terça-feira, 7 de junho de 2022

Hans Christian Andersen (O Porco de bronze)


Na cidade de Florença, não muito longe da Piazza del Granduca, fica uma pequena travessa. Creio que lhe dão o nome de Porta Rosa. Ali, em uma espécie de mercado de verduras, está um porco de bronze, artisticamente trabalhado. Escorre-lhe da boca um fio de água clara e fresca, e o animal, com a idade, foi tomando uma cor negra. Só o focinho brilha ainda, como se fosse polido, e de fato o é: centenas de crianças e de lazzaroni (mendigos) o seguram com as mãos, enquanto unem a boca ao focinho do animal, para beber. E é um quadro realmente belo o que apresenta aquele animal tão talhado, abraçado por um bonito menino seminu, que lhe roça pelo focinho os lábios frescos.

Quem visita Florença encontra facilmente aquele sítio. Basta perguntar a qualquer mendigo onde fica o porco de bronze e achá-lo-á logo.

Era à boca da noite, já no fim do inverno. Estavam as montanhas cobertas de neve, mas havia luar; e a luz do luar italiano vale tanto ou mais que a de um dia nublado do inverno setentrional. Lá o ar cintila e nos eleva da terra, ao passo que na Norte a fria coberta de cinza que pesa sobre nós, aperta-nos contra a terra fria e úmida, que um dia há de pesar também sobre o nosso caixão.

No jardim do castelo do grão-duque estivera sentado o dia inteiro um menininho todo esfarrapado; bem podia ele servir de símbolo da Itália: bonito, sorridente , e contudo sofria. Tinha fome e sede, mas ninguém lhe dava esmola; e ao escurecer, à hora de fechar o jardim o porteiro enxotou-o. Ficou ele muito tempo parado, absorto em cismas, na ponte que atravessava o Arno, olhando para as estrelas que cintilavam na água , aquém da suntuosa Ponte Della Trinità.

Dali seguiu o caminho que vai dar ao porco de bronze. Meio ajoelhado, cingiu-lhe o pescoço com os braços e, encostando a boca no focinho reluzente, bebeu a grandes sorvos  a água fresca. Ao pé estavam algumas folhas de alface e castanhas: era seu jantar. Além dele não havia ninguém na rua: pertencia-lhe toda, portanto. Confiante o menino sentou-se nas costas do porco, curvou-se para a frente, descansando a cabeça crespa sobre  a  do animal. E, sem dar tino do que fazia, adormeceu.

Era agora meia-noite. O porco de bronze mexeu-se. O menino ouviu distintamente estas palavras:

- Agora, menininho, segura-te bem, porque vou correr!

E lá se foi o porco correndo, com ele às costas. Foi um passeio maravilhoso! Primeiramente chegaram à Piazza del Granduca, e o cavalo de bronze, que a estátua do duque cavalga, relinchou fortemente. Os brasões multicores da antiga Casa Do Conselho Municipal pareciam quadros transparentes. O David de Miguel Angelo brandia a funda. E havia estranha agitação. Os grupos de bronze que representam Perseu e o Rapto das Sabinas pareciam vivos: erguia-se deles um brado de medo mortal, que ecoava por toda a praça.

Junto ao Palazzo degli Uffizi, sob as arcadas, onde a aristocracia costuma reunir-se para os divertimentos carnavalescos, o porco de bronze estacou. Depois, disse ao menino:

- Segura-te bem! Segura-te bem, pois vamos subir a escada!

E o menino, meio assustado, meio alegre, nada dizia.

Entraram em uma extensa galeria, onde ele já estivera, cujas paredes estavam cheias de pinturas. Ali se viam bustos e estátuas, banhadas em uma luz esplêndida, como a luz do claro dia. Mas o mais lindo foi quando se abriu a porta de uma das salas laterais.O menino já conhecia toda a magnificência que ali reinava, mas nessa noite via as coisas no auge do esplendor.

Ali estava, de pé, uma bela mulher sem vestes, tão bela como a natureza e o maior dos mestres da escultura a poderiam plasmar. Aos seus suaves movimentos, delfins saltitantes cercavam-lhe os pés; nos seus olhos fulgia a imortalidade. O mundo chama-a Vênus de Médici. Aos seus lados, estavam estátuas de mármore inteiramente impregnados da vida do espírito. Eram homens nus, maravilhosos; um deles afiava a espada e chamam-no de o Afiador; os gladiadores em luta formavam  outro grupo. E aquela espada  que se afiava, e aquela luta que se tratava - era tudo pela deusa da beleza.

Tanto esplendor deslumbrou o menino. As paredes resplandeciam de tantas cores. Tudo ali era vida e movimento. Mas nenhum dos quadros ousou sair inteiramente da moldura. A própria deusa da beleza, os gladiadores e o afiador permaneciam nos seus lugares, imobilizados pela glória irradiada da Madona, de Jesus e de São João. As imagens dos santos já não eram mais imagens: eram os próprios santos.

Que esplendor e que beleza, de sala em sala! O menino tudo contemplava, pois o porco de bronze ia andando passo a passo, através de toda aquela magnífica pompa. Uma visão substituía outra visão. Mas um único quadro gravou-se profundamente na alma do menino, e isso sobretudo por causa das crianças alegre e felizes que nele apareciam.

É possível que muita gente passe por aquele quadro sem lhe prestar atenção. E contudo, encerra ele um tesouro de poesia: representa Cristo, que desceu ao limbo. Aqueles que o rodeiam não são os condenados, mas os pagãos. Pintou-o florentino Angiolo Bronzino. O que nele aparece de mais belo é a expressão da fisionomia das crianças; a confiança plena de que entrarão no céu. Duas meninas já se abraçaram; um menino estende a mão a outro, que está mais abaixo, apontando com o dedo para si mesmo, como se dissesse: "Eu entrarei no céu!" Os mais velhos mostram uma atitude de incerteza; esperam e curvam-se diante  do Salvador em humilde adoração.

O olhar do menino fixou-se naquele quadro mais tempo do que nos outros. O porco de bronze permanecia imóvel. Ouviu-se então um leve suspiro. Vinha do quadro, ou saíra do peito do animal? O menino ergue as mãos para aquelas crianças risonhas; mas nesse momento o animal levou-o, a correr, para o vestíbulo aberto.

- Muito agradecido! Abençoado sejas, maravilhoso animal! - disse o menino, acariciando o porco de bronze que, com ele às costas, ia pela escada abaixo.

- Abençoado sejas tu! - respondeu o porco. - Prestei-te um serviço e tu me fizeste outro, pois é somente com uma criança inocente no dorso que adquiro forças para correr. Vês? Posso entrar até no nimbo dos raios da lâmpada que arde em frente da imagem da Madona: só não posso entrar na igreja. Mas enquanto estás comigo posso deitar um olhar pela porta aberta. Não desças das minhas costas! Senão ficarei como morto, como vês o dia inteiro, na Porta Rosa.

- Não, ficarei contigo, meu querido porco! - disse a criança.

E lá se foram correndo a bom correr, pelas ruas de  Florença; chegaram assim à praça, em frente à igreja da Santa Croce.

Repentinamente abriu-se a porta e a luz dos círios do altar estendeu-se até a praça deserta.

De um monumento sepulcral, na nave lateral esquerda, irradiou um esplendor maravilhoso. Eram milhares de estrelas móveis que circundavam um túmulo, formando uma auréola: era o túmulo , de Galileu. É um monumento simples, mas a escada vermelha que fica ao fundo tem muita significação: é o símbolo da arte, pois indica um caminho que, por uma escada de brasas, conduz ao céu. Todos os profetas do espírito buscam o céu, como profetas Elias.

Na nave da direita, as estátuas , dentro de seus ricos sarcófagos, pareciam dotadas de vida. Lá estava Miguel Ângelo, mais além Dante , coroado de louro: Alfieri, Maquiavel: jazem ali, lado a lado, os grandes homens que são orgulho da Itália. É uma igreja magnífica, muito mais bela, ainda que menor do que a catedral de mármore de Florença.

Parecia que aquelas vestes de pedra tinham movimento, e que os vultos sublimes iam erguendo a cabeça, cada vez mais alto, mais alto , para contemplar, por entre os sons da música e dos cânticos, o radiante altar multicor, onde os meninos vestidos de branco agitam os turíbulos de ouro. E o aroma arrebatador encheu a igreja, transbordando para a vasta praça.

Mas quando o menino estendeu a mão para aquele esplendor, o porco deitou de novo a correr e ele teve de se segurar com toda a firmeza. Soprava-lhe o vento nos ouvidos e ainda ouviu o rangido dos gonzos da porta, que se fechava. Naquele mesmo instante pareceu-lhe que perdia o conhecimento; um frio glacial despertou-o e ele abriu os olhos.

Era já dia. Estava ainda deitado no dorso do porco de bronze, mas escorregara um pouco por sobre o animal. que ainda lá estava no mesmo lugar em que costuma repousar, na Rua Porta Rosa.

Ao lembrar-se daquela a quem chamava mãe, e que na véspera o mandara sair em busca de dinheiro, encheu-se o menino de terror. Não tinha nada: só fome e sede! Abraçou ainda uma vez o pescoço do porco de bronze e beijou-lhe o focinho. E com um gesto de adeus foi-se dali para uma das vielas mais estreitas, que mal dava passagem a burro carregado. Chegou a uma grande porta entreaberta; subiu a escada de pedra, entre paredes sujas; servia de corrimão uma corda. Chegou a uma galeria aberta, onde se via farrapos estendidos. Dali outra escada levava ao pátio, onde havia um poço, do qual partiam cabos de ferro para todos os andares da casa. E os baldes oscilavam no ar, enquanto a roldana guinchava, derramando a água sobre o pátio. Outra escada velhíssima levava para cima.

Dois marinheiros russos, muito alegres, que iam descendo, aos pinotes, quase deitaram abaixo o pobre menino. Atrás deles apareceu uma mulher, já não muito moça, mas cheia de vida; seus cabelos eram negros e abundantes.

- Que trazes? - perguntou ao menino.

- Não fiques zangada! - suplicou ele. - Não ganhei nada, nada!

E segurou o vestido da mãe, fazendo menção de beijá-lo.

Entraram num quarto pequenino, um quarto que nem quero descrever. Direi apenas que havia lá uma panela de alças, cheia de brasas, daquelas a que chamam marito. A mulher pegou nela, para aquecer os dedos, e dando uma cotovelada no menino, disse-lhe:

- É claro que trouxeste dinheiro.

A criança pôs-se a chorar e a mulher deu-lhe pontapés e mais pontapés, até fazê-lo gritar.

- Cala a boca, senão quebro-te a cabeça, gritalhão!

E, enquanto dizia, ia agitando o fogareiro. Com um grito de terror, o menino abaixou-se; nesse momento ia entrando a vizinha, carregando um marito.

- Felicita! Que fazes à criança?

- A criança é minha. Posso matá-la se quiser - e a ti também, Giannina!

E brandia o fogareiro, enquanto a outra levantava o seu para se defender. As panelas entrechocaram-se com tanta violência que voaram pelo quarto os cacos , cinzas e faíscas, Mas o menino esgueirou-se pela porta, atravessou o pátio e saiu para a rua. Correu, correu, até perder o fôlego. Parou diante da igreja, cuja grande porte lhe abrira à noite, e entrou. Lá dentro tudo resplandecia. Ajoelhou-se junto do primeiro túmulo à direita, o de Miguel Ângelo e desatou a chorar.

Entrava e saía gente. Terminou a missa. Ninguém deu pela presença da criança, a não ser um um burguês idoso, que parou e o olhou um instante. Depois foi andando, como os outros.

