixou o cortinado e, deixando a ideia adormecida, fechou para sempre a porta.

Moral: ideia não é para ficar adormecida, mas para ser realizada, sob pena de se perder.

Fonte:
Marina Colasanti. Uma ideia toda azul. Publicado em 1979.

Vasco de Castro Lima (Sonetos ao Soneto)

I

Soneto! Com quatorze primaveras,
te conheci! Foi predestinação!
Plantei quatorze rosas em botão
no teu nobre jardim cercado de heras.

Por entre as confidências mais sinceras,
eu te entreguei, cativo, o coração.
Meus dias, minha cruz, minha ilusão,
tu vestiste de aromas e quimeras.

Confiei-te sonho, amor, prantos, espinhos!
E tu, recompensando os meus louvores,
dás-me a tua acolhida e os teus carinhos.

Teus passos seguirei para onde fores!
Teremos, a abençoar nossos caminhos,
Um suave arco-íris de quatorze cores!...
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II

... Assim, desde que eu era uma criança
e erguia os meus castelos de menino,
tornei-me teu ardente paladino,
lutando armado de perseverança.

Vivo a exaltar tua beleza mansa,
mesmo nos dias em que, à Dor, me inclino,
cansado de correr sem um destino,
cansado de esperar pela Esperança.

Soneto! As tuas taças quero erguê-las,
pois, mesmo tendo o coração tristonho,
espero, sempre e sempre, merecê-las.

Sim, tu me guias, lúcido e risonho,
formando, no alto, com quatorze estrelas,
o Cruzeiro do Norte do meu Sonho!
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III

Quando, sangue e luz, no céu apontas,
rompendo as alvas brumas levantinas,
tu és, Soneto, um astro que fascinas,
radiosa estrela de quatorze pontas...

Uma pulseira de quatorze contas,
Um colar de quatorze turmalinas...
... Soberbo girassol entre boninas,
Também nos prados — novo sol — despontas...

Quanta vez, no silêncio ou no tumulto,
se te vejo nas cores da alvorada,
saio feliz, no rasto do teu vulto!

E vendo-te, na abóbada estrelada,
quero subir, rendendo-te o meu culto,
os quatorze degraus da tua escada!
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 IV

Soneto, a tua vida de fulgores
desliza numa escarpa de martírios;
se és um campo coberto de alvos lírios,
também és um vergel de negras flores.

Regaço de alegrias e amargores,
ninho de mansuetudes e delírios,
nasces da chama espiritual dos círios,
como nasces do sol, que acende as cores.

Tu — florido e sonoro baluarte;
tu — rei do Amor, por mais que o ódio aguces;
tu — novo Cristo de um Calvário de Arte;

mesmo que cantes, mesmo que soluces,
revives todo dia, em toda parte,
as quatorze Estações da Via-Crucis!
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V

És, no reino das Artes — o Monarca;
no Culto da Poesia — és o Senhor!
És, Soneto, na Idade — um Patriarca,
tu, que vences o tempo e o seu clamor!

Nos caminhos, deixaste a tua marca,
Celebraste o Prazer, ungiste a Dor!
— Ronsard, Bilac, Herédia, Arvers, Petrarca;
e Bocage e Camões, poetas do Amor;

Stecchetti, Shakespeare, Antero e Dante;
Teresa de Jesus, Rueda e Chocano,
Foram quatorze eternas vibrações...

Reboa, assim, no espaço, triunfante,
como se fosse a voz de um peito humano,
o bater de quatorze corações!    

Fonte:
Vasco de Castro Lima. O mundo maravilhoso do soneto. 1987.

terça-feira, 24 de maio de 2022

A. A. de Assis (Jardim de Trovas) 5

 

Clarisse da Costa (A Vida é uma Passagem)

Numa conversa entre malucos, o que para mim eram dois sábios, um deles dizia: — Nem eu entendo. E dá para entender esse caos humano? O mundo parece pequeno diante da arrogância de muitos.

A verdade é que algumas pessoas são uma farsa e definem outras pessoas por um sorriso, por uma lágrima, por uma atitude, mas não há quem conheça a fundo uma pessoa, o começo das histórias e o final de cada uma delas.

Por vezes muitos falam de amor com tanta exatidão, como se ele tivesse uma cartilha a ser decorada. E no fundo o amor não precisa disso, nem as pessoas. Basta querer entender as coisas e ter um pingo de amor, mas para saber amar você tem que amar em espírito não pela carne.

E não se culpe por não ter dado certo, a vida é para a gente quebrar a cara mesmo, nem sempre tudo será flores ou um belo romance como o de Hazel Grace e Augustus. Ah tá, esqueci, ele morre no final! Só que você precisa entender que o amor não morre, nem o tempo.

O tempo é eterno. Você pode até dizer que não acredita nisso, mas no fundo você deseja que todas as coisas boas nessa vida sejam eternas. Porém a vida é um ciclo entre o que vive, morre, nasce e reconstrói.

