segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

Figueiredo Pimentel (As três princesas encantadas)


Bermudes era um bom pai de família, mas não sabia dar educação conveniente a seus filhos. Um pouco fraco, deixava que eles fizessem tudo quanto desejassem, e o resultado foi que, dos três únicos filhos que tinha – João, Manuel e José – os dois primeiros eram malcriados, insolentes, e o terceiro de gênio um pouco vivo demais.

Um dia o pai repreendeu-os, e João e Manuel zangaram-se e fugiram de casa, sem dizer para onde. Bermudes ficou muito aflito, e mandou que José, o caçula, fosse procurá-los.

O rapaz saiu de casa para cumprir a ordem paterna, e começou a viajar. Ao cabo de três dias de fatigante jornada, em meio de campos, vales, montes e florestas, foi ter à choupana de um velhinha, chamada Miriam. Era uma velha amável, bondosa e caridosa, que o hospedou com todo o carinho, dividindo com ele a sua ceia.

Acabando a ceia, puseram-se a conversar:

– Que vieste fazer por estes lugares, meu netinho? disse Miriam, que era a Virgem Maria disfarçada em velha.

– Minha avozinha, respondeu ele, ando à procura de meus dois irmãos mais velhos, que fugiram da companhia de meu pai, e ele quer que eu os leve para casa.

– Pois dorme, meu filho, que eu te ensinarei onde estão eles.
***

No outro dia a velhinha, depois de lhe dar um bom almoço, disse-lhe que fosse ao Reino das Três Pombas, onde encontraria os dois irmãos, porque havia ali uma grande festa na qual tomariam parte todos os jovens do país, devendo casar-se com a filha do rei, o que melhor se sobressaísse.

– Leva, disse Nossa Senhora, esta vara e esta esponja, mas toma cuidado que ninguém as veja, porque teus irmãos hão de te caluniar, dizendo ao rei que te gabas de ser capaz de ir ao fundo do mar quebrar a pedra que lá existe e desencantar as três princesas, filhas do rei, que uma fada perversa encarcerara. O rei há de mandar chamar-te, e tu deves sustentar que sim. Vai, então, à beira do mar, e joga a esponja, que boiará. Deverás acompanhá-la por onde ela seguir. Mas não percas a varinha, e com ela bate na pedra que se partirá ao meio. Não te assustes com a serpente que te aparecer: toca com a varinha nela, que adormecerá no mesmo instante. Entra na pedra, e tira de dentro uma caixa; dá-lhe uma pancada, que se abrirá imediatamente. Dentro dela está um ovo, que tem três gemas; parte esse ovo, e dá a clara para a serpente beber. Verás o resto.

José agradeceu muito a Miriam o benefício que lhe fazia, e seguiu viagem para o reino onde estavam os seus dois irmãos.

Ali chegando, viu a grande festa que se estava celebrando. Achando-o mal vestido, os irmãos, fingiram que não o conheciam, e trataram de intrigá-lo, dizendo ao rei que ele se gabava de ser capaz de desencantar as princesas.

O rei mandou chamá-lo, e perguntou se era verdade o que diziam dele.

– Saberá Vossa Majestade que não disse tal coisa. Mas se o rei meu senhor ordenar, estou pronto para cumprir as suas ordens.

Todos ficaram admirados, e duvidaram do que dizia o mocinho. No outro dia apresentou-se ele no palácio para seguir para a expedição, e o rei mandou pôr cem navios à sua disposição, dizendo que, se trouxesse as princesas, casaria com a que escolhesse, ou com a mais moça, à única que existia, por não ser nascida, quando a fada má enfeitiçou as três mais velhas; e se voltasse só, seria enforcado no mesmo dia.

José dispensou os navios, preferindo ir a nado, com a certeza de que voltaria com as jovens.

Toda a gente julgou impossível ir um homem nadando até a pedra, que sabiam ficar no meio do oceano, e, em vista disso, mais duvidaram do bom resultado da empresa. No entanto José foi: e assim que chegou à praia, atirou ao mar a esponja, e acompanhou-a até a pedra. Bateu com a varinha, e ela se abriu por encanto. Entrou, e viu a serpente, em quem deu também uma pancada, adormecendo-a imediatamente.

No interior da pedra encontrou a caixa, em que também deu, abrindo-se ela no mesmo instante. Tirou de dentro o ovo, partiu a casca, deu a clara à serpente, saindo então as três princesas, que estavam no ventre do monstro.

Chegando José ao palácio do rei, justamente com as três donzelas, todo o mundo admirou sua coragem.

João e Manuel, seus irmãos, invejosos por vê-lo tão felicitado, não ficaram satisfeitos, e foram dizer ao rei que ele dissera ser capaz de trazer a serpente viva, do fundo do mar. O rei, que não estava disposto a casar a filha com José, ordenou-lhe que fosse buscar o bicho, sob pena de morte.

José procedeu como da primeira vez, e trouxe a serpente.

Então, para caçoar com as pessoas que duvidavam dele, tocou com a varinha em todos, a começar pelo rei, e os fez adormecer. Mandou, depois, agarrar seus dois irmãos e levá-los a seu pai.

O rei, quando acordou, consentiu que se casasse com a mais bonita das princesas, e ele sabendo disso, tocou com a vara novamente em todas as pessoas presentes, que dormiram outra vez até que chegassem seu pai e irmãos, para assistirem ao casamento.

José viveu feliz e benquisto até o fim de seus dias; e, como não era mau, quando subiu ao trono por morte do rei seu sogro, casou Manuel e João com duas de suas cunhadas. Os rapazes mudaram de gênio, corrigiram-se, tornaram-se bons, e foram sempre considerados.

Fonte:
Alberto Figueiredo Pimentel. Histórias da Avozinha. Publicado em 1896. Disponível
em Domínio Público

Carlos Leite Ribeiro (Marchas Populares de Lisboa, final) Bairro de São Vicente


O santo padroeiro de Lisboa dá o nome à freguesia e à igreja onde, segundo a história, os seus restos mortais foram depositados por um casal de corvos que, graças a São Vicente, nunca foram olhados como aves de mau agouro.

O bairro de São Vicente está intimamente ligado ao nome do mártir padroeiro de Lisboa. A Igreja de São Vicente de Fora, cuja obra foi mandada erguer por D. Afonso Henriques em consagração ao santo de quem era devoto, é dos templos mais representativos desta cidade. O monumento foi reedificado em 1629. Junto à igreja encontra-se a Capela de Santo António, construída no mesmo local onde foram encontrados os ossos da mão de São Vicente.

Atualmente realiza-se junto à Igreja de São Vicente de Fora, a popular Feira da Ladra. Nesta feira, tipicamente alfacinha e quase tão velha quanto Lisboa, encontra-se de tudo um pouco: antigos gramofones e discos usados, roupa dos anos 60 e material militar, livros e ferramentas. Mas só às terças-feiras e sábados.