Torturado pela fome e pela sede, o menino sentia-se doente; parecia-lhe que ia desmaiar. Foi-se arrastando para um canto entre os monumentos de mármore, e ali pegou no sono. Já à tarde acordou-o um leve puxão. Viu então, sobressaltado, que estava ao seu lado aquele mesmo burguês idoso.

- Que é isto? Estás doente? Onde moras? Passaste o  dia inteiro aqui?

Foram essas algumas das perguntas que o velho fez. Respondeu-lhe o menino e o velho levou-o consigo para a sua casinha, que ficava perto, em uma travessa. Entraram em  uma oficina  de luveiro, onde estava uma mulher costurando diligentemente. Um pequeno lulu da Pomerânia, tosquiado tão rente que se via a pele rosada, saltou para cima da mesa e foi parar em frente ao menino.

- As almas inocentes se reconhecem - disse a mulher, acariciando a cachorrinha e a criança.

Deu-lhe aquela boa gente um prato de comida, e depois que comeu e bebeu disseram-lhe que podia passar a noite ali. Deram-lhe uma caminha pobre, mas que para ele, que tantas vezes dormira no frio chão de lajes, representava luxo principesco. E o rico sono dormiu, sonhando com os belos quadros e com o porco  de bronze!

No dia seguinte, de manhã, o pai Giuseppe saiu. A pobre criança não se alegrou nada com essa saída, pois sabia que dela resultaria a sua volta para o poder da mãe. Abraçou-se então com a cachorrinha brincalhona, e a mulher olhava para ambos com bondade.

Que resposta teria trazido o pai Giuseppe?

Falou demoradamente com a mulher, que fez sinal de assentimento com a cabeça, acariciando o menino. Depois ela disse:

- É uma criança magnífica, que pode  vir a ser um luveiro tão bom como  tu foste. Tem os dedos delicados e flexíveis: Nossa Senhora destinou-o para luveiro.

O menino ficou com eles e a  mulher ensinou-lhe a costura. Comia e dormia bem; tornou-se uma criança alegre e mexia com Belíssima - a cachorrinha - até que a mulher, ameaçando-o com o dedo, zangou-se um dia e ralhou com ele.

O menino tomou aquilo a sério. Ficou pensativo no seu cubículo, que dava para a rua, onde secavam peles. As janelas eram barradas por grossas varas de ferro. Ele não pode conciliar o sono: vinha-lhe sempre à ideia o porco de bronze. De repente ouviu um ruído que vinha de fora: "Claque, claque, claque!" Era um porco, não havia  dúvida! Correu à janela, mas nada viu: acabaram-se o ruído.

- Ajuda o senhor a levar a caixa de tintas. - disse no dia seguinte a luveira ao menino.

O moço vizinho, que era pintor, ia passando; levava na mão a caixa e uma grande tela enrolada. O pequeno pegou na caixa e acompanhou o moço. Escolheu este o mesmo caminho da galeria e subiram a mesma escada que o menino conhecia tão bem, desde aquela noite em que montara o porco de bronze. Conhecia também as estátuas e os quadros, a bela. Vênus de mármore e aquela outra, que vivia em cores. E tornou a ver a Madona, Jesus e São João.

Pararam diante do quadro de Bronzino, em que se vê Cristo no limbo e as crianças sorrindo em roda dele, na doce expectativa do céu. E o pobrezinho também sorriu.

- Agora podes ir para casa. - disse o pintor, quando viu que o menino ficara a seu lado, enquanto ia armando o cavalete.

- O senhor dá-me licença de olhar enquanto pinta? - perguntou a criança. - Posso ver como é que prende a tela no quadro?

- Ainda não vou pintar. - respondeu o moço, tirando o crayon da caixa.

Movia-se rapidamente a mão; tomando a olho as medidas do quadro grande, começou o trabalho. E, se bem que apenas aparecesse um traço muito fino, foi surgindo o Cristo, a pairar, bem como se via no quadro colorido.

- Mas vai-te embora, afinal! - disse o pintor.

E a passos silenciosos, lá foi indo o menino para casa; sentou-se, para aprender...a coser luvas.

Mas o dia inteiro seus pensamentos vagaram pela galeria de quadros. Daí resultou que picou o dedo com a agulha, mostrando-se desajeitado. Mas em compensação não buliu mais com a Belíssima.

Ao escurecer, vendo aberto o portão, saiu . Ainda fazia frio, mas o brilho das estrelas era belo e alegre. O menino andou peregrinando pelas ruas já desertas; achou-se em frente ao porco de bronze; curvou-se para lhe beijar o focinho polido e sentou no seu dorso.

- Ó animal abençoado! Quanta  saudade tenho tido de ti! Hoje vamos dar um passeio. Mas o porco de bronze permaneceu imóvel, a brotar água fresca do focinho O menino, escarranchado sobre o animal, sentiu que lhe puxavam o casaco. Era a Belíssima! A pequena Belíssima, de pelo tosquiado, ladrando como se dissesse:

- Olha, vê que também eu estou aqui! Por que estás neste lugar?

Um dragão, vomitando chamas, não teria espantado mais o menino do que ver a cachorrinha ali. Imagine! A Belíssima na rua , sem estar vestida, como costumava dizer a mulher! Que iria resultar daquilo? A cachorrinha nunca saía no inverno sem estar abrigada em uma pele de ovelha, cortada e cosida especialmente para ela. A pele, toda guarnecida de guizos e laçarotes, era presa do lado de baixo e no pescoço por meio de fitas vermelhas. A cachorrinha parecia um cabrito, quando saía na rua, sem estar vestida! Que iria acontecer agora? Foram-se-lhe todas as fantasias. o menino deu mais um beijo no porco de bronze e pegou a cachorrinha, que tiritava; saiu então a correr com ela nos braços.

- Que levas aí, fugindo assim? - gritaram dois soldados da guarda-civil, no caminho.

A cachorrinha ladrou, furiosa! Tirando-a do menino, perguntaram ainda:

- Onde roubaste esta cachorrinha tão bonita?

E como o menino pediu-lhes, chorando, que lha devolvessem, declararam:

- Pois se não a roubaste, podes avisar em casa que a procurem na Delegacia.

Deram-lhe o endereço e foram-se, levando Belíssima.

E foi uma coisa horrível! O menino não sabia se devia afogar-se no Arno ou se tornava à casa e confessava tudo. Com certeza iam matá-lo! Por fim decidiu:

- Mas era melhor que me matassem mesmo! Eu quero morrer, pois assim irei para perto de Jesus e de Nossa Senhora...

E por esse motivo foi que voltou: para ser morto.

Encontrou o portão fechado e não pode alcançar a aldrava. Não aparecia ninguém na rua. Afinal achou uma pedra e com ela batendo o portão, atroadoramente. De dentro perguntaram:

- Quem é?

- Sou eu! A Belíssima fugiu. Abram e matem-me! Grande foi o susto na casa, mas quem se horrorizou foi a senhora, pois olhando imediatamente para a parede, para o lugar onde estava habitualmente pendurada a roupa da cachorrinha, viu que lá estava a pele de ovelha.

- A Belíssima... a Delegacia! - exclamou a mulher. - Ó menino malvado! Como foi que levaste de casa? Agora ela vai morrer de frio... Um animal tão mimoso no meio daqueles soldados!

Teve o marido de sair imediatamente; a mulher lamentava-se, o menino chorava, Reuniram-se todos os moradores da casa, entre eles estava o pintor, que chamou o menino e o colocou entre os joelhos para interrogá-lo. Foi somente aos trancos que conseguiu apanhar todas a história do porco de bronze e da galeria - história que lhe pareceu um tanto fantástica. Consolou o menino e procurou sossegar a velha. Mas esta não se deu por satisfeita enquanto não chegou o pai Giuseppe com a Belíssima, que estivera no meio dos soldados! Grande foi então a alegria. O pintor acariciou o menino e deu-lhe um punhado de desenhos.

Que coisas maravilhosas! Quantas cabeças engraçadas! E lá estavam também o porco de bronze. Não se podia imaginar nada mais lindo. Fora fixado no papel mediante muito poucas linhas, e ali estava também esboçada a casa que lhe ficava por detrás.

Ah! Quem soubesse desenhar e pintar seria capaz de reunir ao redor de si o mundo inteiro!

No primeiro momento em que  se viu só, no dia seguinte, o menino pegou no lápis e procurou copiar o esboço do porco de bronze no lado em branco de um dos desenhos. Conseguiu-o, mas o desenho saiu meio  torto e desajeitado; uma perna era muito grossa, outra muito fina. Mas ainda assim, reconhecia-se o porco e o menino exultou de alegria. observou que o lápis não se movia exatamente como era preciso, mas no dia seguinte surgiu outro porco de bronze ao lado do primeiro e cem vezes melhor, e o terceiro já saiu tão bom que todo o mundo pode identificá-lo.

Mas a costura das luvas ia piorando e os recados pela cidade eram feitos com muita lentidão. O porco de bronze ensinou-lhe que todas as figuras podem ser representadas no papel, e a cidade de Florença é um livro de figuras! É só querer folheá-lo. Na Piazza della Trinità erguia-se uma coluna esguia, pedestal da deusa da Justiça, que lá está de olhos vedados e balança na mão. Também ela um dia apareceu fixada no papel - desenhara-a o pequeno aprendiz de luveiro. Ia crescendo a coleção de quadros, mas até então só continha reprodução de coisas mortas. Mas um dia em que Belíssima andava aos pulinhos em roda do menino, disse-lhe ele:

- Fica quietinha, que vais entrar na minha coleção de quadros e vais ficar muito bonita.

Mas a cachorrinha não quis ficar quietinha. E ele teve  de amarrá-la, prendendo-a pela cabeça e pelo rabo. Ela latia e dava pulos e o menino viu que tinha de retesar a corda. Nesse instante entrou a mulher do luveiro.

- Ah! bandido! Coitado do animalzinho!

E foi só o que pode dizer. Empurrou o menino para um lado, a pontapés, enxotou-o de casa, chamando-o de menino ingrato, que não prestava para nada, criança ímpia. E beijava , lavada em lágrimas, a sua pequena Belíssima, quase estrangulada.  

Ia o pintor entrando, de volta a casa, e ... foi aqui que esta história tomou outro rumo.

No ano de 1834 houve uma exposição na Academia delli Arti, em Florença. Dois quadros, colocados ao lado um do outro, atraíam a atenção de grande número de visitantes. No menor aparecia um menininho alegre, sentado a desenhar. O modelo era um lulu da Pomerânia, branco, com o pelo tosquiado de uma maneira muito esquisita. Como o animalzinho não quisera ficar quieto, o menino amarrara-o com um barbante, pela cabeça e pela cauda. Havia naquele quadro um cunho de verdade, que a todos agradava.

Contava-se que o pintor era um jovem florentino, que em criança fora encontrado na rua e criado por um velho luveiro, e  que aprendera o desenho sem mestre. Um pintor, ora célebre, descobrira-lhe o talento no dia em que o enxotavam de casa, por ter ele amarrado, para lhe servir de modelo, o luluzinho, que era o mimoso da mulher do luveiro.

O aprendiz de luveiro chegara a ser um grande pintor, como o demonstravam aquele dois quadros, sobretudo o maior. Neste via-se uma única figura - um belo menino coberto de andrajos, que dormia, sentado em plena rua, recostado no porco de bronze da Rua Porta Rosa. Todos conheciam aquele lugar. A criança, descansava os braços sobre a cabeça do porco e dormia profundamente. O lampião que arde em frente à imagem de Nossa Senhora lançava uma luz forte  de grande efeito, sobre o pálido e magnífico rosto da criança. Era um quadro maravilhoso.

Circundava-o uma grande moldura dourada, a qual estava suspensa uma coroa de louros . Mas por entre as folhas verdes serpeava uma fita preta - um longo crepe; o jovem pintor morrera poucos dias antes.