Você pode dizer que estou falando essas coisas porque eu sou escritora, mas lhe digo, estou falando isso porque eu acredito. Afinal de contas eu tenho que acreditar em alguma coisa. Acho que todo ser humano deve acreditar em alguma coisa até mesmo na sua própria pessoa, porque se não acreditar que sentido terá a vida. Se a gente parar para pensar, alguns de nós são movidos por nossas crenças.

Hazel Grace acreditava que o esquecimento era inevitável. Ela quis dizer que uma hora a gente será esquecido, muitos outros virão depois, depois de nós. E tem um pingo de verdade nisso, alguns de nós já são esquecidos na velhice, ser esquecido após a morte é inevitável. A vida é uma passagem.

Pegue um livro, ouça uma boa música, beije na boca, faça tudo que tiver que fazer se quiser ser lembrado, que seja fazendo algo. Porque não dá para viver uma vida inteira se protegendo dos sofrimentos, das perdas, dos fracassos, dos erros, dos desamores e dos enganos. O melhor a se fazer é viver, se colocar em primeiro lugar.  

Fonte:
Texto enviado por Samuel da Costa

Fabiane Braga Lima (A filha do vento)

Tenho uma sede incontrolável pela vida, quando me sinto ausente, calada é a minha fome por sentimentos verdadeiros, por toques que me acalentam. Sinto a necessidade de acordar, sentir o sol me tocar e viver intensamente.   

Quando anoitece, a minha mente fique inquieta, tenho necessidade de escrever e ler, até que eu possa adormecer. Caminho de acordo com o vento, deixando os meus rastros, conhecendo mundos opostos, assim crio as minhas histórias e utopias, muitas vezes complexas e outras não.

Em meus versos gritam por liberdade, a vida é a minha poesia.  E, assim deixo as minhas marcas, a minha escrita, os meus gritos contidos, os meus silêncios e as minhas lágrimas de poetisa.

Reinvento-me, sou filha do vento, caminho por horizontes, nos quais deixo sempre um pouco de mim. Sou a filha do vento, errante, estrangeira, caminhando por horizontes, sem fim...!

Fonte:
Texto enviado por Samuel da Costa

Raul Pompéia (Um Vizinho Original)

Eu tive um vizinho original.

Era magro, comprido, poeta e tísico, tudo em grande dose. Poeta da velha idolatria das brisas, tísico do terceiro grau.

Quem o visse, à rua, enfiado no velho croisé como num tubo, espirrando para baixo as mirradas canelas, para cima, um pescoço de garça, nodoso e interminável, frágil apoio da cabecinha viva e inquieta, projetada para a frente, com o longo cavanhaque de poucos cabelos e os olhos fúlgidos arregalados, quem o encontrasse hesitaria em tomá-lo por um oficial de justiça, por causa do olhar extraordinário, e ver-se-ia reduzido a não formar opinião sobre aquele estranho transeunte, mal vestido, delgado, célere, como se tivesse medo de chamar atenção, fugitivo, quase fantástico.

O nosso poeta tinha uma filha moça, digna filha! Alta como o pai, como ele magra, alvíssima, talvez tuberculosa, provavelmente poetisa. Representava os restos de uns amores do poeta que deram em casamento, de um casamento que dera em droga.

Vivia das esperanças fugazes de uma cadeira de professora pública que lhe prometiam, havia anos, e que lhe não davam nunca. Além disso, tocava piano.

Tocava piano não exprime bem. A donzela, repetia, várias vezes ao dia, repisava, remola, uma certa e determinada música, invariável, pertinaz, uma espécie de balada, lânguida, desafinada, medonha!

O piano era um memorável tacho, de não sei que fabricante, diabólico. Produzia sons novos, inauditos, fenomenais, que davam ideia de fabuloso armazém de ferros velhos em revolução, harmonias assombrosas, não sonhadas por Wagner. Por um efeito incrível de contágio, parece que a enfermidade dos donos se comunicara ao piano. Eu era capaz de jurar que aquele piano estava tísico, tão perfeitamente ético como o magro vizinho. Havia notas tossidas, havia escalas escarradas... Ninguém imagina!

Deste monte de horrores, o pianista tinha a habilidade de extrair a sua música, a tal peça eterna e desesperadora.

Era um prodígio desafinado de doçuras, enxame de moscas sonoras zumbindo na clave de fá sobre pieguices requebradas e sentidas da clave de sol, como sobre compotas. Via-se na música da filha, o gênio do pai. Estava presente todo o alfenim da magra sentimentalidade dos vates da antiga escola. Era uma melodia a pingar melado; a enjoar de doçura.

O poeta adorava essa música. Alimentava o seu estro na beterraba e na cana daquele açúcar. Fecundada por essa inspiração de confeitaria, o referido estro dava à luz estrofes idiliais, onde o leite e o mel corriam pelos regatos e as cordilheiras eram legítimos pães de açúcar alinhados como na Serra dos Órgãos.