Está o imponente Panteão de Santa Engrácia. Um monumento nacional que demorou tantos anos a ser construído que até entrou no anedotário lisboeta com a expressão popular “Obras de Santa Engrácia”. O Jardim de Santa Clara e o Palácio do Tribunal Militar; o Edifício do Mercado e o Hospital da Marinha, são outros dos pontos de interesse da freguesia. O resto fica ao cuidado dos visitantes, que tanto podem perambular por travessas esconsas como encontrar becos inesperados.

A Academia Leais Amigos, fundada em 27 de Abril de 1915, desenvolveu atividades na área de cultura e desporto, com prática do futebol e do tênis de mesa. A coletividade organiza, todos os anos, a festa no Largo da Igreja de São Vicente de Fora, com espetáculos de variedades durante as Festas Populares. E, para manter a tradição criada em 1934, vai mais uma vez desfilar em festa pela Avenida da Liberdade.
 
MARCHA DE SÃO VICENTE
(Por culpa do Manjerico)

Letra de António José
Música de João César


À minha porta ouvi
Que alguém batia
Fui abrir e pra meu espanto
Vi que não estava ninguém
Mas logo descobri
No chão havia
Arrumadinho num canto
Um manjerico também ...

Trazia um verso assim:
Meu céu aberto
És tu e mais ninguém, repara e lê
O teu amor está tão perto
Só um cego é que não vê.

Quem é, quem o diz por favor
Quem é, quem é o meu amor
Ai manjerico vê lá bem o que fizeste!...
Já perguntei aqui... ali
O bairro inteiro já corri
Tudo por culpa
Desta quadra que me deste

Quem é diz onde está
Quem é, quem é mas quem será
Hei de encontrar, ainda não perdi a fé
Eu sei que mora em São Vicente
Já perguntei a toda a gente
agora falta, somente é saber quem é !

Não sei o que dizer
a tudo isto
Porque alguém deve ter visto
Quem foi que o deixou ali...
Já andam pelo ar
Mas na boca dos vizinhos
A verdade não ouvi ...

Será que eu pensei
É quase certo
Mas se és, porque não diz!
Não sei porquê !
O teu amor está tão perto
Só um cego não vê.

Que é, quem é diz por favor
Quem é o meu amor
Ai manjerico vê lá bem o que fizeste!...
Já perguntei aqui... ali
O bairro inteiro já corri
Tudo por culpa
Desta quadra que me deste

Quem é, quem é diz onde está
Quem é, quem é mas quem será
Hei de encontrar, ainda não perdi a fé
Eu sei que mora em São Vicente
Já perguntei a toda a gente
Agora falta, somente é saber quem é!

 
Fonte:
Este trabalho teve apoio de EBAHL – Equipamento dos Bairros Históricos de Lisboa F.P.
http://www.caestamosnos.org/autores/autores_c/Carlos_Leite_Ribeiro-anexos/TP/marchas_populares/marchas_populares.htm

domingo, 22 de janeiro de 2023

Política de Conteúdo do Blog

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GP Feldman - editor

Dorothy Jansson Moretti (Álbum de Trovas) 19

 

George Abrão (Almas gêmeas)


Mulheres e homens não foram criados para viver sós, pois Deus, quando os fez, determinou que um completasse o outro se tornando um só ser, e que se amariam e se amparariam por toda a vida. Só que, infelizmente, muitas vezes essa união não os completa, sempre faltando um algo mais, falta um elo na corrente que os une. E tornam-se infelizes, amargos e a cada vez mais sentem a necessidade de algo mais, de um amor verdadeiro. E então se separam e ficam sós, numa eterna busca de um amor que os complete, da sua alma gêmea.

Reza a lenda que as almas gêmeas se originaram de seres criados por Vênus e Eros, deuses da mitologia grega, e que esses seres tinham quatro braços, quatro pernas, duas cabeças, dois troncos distintos, um masculino e um feminino e uma só alma, convivendo em perfeita harmonia.

Diz ainda que essa perfeição provocou a fúria dos outros deuses que convenceram Zeus a enviar uma tempestade muito forte, com muitos trovões e raios sobre aquela civilização. Cada raio que caía atingia um dos seres, dividindo-os ao meio e separando a metade feminina da metade masculina. E muitos que ficaram sozinhos conseguiram sobreviver sem viver, sem ter paz, incompletos, pois já não conheciam a harmonia, a perfeição e o equilíbrio de antes.

E eis que um dia, de uma maneira muitas vezes inusitada e onde menos esperam, encontram a outra metade de suas almas, se completam, e sabem que esse amor durará até a eternidade.

Fonte:
Texto enviado pelo escritor.
George Roberto Washington Abrão. Momentos – (Crônicas e Poemas de um gordo). Maringá/PR, 2017.

Arthur de Azevedo (Pequetita)


Como o Bandeira é positivista e não admite a vacina, o Coriolano, que é sobrinho do Bandeira e dirigido por ele, não quis que a Pequetita se vacinasse. Quando D. Isaura, sua esposa, lhe falou nisso, foi como se lhe propusesse uma vergonha.

- Pois tu conheces as minhas ideias e me propões semelhante coisa? Vacinar a Pequetita? Que diria o tio Bandeira?

D. Isaura, que tinha muito bom senso, não costumava contrariar a vontade do marido: submetia-se resignadamente a quanto ele dizia. Por seu gosto a Pequetita se vacinaria; mas como o Coriolano era de opinião contrária, a Pequetita não seria vacinada. Ora aí está.

Mas veio a varíola, e o bairro em que morava o Coriolano foi o mais contagiado pela epidemia. O pobre-diabo via, aterrorizado, passarem todos os dias enterros de crianças da vizinhança, e tremia pela sorte da Pequetita.

Um dia em que o tio Bandeira lhe apareceu em casa, o Coriolano deu-lhe uma pequena investida em favor da vacinação, mas o positivista foi inflexível: lançou-lhe um olhar severo, pegou no chapéu e na bengala e disse:

- Se você me torna a falar em vacina, saio por aquela porta e nem o Teixeira Mendes será capaz de fazer com que eu aqui ponha mais os pés!...

- Bom, não se zangue, meu tio: já cá não está quem falou...

Entretanto, a epidemia aumentava cada vez mais, e o Coriolano, que andava inquieto e sobressaltado, um dia apanhou D. Isaura a jeito e fez-lhe ver os seus receios.

- Se não fosse o tio Bandeira.

- Mandarias vacinar a Pequetita?

- É exato.

- Entretanto, não te aconselho a que o faças sem lhe dizer francamente que tomaste essa resolução... Se lhe mentisses, ele não te perdoaria!

- O diabo! Se a Pequetita... Oh! Nem disso me quero lembrar! Eu teria remorso toda a vida!.