Fonte:
Hans Christian Andersen. Contos. Publicado originalmente em 1842.

segunda-feira, 6 de junho de 2022

Silmar Böhrer (Gamela de Versos) 21

 

Aparecido Raimundo de Souza (Às vezes como o joio e o trigo, o Azul e o Branco se misturam...)

DENTRO DO ESTOJO sobre a carteira, dois lápis de cores diferentes discutem. Um deles, o Azul, imponente:

— A minha cor é mais bonita que a sua!

O Branco, como sempre, calmo e tranquilo:

— Seu convencido. Deixa de ser bobo. Eu, o Branco, sou mais querido e amado pela Aninha (Aninha é a dona de ambos os lápis) do que você.

O Azul, se impondo:

— Engano seu. Eu sou o preferido dela...

O Branco, fazendo cara de riso:

— É mesmo? Desde quando?

O Azul, nervoso:

— Desde o momento em que ela foi na papelaria com a mãe, e meu viu dentro da caixinha, entre meus doze irmãos.

O Branco, desdenhando:

— Seu bobo. Bobo e desengonçado. Se acha o tal.

O Azul, alfinetando:

— De fato, eu não me acho. Eu sou o tal. Se você reparar os cadernos da Aninha, seja o de Matemática, seja o de Português, e até o de Inglês, perceberá que todos os desenhos que ela fez para ilustrarem as páginas, eu me sobressaio. Dou de dez a zero em você!

O Branco dando o troco à altura:

— Você é um azul metido. Não passa de um desbotado, ou melhor, superado. Já o branco, ou o meu branco, melhor me expressando, está em tudo o que é cristalino... por onde passo, deixo tudo às claras e transparente. O branco mostra os podres do azul.

O Azul partindo para a agressão:

— Você, seu branco azedo, se esqueceu que eu estou no topo. Sou o azul do céu infinito, o azul das águas do mar imenso. Sou ainda o azul da bandeira e também o azul da Esperança...

O Branco, rindo da mancada do adversário:

— Alto lá. A esperança não é azul. É verde.

O Azul tentando desconversar:

— Não mude o rumo da nossa prosa. O seu branco tira o brilho das coisas mais simples. Se você se olhar no espelho, perceberá que em face do descorado que deu origem às suas raízes, você se fez anêmico e quase invisível.

O Branco, mostrando conhecimento de causa naquilo que fala:

— Olha só o coitadinho, se fazendo de vítima. Cresça, moço. Meu branco está na alvura das nuvens, nos jalecos das pessoas que cuidam dos doentes nos hospitais, no açúcar que desfaz o amargo, na maisena da papa dos nenéns, no sal que tempera os pratos mais sofisticados, igualmente nos refrigeradores (você, por acaso já viu uma geladeira azul?). Também estou no branco da neve que cai, nos cabelos dos longevos, na maioria dos carros que rodam aí pelas ruas da cidade...

O Azul meio que irritado e prestes a partir para a agressão:

— Não seja por isso: o meu azul está presente nas Araras azuis, nos Gaios azuis, nos Sapos-boi-azuis nas Garças azuis, sem falar que existe uma empresa aérea com aviões azuis cortando os ares deste Brasil imenso.

Faz uma pausa, toma fôlego e prossegue, como se fosse o rei da cocada preta:

— Faço-me presente nas campanhas do “Novembro Azul”, que conscientiza o homem a cuidar do câncer de próstata... e um particular que tenho certeza, você nunca ouviu alguém mencionar: as crianças com autismo usam muito o azul em seus desenhos. Mudando o quadro, veja por exemplo, os times de futebol. O Grêmio de Porto Alegre é azul... as mulheres preferem vestidos azuis, sapatos azuis, lingeries azuis... quer mais? O Cruzeiro de Minas é azul. Não posso me esquecer que estou na crista da onda em canções famosas, como “Azul da Cor do Mar”, do Tim Maia, no “Azul” do Djavan, no “Todo Azul do Mar” do KLB...  

O Branco, de novo com um sorriso bonito no rosto, sem perder a esportiva:

— Acabou?

O Azul, quase colérico:

— Sim. Acabei.

O Branco querendo acabar com aquele papo sem lógica:

— Você realmente se acha... cretino de uma figa. Vou lhe dar o troco. Suas proezas são legais e bacanas. Sua cabecinha oca pode até se vangloriar, ou seu ego se imaginar o maioral, o intocável, Todavia, ouça o que vou dizer, e guarde a sete chaves para nunca se esquecer... você alardeou ser música famosa, time de primeira linha, aviões, carros, o raio que o parta... porém, numa coisa, eu ganho de você. E ganho longe...  

O Azul, descontrolado, fazendo gestos como se fosse desferir alguns tapas em seu contendor:

— Diga lá, seu Branco sem noção. Sou todo ouvidos. No que você me ganha?!

O Branco, aberto numa harmonia envolvente, manda a paulada que deixará o Azul sem saída:

— Eu represento a coisa mais importante neste mundo. Maior que seus times, suas músicas, seus cantores, seus aviões... quando tiver um tempinho, pergunte à Aninha... quando ela voltar do intervalo.

O Azul, cerrando os punhos:

— Não vou perguntar nada para ela. Quero saber de você. Fala logo, não estou com paciência...

O Branco, pondo, em definitivo um ponto final naquele diálogo e deixando o Azul, de fato, sem ter o que argumentar:

— Saiba, meu jovem e querido Azul, eu represento, ou melhor, eu simbolizo e patenteio o retrato fiel e sem retoques, ao pé da letra, daquilo que toda a humanidade busca incansavelmente: a PAZ!

O Azul sai de cena discretamente, enquanto o Branco se mantém quieto e humilde, em seu canto à espera que a Aninha retorne do recreio e a segunda parte da aula, tenha início.      
      
Fonte:
Texto enviado pelo autor, integrante de seu livro infanto-juvenil, ainda no prelo.

Vivaldo Terres (Poemas Escolhidos) XVIII


APRENDER A SOFRER


Bem no fundo de minh’alma
Existe uma flor rara
Que faz de mim
O que quer
Esta flor é a mais bela
E eu sonho e sofro
Por ser ela bela mulher

Ela passa e às vezes
Me olha
Pois isto não me consola
Não sei o que fazer
Como viver satisfeito
Com a dor que sinto
No meu peito
Sem que possa resolver
 
Sei que ela não é culpada
Por ser por mim
Tão amada
E por ela eu sofrer tanto

Pensei em me revelar
Com certeza irei
Me decepcionar
E sofrer terrivelmente
Por ser ela pessoa importante
E ser ela o bastante
Não é difícil entender
Tenho que me conformar
E aprender a sofrer
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CORAÇÃO E ALMA

Ela passou com o rosto
Entristecido,
Mostrando que havia
Tristeza e mágoa
Em seu coração.

Nada falou, nem eu a perguntei,
Mas sabia eu
Que nisso existia certa razão!

Faz algum tempo
Que a conheci,
Nossa amizade não era diferente
De outras amizades
Que tive e convivia,
Pois os amigos existem
Para nos ajudarem
Nas horas de angustias
Ou quando estamos
Em certas agonias.

Depois vim a saber
Que disseram a ela
Que eu tinha noivado,
Por isso estava de casamento marcado.

Fiquei admirado
Pois não tenho namorada,
Sendo assim
Nunca poderia estar compromissado.

Pobre menina
De coração e alma pura,
Não acredites no que dizem
Sem saber.
E se é por isto
Que estás entristecida
Vem depressa
Que meu coração
E alma
Estão prontos para te acolher.
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O POETA SABE QUE VIVE PRA SOFRER

O amor, sonhos e flores!
Que há na vida de um poeta,
Lembrando da que se foi...
O deixando entristecido,
Mas ele é poeta...
E jamais ficará esquecido,
Embora com a dor de um novo amor!
O deixe desiludido.

O poeta sabe que vive pra sofrer,
Vive pra sofrer de amor...
E na vida esse prêmio não vai ter.

Mesmo assim é conformado!
Por ser um sofrimento gostoso,
Embora sofrendo muito...
Não deixa de ter vida;
E se um amor...
O deixa trazendo-lhe desilusão,
Já tem um lugar pra outra!
No seu sofrido coração.
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TUA AUSÊNCIA

Como sofro por a tua ausência,
Que não me faz esquecer-te um só momento.
Lembro-me de ti a toda hora,
Até quando o velho vento...
Querendo agradar-te,
Acariciava os teus cabelos docemente.

E tu ficavas insatisfeita.
Pois o vento brincava com os mesmos,
Pra lá e pra cá.
E indignavas-te dizendo:
– Por favor, procura outra pra incomodar.

Lembro-me de tudo que fazias parte,
Como aquele bordado cheio de ternura.
Que era uma toalha para a nossa mesa,
Que a deixou extremamente linda.
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VOLTEI A TER FÉ

Quanto amor,
Quanta loucura
Sem um pouco de esperança.
Perdi a credibilidade,
Por amar uma criança.

Quantas lutas eu venci,
Mas perdi alguns amigos.
Apesar de tanto tempo.
Com ela...
No coração ainda vivo.

A vida tem me deixado,
Com sofrimento e tortura.
Quantas vezes me levanto,
Decidido a desviar a loucura.

Mas agora decidi,
E voltei a ter a fé.
Que procurando acharei
Uma bela e nobre mulher.

Fonte:
Versos enviados pelo poeta.

Renato Frata (Os círculos da impaciência)

Ele tamborilava o tampo da mesa. Quem devia chegar se atrasara e o deixara impaciente, pois almejava muito o encontro já marcado com tanta dificuldade. O reatamento que é sempre difícil tinha agora passado tanto tempo, uma única oportunidade, daí a pressa em vê-la chegar e vez por todas resolver pendengas que o tempo, a reflexão e a maturidade se encarregaram de deixar perdoáveis.

Quando essa oportunidade aparece, melhor aproveitá-la. Odiava submeter-se à espera, mas em nome da possível aproximação com a pessoa deixou-se ficar.

- Serão uns momentos. - ruminou.

Com movimentos rápidos e instintivos desenhava círculos imaginários, como um compasso nas mãos de algum paisagista quando inventa praças e jardins e risca em todas as direções. As mãos são as primeiras a denunciar a aflição que está a se sentir.

Nessa tarefa de ajudar o tempo passar desenhou aros de diversos diâmetros que se interligavam; até o sol na sua forma circular e lhe deu no pensamento o poente em cor amarelo-avermelhado, que coincidentemente entrava pelo vão da porta para que a visita ao chegar, entrasse sem o incômodo de bater e esperar, daí a consulta minuto a minuto no relógio sobre a cristaleira de que ela tanto gostava.

O tempo andou e as réstias de luz que o inspiraram na fantasia dos riscos ficaram enegrecidas e acabaram por ser tingidas pelo negror da noite, e quem estava por chegar não apareceu. A porta trazia agora para o interior uns pontos de estrelas do céu escuro e lufadas de vento frio. Ela não viera. Fizera-o esperar e brincou com seus sentimentos. Mais uma vez. Parou com a mão, dissipou os círculos, resfolegou transformando a impaciência em ira e essa em palavrão.

A espera em vão o enlouqueceu, mexeu com seu brio de homem. Levantou-se, ajeitou o chapéu, apagou a luz e saiu trancando a porta. O escuro de dentro se misturou ao de fora. Se ela chegasse que esperasse pelo seu retorno, ou regressasse de onde viera, pois ele não aceitaria caprichos de mulher. Não mais. Mastigou a saliva, engoliu-a com força e respirou longamente.