Estas obras-primas de lirismo lacrimejante e apaixonado apareciam, como sonâmbulas, a bracejar desvairadas, pelas colunas ineditoriais das folhas.

Não se calcula o sacrifício que se impunha o trovador para exalar em público, por glória de seu nome, os suspiros de sua alma a seis vinténs a linha.

Um belo dia o piano calou-se. Mau agouro! E o poeta não saía à rua...

Quando já a vizinhança se dava parabéns, pelo feliz desaparecimento do tal piano e da tal música, eis que de novo ressurge a melodia!

Desta vez, custava-se a ouvir. As janelas fechadas da casinha do poeta cobriam a música com o abafador de uma espessa surdina.

Nunca me pareceram tão profundamente irritantes aqueles sons. Possuíam, então, uma ternura estranha, pungente, revoltante! As notas não cantavam mais nem suspiravam - estertoravam. Era como uma série arquejante de derradeiros suspiros, ao longe. Uma agonia longínqua e interminável.

Fazia raiva aquilo! Terrível conspiração daquela pianista com aquele piano, daquela música com aquelas vidraças descidas... para me darem cabo dos nervos naquele dia!

Felizmente, a agonia acabou. A música subiu, num crescendo de círio expirante e morreu de chofre, como se lhe houvessem faltado as cordas do piano.
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No dia seguinte, me explicaram o significativo da casa fechada e do reaparecimento da música. Adoecera e morrera o poeta lírico. Adivinhando a morte, mandara a filha ao piano tocar a melodia querida.

E adormecera o grande sono, ninado por aquela música, a dulçurosa irmã do seu estro.

Lirismo e tísica, escreveu o médico na certidão de óbito.

Fonte:
Raul Pompéia. Contos. Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Linguística da UFSC.

segunda-feira, 23 de maio de 2022

Adega de Versos 81: Pedro Maciel

 

Renato Benvindo Frata (A barata letrada)

Dia desses, entre caixas de papelão e pertences velhos guardados sem saber se ainda serão usados, chamou-me à atenção um pacote de livros antigos com a embalagem desfeita. O barbante se rompeu e o jornal com que estava embrulhado não suportou o peso do conteúdo e se rasgou nas bordas pedindo renovação do invólucro.

Ao desfazer o embrulho, uma gorda e lustrosa barata surgiu ligeira. Ela se assustou e eu me enojei soltando um palavrão. Tive ímpeto de esmagá-la como se fazem com as baratas, mas algo também instintivo brecou meu gesto: ela era diferente das baratas que normalmente se escondem pelos cantos enfiadas em gretas e frestas dos móveis; era grande, gorda, lustrosa, com as antenas bem definidas e de um verniz marrom que puxava para o amarelo. Seria de espécie diferente das demais baratas que habitam a casa? - Indaguei aos botões da camisa.

Parei para analisá-la enquanto ela se escondia próximo dali, deixando a casca brilhante à vista e, como não encontrei resposta imediata, voltei aos livros limpando-os com um pano úmido, até que em um em especial encontrei seu esconderijo: a barata se deliciava com um velho livro de Anne-Marie Cazalis, Mémoires d'une Anne, (Memórias d'uma Anna), biográfico de 1976 que eu havia tentado ler sem tê-lo conseguido.

A tradução do francês ao português ficara tão difícil que a vontade de conhecer mais sobre a vida da escritora foi sacrificada pela dificuldade com a língua, e o "deixa pra depois" ganhou da persistência que se deve ter em casos assim.

O fato é que aquela baratona lustrosa e gulosa comera boa parte da vida de Anne-Marie, deixando apenas o dorso e o rodapé do volume. E aí me pus a matutar. Ou a filosofar? 0u pensar besteiras quando não se tem muito a fazer?

O que teria levado a barata a "devorar" somente o livro da Anne-Marie quando teve outros à disposição? Seria pela qualidade do papel? Ou da tinta? Ou foi a história picante de vida da autora sobre seu envolvimento com a amiga Juliette Gréco, depois com Bóris Vian, Jean-Paul Sartre e suas viagens sistemáticas à África especialmente à Tunísia que lhe rendeu outro livro (Kadhafi, le Templier d'Allah)? Teria sido pelo contexto da obra, já que os demais livros do pacote eram de assuntos técnicos de administração e contabilidade?

Por mais que imaginasse não fiquei sabendo. Poderia gastar mil perguntas, mil "entretantos" e comparações e outra quantidade igual de indagações que não chegaria a bom termo. A barata simplesmente a comeu letra por letra no sentido literal do termo, e eu era a testemunha do fato. Ponto final.

Entre a dúvida se a matava ou não, apelidei-a Anne, justamente por ter absorvido toda história da escritora com a calma e persistência que eu deveria ter ao ler o livro, e preferi deixá-la quieta na fresta em que se escondera.