- Pois vai à casa do tio Bandeira, e diz-lhe com toda a hombridade que vais mandar vacinar a menina! Não és nenhuma criança, nem nenhum idiota que se deixe governar pelos outros!

- Tens razão.

O Coriolano foi à casa do tio Bandeira, e voltou amargurado, com lágrimas nos olhos e na voz.

- Então?... falaste-lhe?... - perguntou D. Isaura.

- Não.

- Por quê?

- Encontrei-o morto!

- Morto?!

- De varíola hemorrágica! Foi atacado anteontem e hoje ao meio-dia era cadáver! E eu sem saber de nada! Pobre do Bandeira!...

E o Coriolano desatou em pranto.

Quando serenou, disse a D. Isaura:

- Amanhã, pela manhã... hoje mesmo, ser for possível, vacina-se a Pequetita.

- Não é preciso.

- Por quê?

- Porque a Pequetita há dois meses que está vacinada.

- Há dois meses?!

- Sim! Desde que começou a epidemia!

- E nada me disseste!

- Para quê? Para te zangares? Se fiz mal, Deus me perdoará porque fui levada pelo meu instinto de mãe.

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos. Domínio Público. Disponível na Biblioteca Virtual de Literatura.

Domingos Freire Cardoso (Poemas Escolhidos) X

Obs do blog: O primeiro verso e título de cada poema é do poeta colocado abaixo do título, com a página e livro onde se encontra.

Enerva-me esta chuva impertinente


(Fernandes Valente Sobrinho in "Poemas Escolhidos", p. 127)

Enerva-me esta chuva impertinente
Que tomba lá dos céus feitos de breu
E as gotas são o pranto que nasceu
De nuvens que tivessem dor de gente.

O vento ainda faz mais repelente
Cada pingo que o meu rosto ofendeu
Lágrima que do ar se desprendeu
Como um cristal da mágoa que alguém sente.

A chuva tudo alaga, tudo invade
Deixando o fino véu dessa umidade
Caído pelo chão, pênsil dos ramos.

E sobe uma revolta ao meu olhar;
Por que há de a Natureza assim chorar
Do modo como nós também choramos?
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Não darei um só passo onde me prenda

(Fernandes Valente Sobrinho in "Poemas Escolhidos", p. 101)

Não darei um só passo onde me prenda
O espectro de um amor que já passou
E o resto de um sorriso que raiou
Que fazem com que agora eu me arrependa.

Mas este coração não tem emenda
E sonha com o que ainda não achou
E de todos os gostos que provou
Elege o teu beijar de que faz lenda.

Procuro outros caminhos onde passe
Sem ver em cada rosto a tua face
Trazendo o que a teu lado eu já vivi.

É falsa a tentativa dos meus passos
Que lembrando o calor dos teus abraços
Simplesmente me levam para ti.
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Olha Daisy: quando eu morrer tu hás-de...

(Fernando Pessoa/Alvaro de Campos "Cem Sonetos Portugueses", p. 82)

Olha, Daisy: quando eu morrer tu pensas
Que fui ali, à esquina, ver tabaco
Que me escapei do lar, sem dar cavaco
Mas que voltarei já, sem mais detenças.

Vendo bem, não são muitas as diferenças
Entre a morte e uma queda num buraco
Da rua em que rasgamos o casaco
E o corpo sofre mais outras ofensas.

Insulta-me: "És canalha e mentiroso!!!
Seu traidor!!! És um traste e cão raivoso!!!
Até que enfim, me vi livre de ti!"

E não indo a saudade à tua porta
Quando a minha lembrança for já morta
Não vale a pena, então, ver que eu morri...
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O livro onde sepulte o meu sofrer

(Fernandes Valente Sobrinho in "Poemas Escolhidos" p. 93)

O livro onde sepulte a minha dor
Não o lavro com lágrimas de tinta
Pois com medo que invente ou que eu lhe minta
Não achará jamais qualquer leitor.

Seria, com certeza, um fraco autor
E a minha mão de inspiração faminta
Daria, em pouco tempo, por extinta
Essa obra sem ter um editor.

Guardo em pasta de capa dura e preta
Essas folhas que fecho na gaveta
Como os mais crus e tristes documentos.

Um dia, quando o livro estiver feito
Com a pena que usei rasgo o meu peito
E essas páginas rudes solto aos ventos.
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Vejo-te sempre em horas de saudade

(Fernandes Valente Sobrinho in "Poemas Escolhidos", p. 145)

Vejo-te sempre em horas de saudade
Quando em meu peito dói a tua ausência
Presente como eterna penitência
Que eu pague por te amar sem castidade.

Envolto sempre em rara claridade
Segreda o teu olhar a confidência
Em que naufraga, nua, esta inocência
No abraço que me traz à realidade.

Talhada em minha mente sempre vens
Livre e solta no tempo e te deténs
Trazendo à minha vida a doce paz.

Com enlevos eu te amo e te venero
E em meus dias o que eu anseio e quero
Sempre és tu quem o diz e quem o faz.

Fonte:
Sonetos enviados pelo poeta.
Domingos Freire Cardoso. Por entre poetas. Ilhavo/Portugal, 2016.

O. Henry (Sacrifício de amor)


"Quando uma pessoa ama a Arte que pratica, sacrifício algum lhe parece exagerado".


É esta a nossa premissa. A presente história alcançará uma conclusão dela, demonstrando simultaneamente a falsidade da citada premissa. Constituirá uma nova experiência em lógica e na ciência da narrativa; algo um pouco mais antigo que a Muralha da China.

Joe Larrabee surgiu das pradarias do Middle West com uma pulsação de gênio da pintura. Aos seis anos, desenhou a bomba extintora de incêndios da povoação, juntamente com uma individualidade proeminente que a manejava com presteza. O seu "esforço" foi emoldurado e exibido na casa da botica local, ao lado de uma espiga invulgarmente desenvolvida. Aos vinte anos, partiu para Nova Iorque, com uma gravata em forma de laço flutuante e um capital limitado.

Délia Carruthers executava, na sua aldeia do Sul rodeada de pinheiros, coisas tão fantásticas com as oitavas, que a família decidiu reunir o dinheiro necessário para que a moça se deslocasse ao Norte, a fim de completar o curso. Não o conseguiu e... mas isto faz parte da nossa história.

Joe e Délia conheceram-se num estúdio onde costumavam juntar-se estudantes de música e arte, para trocar impressões sobre o claro-escuro, Wagner, composições famosas, obras de Rembrandt, quadros célebres, Waldteufel, Chopin e Oolong.

Joe e Délia apaixonaram-se um pelo outro - ou um e o outro, consoante as preferências do leitor - imediatamente e não tardaram em contrair matrimônio, porque (leia-se acima) "quando uma pessoa ama a Arte que pratica, sacrifício algum lhe parece exagerado".