O vento frio do começo de noite açoitou-lhe o rosto como uma cusparada. Então, ao embrulhar-se mais na capa de lã, vislumbrou um vulto que se entremostrava arcado, agarrado próximo do portão de entrada. Conteve-se por cautela. O que poderia ser? Aproximou--se e para seu espanto certificou-se de que ela ali estava. Por que não entrara?

Chegou-se mais e ouviu em quase sussurro: "Ajude-me, pisei em falso, torci o pé e não consigo mais andar. Jamais quis me atrasar a esse encontro tão esperado por nós, por mim."

Foi o que bastou para que ele aliviasse a tensão da face e dos punhos e fizesse brotar um leve sorriso no rosto cansado amainando as linhas da testa. Amparou-a e a conduziu à entrada. Abriu a porta e a levou até a cadeira que ocupara minutos antes. Descalçou-lhe o pé machucado, analisou o ferimento, apalpou-o de leve e reparou que a entorse não provocara sérias consequências. Uns cuidados especiais de primeira hora bastariam para que a dor fosse embora. Ato contínuo correu à geladeira, preparou uma bolsa com gelo e aplicou-a sobre o pé, fixando-a com uma toalha. Depois desgalhou ramos de alecrim e uns talos de alfazema, amassou-os fazendo com eles uma pasta que aplicou no pé doente, usando a mesma toalha para protegê-lo.

Tudo que pensara de ruim com a demora foi esquecido, pois os fatos que se sucedem numa velocidade louca têm o poder de apagar os do passado. E ele aceitou que assim o fosse.

Ainda a cuidar do ferimento, sentiu os dedos dela correrem sobre seus cabelos, num agradecimento - carinho há muito sonhado. Então seus olhares se encontraram, criaram atração tão grande que ele se ajoelhou, segurou em suas mãos e: "Obrigado por ter vindo." Ia complementar a frase, mas ela: "Obrigada por me aceitar." E ficaram nisso...

Olhos nos olhos, permaneceram assim bom tempo, só percebido pelo ponteiro grande do relógio na cristaleira que seguiu volteando o mostrador em ouro pálido, envelhecido. Até que ela voltou a dizer: "Se você quiser, teremos um novo começo, um novo princípio de vida. Que o passado seja sepultado e que o presente seja a marca de um futuro a dois. Perdão mútuo, sem cobrança. Cada qual completando o outro com o olhar dirigido à frente na conquista do presente e do futuro. Eu me disponho, pois acho que merecemos esta nova chance." Puxou-o para si e lhe ofereceu os lábios.

Antes de aceitá-los, porém, ele se levantou, tomou-a no colo e a depositou, sentada, sobre o tampo da mesa, para que o pé machucado não tocasse o solo. Os riscos circulares e imaginários da impaciência de minutos antes foram testemunhas de um beijo, um longo beijo que selou o pacto que deveria durar para o sempre, reforçando a certeza de que o recomeço por mais difícil possa parecer, quando imaginado e querido, trabalhado com dose certa de doação, dedicação e amor e colocados em prática com o ânimo de perenidade, têm o condão de vingar e florescer como nasce a semente do ingazeiro em beira de rio. Ou qualquer outra semente plantada e tratada com amor.

Basta ter fé e regá-la convenientemente, pois quando se quer e se deseja com fervor tudo de bom acontece.

Fonte:
Renato Benvindo Frata. Azarinho e o caga-fogo. Paranavaí/PR: Eg. Gráf. Paranavaí, 2014.
Livro enviado pelo autor.

Estante de Livros (Os Filhos do Capitão Grant, de Júlio Verne)

O livro Os Filhos do Capitão Grant (em francês Les Enfants du capitaine Grant), é um romance geográfico escrito por Júlio Verne entre os anos de 1866 e 1868 A obra é dividida em três partes ( América do Sul, Austrália e Oceano Pacífico ).

Enredo

A história começa quando o aristocrata escocês lord Edward Glenarvan descobre, durante uma viagem de recreio no seu iate privado Duncan uma garrafa dentro de um tubarão-martelo Essa garrafa continha um pedido de socorro em três línguas (francês, inglês e alemão) mas a mensagem achava-se quase apagada pela ação da água. A primeira interpretação do documento coloca Harry Grant, capitão do navio Britannia e mais dois marinheiros no papel de náufragos, num naufrágio ocorrido dois anos antes, em 1862, e que se encontravam na Patagônia na terra de índios. Perante esta situação, Lord Glenarvan, demonstra ser um homem de bom coração e, ainda por cima, tratando-se de um escocês, decide ir a Londres procurar autoridades que o auxiliassem em possíveis buscas ao capitão.

Enquanto Glenarvan faz essa viagem a Londres, os filhos de Harry Grant, Mary e Robert Grant, de dezesseis e doze anos respectivamente, vão a Malcom-Castle (Residência dos Glenarvan) à procura de informações sobre o seu pai, mas, na falta deste falam com a sua esposa, lady Helena Glenarvan.

O lorde, não obtendo ajuda do governo britânico, decide ele mesmo fazer as buscas nos mares austrais, pelo paralelo 37º, pois conseguia-se saber a latitude a partir do documento mas não a longitude. E por essa razão atravessa toda a Patagônia sempre seguindo o paralelo desde o Pacífico ao Atlântico sem encontrar vestígios do capitão Grant e da sua tripulação.

Mas uma nova interpretação do documento desta vez pelo sábio e distraído Jacques Paganel, um consagrado geógrafo francês, que embarca no Duncan pensado entrar no Scotia, um navio a caminho da Índia, coloca o capitão Grant e os dois marinheiros, desta vez, na Austrália.

Análise, por Henrique Zimmermann

Talvez o maior sucesso de Júlio Verne seja a obra Vinte Mil Léguas Submarinas. Mas poucos sabem que “Léguas” é o segundo livro de uma trilogia que começa com Os Filhos do Capitão Grant e se encerra com A Ilha Misteriosa. Portanto, se deseja ler Vinte Mil Léguas, leia os três livros na ordem correta, isso ampliará a experiência.

A leitura do texto é bastante prazerosa. Apenas no início os personagens são um tanto superficiais e estereotipados. Mas à medida que a história se desenrola eles gradativamente ganham um ar mais palatável e começamos a nos importar com eles. A história não é tão profunda quanto O Capitão Háteras, o livro anterior de Verne, mas nem por isso deixa a desejar.

Um ponto importante do enredo é que Verne trabalha a dualidade entre escoceses e ingleses. Mostra os escoceses querendo se desvencilhar de qualquer relação com seus irmãos do sul, numa ideia patriótica da Escócia que é bastante interessante. Contraditoriamente, em alguns trechos do livro o próprio narrador se refere a eles como “ingleses”, talvez por falta de atenção, talvez por julgar que, apesar do esforço dos escoceses, eles não seriam tão diferentes de seus vizinhos. De qualquer forma, os ingleses sempre tiveram o papel central de exploradores nos livros de Verne, mas em Os Filhos do Capitão Grant o autor inicia um ciclo de críticas a esta nação.

Enquanto os personagens atravessam o continente australiano Verne adianta-se em criticar e condenar a colonização inglesa, especialmente acusando os exploradores de dizimarem comunidades aborígenes, destruindo sua cultura e exterminando seus indivíduos. Isto é uma visão bastante avançada para um europeu do Século XIX. Foi necessária uma dose de coragem para Verne se colocar tão abertamente contra o extermínio de “selvagens”, algo que não provocaria protestos entre seus contemporâneos franceses. Posteriormente os crimes da colonização inglesa serão novamente debatidos nas duas sequências deste livro: Vinte Mil Léguas Submarinas e A Ilha Misteriosa.

Em sua viagem pela latitude de 37°, os personagens visitam a América do Sul, um continente que infelizmente foi menos explorado por Verne quando se olha o conjunto total de sua obra. Na trajetória, passamos pela Cordilheira dos Andes no Chile e pela Patagônia e os Pampas da Argentina. É neste local que o lobo guará, animal admirado no Brasil, faz sua participação marcante com um ataque memorável. A violência das alcateias desse animal são um perigo a ser superado pelos protagonistas.

De resto, o livro vale a pena pela bela descrição das paisagens por onde os personagens percorrem em sua busca e pelas releituras do pedido de socorro do Capitão Grant, um fator que adiciona uma boa dose de imprevisibilidade ao roteiro.


Fontes:
excerto de texto de Henrique Zimmermann, em Woo! Magazine
Wikipedia

domingo, 5 de junho de 2022

Dorothy Jansson Moretti (Album de Trovas) - 7

 

Laurindo Rabelo (Poemas Escolhidos) XI

AO TROVADOR


Trovador, o que tens, o que sofres,
Por que choras com tanta aflição?
O teu pranto assaz me compunge,
Trovador, ah! não chores mais não!

Se acaso a mulher que tu amas
Te tratou com acerbo rigor,
Trovador, ah! por isso não chores,
Oh! não creias, por Deus, em amor.

O amor da mulher é a nuvem
Quando o vento a impele no ar...
O amor da mulher é volúvel,
É tão vário qual onda do mar.

O amor da mulher é um frágil
Pequenino, adoidado batel,
Que vagueia sem norte, sem rumo,
'Té quebrar-se em ignoto parcel.

O amor da mulher é luzerna
Numa noite de inverno a luzir;
É estrela do céu entre nuvens
Que a furto se vê reluzir.

A mulher tem o dom da beleza
Tem maneiras que sabem levar...
Mas no meio de seus atrativos
A mulher tem o dom de enganar.

Um exemplo tu tens em Helena
Que os muros de Tróia abateu,
Que infida, deixando o consorte,
Para os braços de Páris correu.

A mulher tem feitiço nos olhos
E nos lábios veneno letal;
A mulher nos ilude chorando
E sorrindo nos crava o punhal.

O amor da mulher, como a rosa
Desabrocha, mas logo fenece;
A quem hoje a mulher idolatra,
Amanhã menospreza, aborrece.

Trovador, ah! esquece essa ingrata,
Não mendigues a sua afeição;
Oh! despreza a quem te maltrata,
Não suspires por ela mais não!

Eu sinto angústias
Me sufocar;
Não há remédio,
Senão chorar.

Eia, choremos;
Comece o canto;
Também cantando
Se verte o pranto.

O canto às vezes
É brisa d’alma
Que o mal consola
E a dor acalma.

E cada letra
Que o canto diz,
Um ai exprime
Do infeliz!

O canto é prece
Que voa a Deus,
Se um triste canta
Os males seus...

E livre o canto
No ar se isola;
O céu penetra
E Deus consola.

Depois que a ingrata
Feriu-me tanto,
Que de mim fora,
Sem este canto!...

Talvez que as chagas
Fossem mortais,
Se as não curasse
Com estes ais.
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RISO E MORTE

Eu vim ao mundo chorando,
Chorar é o meu viver;
Quando eu deixar de chorar,
Estou prestes a morrer.

Quando a alma ao infortúnio
Assim ligado se tem,
Como termo da desgraça
A morte não longe vem.

Quando eu deixar de chorar,
Quando contente me rir,
Não se enganem, desconfiem,
Que não tardo a sucumbir.

Vem, oh! morte, ver meu pranto.
Não receies, podes vir;
Choro nos braços da vida,
Nos teus braços me hei de rir.

Muitas vezes um prazer
Que parece de ventura,
Não é mais que um riso d’alma
Vendo perto a sepultura.

O feliz ri-se da vida
Por ver nela o seu jardim;
O desgraçado, na morte
Por ver da desgraça o fim.
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O CEGO DE AMOR

Pensam que vejo, não vejo,
Não vejo, que cego estou;
De que me servem os olhos,
Se minha luz se apagou?

Ah! não deixes que me perca
Nesta imensa escuridão;
Ó anjo que me cegaste,
Vem ao menos dar-me a mão.