Não é sempre que se encontra barata letrada no porão…

Fonte:
Renato Benvindo Frata. Azarinho e o caga-fogo. Paranavaí/PR: Eg. Gráf. Paranavaí, 2014.
Livro enviado pelo autor.

Baú de Trovas XLVIII


Ah, poeta, como é lindo
teu trabalho, e quão fecundo...
– Noite e dia produzindo
sonhos novos para o mundo!
A. A. de Assis
Maringá/PR
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Almoço e janto poesia.
E neste meu universo,
mastigo um pão todo dia
amanteigado de verso.
Ademar Macedo
Santana do Matos/RN, 1951 – 2013, Natal/RN
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Que bom. chegando aos setenta,
saber, revendo os meus passos.
que é o bom DEUS que me sustenta
e me carrega em SEUS braços...
Almir Pinto de Azevedo
Cambuci/RJ
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Rompem-se os elos na terra,
(conteste quem for capaz).
No lugar de luta e guerra
nascerão lírios da paz!
Augusto Gasparini Filho
Salto/SP
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Amor de mulher no todo
é um anjo posto de rastros;
desce mais baixo que o lodo
ou sobe acima dos astros.
Colombina
São Paulo/SP, 1882 – 1963
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Numa página, a saudade;
no verso - não tem escolha -
quase sempre a mocidade
faz parte da mesma folha!...
Domitilla Borges Beltrame
São Paulo/SP
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Essa renúncia inimiga,
que diz "não", se eu quero "sim",
é uma voz fazendo intriga
quando responde por mim!
Elisabeth Souza Cruz
Nova Friburgo/RJ
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Minha sogra não reclama
do bom trato que lhe dou;
até de filho me chama,
só não diz que filho eu sou.
Élton Carvalho
Rio de Janeiro/RJ, 1916 – 1994
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O poeta é a eterna criança
correndo atrás da ilusão,
que lhe foge, e ele não cansa
de tanto correr em vão!
Emiliano Perneta
Curitiba/PR, 1866 – 1921
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Morreu depois de uma sova,
e, como não tinha campa,
de uma orelha fez a cova
e da outra fez a tampa.
Emílio de Meneses
Curitiba/PR, 1816– 1918
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Tão suave é o teu carinho;
há nele a calma de um lago...
- Tem a ternura de um ninho
e a paz de um materno afago!
Hulda Ramos
Maringá/PR
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"Casamento... - alguém já disse -
é chegar à encruzilhada
onde acaba a criancice
e começa...a criançada..."
Izo Goldman
Porto Alegre/RS, 1932 – 2013, São Paulo/SP
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Sou da ética inimigo,
imoral na sociedade
se na mentira me abrigo
e silencio a verdade.
Jessé Nascimento
Angra dos Reis/RJ
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Surpreendente maravilha
a que agora me acontece:
Minha mãe é minha filha
na medida em que envelhece!
Jesy Barbosa
Campos/RJ, 1902 - 1987, Rio de Janeiro/RJ
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Fonte de sabedoria
que o mundo inteiro conhece,
a trova é a luz da poesia...
É a mais linda e doce prece!
Joamir Medeiros
Natal/RN
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Na insistência do carinho
de um amor que é quase incerto,
vou traçando o meu caminho
nas areias de um deserto!
Joana D'Arc da Veiga
Nova Friburgo/RJ
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No fim do túnel a luz
simboliza uma esperança;
quem a seu brilho conduz
a vitória sempre alcança.
João Batista Xavier Oliveira
Bauru/SP
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Ante o vazio que a invade,
eu penso, em meus devaneios,
que a praça sente saudade
também dos nossos passeios...
João Costa
Saquarema/RJ
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Toda noite ela regressa
em meus sonhos erradios…
Não há distância que a impeça
de estar… em meus desvarios...
João Freire Filho
Rio de Janeiro/RJ, 1941 – 2012
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Minha ventura retrata
pobre brinquedo distante;
- carrinho de velha lata,
puxado por um barbante!
Josué de Vargas Ferreira
Leopoldina/MG, 1925 - 2017, Ribeirão Preto/SP
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Cessa a luta na colina...
E Deus, ante o horror da guerra,
põe o algodão da neblina
sobre as feridas da terra.
Joubert de Araújo Silva
Cachoeiro de Itapemirim/ES, 1915 - 1993, Rio de Janeiro/RJ
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Morre o amor... E, em árduas cenas,
toda a herança que eu carrego
é a dor de ter sido apenas
um descuido do meu ego!
Manoel Cavalcante
Pau dos Ferros/RN
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Que a lei com todo o seu porte,
seja um escudo do bem...
E que a justiça do forte,
seja a do fraco também!
Mara Melinni
Caicó/RN