O Senhor e Senhora Larrabee instalaram o seu lar num apartamento solitário, tão solitário na verdade como a extremidade no setor esquerdo de um teclado. Não obstante, eram felizes, porque tinham a sua Arte e um ao outro. (Aproveito a oportunidade para dar um conselho aos rapazes endinheirados: vendam o que possuem e deem aos pobres o que recolheram. Busquem o privilégio de viver num apartamento com a vossa Arte e a vossa Délia).

Todos os que morarem num apartamento concordarão comigo em que são particularmente ditosos. Se existe a felicidade num lar, este nunca parece demasiado pequeno. Não importa que os móveis deixem transparecer avançado estado de decomposição ou que exista acumulação de funções em determinadas dependências. O essencial é que, de entre o caos, se ergam as duas únicas figuras que interessam: ele e ela.

Joe pintava às ordens do poderoso Magister, cuja fama se torna desnecessário frisar. Cobrava tarifas elevadas por cada aula, que evidenciava a circunstância de ser extremamente breve, pormenor que contribuiu decisivamente para o celebrizar. Délia estudava com Rosenstock, possuidor de boa reputação como renovador da classe dos pianistas que assolava o país de leste a oeste.

Foram imensamente felizes, enquanto o dinheiro durou. Mas... não pretendo de modo algum ser cínico. Ambos tinham perfeitamente definida a sua ambição. Em pouco tempo, Joe produziria quadros tão admiráveis que os anciãos de bolsas nutridas formariam uma fila interminável à porta do seu estúdio para conseguir a ventura de os adquirir. Délia, por seu turno, achar-se-ia tão familiarizada com a música, que até se poderia sentir superior a ponto de, num futuro próximo, se não fossem vendidas todas as entradas para um seu recital, negar-se a atuar alegando laringite súbita e aguda e permanecendo numa sala de jantar privada, entregue aos prazeres de uma excelente lagosta preparada por um chefe expressamente chamado da França.

O melhor de tudo consistia, sem dúvida, na vida familiar no pequeno apartamento: as prolongadas e calorosas conversas após o trabalho cotidiano; as refeições íntimas, o café da manhã frugal e vaporoso; o intercâmbio de ambições - entrelaçando sempre as de um com as do outro, por resultar inadmissível outra coisa - a ajuda e inspiração mútuas e, perdoe-me o pormenor, as azeitonas recheadas e sanduíches de queijo, às onze da noite.

E, apesar disso, a Arte terminou por fraquejar o que se verifica com frequência, conquanto ninguém se possa considerar responsável do fato, sobretudo quando o termo "saída" se emprega com larga vantagem sobre "entrada" no movimento de fundos domésticos. O dinheiro extinguiu-se totalmente por fim, tornando-se impossível satisfazer os honorários do senhor Magister e de Herr Rosenstock. Mas evidentemente que "quando uma pessoa ama a Arte, sacrifício algum lhe parece exagerado". Por conseguinte, para que o essencial não faltasse, Délia resolveu dar lições de música.

Durante dois ou três dias não fez outra coisa senão procurar alunos. Certa noite, regressou a casa animadíssima.

- Consegui uma aluna, querido Joe! - exclamou alegremente. - Pertence a uma família estupenda. O general... digo, é filha do general A. B. Pinckney, que mora na Rua Setenta e um, numa casa positivamente maravilhosa. Só queria que visse a entrada suntuosa, em estilo bizantino, se não me engano. A pequena chama-se Clementina, e confesso que já lhe criei afeto. Veste sempre de branco e parece muito simples. Tem apenas 18 anos. Vou dar-lhe três aulas por semana e... prepara-te para o melhor... pagam-me à razão de cinco dólares! Não me importo de o fazer porque, assim que arranjar mais um ou dois alunos, poderei estudar de novo com Rosenstock. E agora, deixa de franzir o sobrolho e saboreemos um jantar agradável.

- Tudo isso está muito bem para ti, Délia - replicou Joe, atacando uma lata de conservas com uma faca velha e um martelo. - Mas, e eu? Pensas que permitirei que trabalhes e ganhes dinheiro, enquanto vegeto nas regiões da Arte? Pelas ossadas de Benvenutto Cellini! Garanto-te que não concordo. Resta-me sempre ir vender jornais ou trabalhar como pedreiro para ganhar uns cobres.

A moça aproximou-se dele e abraçou-o, murmurando:

- És um pateta. Na realidade, não abandonei a minha carreira para me dedicar a outra ocupação. Continuarei ligada a ela, porque ensinando também aprendo. E, com quinze dólares semanais, viveremos como milionários sem que tenhas de abandonar as aulas do senhor Magister.

- Está bem - transigiu Joe, enquanto ia buscar a travessa azul para a salada. - Em todo o caso, quero lavrar o meu protesto por te moveres por aí a dares aulas. Isso não é Arte. No entanto... considero-te maravilhosa e adoro-te pelo que acabas de fazer.

- Quando uma pessoa ama a Arte que pratica, sacrifício algum lhe parece exagerado - frisou ela.

- Magister enalteceu o realismo das cores que empreguei naquele quadro que representa o parque - volveu Joe - e Tinkle autorizou-me a expor duas telas na sua vitrine. Agora, só é preciso que um milionário excêntrico repare nelas.

- Tenho a certeza absoluta de que as venderás. E agora, agradeçamos à Providência o fato de ainda existirem pessoas como o general Pinckney... e esta vitela assada.

Durante a semana imediata, os Larrabee tomaram o café da manhã muito cedo. Joe parecia entusiasmado com o esboço de "efeitos matinais" em que trabalhava no Parque Central. Délia animava-o, beijava-o e despedia-se dele às sete, porque a Arte é uma amante exigente. Muitas vezes, ele só regressava às sete da tarde. No final da semana, Délia, docemente orgulhosa, conquanto fatigada, depositou sobre a mesa, com um gesto triunfante, três notas de cinco dólares.

- Há ocasiões em que Clementina chega a impacientar-me - confessou de modo algo precipitado. - Desconfio que estuda pouco, e vejo-me obrigada a repetir-lhe as mesmas coisas com insistência. Além disso, como veste sempre de branco, o cenário resulta deveras monótono. O general Pinckney é, pelo contrário, um ancião encantador. Gostava que o conhecesses, Joe.

Por vezes, quando Clementina e eu estamos sentadas ao piano, entra e permanece de pé junto de nós, acariciando as barbas brancas. "Como vão essas semicolcheias e semifusas?", costuma perguntar. A propósito: cheguei a dizer-te que é viúvo? Tenho pena que não possas admirar os belos objetos existentes no salão. E os cortinados? Simplesmente deslumbrantes. Mas, voltando à Clementina, acho-a curiosamente pálida e a sua tosse não me agrada. Oxalá a saúde não seja tão débil como parece. Creio que começo a estimá-la demasiado. Mostra-se tão amável e distinta! Sabias que o irmão do general foi embaixador na Bolívia?