Ao avistar-te nos olhos
A luz divina senti,
E por perder-te de vista,
A minha vista perdi.

Ah! não deixes...

Se eu cair, dá-me teus braços,
Dá-me pelo amor de Deus,
Que talvez recobre a vista
Caindo nos braços teus.

Ah! não deixes…
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JÁ NÃO VIVE A MINHA FLOR

Perdeu a flor de meus dias
Todo o perfume de amor,
Ramo seco pende d’alma,
Já não vive a minha flor!

O tempo, que tudo muda
Não minora a minha dor;
Já não tenho primavera,
Já não vive a minha flor.

Só encontro no deserto
Bafejo consolador;
Fechai-vos, jardins do mundo,
Já não vive a minha flor

Fonte:
Laurindo Rabelo. Poesias completas. Ministério Da Cultura. Fundação Biblioteca Nacional

Jaqueline Machado (Aruanda entre nós) 7 – Bará Exú


Seu Bará é mesmo inefável,
de rocha é feito o Senhor...
Seu caráter imutável
vence as guerras, vence a dor..


Perambulando pelas ruas, um forte homem chorava. Ele também ria. Na verdade, mais ria do que chorava.

Sua missão estava sendo cumprida e sentia–se feliz por isso. Mas, de vez em quando chorava pelas almas que se encontravam perdidas, ao passo que ria daquelas que gostavam de praticar o mal, a fim de se sentirem superiores, macabramente felizes...

- Pobres dos que humilham, causam dor, e que, apesar de tudo, se consideram bons. Acreditam estarem agindo em nome de Deus. Afinal, tais criaturas são da opinião de que Deus castiga. Portanto, é necessário fofocar, criticar, julgar, assim, em nome do Criador, apontar quem é demônio, quem é santo.

Será que esses sujeitos são loucos ou fingem tais loucuras? – disse o homem guardião das ruas, entre uma tragada e outra de seu charuto perfumado.

Era madrugada e a lua estava cheia. Cheia de graça... E lá do firmamento para ele, a lua sorria... Bailava...

Ao observá-la, ele tira o chapéu em sinal de reverência. E lembra que, em uma de suas vidas passadas, foi poeta e compunha lindos versos em homenagem à lua. A essa deusa pequenina que mesmo nua, estava sempre vestida com os trajes de uma beleza pura e majestosa.

Ele segue andando cruzeiro afora. Até chegar à sua morada.  Ajeita a capa preta que lhe cobre as costas, e senta no centro de uma encruzilhada muito limpa. Ali, põe-se a refletir, bem debaixo do luar:

- Esses ignorantes pensam que Deus castiga! – disse ele ao dar uma gargalhada. – Estão confundindo o Pai lá de cima com o Pai lá de baixo. Da fúnebre morada.

“O mal que enxergam nos outros está em si, mas não dão o braço a torcer, preferem punir. Jogar a culpa de seus pecados nas costas de seus semelhantes. E assim fingir. Fingir para si próprios que são bons e até mesmo felizes de verdade.

“Esses me dão trabalho. Me fazem subir e descer aos infernos dia e noite. Sim, pois cabe a mim, combater ao menos um pouco, os trágicos efeitos de tamanha injustiça. É por causa dos preconceitos, julgamentos imprecisos, e da velha e boa soberba que tanta gente é acometida por desgraças. Não por castigo! Isso me tira o juízo... É fato!

“Ha, se as pessoas praticassem as leis da empatia, o mundo já teria virado céu. E eu estaria agora deitado numa rede preguiçosa escrevendo poesias, com o pensamento jogado ao léu.
     
 “Ora, tanta maldade me faz rir, ora me faz chorar. Falam mal de mim, por ignorância. Alguns religiosos até me chamam de diabo. Mas tenho um bom coração. E ele é quente. Não é frio, igual a desses cidadãos que vivem a pregar o mal, sem em Deus realmente pensar.

“Não sou ignorante. Minha vivência é grandiosa. Em tempos de outrora, fui escritor, fui padre, fui doutor, fui homem apaixonado, e romântico sonhador. Também já fui errante... Mas sobre meus erros não quero falar. As minhas falhas foram corrigidas. E hoje trabalho para a luz. E nos Terreiros, entro faceiro a dançar.”

- Falando sozinho, moço? – pergunta uma linda mulher a sorrir. Ela trajava um vestido preto e vermelho, tinha um olhar profundo. E o seu sorriso era belíssimo e sincero. A moça era a companheira de trabalho do homem que guardava a encruzilhada.

- Olá, querida Rainha. Você demorou a chegar. – disse ele deixando expelir de sua boca, uma nuvem de fumaça do seu charuto.

- O motivo da demora foram as múltiplas demandas atribuídas a mim nas últimas vinte e quatro horas.

- A bagunça está grande... Tanta gente para salvar... Às vezes, isso cansa. Por isso estava aqui com os meus botões a desabafar. Mas não se preocupe. Não estou triste. Estou onde devo estar, cumprindo minha jornada.

- Então continuemos a caminhar. Nesse exato momento tem uma jovem precisando da nossa intervenção.

Em seguida, chegam a uma casa onde um feroz demônio tenta convencer uma moça a dar fim à própria vida. Ela estava no parapeito da janela de seu quarto, prestes a se jogar.

O guardião envolve a jovem com a proteção de sua capa. Sua companheira, por meio de bálsamos de consciências sensatas, a convence a desistir do suicídio. Chorando muito, a menina volta para a cama.

O demônio ri, prometendo voltar na noite seguinte. Mas é magneticamente encurralado pelo casal guardião. E conduzido a um vale de sombra. Lá, mesmo acorrentado, o bandido se agita, grita, faz ameaças.

O guardião toma postura, ajeita o chapéu, firma o olhar e divulga: não adianta querer medir forças comigo, meu camarada. Melhor não mexer com a minha pessoa. Sabe por quê? Porque não sou qualquer um. Sou trabalhador, sou guerreiro. Sou BARÁ EXÚ!

De mãos dadas, os guardiões partem para prestar socorro a outros necessitados...

Fonte:
Texto enviado pela autora.

sábado, 4 de junho de 2022

Edy Soares (Manuscritos (Di)versos) 10

 

Stanislaw Ponte Preta (O homem que não foi a São Paulo)

De repente deu-lhe aquela chateação de ter que ir para São Paulo. Olhou para a valise já prontinha, que a mulher preparara e que descansava sobre uma poltrona do escritório, e puxou um longo 'suspiro. Depois olhou para a passagem da Ponte Aérea que estava em cima da mesa e sentiu um leve, um quase imperceptível mal-estar. Afinal, tinha pouca coisa a fazer em São Paulo. Se tivesse sorte de conseguir uma linha, talvez resolvesse tudo com o chefe do escritório de lá e então ficaria com uma noite livre no Rio, iria para onde bem entendesse, dormiria num hotel qualquer e não teria de dar satisfações a Mercedes, que esta estaria crente que ele seguira mesmo para São Paulo.

Pegou o telefone e discou "Interurbano". A voz neutra e irritante da telefonista perguntou o que ele queria. Cruzou os dedos e pediu São Paulo, aliviado de não ouvir em seguida aquela frase cretina: "Os circuitos estão ocupados, queira chamar mais tarde". Quando acabou de dar as ordens ao chefe do escritório, sentia-se bem melhor. Ao pegar de novo o telefone, parecia muito bem disposto e teve de se conter para não demonstrar sua alegria:

– Mercedes? Sou eu ... Já vou sim. Não sei, meu bem. Sigo agorinha para o aeroporto e pego o primeiro que tiver lugar. Obrigado. Outro pra você.

Desligou e ficou imaginando que era o golpe. Ir para um bar e encher a caveira? Telefonar para uma daquelas desajustadas de sempre? Ia optar pela segunda hipótese, quando se lembrou que já era um pouco tarde e mulher avulsa que se preze não continua avulsa depois que a tarde cai. O jeito era sair por aí... Mas novamente o telefone entrou em cena. A campainha soou e ele ouviu a voz do Augusto:

– Seu passe está livre para um pagode?

Aquilo caía do céu: – Puxa, Augusto ... você encaixou na horinha. Imagine que eu ia para São Paulo e resolvi não ir... Mal telefonei para Mercedes ... acabei de ligar, dizendo que ia, mas disposto a ficar por aqui mesmo.

– Ótimo! – exclamou o Augusto. – Pois eu estou de cacho aí com uma pequena bem razoável. Ela me avisou que tem uma amiguinha sobrando, coisa fina, e pediu que eu levasse um amigo.

– Tô nessa boca! – berrou o que ia a São Paulo e não foi, achando que mais uma vez se confirmava a sua sorte com mulher. E apressou-se:

– Diga à sua amiguinha para levar a outra que eu terei o maior prazer em desencaminhá-la.

Augusto esclareceu que não precisava isso. Já estava tudo combinado: as duas estariam no bar assim-assim, às tantas horas, esperando. E, a uma pergunta aflita, tratou de tranquilizar o amigo: não conhecia a outra, mas devia ser boa sim, porque tivera o cuidado de se informar sobre este detalhe e sua pequena garantira que era papa-fina.

Saíram logo que Augusto chegou no escritório. Estava tão animado que já ia esquecendo a valise em cima da poltrona. Voltou, apanhou-a e antes de apagar a luz rasgou a passagem da Ponte Aérea e jogou na cesta.

"Mercedes pode ver esta porcaria no meu bolso e vai ser fogo" - pensou. E juntou ao pensamento um ditado de sua autoria que costumava usar sempre que se metia numa baderna: "Marido prevenido, casamento garantido".

Augusto manobrou o carro e entrou na vaga com facilidade. Antes de atravessarem a rua, apontou para o barzinho elegante da esquina, explicando que elas estavam esperando ali. Quando entraram na sala um tanto quanto penumbrosa, a penumbra não chegou para esconder a mulher que acenou em sua direção:

– Aquela é a minha, – foi dizendo o Augusto – e a outra é a sua.

Como se ele não soubesse que era a sua! Lá estava ela, toda fresca, no vestido vermelho que ele financiara na véspera. Aliás, foi o ar fresco que lhe deu mais raiva. Partiu por entre as mesas bufando e iniciou incontinenti o festival de bolachas.

– Mas o que é isto... mas o que é isto? – perguntava Augusto atônito.

Ninguém ali sabia direito por que é que ele estava batendo, mas Mercedes sabia perfeitamente por que é que estava apanhando.

Fonte:
Stanislaw Ponte Preta. Gol de padre. Atica, 1997.