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Não vamos alongar prosa,
porque todo mundo vê:
a careca mais gostosa
é a careca do bebê.
Márcia Jaber
Juiz de Fora/MG
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Não te abras com teu amigo,
que ele um outro amigo tem,
e o amigo do teu amigo
possui amigos também...
Mário Quintana
Alegrete/RS, 1906 – 1994, Porto Alegre/RS
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Nos momentos de emoção,
quebro as regras que me imponho
e deixo que o coração
viaje ao mundo do sonho.
Marisa Vieira Olivaes
Porto Alegre/RS
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Mesmo que um poeta morra,
ele deixa a sua herança:
um verso seu que socorra
quem já perdeu a esperança!
Plácido Ferreira do Amaral Jr.
Caicó/RN
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Pelas manhãs vou buscando
minha esperança perdida...
Há sempre um sonho vagando
nas alvoradas da vida!
Professor Garcia
Caicó/RN
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Acendo estrelas do nada
com meu condão de magia,
derramo luzes na estrada
com o farol da poesia.
Raul Poli
Coronel Pilar/RS, 1946 – 2004, Caxias do Sul/RS
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A tristeza em minha casa
está num quarto vazio:
de dia. a saudade abrasa,
à noite, mata de frio...
Roberto Pinheiro Acruche
Sâo Francisco de itabapoana/RJ
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Mesmo quando se fracassa
e a vida é um mar de incerteza,
a esperança, embora escassa,
é sempre uma vela acesa!
Roberto Resende Vilela
Pouso Alegre/MG
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Tabagista de pijama,
distraído e matusquela...
Jogou "pituca" na cama
e se atirou da janela!
Roberto Tchepelentyky
São Paulo/SP
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Nosso encontro... o beijo a medo…
a carícia fugidia…
- Nosso amor era segredo,
mas, todo mundo sabia!…
Rodolpho Abbud
Nova Friburgo/RJ, 1926 – 2013
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Fim do meu rumo... Eu grisalho...
Dos netos, entre os carinhos,
pareço um velho espantalho
cercado de passarinhos!
Romeu Gonçalves da Silva
Juiz de Fora/MG, 1914 – 1984, Rio de Janeiro/RJ
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Os animais hoje em dia
têm mais sensibilidade:
vivem mais em harmonia
que essa insana humanidade...
Ronnaldo Andrade
São Paulo/SP
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A atitude petulante
que eu lia na sua face
foi de fato relevante...
Destruiu nosso enlace!
Sá de Carvalho
Angra dos Reis/RJ
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Detalhes, quantos e quantos,
vão nossas vidas marcando.
Mas nenhum, em meio a tantos,
dói mais que um lenço acenando...
Sandro Pereira Rebel
Niterói/RJ
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Meu palhacinho de pano,
quantas vezes te surrei!
Hoje a vida e o desengano
dão-me as surras que eu te dei!
Sarah Mariany Kanter
São Paulo/SP
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Quando uma vida se passa
sem virtudes... sem pecados...
é como festa sem graça,
vazia de convidados!
Sebas Sundfeld
Pirassununga/SP, 1924 – 2015, Tambaú/SP
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De filigranas bordadas,
brilham no céu as estrelas
como joias lapidadas,
que o luar vem acendê-las.
Sônia Maria Sobreira da Silva
Rio de Janeiro/RJ
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Foi para o campo o migrante,
sonhador, plantou, colheu...
E agora é parte integrante
daquele chão que o acolheu,
Sônia Regina Rocha Rodrigues
Santos/SP
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Não sei se tenho alegria
ou se tenho um desprazer,
mas minha alma se arrepia,
à noite, ao escurecer.
Talita Batista
Campos dos Goytacazes/RJ
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Rica e doce língua minha
feita de arrulhos e brados,
és mãe, fadista e rainha
cuja voz canta meus fados!
Thalma Tavares
São Simão/SP
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É noite... a cama arrumada...
o rádio de pilha mudo...
Sua foto... e, nesse "nada",
a sua presença... em tudo!
Therezinha Dieguez Brisolla
São Paulo/SP
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São três os símbolos santos
de um drama sem paralelo,
molhados de sangue e prantos:
a Cruz, o Cravo e o Martelo...
Vera Vargas
Curitiba/PR, 1922 - 2000
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Euforia, minha gente,
faz inveja ao coração,
pois sempre que alguém a sente,
vem logo a desilusão.
Verlaine Terres
Gravataí/RS

Leandro Bertoldo Silva (O silêncio mais gostoso de ouvir)

Certa vez, em um texto de Rubem Alves, li o seguinte: “Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de escutatória.” E mais adiante ele parafraseia Alberto Caeiro, um dos heterônimos de Fernando Pessoa, e diz: “Não é bastante ter ouvidos para se ouvir o que é dito. É preciso também que haja silêncio dentro da alma”. Fiquei pensativo. Não porque aquilo não fazia sentido para mim; pelo contrário, fazia muito, muito mesmo. Lembrei-me, inclusive, de uma experiência vivida e é a ela que recorro.