Nesse momento, e com ares de um novo Conde Monte Cristo, Joe extraiu várias notas de banco do bolso, de dez, cinco, dois e um dólar, e colocou-as ao lado dos proventos de Délia.

- Vendi a aquarela do obelisco a um tipo de Peoria. - anunciou com ares importantes.

- Não me digas! E nada menos que de Peoria.

- Exatamente. É um fulano rechonchudo, que usa cachecol de lã e tem um palito entre os dentes permanentemente. Viu o quadro na vitrina de Tinkle, e a princípio pensou que se tratava de um moinho de vento, mas disfarçou bem quando o elucidei. Acabou por adquiri-lo e encomendou-me outro. - Joe fez uma pausa. - Lições de música! Enfim, espero que não se possam considerar totalmente divorciadas da Arte.

- Não imaginas como me alegro, querido! - bradou ela, com genuína satisfação. - Tenho a certeza absoluta de que triunfarás. Trinta e três dólares!... Nunca dispusemos de tanto dinheiro para gastar. Esta noite, haverá ostras para o jantar.

- E filet mignon com champignons - acrescentou Joe. - Onde esta a lata das azeitonas recheadas?

Na noite de sábado seguinte, ele chegou a casa antes de Délia. Colocou em cima da mesa dezoito dólares e foi lavar as mãos, que tinha cobertas de uma substância escura semelhante a pintura. Meia hora mais tarde, ela entrou com a mão direita envolta em ataduras.

- Que aconteceu? - quis saber Joe, após as manifestações extremosas de praxe.

Délia pôs-se a rir, porém a hilaridade soava falso.

- Clementina insistiu em que comesse um sanduíche de queijo quente, depois da lição. Imagina: sanduíches de queijo quente às cinco da tarde! Se alguma vez se viu... O general também estava presente. Gostava que o observasses preparando o fogão elétrico, como se não houvesse um regimento de criados em casa. Agora, já não duvido da saúde frágil da moça. Mostra-se sempre nervosa e a tosse não a larga. Quando servia os sanduíches, deixou cair um pouco de queijo derretido na minha mão. Senti uma dor agudíssima e fiquei queimada. O general achava-se positivamente alarmado. Pôs-se fora de si, correu pela escada abaixo e mandou alguém à farmácia para comprar pomada para as queimaduras e um rolo de ataduras. Agora já não dói tanto.

- E isso o que é? - quis saber ele com ternura. Pegando na mão dela e indicando uma compressa branca que emergia da atadura.

- Um pedaço de algodão embebido em óleo próprio para as queimaduras. - Délia desviou os olhos para a mesa. - Vendeste outro quadro?

- Ao mesmo tipo de Peoria. E parece decidido a adquirir aquele que tenho quase concluído. Que horas eram quando te queimaste?

- Por volta das cinco. O ferro... digo, o queijo saia do fogo precisamente nesse momento e eu... Cada vez que me lembro da contrariedade do coronel...

- Senta-te, querida. - Joe arrastou-a para o sofá, instalou-se a seu lado e perguntou, abraçando-a: - Que fizeste na realidade durante as duas últimas semanas?

Ela sustentou o olhar do marido por uns segundos, murmurou umas frases vagas relativas ao general Pinckney e acabou por inclinar a cabeça e soluçar, enquanto confessava a verdade.

- Não encontrava alunos e não podia suportar a ideia de que abandonasses as aulas. Coloquei-me como engomadeira de camisas naquela importante lavanderia da Rua Vinte e Quatro. No entanto, deves reconhecer que a invenção do general Pinckney e Clementina foi genial. Esta tarde, quando uma companheira de trabalho deixou cair o ferro quente em cima da minha mão, tive de desenvolver esforços enormes para arquitetar o episódio do sanduíche de queijo. Fui alinhavando os pormenores a caminho de casa. Ficaste zangado comigo, Joe? Se não me empregasse, não vendias os quadros ao homem de Peoria.

- Na verdade, não é de Peoria - declarou ele, pausadamente.

- Que importa isso? O essencial é que possuis talento, querido. Beija-me e explica-me como suspeitaste de que não dava lições de piano?

- Só desconfiei quando há pouco te vi entrar. E não adivinharia a verdade... se não fosse eu mesmo que embebi essa compressa em óleo, na sala das máquinas, perto das caldeiras, e a enviei ao andar de cima para uma empregada que acabava de queimar a mão com um ferro de engomar. Devo confessar que sou, há duas semanas, o responsável pelo funcionamento das caldeiras da tua lavanderia.

- Nesse caso, não?...

- O cliente de Peoria e o general Pinckney são produtos da mesma arte -afirmou Joe. - Uma arte que não engloba positivamente a pintura nem a música.

Após uma pausa, puseram-se a rir, divertidos.

- Quando uma pessoa ama a Arte que pratica, sacrifício algum... - começou ele.

Todavia, Délia interrompeu-o, cobrindo-lhe os lábios com a mão.

- Nada disso. Diz apenas: quando se ama...

Fonte:
O. Henry. Publicado originalmente no livro “The Four Million”, em 1906. Disponível no Projeto Gutenberg https://www.gutenberg.org/ebooks/author/634

sábado, 21 de janeiro de 2023

Silmar Böhrer (Gamela de Versos) 34

 

A. A. de Assis (Já comeu truta?)


Filmes e romances com frequência falam de um peixe que, talvez por isso, me deixou sempre com água na boca. Trata-se da truta. Comi pela primeira vez há uns 20 anos, em Nova Friburgo, na região montanhosa do estado do Rio. No Brasil, pelo que me consta, só há desses peixes nas águas frias das corredeiras de serras.

Em Nova Friburgo perguntei a um morador local onde era possível comer truta. Ele me informou que o melhor lugar era um restaurante chamado Bürgermeister, que ficava em frente ao ponto final do ônibus do bairro do Cônego.

Lucilla e eu pegamos o tal ônibus, descemos no ponto final, e lá de fato estava o restaurante, espaço acanhado, mas bem acolhedor. Veio um garçom alemão falando com sotaque forte, pedimos truta para dois. Ele explicou que, se a gente não fosse comer muito, bastava uma. Pois que viesse. Ele ia pegar o peixe no fundo do quintal, ainda vivo, e preparar.

Meia hora depois veio aquela belezura: tostadinha, temperos especiais, ao lado um baita prato de batatas ao gosto germânico. O garçom trabalhou a truta com engenho e arte, extraiu a espinha dorsal, deixou a bonitona pronta para ser saboreada, cheirosa, provocosa. Nem toquei nas batatas, que batata a gente come em qualquer lugar. Meu propósito era anotar no currículo a ingênua glória de haver comido truta.