Baú de Trovas XLIX


Irmanemos nossas vidas
em comunhão generosa,
tal como vivem unidas
as pétalas de uma rosa!
A. A. de Assis
Maringá – PR

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O namoro venturoso,
curtido na mocidade,
mudou de nome, o teimoso:
hoje se chama SAUDADE!
Adamo Pasquarelli
São José dos Campos – SP

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A natureza agredida
não se defende e nem xinga,
mas no decorrer da vida
cedo ou tarde, ela se vinga
Amilton Maciel Monteiro
São José dos Campos – SP

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Amor é brisa suave,
é aconchego, é carinho;
é vôo cadente da ave
indo em busca do seu ninho
Antônio Manoel Abreu Sardenberg
São Fidélis – RJ

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Superando os meus problemas,
descubro que os teus abraços
são elos com que me algemas
no presídio dos teus braços.
Antonio Colavite Filho
Santos – SP

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Se a vida é mera passagem
por este plano somente,
o preço desta viagem
é a própria vida da gente.
Arlindo Tadeu Hagen
Juiz de Fora – MG

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Na bagagem que hoje trago
quase tudo joguei fora;
só guardei o bom afago
e as alegrias de agora.
Benedita de Azevedo
Magé – RJ

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Quando a penumbra descia,
a nossa emoção vibrava,
sonhando o que não dizia,
dizendo o que nem sonhava!…
Carolina Ramos
Santos – SP

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Eu vejo Deus na magia
dos versos simples que teço
Deus é rima, amor, poesia,
é fim, é meio, é começo!
Delcy Canalles
Porto Alegre – RS

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Talvez porque a noite esconda
sombras de amor… é que a Lua
põe mais luz em sua ronda,
quando ronda a minha rua!
Edmar Japiassú Maia
Nova Friburgo – RJ

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Na viagem da ilusão,
pela tarde azul e morna,
vivo a esperar na estação
um trem que nunca retorna!
Eduardo A. O. Toledo
Pouso Alegre – MG

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Nos vales ou nos outeiros,
levando a luz da instrução,
escolas são candeeiros
que aplacam a escuridão.
Eliana Jimenez
Balneário Camboriú – SC

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Nem mesmo a ilusão remenda,
com seus fios de saudade,
os velhos sonhos de renda
que eu teci na mocidade!
Elizabeth Souza Cruz
Nova Friburgo – RJ

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Na aliança nunca desfeita,
alma e corpo te entreguei:
juntei a ideia perfeita
ao passo maior que eu dei.
Josafá Sobreira da Silva
Rio de Janeiro – RJ

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O cego, com dedos certos,
tange a sanfona dorida,
e eu, com dois olhos abertos,
erro nas teclas da vida.
José Lucas de Barros
Serra Negra do Norte/RN, 1934 – 2015, Natal/RN

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Se a sorte não me convida,
teimoso, forças concentro
e entro na festa da vida
como “penetra”… mas entro!…
José Tavares de Lima
Juiz de Fora – MG

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Após busca pertinaz,
descobri, um dia, a esmo:
– Só hei de encontrar a paz
na renúncia de mim mesmo!
Luiz Antonio Cardoso
Taubaté – SP

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Falassem os arvoredos…
e o mundo iria corar
ante os milhões de segredos
que o vento deixa, ao passar!…
Maria Madalena Ferreira
Magé – RJ

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Nunca mostres apatia
diante da luta na vida,
mas brinda com simpatia
e a inércia será vencida!
Maria Luíza Walendowski
Brusque – SC

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Separou-se… e com mais pique
justifica encabulada:
marido que dá chilique
não consegue dar mais nada…
Maria Nascimento
Rio de Janeiro – RJ

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Sobreviver é uma arte.
É driblar a natureza,
tendo a fé como estandarte
e Deus como fortaleza.
Myrthes Mazza Masiero
São José dos Campos – SP

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A paz, numa sociedade,
entre tantas coisas boas,
só depende, na verdade,
da consciência das pessoas.
Nei Garcez
Curitiba – PR

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Tenho orgulho do que faço;
se é feito com perfeição.
Mas aceito meu fracasso
se não tiver solução.
Neiva Fernandes
Campos dos Goytacazes – RJ

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No rodeio do existir,
peço a Deus, a todo instante,
que eu não caia e, se cair,
com mais força me levante.
Newton Vieira
Curvelo – MG

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Nada mais embriagador
no arrepio das ternuras
que escutar juras de amor
mesmo que sejam perjuras.
Nilton Manoel
Ribeirão Preto – SP

= = = = = = = = = = =

Em meu leito de abandono,
eu, mulher, só penso em ti;
se sem ti eu perco o sono,
que será contigo aqui?
Olympio Coutinho
Belo Horizonte – MG

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Esses teus mágicos olhos,
quando me fitam assim,
são carícias ou escolhos
do naufrágio que houve em mim?
Renato Alves
Rio de Janeiro – RJ

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Nossas almas parecidas,
nossos sonhos se irmanando,
eu e tu, vidas vividas
tarde demais se encontrando!
Rita Mourão
Ribeirão Preto – SP

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O mais sublime recado,
veio de longe… do céu…
Sendo a Maria, levado,
pelo Arcanjo Gabriel.
Roberto Pinheiro Acruche
São Francisco de Itabapoana – RJ

= = = = = = = = = = =

Passas por mim… nem me agradas…
e a saudade, sem tardança,
traz de volta as madrugadas
que hoje vivem na lembrança.
Therezinha Brisolla
São Paulo – SP

= = = = = = = = = = =

Da vida o imenso valor
pode estar num… quase nada!
Como ver brotar a flor
entre as fendas da calçada.
Vanda Fagundes Queiroz
Curitiba – PR

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Meu jogo, audaz e exigente,
encara a carta que der,
mas com você, frente a frente…
jogo charme de mulher!
Vânia Ennes
Curitiba – PR

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O teu silêncio me afronta;
nem breve mensagem veio,
mas meu amor faz de conta
que a culpa é só do correio.
Wanda de Paula Mourthé
Belo Horizonte – MG

Machado de Assis (Suje-se Gordo!)

Uma noite, há muitos anos, passeava eu com um amigo no terraço do Teatro de S. Pedro de Alcântara. Era entre o segundo e o terceiro ato da peça A Sentença ou o Tribunal do Júri. Só me ficou o título, e foi justamente o título que nos levou a falar da instituição e de um fato que nunca mais me esqueceu.

— Fui sempre contrário ao júri, — disse-me aquele amigo — não pela instituição em si, que é liberal, mas porque me repugna condenar alguém, e por aquele preceito do Evangelho: “Não queirais julgar para que não sejais julgados”. Não obstante, servi duas vezes. O tribunal era então no antigo Aljube, fim da Rua dos Ourives, princípio da Ladeira da Conceição.

Tal era o meu escrúpulo que, salvo dois, absolvi todos os réus. Com efeito, os crimes não me pareceram provados; um ou dois processos eram mal feitos. O primeiro réu que condenei era um moço limpo, acusado de haver furtado certa quantia, não grande, antes pequena, com falsificação de um papel. Não negou o fato, nem podia fazê-lo, contestou que lhe coubesse a iniciativa ou inspiração do crime. Alguém, que não citava, foi que lhe lembrou esse modo de acudir a uma necessidade urgente; mas Deus, que via os corações, daria ao criminoso verdadeiro o merecido castigo. Disse isso sem ênfase, triste, a palavra surda, os olhos mortos, com tal palidez que metia pena; o promotor público achou nessa mesma cor do gesto a confissão do crime. Ao contrário, o defensor mostrou que o abatimento e a palidez significavam a lástima da inocência caluniada.

Poucas vezes terei assistido a debate tão brilhante. O discurso do promotor foi curto, mas forte, indignado, com um tom que parecia ódio, e não era. A defesa, além do talento do advogado, tinha a circunstância de ser a estreia dele na tribuna. Parentes, colegas e amigos esperavam o primeiro discurso do rapaz, e não perderam na espera. O discurso foi admirável, e teria salvo o réu, se ele pudesse ser salvo, mas o crime metia-se pelos olhos dentro. O advogado morreu dois anos depois, em 1865. Quem sabe o que se perdeu nele! Eu, acredite, quando vejo morrer um moço de talento, sinto mais que quando morre um velho... Mas vamos ao que ia contando. Houve réplica do promotor e tréplica do defensor. O presidente do tribunal resumiu os debates, e, lidos os quesitos, foram entregues ao presidente do Conselho, que era eu.

Um dos jurados do Conselho, cheio de corpo e ruivo, parecia mais que lá se passou, não interessa ao caso particular, que era melhor ficasse também calado, confesso. Cantarei depressa; o terceiro ato não tarda. Um dos jurados do Conselho, cheio de corpo e ruivo, parecia mais que ninguém convencido do delito e do delinquente. O processo foi examinado, os quesitos lidos, e as respostas dadas (onze votos contra um); só o jurado ruivo estava inquieto. No fim, como os votos assegurassem a condenação, ficou satisfeito, disse que seria um ato de fraqueza, ou coisa pior, a absolvição que lhe déssemos. Um dos jurados, certamente o que votara pela negativa, — proferiu algumas palavras de defesa do moço. O ruivo, — chamava-se Lopes — replicou com aborrecimento:

— Como, senhor? Mas o crime do réu está mais que provado.

— Deixemos de debate, disse eu, e todos concordaram comigo.

— Não estou debatendo, estou defendendo o meu voto, continuou Lopes. O crime está mais que provado. O sujeito nega, porque todo o réu nega, mas o certo é que ele cometeu a falsidade, e que falsidade! Tudo por uma miséria, duzentos mil réis! Suje-se gordo! Quer sujar-se? Suje-se gordo!

“Suje-se gordo!” Confesso-lhe que fiquei de boca aberta, não que entendesse a frase, ao contrário, nem a entendi nem a achei limpa, e foi por isso mesmo que fiquei de boca aberta. Afinal caminhei e bati à porta, abriram-nos, fui à mesa do juiz, dei as respostas do Conselho e o réu saiu condenado. O advogado apelou; se a sentença foi confirmada ou a apelação aceita, não sei; perdi o negócio de vista.

Quando saí do tribunal, vim pensando na frase do Lopes, e pareceu-me entendê-la. “Suje-se gordo!” era como se dissesse que o condenado era mais que ladrão, era um ladrão reles, um ladrão de nada. Achei esta explicação na esquina da Rua de S. Pedro; vinha ainda pela dos Ourives. Cheguei a desandar um pouco, a ver se descobria o Lopes para lhe apertar a mão; nem sombra de Lopes. No dia seguinte, lendo nos jornais os nossos nomes, dei com o nome todo dele; não valia a pena procurá-lo, nem me ficou de cor. Assim são as páginas da vida, como dizia meu filho quando fazia versos, e acrescentava que as páginas vão passando umas sobre outras, esquecidas apenas lidas. Rimava assim, mas não me lembra a forma dos versos.

Em prosa disse-me ele, muito tempo depois, que eu não devia faltar ao júri, para o qual acabava de ser designado. Respondi-lhe que não compareceria, e citei o preceito evangélico; ele teimou, dizendo ser um dever de cidadão, um serviço gratuito, que ninguém que se prezasse podia negar ao seu país. Fui e julguei três processos.

Um destes era de um empregado do Banco do Trabalho Honrado, o caixa, acusado de um desvio de dinheiro. Ouvira falar no caso, que os jornais deram sem grande minúcia, e aliás eu lia pouco as notícias de crimes. O acusado apareceu e foi sentar-se no famoso banco dos réus. Era um homem magro e ruivo. Fitei-o bem, e estremeci; pareceu-me ver o meu colega daquele julgamento de anos antes. Não poderia reconhecê-lo logo por estar agora magro, mas era a mesma cor dos cabelos e das barbas, o mesmo ar, e por fim a mesma voz e o mesmo nome: Lopes.

— Como se chama? perguntou o presidente.

— Antônio do Carmo Ribeiro Lopes.

Já me não lembravam os três primeiros nomes, o quarto era o mesmo, e os outros sinais vieram confirmando as reminiscências; não me tardou reconhecer a pessoa exata daquele dia remoto. Digo-lhe aqui com verdade que todas essas circunstâncias me impediram de acompanhar atentamente o interrogatório, e muitas coisas me escaparam. Quando me dispus a ouvi-lo bem, estava quase no fim. Lopes negava com firmeza tudo o que lhe era perguntado, ou respondia de maneira que trazia uma complicação ao processo. Circulava os olhos sem medo nem ansiedade; não sei até se com uma pontinha de riso nos cantos da boca. Seguiu-se a leitura do processo. Era uma falsidade e um desvio de cento e dez contos de réis. Não lhe digo como se descobriu o crime nem o criminoso, por já ser tarde; a orquestra está afinando os instrumentos. O que lhe digo com certeza é que a leitura dos autos me impressionou muito, o inquérito, os documentos, a tentativa de fuga do caixa e uma série de circunstâncias agravantes; por fim o depoimento das testemunhas. Eu ouvia ler ou falar e olhava para o Lopes. Também ele ouvia, mas com o rosto alto, mirando o escrivão, o presidente, o teto e as pessoas que o iam julgar; entre elas eu.