Sou uma pessoa muito ligada à espiritualidade à minha maneira... Gosto de ler, meditar, fazer minhas orações e práticas diárias, mas, confesso, não sou muito de ir a Igrejas, embora as respeite profundamente. Sou de enxergar todos os lugares e ocasiões como perfeitos para uma imersão profunda com nós mesmos — e isso inclui meu travesseiro — e acredito que, se somos partículas do todo, como a gota é de um rio, somos o todo e, portanto, não necessitamos de momentos e locais propícios ao encontro, embora, repito: respeito quem pense o contrário.

Um dia, porém, estava a passar em frente uma Igreja e, na ocasião, até um pouco atormentado, triste mesmo. Ao ver a porta aberta, senti uma imensa vontade de entrar naquele templo e assim fiz, com tranquilidade e a mais absoluta simplicidade. Sentei em um dos enormes bancos de madeira e, para a minha surpresa, não havia absolutamente ninguém lá dentro. Eu estava completamente só. Não poderia ser melhor, pois todo o meu desejo era estar em minha própria presença sem “conselhos” e sermões de quem, fosse um padre, ministro ou pastor, jamais saberia dos meandros dos meus propósitos e eu não estava disposto a dizer. Desculpe a sinceridade, mas naquele momento a minha conversa era mesmo com o “Dono da casa”.

Imerso aos meus questionamentos e com tantas coisas a dizer fechei os olhos, e... Não me veio nada que eu pudesse verbalizar. Até tentei, forcei, busquei uma sentença, uma palavra ao menos e nada. Falta de inspiração ou de educação? Não sei... Resignei-me. Ao perceber meu insucesso, não quis e nem pretendia maquiar o meu sentimento e mantive disposto a aceitar a minha dor nua e crua em silêncio. Embora eu estivesse calado, minha cabeça era um tumulto de vozes, mas naquele momento, curiosamente, se aquietava. Estaria a ser escutado? Certamente não foi por aquela única senhora ao entrar furtivamente por uma portinhola e sair por outra, quase como um fantasma a soar alto o batido não de correntes, mas de suas sandálias pelo interior da nave, fazendo não sei o quê e sequer prestou atenção em minha presença. Sozinho estava e sozinho fiquei. As pessoas simplesmente passam sem perceber e às vezes é o melhor que podem fazer por nós.

Não sei quanto tempo fiquei ali. Perdi os ponteiros das horas. Mas digo efetivamente, excetuando os passos da senhora de há pouco, ter sido o silêncio mais delicioso que eu já ouvi em toda a minha vida. Lá dentro, ao usufruir do inexplicável, senti o quanto precisava dele e não imaginava o tanto que me acolhia como um acalento de mãe, um colo de pai, um afago de avó. Ao sair já não era mais a mesma pessoa de outrora, mas alguém a celebrar um encontro. Foi quando disse (finalmente consegui) ao Ilustríssimo Anfitrião sem mesmo vê-lo, mas certamente senti-lo: "Por favor, entenda esse silêncio como a minha oração". Tenho comigo que Ele entendeu, porque eu compreendi perfeitamente...

Fonte:
Texto do site Árvore das Letras, enviado pelo autor.

domingo, 22 de maio de 2022

Isabel Furini (Poema 26) O silêncio do autista

 

Aparecido Raimundo de Souza (Pequeno tratado sobre o amor)

MEU CARO LEITOR AMIGO, uma pergunta surge neste momento: Você já teve ou tem, vive ou viveu, um amor muito profundo e apaixonado, um amor cego, um amor arrebatador que tenha sido, ou que seja o seu pensamento, a sua alegria constante de todos os momentos, se transformando, por assim dizer, na sua única razão séria de ser e de se manter vivo?

Cá entre nós, não precisa responder. Não importa! O que conta, na verdade, o importante se traduz apenas e tão somente num detalhe quase imperceptível. Se você está vivendo um amor, se o tem, de verdade, ao alcance das mãos, conserve-o à sete chaves. Tranque-o bem, num lugar secreto, não no sentido de fazê-lo prisioneiro. Jamais!

Pense. Raciocine friamente. O amor não se aldrava, não se encarcera. Apenas se vive. Pois bem! Oculte a sua chama carinhosamente dentro do seu “mais íntimo” e a sua vida será um mar de rosas num oceano de águas eternas.

Naturalmente o amigo já tentou explicar às pessoas que o cercam, por que esteve ou está apaixonado? Por que o dia inteiro, sem um dedinho de folga só faz pensar na pessoa amada, e não a afasta um minuto sequer da sua vida, ou da sua mente?

Por qual motivo a pessoa que está a seu lado é tão importante e indispensável? Também não é relevante trazer à público! O que faz a roda da alegria girar, a distinção, aliás, todo o desvario e a exaltação é que você continue assim: amando, gostando, se entregando, se renovando, se remoçando cada vez mais alucinadamente a cada minuto, a cada segundo... mais e mais... e mais... perdidamente...