Na verdade, não garanto que a truta seja mais gostosa que a tainha ou que outro peixe menos cinematográfico. Mas o importante não é a coisa em si, e sim o que a gente imagina que seja. Desde menino via trutas no cinema e lia sobre elas nos livros. Fiquei com elas na fantasia. De repente estava com uma no prato, preparada por um cozinheiro alemão, servida por um garçom de sotaque, num restaurante que parecia essas tabernas de contos medievais.

Uns cem quilômetros abaixo, atravessando a cidade de São Fidélis, rola o rio Paraíba do Sul, onde há robalo e lagosta de água doce, dois petiscos de supina gostosura. Quando você passar por lá, não perca a chance de provar. Mas robalo e lagosta não são personagens de filmes. Truta é. A truta e “as filhas da truta”, como me disse um pescador das cujas ditas.

Vale então, portanto, subir a serra, descobrir lá em cima um restaurante meio escondido no ponto final do ônibus do Cônego, esperar que o cozinheiro pegue a truta no riacho que passa no fundo do quintal, e depois lamber os beiços.

Sempre é bom lembrar que o ato de comer tem dupla finalidade. Uma delas é renovar as nossas energias, a outra é dar de presente ao paladar um indescritível prazer. No caso das trutas, comê-las é um ato de poesia. E se você pensa que paguei caro, engana-se. A truta, as batatas, a caneca de vinho, os pães típicos da casa... tudo aquilo, para duas pessoas, custou menos que uma anchova grelhada em Balneário Camboriú.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 17.11.22)
 
Fonte:
Blog do autor. https://aadeassis.blogspot.com

Wanda de Paula Mourthé (Canteiro de Trovas) 1


Ao se casar o carteiro,
o bebê chega depressa;
— Comigo o tiro é certeiro,
e a encomenda, via expressa!
= = = = = = = = =

A toda pergunta feita
respondeu com tanto "não"
que lhe aplicou a Receita
multa por "só... negação"!
= = = = = = = = =

A vendedora ladina
jura que não é trapaça:
— Olha o véu que a Messalina
"não" usou por ser devassa!
= = = = = = = = =

Com Adão no paraíso,
Eva pensa ao ir pra cama;
— Ah! Se eu tivesse juízo,
dava pra ele... um pijama!
= = = = = = = = =

Convidado a ver pelada,
diz, irado, o garanhão;
— Mulher pelada? Que nada!
Só vi homem de calção!
= = = = = = = = =

Diz a galinha-d'angola:
— Meu marido é mesmo um saco!
Quando tiro a camisola,
logo ele grita: — "Tô fraco"!
= = = = = = = = =

Em meu sonho, a sogra berra:
— Joga mil no burro e dobra! —
Mas seu palpite me ferra;
burro fui eu... deu a cobra!
= = = = = = = = =

Imperfeita é minha lira:
meu "muso" é manco, coitado!
O verso que ele me inspira
sempre sai de pé quebrado!
= = = = = = = = =

Na feira de antiguidade,
ao ancião combalido,
perguntam, não sem maldade:
— Vem comprar ou ser vendido?
= = = = = = = = =

Na noite do seu casório,
sendo um noivo muito antigo,
usou até suspensório,
mas não suspendeu o artigo...
= = = = = = = = =

No escuro, sente a "mão-boba"...
Grita a velha: — Patifão! —
Mas, entre os dentes, diz: — Oba!
Bendito seja o apagão!
= = = = = = = = =

O ladrão me deu pancada,
me roubou e saiu rindo...
Pra vingar, xinguei, danada,
cada nome feio lindo!
= = = = = = = = =

— O meu marido é carteiro,
porém bem cedo aprendeu
que, no lar, o tempo inteiro,
só quem dá as cartas sou eu!
= = = = = = = = =

O meu problema é pagar
altos custos de energia;
basta a luz eu apagar
que acesa fica a Maria!…
= = = = = = = = =

Pão-duro, o cara declara:
— Ter cara-metade é asneira.
Se a metade já é cara,
imagina a esposa inteira!
= = = = = = = = =

Pensa o luso: — Um pesadelo!
Tudo meu em hipoteca...
É de arrepiar cabelo!
A sorte é que sou careca...
= = = = = = = = =

Quando a Zazá sai da linha,
o Zezé nunca se importa;
a mulher é uma galinha,
mas ele, um galinha-morta!
= = = = = = = = =

Quis apagar a queimada,
mas caiu numa esparrela,
pois, estando "alambicada",
a mais queimada foi ela!
= = = = = = = = =

— Que injustiça aos meus instintos!
Amo o galo, ando na linha,
choco ovos, cuido dos pintos
e me chamam de "galinha"?!!!
= = = = = = = = =

Sendo tão feia a encalhada,
com reza só conseguiu
um cego, que, na "largada"
pelo braile... desistiu!
= = = = = = = = =

— Senhor, escutai meu rogo,
dai-me um exímio parceiro!
— Filha, pra apagar seu fogo
só lhe arranjando um bombeiro!
= = = = = = = = =

Suja o muro o pichador.
Preso, grita e faz baderna;
— Isto é um engano, Doutor!
Só fiz arte pós-moderna.
= = = = = = = = =

Tendo o Zé imensa pança,
queixa-se sua mulher
que a barriga dele avança,
porém nunca o que ela quer.
= = = = = = = = =

— Tenho grande novidade:
estou grávida. Que apuro!
— Foi contra sua vontade?
— Que nada! Foi contra o muro.
= = = = = = = = =

— Vem furar onda comigo! —
propõe, na praia, a faceira,
Diz o luso; — Que castigo!
Eu não trouxe a furadeira...

Fonte:
Enviado pela trovadora.
Wanda de Paula Mourthé. Com…passos de emoções. Belo Horizonte: Flux, 2013.

Hans Christian Andersen (A pedra filosofal)


Você conhece a história de Holger Danske? Então não a repetiremos, mas perguntaremos se você se lembra de como "Holger Danske conquistou a grande terra da Índia, a leste no fim do mundo, para a árvore chamada 'a Árvore da o Sol'", como diz Christen Pedersen. Você conhece Christen Pedersen? Não faz diferença se não o fizer.

Holger Danske deu a Prester John seu poder e governo sobre a Índia. Você já ouviu falar do Prester John? Sim? Bem, não faz diferença se você não ouviu falar, porque ele não entra em nossa história. Você vai ouvir sobre a Árvore do Sol "na Índia, a leste no fim do mundo", como as pessoas acreditavam que fosse então, pois não haviam estudado sua geografia como nós - mas isso não faz qualquer diferença!