Quando olhou para mim não me reconheceu; fitou-me algum tempo e sorriu, como fazia aos outros.

Todos esses gestos do homem serviram à acusação e à defesa, tal como serviram, tempos antes, os gestos contrários do outro acusado. O promotor achou neles a revelação clara do cinismo, o advogado mostrou que só a inocência e a certeza da absolvição podiam trazer aquela paz de espírito.

Enquanto os dois oradores falavam, vim pensando na fatalidade de estar ali, no mesmo banco do outro, este homem que votara a condenação dele, e naturalmente repeti comigo o texto evangélico: “Não queirais julgar, para que não sejais julgados”. Confesso-lhe que mais de uma vez me senti frio. Não é que eu mesmo viesse a cometer algum desvio de dinheiro, mas podia, em ocasião de raiva, matar alguém ou ser caluniado de desfalque. Aquele que julgava outrora, era agora julgado também.

Ao pé da palavra bíblica lembrou-me de repente a do mesmo Lopes: “Suje-se gordo!” Não imagina o sacudimento que me deu esta lembrança. Evoquei tudo o que contei agora, o discursinho que lhe ouvi na sala secreta, até àquelas palavras: “Suje-se gordo!” Vi que não era um ladrão reles, um ladrão de nada, sim de grande valor. O verbo é que definia duramente a ação. “Suje-se gordo!”

Queria dizer que o homem não se devia levar a um ato daquela espécie sem a grossura da soma. A ninguém cabia sujar-se por quatro patacas. Quer sujar-se? Suje-se gordo!

Ideias e palavras iam assim rolando na minha cabeça, sem eu dar pelo resumo dos debates que o presidente do tribunal fazia. Tinha acabado, leu os quesitos e recolhemo-nos à sala secreta. Posso dizer-lhe aqui em particular que votei afirmativamente, tão certo me pareceu o desvio dos cento e dez contos. Havia, entre outros documentos, uma carta de Lopes que fazia evidente o crime. Mas parece que nem todos leram com os mesmos olhos que eu. Votaram comigo dois jurados. Nove negaram a criminalidade do Lopes, a sentença de absolvição foi lavrada e lida, e o acusado saiu para a rua. A diferença da votação era tamanha que cheguei a duvidar comigo se teria acertado. Podia ser que não. Agora mesmo sinto uns repelões de consciência. Felizmente, se o Lopes não cometeu deveras o crime, não recebeu a pena do meu voto, e esta consideração acaba por me consolar do erro, mas os repelões voltam. O melhor de tudo é não julgar ninguém para não vir a ser julgado. Suje-se gordo! Suje-se magro! Suje-se como lhe parecer! O mais seguro é não julgar ninguém... Acabou a música, vamos para as nossas cadeiras.

Fonte:
Machado de Assis. Relíquias de Casa Velha. Publicado em 1906.

sexta-feira, 3 de junho de 2022

A. A. de Assis (Jardim de Trovas) 6

 

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia) XLI

FLUI, INDECISO NA BRUMA

 
Flui, indeciso na bruma,
Mais do que a bruma indeciso,
Um ser que é coisa a achar
E a quem nada é preciso.

Quer somente consistir
No nada que o cerca ao ser,
Um começo de existir
Que acabou antes de o Ter.

É o sentido que existe
Na aragem que mal se sente
E cuja essência consiste
Em passar incertamente.
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GLOSA
 
Minha alma sabe-me a antiga
Mas sou de minha lembrança,
Como um eco, uma cantiga.

Bem sei que isto não é nada,
Mas quem dera a alma que seja
O que isto é, como uma estrada.

Talvez eu fosse feliz
Se houvesse em mim o perdão
Do que isto quase que diz.

Porque o esforço é vil e vão,
A verdade, quem a quis ?
Escuta só meu coração.
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GLOSAS
 
Toda a obra é vã, e vã a obra toda.
O vento vão, que as folhas vãs enroda,
Figura nosso esforço e nosso estado.
O dado e o feito, ambos os dá o Fado.

Sereno, acima de ti mesmo, fita
A possibilidade erma e infinita
De onde o real emerge inutilmente,
E cala, e só para pensares sente.

Nem o bem nem o mal define o mundo.
Alheio ao bem e ao mal, do céu profundo
Suposto, o Fado que chamamos Deus
Rege nem bem nem mal a terra e os céus.

Rimos, choramos através da vida.
Uma coisa é uma cara contraída
E a outra uma água com um leve sal,
E o Fado fada alheio ao bem e ao mal.

Doze signos do céu o Sol percorre,
E, renovando o curso,  nasce e morre
Nos horizontes do que contemplamos.
Tudo em nós é o ponto de onde estamos.

Ficções da nossa mesma consciência,
Jazemos o instinto e a ciência.
E o sol parado nunca percorreu
Os doze signos que não há no céu
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GNOMOS DO LUAR QUE FAZ SELVAS
 
Gnomos no luar que faz selvas
As florestas sossegadas,
Que sois silêncios nas relvas,
E em aléias abandonadas
Fazeis sombras enganadas,

Que sempre se a gente olha
Acabastes de passar
E só um tremor de folha
Que o vento pode explicar
Fala de vós sem falar,

Levai-me no vosso rastro,
Que em minha alma quero ser
Como vosso corpo, um astro
Que só brilha quando houver
Quem o suponha sem ver.

Assim eu que canto ou choro
Quero velar-me a partir.
Lembrando o que não memoro,
Alguns me saibam sentir,
Mas ninguém me definir.
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GOSTARA, REALMENTE
 
Gostara, realmente,
De sentir com uma alma só,
Não ser eu só tanta gente
De muitos, meto-me dó.

Não Ter lar, vá. Não ter calma
'Stá bem, nem  ter pertencer
Mas eu, de ter tanta alma,
Nem minha alma chego a ter.
= = = = = = = = = = =

GRANDE SOL A ENTRETER

Grande sol a entreter
Meu meditar sem ser
Neste quieto recinto...
Quanto não pude ter
Forma a alma com que sinto...

Se vivo é que perdi...
Se amo é que não amei...
E o grande bom sol ri...
E a sombra está aqui
Onde eu sempre estarei...

Júlia Lopes de Almeida (Pela Pátria)

Os tiros lá fora repetiam-se, tremendos e abaladores. D. Catarina, muito lívida, segurava com os dedos magros, de encontro ao peito fundo e côncavo, o seu triste xale de viúva, escutando sozinha a agonia do coração... Morava em Niterói, num bairro afastado, e na sua pequena sala térrea, de uma nudez de ascetério (convento), o seu corpo magro e esguio, todo coberto do preto, andava desnorteadamente, como um mastro sem velas batido na borrasca.

Corria assim de canto a canto, de parede a parede, de janela a janela, sem parar, sem perceber senão que os seus dois rapazes lá estavam na guerra, o mais velho no exército, o mais novo na esquadra...

A luz pálida do crepúsculo desfazia-se aos poucos. Coisas e seres retraíam-se num silêncio expectante.

O troar da artilharia calava todas as outras vozes; nos intervalos caía sobre a terra uma mudez pesada e absoluta; mas o estampido vinha depressa fazer vibrar a natureza inteira. E o ar ficava por momentos trêmulo, como que dolorido pela passagem daquele som formidável e assassino.

D. Catarina tinha esgotado todo o fervor religioso da sua alma. A prece já lhe saía dos lábios frios como um débil perfume de flor murcha. Perdera as forças na ansiedade e no pranto; o coração não lhe destilava a água purificada da lágrima, que escorrera toda, deixando só no fundo os resíduos de sangue negro e envenenado, geradores da raiva. D. Catarina odiava a terra em que nascera e que lhe roubava agora os filhos, e execrava ainda mais os homens e a lei e tudo! Era ignorante, embora inteligente e imaginosa; e na curta parábola em que o seu espírito se abalançava (arrojava), não podia atingir esses preceitos divinos, que se escrevem com sangue e que os homens leem corrente na sua alta sabedoria...

A honra? O brio da nação? Palavras! Ela não sabia senão que amava os filhos, que os tinha criado com terno apego e grande sacrifício, pedindo honestamente e humildemente ao Senhor Deus dos exércitos, que fizera as estrelas do céu, as águas dos rios, os cedros altivos e as areias do mar, que, na sua força prodigiosa, de tantas maravilhas lhe concedesse a simplíssima graça de a fazer morrer bem velhinha, deixando neste mundo os seus dois filhos... os seus dois únicos filhos!

Tinha caído a noite. D. Catarina procurou reagir. Acendeu a lâmpada, compôs na alcova próxima as roupas e as camas dos seus rapazes. Para quê? Eles não viriam... mas era um hábito, e ela obedecia com submissão a todos os seus velhos costumes.

Ergueu depois a vela à altura dos retratos deles, que se destacavam na parede caiada, em dois quadrinhos moldurados de veludo escuro.

O mais velho era um soldado garboso, claro e bonito como o pai, de olhos rasgados e peito franco e largo.O outro, ainda muito novo, puxara ao tipo da mãe: era magro, trigueiro, de rosto comprido e lábios simpáticos. D. Catarina beijou ambos com igual ternura, confundindo-os no mesmo enleio e no mesmo cuidado. Voltou depois para a saleta, abrindo os ouvidos aos rumores de fora...

Que estranho rumor seria agora aquele que percebia ao longe, no ar imóvel da noite? Fincou o olhar na treva. Ninguém! A estrada devia estar deserta. Tornou a entrar e foi sentar-se a um canto, com os cotovelos pontudos firmados nos joelhos e o rosto sumido entre as mãos. Caíra por fim numa atonia que lhe amolentava (enfraquecia) o espírito e petrificava o corpo; nem um leve estremecimento lhe agitava os músculos. Permaneceu por longas horas em igual postura, olhando para o mesmo ponto.

A pouco e pouco ideias desencontradas foram nascendo e fugindo simultaneamente no seu cérebro de devota extinta. Deus e o diabo surgiam juntos na mesma luz indecisa que se esbatia em sombras, que mudava e que desaparecia. Santa Catarina, sua patrona, a virgem douta, vinha também, na sua nudez pálida de martirizada, atravessar-lhe a mente num clarão frouxo e frio. E depois outros santos, e grandes heresias, procissões fantásticas, mal definidas, indeterminadas, arrastavam-se lentamente, mudando de feitio e mudando de cor, esfacelando-se, extinguindo-se...

D. Catarina permanecia surda a todas as bulhas exteriores, numa abstração de louca. O rumor recrudescera, recrudescera e avizinhava–-se. Os estalidos da fuzilaria crepitavam já perto. De vez em quando ribombava o canhão, atroador, medonho.

O solo e as casas tremiam então, abalados pelo estampido que o eco repetia em ondulações soluçadas. O clamor da guerra abafava tudo, terrivelmente, dolorosamente!

Entretanto, alguém vinha pela rua solitária, batendo a calçada com passos apressados. D. Catarina, prostradíssima, continuava em igual postura, olhando para o mesmo ponto... Bateram; ela então, acordando daquele marasmo de extenuada, ergueu-se de chofre e correu para a porta.

O coração saltava-lhe em ímpetos violentos, sufocadores.

– Meu filho!

Era o João, o mais velho, o soldado. A mãe estendeu-lhe os braços, sorrindo, enlevada, numa grande ventura. Ele não respondeu ao afago; e pálido, abstrato, sem ter nem mesmo levado a mão respeitosamente ao boné, foi direito à mesa e apoiou-se nela, deixando-se cair numa cadeira.