O Amor e o Amar, creia, leitor amigo, são mundos diferentes. Contudo, perceba, apesar deste particular, ambos se entrelaçam entre si num amplexo único. E, por ser assim, só o coração apaixonado consegue manter a harmonia da Felicidade plena em toda a sua Formosura. Cultive sem pestanejar, sem esfuzilar este amor. Cuide dele com carinho e afeição, estima e confiança, requinte e cordialidade.

Não deixe que se perca nas raias do tormento, do descalabro, da adversidade. Lute com tenacidade para que ele nunca bata de frente com a infelicidade. A infelicidade, às vezes, é um caminho bonito, de via larga, cheio de paisagens deslumbrantes. Todavia, sem volta. Não permita que nada o manche ou deteriore. Uma vez alterado, viciado, invertido, o final se fará imediato e catastrófico.

Depois que se perde, que se esvai, que se esfria, um amor, por mais grandioso e opulento que seja, ou tenha sido, a sua vida cotidiana nunca mais será ou retrocederá ao como se fazia antes de ser bancarrotado.

As dicas para mantê-lo a todo vapor, são bucólicas e simples: saiba vivenciar o amor da sua vida com a solenidade dos deuses e o carinho dos apaixonados. Creia: o amor é infinito, vitalício, constante, perpétuo, duradouro, e tudo merece.

Via outra, mas igual, não deixe que ele perca a força, a robustez, o Poder Misterioso de Transformar a Capacidade cabalística de mudar a sua vida, de soberanear seu hoje, ascender seu agora e edificar o seu amanhã. O amor opera júbilos e regalos. Faz prazeres e maravilhas acontecerem.

O amor, em resumo, renova, efetiva milagres, cura feridas, transforma, arrebata, modifica e não só modifica: perpetua o nosso Universo Particular, compondo, dentro dele, um PARAÍSO ÚNICO E GRACIOSAMENTE IMPORTANTE AOS OLHOS DO PAI MAIOR.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Luiz Gonzaga da Silva (Trova e Cidadania) – 23


SECA NORDESTINA


A seca nordestina é inevitavelmente associada ao sofrimento e à desesperança.

Após causar desencantos
e nos fazer peregrinos,
a seca faz chover prantos
nos olhos dos nordestinos...
Ademar Macedo (RN)
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O sertão está molhado...
Não de chuva... mas do pranto
desse povo abandonado
que a seca castiga tanto!...
Gonzaga da Silva (RN)
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Fugindo à seca que o vence,
busca pousada e guarida
o sertanejo cearense,
pelos caminhos da vida...
João Sobreira (CE)
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No sertão, se a chuva some,
a seca traz desencanto:
resta a palma para a fome,
para a sede resta o pranto.
Hildemar de Araújo Costa (BA)
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Sentindo o peso da mágoa,
o camponês baixa a fronte:
nos seus olhos tem mais água
do que nas veias da fonte!...
Manoel Cavalcante (RN)
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Que quadro desolador
na caatinga do sertão:
- chora o homem a sua dor
de pobreza no seu chão.
Francisco Bezerra (RN)
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Desolação, fome, mágoa.
Apenas o sol a pino,
restaram dois pingos d'água
nos olhos do nordestino.
Orlando Brito (MA)
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Se a seca nos traz a mágoa,
seca total não existe:
sempre cai um pingo d'água
dos olhos de um povo triste.
Aprygio Nogueira (MG)
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A terra inteira secou!...
E a dor me fez sofrer tanto,
que quando a chuva voltou,
tinha secado o meu pranto!
Professor Garcia (RN)
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Quando o sol se faz mais forte
e a chuva responde... não!
A silhueta da morte
se espraia pelo sertão.
Francisco José Pessoa (CE)
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A seca nordestina tem gerado o fenômeno do retirante. Não há cena mais triste do que a do sertanejo partindo da sua terra para não morrer de fome e sede nos anos em que a seca assola o Nordeste brasileiro.

Lá se vão os retirantes!
Deixam seus campos, seus bois...
- O coração morre antes,
o corpo morre depois!…
Aparício Fernandes (RJ)
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Quando parte o retirante,
em busca de outra paragem,
a miséria em seu semblante
é toda a sua bagagem.
Luiz Rabelo (RN)
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Os hirtos mandacarus,
espalhados no sertão,
lembram tristes corpos nus
de retirantes sem pão...
Luiz Rabelo (RN)
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Ao migrante maltrapilho,
que cruza o adusto sertão,
só resta, ao morrer-lhe o filho,
o consolo da oração...
Santiago Vasques Filho (CE)
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Se é pena ver o semblante
de um Nordeste sem matriz,
mais pena é ver retirante
dentro do próprio País!
Sebastião Soares (RN)
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A pior seca nordestina documentada foi a de 1915, retratada no romance de Rachel de Queiroz, O Quinze.

E se não fosse uma raiz de mucuna arrancada aqui e além, ou alguma batata-branca que a seca ensina a comer, teriam ficado todos pelo caminho, nessas estradas de barro ruivo, semeado de pedras, por onde eles trotavam trôpegos se arrastando e gemendo [...].