A Árvore do Sol era uma árvore magnífica, como nunca vimos e provavelmente nunca veremos. Sua coroa se estendia por quilômetros ao redor; era realmente um bosque inteiro, pois cada um de seus galhos menores formavam, por sua vez, uma árvore inteira. Palmeiras, faias, plátanos, sim, e muitos outros tipos de árvores cresceram aqui, árvores que podem ser encontradas em todo o mundo; elas brotavam, como pequenos galhos, dos grandes galhos, e estes, com seus nós e curvas, eram como colinas e vales, atapetados com um verde suave e aveludado e cobertos com milhares de flores. Cada galho era como um grande prado florido ou o mais belo jardim. O abençoado Sol brilhou sobre ela, pois, lembre-se, era a Árvore do Sol.

Aqui se reuniam pássaros de todo o mundo, pássaros das florestas primitivas da América, dos roseirais de Damasco, ou dos bosques selvagens da África, onde o elefante e o leão imaginam que só eles reinam. Os pássaros polares vieram para cá, e a cegonha e a andorinha naturalmente também. Mas os pássaros não eram as únicas criaturas vivas aqui; o veado, o esquilo, o antílope e centenas de outros animais bonitos e de patas leves se sentiam em casa neste lugar. A copa da árvore era um jardim amplo e perfumado, e bem no centro dele, onde os grandes galhos se erguiam em uma colina verde, havia um castelo de cristal com vista para todos os países do mundo. Cada torre erguia-se na forma de um lírio, e podia-se subir pelo caule, pois no interior havia escadas em caracol. Podia-se sair para as folhas - essas eram as varandas; e no topo da flor havia um belo e brilhante salão redondo, sem teto acima dele, apenas o céu azul, com o sol ou as estrelas.

Lá embaixo, nos amplos salões do castelo, havia o mesmo esplendor, embora de um tipo diferente. Aqui o mundo inteiro se refletia nas paredes. Podia-se ver tudo o que acontecia, então não havia necessidade de ler jornais; não havia jornais aqui, de qualquer maneira. Tudo podia ser visto em imagens vivas, se alguém quisesse ou pudesse ver tudo; pois muito é demais, mesmo para o homem mais sábio. E o mais sábio de todos os homens viveu aqui.

O nome dele é muito difícil para você pronunciar e, de qualquer forma, não faz diferença. Ele sabia tudo o que um homem na terra pode saber ou esperar saber; ele conhecia todas as invenções que haviam sido feitas ou ainda seriam feitas; mas ele não sabia nada além disso, pois tudo no mundo tem seus limites. O velho e sábio rei Salomão tinha apenas metade da sabedoria deste homem, e ainda assim ele era muito sábio de fato, e governava as forças da natureza e dominava os espíritos poderosos; até a própria Morte foi forçada a relatar todas as manhãs com uma lista daqueles que iriam morrer durante o dia. Mas o próprio rei Salomão também teve que morrer, e esse era o pensamento que muitas vezes ocupava a mente do sábio e poderoso governante do castelo da Árvore do Sol. Por mais que ele se eleve acima dos homens em sabedoria, ele também deve morrer algum dia. Ele sabia que ele e seus filhos também, devem murchar como as folhas da floresta e virar pó. Ele podia ver a raça humana desaparecer como folhas nas árvores e novos homens surgirem para tomar seus lugares. Mas as folhas que caíram nunca mais viveram; eles se tornaram pó sobre outras plantas.

O que aconteceu com o homem quando o Anjo da Morte veio até ele? O que poderia ser a Morte? O corpo tornou-se deteriorado. E a alma? Sim, o que era a alma? O que aconteceu com isso? Para onde foi? "Para a vida eterna", disse a voz reconfortante da religião. Mas qual foi a transição? Onde alguém morava e como? "No céu acima", disseram as pessoas piedosas; "e lá vamos nós." "Acima de?" repetiu o Sábio, e olhou para a lua e as estrelas. "Lá em cima?"

Do globo terrestre ele viu que "acima" e "abaixo" poderiam ser um e o mesmo, dependendo de onde a pessoa estivesse na rotação da terra. E se ele subisse tão alto quanto as montanhas mais altas da terra erguem seus picos, lá no ar que chamamos de claro e transparente - "o céu puro" - haveria uma escuridão negra, espalhada por tudo como um pano, e o sol teria um brilho acobreado sem emitir raios, e nossa terra estaria envolta em uma névoa alaranjada. Quão estreitos eram os limites do olho mortal e quão pouco podia ser visto pelo olho da alma! Mesmo os mais sábios pouco sabiam daquilo que é o mais importante para nós.

Na câmara mais secreta daquele castelo estava o maior tesouro da terra - o Livro da Verdade. Página após página, o Sábio havia lido tudo. Todo homem pode ler este livro, mas apenas partes dele; para muitos a seus olhos, as letras parecem desaparecer, de modo que as palavras não podem nem ser soletradas; em algumas páginas a escrita é tão pálida que parecem folhas em branco. Mas quanto mais sábio um homem se torna, mais ele pode ler; e os homens mais sábios leem mais. O Sábio soube unir a luz do sol e a luz das estrelas com a luz da razão e os poderes ocultos de sua alma, e sob essa luz ofuscante muitas coisas se destacavam claramente nas páginas diante dele. Mas no capítulo do livro intitulado "Vida Após a Morte" não havia nem uma única letra para ver. Isso o entristeceu.

Como o sábio Rei Salomão, ele entendia a linguagem dos animais e podia interpretar sua fala e suas canções. Mas isso não o tornou mais sábio. Ele havia aprendido os poderes das plantas e dos metais, poderes que poderiam ser usados ​​para curar doenças ou retardar a morte, mas nenhum que pudesse destruir a morte. Em todas as coisas criadas que pôde alcançar, procurou a luz que iluminaria a certeza da vida eterna, mas não a encontrou. Folhas em branco ainda apareciam no Livro da Verdade diante dele. O cristianismo lhe deu palavras de promessa de vida eterna na Bíblia, mas ele quis ler em seu livro; e lá ele não podia ver nada sobre isso.

O Sábio teve cinco filhos, quatro filhos, educados tão bem quanto os filhos dos pais mais sábios deveriam ser, e uma filha, adorável, gentil e inteligente, mas cega. No entanto, essa aflição não foi uma privação para ela, pois seu pai e irmãos eram olhos mortais para ela, e sua própria percepção aguçada deu-lhe uma visão mental clara.

Os filhos nunca se aventuraram mais longe do castelo do que a extensão dos galhos da árvore, nem a irmã jamais saiu de casa. Eles eram crianças felizes no lar de sua infância - a bela e perfumada Árvore do Sol.