– Como você vem sujo de pólvora e como está cansado! Meu adorado filho, que medo que eu tinha! Agora fico pensando no outro... o meu Pedrinho... você sabe dele?

João voltou-se para a mãe com ar espantado.

– Diga, você viu seu irmão?

O soldado não respondeu; fixava a mãe com olhar parvo, muito aberto, como se não compreendesse o que ela lhe dizia. Vinha fugido, com a farda rasgada, aberta no peito, as mãos negras de pólvora, o rosto transtornado.

D. Catarina apavorou-se. Estaria doido, o João? Ameigando a voz ela pediu-lhe que repousasse e ofereceu-lhe de comer.

Que não; respondeu ele com um gesto.

– Então...

O espírito da mãe clareou-se de repente: o filho vinha só para dizer-lhe: vivo! E, já com medo de tornar a perdê-lo, instou para que fosse descansar.

– Não posso... venho fugido.

D. Catarina relanceou a vista por toda a sala, procurando esconder o filho, receosa de que o vissem de fora.

– Não quero esconder-me, tornou ele, percebendo-lhe a intenção; eu volto para lá... Eles conseguiram vir a terra... temos lutado muito!

– Os revoltosos desembarcaram?

– Sim.

– Então você viu Pedrinho?

João abaixou afirmativamente a cabeça.

– Nossa Senhora! Por que é que o não trouxe?

O soldado calou-se, suspirando baixo. A mãe repetia as perguntas, atropeladamente:

– Diga! diga! Ele falou com você? Está bom? Não o feriram? Meu filho! Que saudade! Ele é tão fraco... é preciso que ele venha; quero os dois aqui, vá buscá-lo... Não, não! Eu nem sei o que digo... Espere... vou eu!

De repente D. Catarina estacou diante do rosto mudo e pálido do filho. Parou-lhe o coração no peito.

– Por que é que você não diz nada?

O mesmo silêncio contrafeito.

– Responde, João! Pedrinho está vivo?!

A palavra custava a romper por entre os lábios do soldado, e foi ainda com um aceno de cabeça que ele disse que não.

D. Catarina caiu de joelhos com as mãos juntas.

– Misericórdia! Misericórdia! Mataram meu filho!

Depois, erguendo-se, exigiu do outro que lhe dissesse tudo, e instava:

– Quem foi que o matou? Você não viu? Por que não defendeu seu irmão? Diga, quem foi que o matou, diga, diga!

João olhou para a espada, que lhe pendia do lado batendo-lhe na perna.

A mãe não entendeu e repetiu:

– Meu adorado Pedrinho! Mas você não fala, João! Diga quem foi que o matou, diga tudo!

– Fui eu...

D. Catarina recuou espavorida; depois, avançando para o filho, bateu-lhe no peito, bem sobre o coração e bateu-lhe na cara, muitas vezes e com muita força. Toda ela vibrava na convulsão do desespero, e a voz, que a dor tinha desafinado e enrouquecido, uivava e rugia a um tempo, como um cão que se lamenta ou uma fera que ataca.

– Maldito! Matar seu irmão! Você, que mamou nos mesmos peitos, saiu do mesmo ventre, nasceu do mesmo amor! Amaldiçoado... Caim!

D. Catarina esmurrava o próprio corpo, à proporção que falava; e o filho ouvia-a calado, trêmulo. A mãe teimava por arrancar-lhe uma palavra ao menos e repetiu num desespero:

– Diga tudo, maldito. Por que foi que você o matou, por quê?

– Pela pátria!

– Pela pátria! repetiu ela, rindo, raivosamente. A pátria sou eu! Eu que sofri, e que só vivia do vosso amor! Isto não é guerra por amor da pátria: eu sei o que dizem por aí. Eu sei! Infame, maldito... some-te da minha vista, Caim! Caim!

D. Catarina caiu sem um soluço. João levantou-a, fê-la voltar a si e, de joelhos, chorosamente, contou-lhe tudo. Matara o irmão na treva, na desordem da luta, corpo a corpo. Por que viera o Pedro para ele com tanta fúria e arreganho? Matara quem o queria matar, defendera-se... porque, jurava, só conhecera a voz do irmão ao ouvir-lhe o ai derradeiro. Foi então que, procurando fixá-lo, viu-o deitado de costas, com os braços abertos e o peito estreito arquejando no desprender da vida.

D. Catarina repetiu:

– Amaldiçoado!

João concluiu: viera despedir-se da mãe, pedir-lhe que lhe perdoasse... Mais nada. Voltava para o combate.

A mãe não procurou retê-lo, e ele saiu chorando.

O soldado não voltou à casa materna...

D. Catarina começou a perdoar-lhe quando teve medo de perdê-lo.

Um dia, já muito sobressaltada, saiu para ir buscá-lo, num alvoroço, sem saber como perguntar por ele; mas logo no meio da estrada esbarrou com uns soldados que lhe disseram cruamente a verdade: o João tinha sido baleado e fora levado com outros, num montão de cadáveres.

O dia estava sombrio, uma manhã cinzenta e chuviscosa. Os soldados passaram. D. Catarina ficou imóvel, com os olhos na onda verde que vinha desfazer-se na escumilha fofa da espuma, à beira do caminho silencioso.

Ela tinha-o amaldiçoado... lembrava-se só daquilo. O João estava decidido a morrer... fora-lhe solicitar o perdão e só tinha ouvido em troca as palavras:

– Maldito! Caim!

O vento agitava-lhe o xale preto, que se abria em asas de corvo, e D. Catarina, alongando a vista, julgou ver ao longe os espectros dos filhos, com os braços hirtos, muito erguidos para o céu inclemente e as bocas articulando sem voz, num esforço medonho:

– Pela pátria! Pela pátria!

Batendo então com as mãos fechadas no peito fundo, D. Catarina, no seu egoísmo materno, respondeu-lhes, gritando em arrancos de louca:

– Calai-vos, ingratos! A pátria sou eu! Sou eu! Sou eu!

Fonte:
Júlia Lopes de Almeida. Ânsia eterna. 2. ed. rev. Brasília : Senado Federal, 2020. Publicada originalmente em 1903.

Estante de Livros (Essa Terra, de Antônio Torres)


Resumo


A história tem seu início com o relato da lembrança de Totonhim, o narrador da história, a cerca do retorno do irmão Nelo ao Junco, uma pequena cidade do interior da Bahia onde moravam. O irmão havia fugido para São Paulo em busca de melhores condições de vida.

A condição da família era de extrema pobreza, principalmente quando se mudaram para Feira de Santana em busca de estudo para os filhos. A princípio, Nelo mandava dinheiro para a mãe, mas, com o tempo, não mandou mais. Por morar em São Paulo, toda a família acreditava que Nelo estava rico. Mas ele retorna fracassado.

A família era composta pelos pais e doze filhos, mas apenas três permaneceram em Feira de Santana com a mãe, o pai não achava importante o estudo e ficou um bom tempo sozinho no Junco, os outros irmãos estavam espalhados. A mãe falava de Nelo de forma carinhosa, diferente dos outros irmãos. Totonhim havia saído de Santana e voltou para a roça para morar com o avô.

Um dia, Nelo se embebedou e enquanto o irmão o ajudava, contou-lhe a trágica história de como perdeu os filhos e a mulher para um primo e ainda foi espancado pela polícia. Dias depois, Totonhim foi chamar Nelo para ir tomar banho no rio e encontrou-o enforcado, pendurado numa corda no armador da rede.

O pai é quem constrói o caixão, pois era carpinteiro. Enquanto isso, ele recorda suas desgraças, lembra-se de como perdeu as terras para o irmão e ficou sem nada. Totonhim faz uma reflexão sobre quem ele é e também relembra suas desgraças. A mãe começa a dar sinais de loucura com a morte do filho no qual depositava todas as esperanças. O romance termina com a internação da mãe, o enterro de Nelo e a partida de Totonhim para São Paulo.

Sobre o autor

Antônio Torres é um jornalista e escritor brasileiro. Nascido no interior da Bahia, tem os temas rurais como os mais recorrentes em sua obra. Faz uma releitura do regionalismo, mostrando de forma irônica as paisagens e os estereótipos locais.

Importância do livro

O romance Essa Terra, lançado em 1976, tem um caráter autobiográfico por ter seu autor vivido a mesma trajetória do personagem principal: a migração do sertão para a capital. A obra traz à tona a dificuldade vivida por uma família no interior da Bahia e, com isso, retrata a diferença entre a capital e o interior. Tem uma temática regionalista, porém num teor crítico, já que os personagens vivem uma crise de identidade e não nutrem amor pela sua terra. O narrador-personagem conta a trajetória de seu irmão Nelo, o personagem principal que migra para São Paulo em busca de melhores condições.
Análise

Pode-se dizer que a obra se aproxima de uma autobiografia, já que o próprio autor viveu a experiência do personagem principal ao sair do interior da Bahia para buscar uma vida melhor nas metrópoles do sudeste. O romance aborda o drama da migração nordestina para São Paulo, relatando o impacto da "cidade grande" sobre o retirante e também as consequências sociais e psicológicas que envolvem a família que permanece.

O romance apresenta o panorama do país no século XX, ao tratar do contraste dos grandes centros desenvolvidos em comparação ao sertão esquecido. Contribui, assim, não só para uma reflexão sobre as diferenças sociais, mas também sobre a questão da identidade do ser humano.

O personagem Nelo, ao se afastar do sertão, acaba se esquecendo de sua identidade e de suas raízes, ao retornar sem cumprir as expectativas de enriquecimento de sua família, acaba pondo fim a sua vida. O suicídio sintetiza o impasse: com o desenraizamento, ao retornar derrotado, não lhe resta mais nada e a frustração põe fim ao personagem.

Apesar da caracterização sertaneja do Junco e a presença de uma temática regional, não se trata de uma obra propriamente regionalista, podemos afirmar que o regionalismo, neste caso, é problematizado. Ocorre uma desconstrução do espaço regional identitário a partir da falta de identidade regional. Não existe aqui uma nostalgia do sertão, como em outras obras regionalistas, mas sim um olhar crítico.

A crítica é construída através do narrador-personagem Totonhim, a partir da sua visão é possível observar o Junco como figura de crise, instabilidade e de pobreza. Tal crise é estendida também à família, pois ambos sofrem pela seca, em ambos a migração se faz presente. Desta forma não tem como separar bem o sofrimento da terra do sofrimento das pessoas. Totonhim é o narrador-personagem que evidencia uma distância crítica em relação aos problemas do Junco e se posiciona de modo reflexivo em relação à terra (o Nordeste) e aos outros.

Personagens

- Totonhim: narrador-personagem. Através de sua visão percebemos a realidade da cidade de Junco e a falta de esperança em relação a sua terra.

- Nelo: personagem principal que sai do Junco para São Paulo em busca de melhores condições, mas retorna fracassado e acaba cometendo suicídio.

- A mãe: vive brigando com o marido e se queixando dos filhos, menos de Nelo, a quem trata diferente, tendo esperanças que ele a tirasse do sertão. Com a morte do filho, enlouquece.

- O pai: perde as terras para o irmão e acaba ficando sozinho no Junco quando a família se muda para Feira de Santana por causa do estudo dos filhos. Acaba sozinho com Totonhim partindo para São Paulo.

- Zé da Botica: farmacêutico do lugar, ajuda Totonhim no enterro de Nelo.

- Pedro Infante: amigo de infância de Nelo, arrepende-se de não ter feito as pazes com o amigo ainda vivo. Não se falavam por conta de uma surra que Nelo levou sozinho por uma travessura que ambos fizeram juntos por ideia de Pedro.

- Zé do Pistom: baiano, primo de Nelo que rouba sua mulher em São Paulo.