Pela seca castigado,
o nordestino sofrido
já está acostumado
a viver desassistido.
Francisco Mota (RN)
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Nas extensões do sertão,
este drama secular
da seca sem solução
continua a envergonhar.
Francisco Bezerra (RN)
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A seca em nosso sertão
tem sinônimo de "sacola":
- ao invés de solução
o que nos mandam é esmola...
Paulo Roberto da Silva (RN)
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O que seria esperado e razoável é que as chamadas autoridades brasileiras executassem algum projeto sério para minimizar as consequências da seca. Como este projeto não existe, o sertanejo apela à providência divina.

Quando a seca dilacera
a paisagem nordestina,
todo sertanejo apela
à providência divina.
Luciano Marinho (RN)
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Triste, ajoelhada, chora
a família nordestina,
pra que a seca vá embora
por intervenção divina.
Hélio Alexandre Silveira e Souza (RN)
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Ao ver a morte de frente,
sem esperança de chuva,
todo o sertão chora e sente
a terra ficar viúva...
Raimundo Andrade de Paiva (CE)
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Obrigado a conviver com a seca o nordestino sabe dar valor aos menores sinais de chuva. Esta é vista como uma verdadeira bênção:

As chuvas que vêm caindo
no mês de junho, tão finas,
transformam, como sorrindo,
as plantações nordestinas.
Antídio de Azevedo (RN)
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A chuva traz esperança
ao nordestino sofrido
que, ao ver comida e bonança,
a Deus ora... agradecido.
Joamir Medeiros (RN)
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Pela ameaça da fome,
quando a seca teima e avança,
a chuva ganha outro nome,
passa a chamar-se... esperança!
Héron Patrício (SP)
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O agricultor, na incerteza,
roga por chuva ao além...
Chora quando a natureza
responde e chora também.
Hélio Pedro Souza (RN)
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Meu sertão só se refaz,
quando a chuva, volta e meia,
traz, em seus pingos, a paz
e põe seus rastros na areia!
Professor Garcia (RN)
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Se a chuva cai no sertão
deste solo nordestino,
o inverno se faz canção
e tudo mais é divino...
João Vasconcelos (CE)
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A chuva é bênção divina
sobre o sertão sofredor,
mesmo uma simples neblina
faz eclodir uma flor.
Gonzaga da Silva (RN)
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Às vezes acontece também o contrário, quando a chuva em excesso leva à destruição, atingindo principalmente os habitantes das periferias das cidades e os ribeirinhos.

O meu sofrido Nordeste
tem castigo permanente,
é depois da seca agreste
que a chuva produz enchente.
Hildemar de Araújo Costa (BA)
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É água o singelo nome
da preciosa matéria
que, se escassa, gera a fome,
se excede, gera miséria...
Alba Helena Correa (RJ)
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O nosso amado sertão,
tão sofrido e castigado,
sofre agora a maldição
de um inverno exagerado.
Ana Maria Nascimento (CE)
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O simbolismo do mandacaru
O mandacaru [Cereus jamacaru), também conhecido como cardeiro ou cacto, é planta típica da caatinga, símbolo de resistência do Nordeste brasileiro. Já foi inspiração de poetas, celebrizado no Xote das meninas, de Zé Dantas e Luiz Gonzaga; Mandacaru quando fulora na seca é o sinal que a chuva chega no sertão [...]. O trovador também se inspira em seu simbolismo:


Se o mandacaru floresce
nos longes do meu torrão,
a nossa esperança cresce
de ver chuva no sertão!...
Gonzaga da Silva (RN)
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Mandacaru é Nordeste
na sua rude canção,
em que o homem se reveste
das asperezas do chão.
Francisco Bezerra (RN)
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Mandacaru cismarento,
sentinela do sertão,
testemunhas o lamento
de um povo a estender a mão!
Francisco Bezerra (RN)
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Quando o inverno a terra veste,
uma flor ao sol reluz:
é o mandacaru do agreste
que abre seus braços em cruz!
Fernando Câncio (CE)
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O sertanejo resiste, tal como o mandacaru.

Sertanejo, bravo e forte,
enfrenta a seca e os horrores
sem temer a própria morte,
vencendo os próprios temores!
Joamir Medeiros (RN)
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A força do sertanejo
é feita de sofrimento,
chega o tempo, eu antevejo,
de resgatar seu talento.
Gonzaga da Silva (RN)
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A força do sertanejo
pelo seu trabalho medra:
– É um trovão em arpejo
em cada cerca de pedra!
Gilda Moura (RN)
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Por mais que a seca lhe creste,
como resposta, o sertão,
queima-se em incenso agreste,
a clamar chuva em seu chão.
Ubiratan Queiroz (RN)
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Fonte:
Luiz Gonzaga da Silva (org.). Trova e Cidadania. Natal/RN, abril de 2019.
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