Como todas as crianças, elas ficavam felizes quando as histórias eram contadas, e seu pai lhes contava muitas coisas que outras crianças nunca teriam entendido, mas essas crianças eram tão espertas quanto a maioria dos nossos velhos. Ele explicou a eles as imagens da vida que eles viram nas paredes do castelo - o trabalho dos homens e a marcha dos eventos em todas as terras da terra. Frequentemente, os filhos desejavam poder ir ao mundo e participar dos grandes feitos de outros homens, e então o pai explicava a eles que era difícil e cansativo estar no mundo, que o mundo não era como eles viam sua bela casa.

Ele lhes falou do bem, do verdadeiro e do belo, e explicou que esses três se uniam no mundo e que, sob a pressão que suportavam, endureciam e se transformavam em uma pedra preciosa, mais pura que a água de um diamante - uma joia esplêndida. de valor para o próprio Deus, cujo brilho ofusca todas as coisas; isso foi chamado de "Pedra do Homem Sábio". Ele lhes disse que, assim como o homem poderia obter conhecimento da existência de Deus ao procurá-lo, também estava dentro do poder do homem obter a prova de que uma joia como a "Pedra do Homem Sábio" existia. Essa explicação estaria além da compreensão de outras crianças, mas essas crianças poderiam entendê-la e, com o tempo, outras crianças também aprenderão a entender seu significado.

Eles perguntaram ao pai sobre o verdadeiro, o belo e o bom, e ele lhes contou muitas coisas - como quando Deus fez o homem do pó da terra, Ele deu à Sua obra cinco beijos, beijos de fogo, beijos de coração, que nós agora chame os cinco sentidos. Através deles, aquilo que é verdadeiro, belo e bom é visto, sentido e compreendido; através deles, é valorizado, protegido e aumentado. Cinco sentidos foram dados, física e mentalmente, interior e exteriormente, ao corpo e à alma.

De dia e de noite, as crianças pensavam profundamente sobre todas essas coisas. Então o mais velho dos irmãos teve um sonho maravilhoso; e, estranhamente, o segundo irmão teve o mesmo sonho, e o terceiro também, e o quarto - todos eles sonharam exatamente a mesma coisa. Eles sonharam que cada um saiu pelo mundo e encontrou a "Pedra do Sábio", que brilhava como uma luz radiante em sua testa quando, na madrugada da manhã, ele cavalgava seu cavalo veloz pelos prados verdejantes de casa para o castelo de seu pai. Então a joia lançou uma luz e um brilho tão divinos sobre as páginas do livro que tudo o que estava escrito ali sobre a vida além túmulo foi iluminado. Mas a irmã não sonhava em se aventurar no mundo, pois isso nunca havia passado por sua cabeça. Seu mundo era o castelo de seu pai.

"Vou cavalgar pelo vasto mundo", disse o irmão mais velho. "Devo descobrir como é a vida lá e me misturar com as pessoas. Farei apenas o que é bom e verdadeiro, e com isso protegerei o belo. Muitas coisas mudarão para melhor quando eu estiver lá."

Sim, seus pensamentos eram ousados ​​e grandes, como nossos pensamentos sempre estão em casa, antes de sairmos para o mundo e encontrarmos vento e chuva, espinhos e cardos.

Agora, em todos esses irmãos, os cinco sentidos foram altamente desenvolvidos, tanto interior como exteriormente; mas em cada um deles um sentido atingiu uma agudeza que ultrapassava os outros quatro. No caso do mais velho, esse sentido marcante era a Visão. Isso seria um benefício especial para ele. Ele tinha olhos para todos os tempos, disse ele, e olhos para todas as nações, olhos que podiam olhar para as profundezas da terra, onde tesouros estão escondidos, ou para as profundezas do coração das pessoas, como se apenas uma vidraça transparente fosse antes deles; em outras palavras, ele viu mais do que nós poderíamos na face que cora ou empalidece, no olho que chora ou ri.

Cervos e antílopes o escoltaram até os limites ocidentais de sua casa, e lá os cisnes selvagens o receberam e o levaram para o noroeste. E agora ele estava longe no mundo, longe da terra de seu pai, que se estendia para o leste até os confins da terra.

Quão amplamente seus olhos se abriram de espanto! Havia muitas coisas para serem vistas aqui; e as coisas parecem muito diferentes quando um homem as olha com seus próprios olhos, em vez de apenas em uma foto, como ele havia feito na casa de seu pai, por melhor que seja a foto, e as da casa de seu pai eram extraordinariamente boas. A princípio, ele quase perdeu os olhos de espanto com todo o lixo, todas as decorações carnavalescas que deveriam representar o belo; mas ele não os perdeu completamente, e logo encontrou pleno uso para eles. Ele desejava trabalhar completa e honestamente para compreender o belo, o verdadeiro e o bom. Mas como eles foram representados no mundo? Ele viu que muitas vezes o elogio que por direito pertencia ao belo era dado ao feio; que o bem era muitas vezes esquecido, e a mediocridade foi aplaudida quando deveria ter sido sibilada. As pessoas olhavam para o vestido e não para quem o usava, pediam um nome em vez de um valor e guiavam-se mais pela reputação do que pelo valor. Era o mesmo em todos os lugares.

"Devo atacar essas coisas", pensou, e assim o fez.

Mas enquanto ele buscava a verdade, apareceu o Diabo, que é o pai de todas as mentiras. Com prazer ele teria arrancado os olhos desse vidente, mas isso teria sido muito brusco, pois o Diabo trabalha de maneira mais astuta. Ele o deixou continuar a buscar e ver o verdadeiro e o bom; mas enquanto o jovem fazia isso, o Diabo soprou um cisco em seu olho, em ambos os olhos, um cisco após o outro; isso, é claro, prejudicaria até mesmo a visão mais clara. Então o demônio soprou sobre os ciscos até que se tornassem vigas e os olhos fossem destruídos. Lá o Vidente ficou como um cego no grande mundo e não tinha fé nele, pois havia perdido sua boa opinião sobre ele e sobre si mesmo. E quando um homem perde a confiança no mundo e em si mesmo, tudo acaba com ele.

"Por toda parte!" cantaram os cisnes selvagens, voando pelo mar em direção ao leste. "Por toda parte!" repetiram as andorinhas, também voando para o leste em direção à Árvore do Sol. Não eram boas notícias as que levavam para a casa do jovem.

"O Vidente deve ter se saído mal", disse o segundo irmão, "mas o Ouvinte pode ter mais sorte." Pois neste filho o sentido da audição foi desenvolvido em um grau muito alto; tão agudo era que ele podia ouvir a própria grama crescer.

Ele se despediu com amor e partiu de casa, cheio de boas habilidades e boas intenções. As andorinhas o seguiram, e ele seguiu os cisnes, até que ele estava longe de casa, longe no vasto mundo.

Então ele descobriu que alguém pode ter muitas coisas boas. Pois sua audição era muito boa. Ele não apenas podia ouvir a grama crescer, mas também podia ouvir o coração de cada homem bater, seja na tristeza ou na alegria. Para ele, o mundo inteiro era como a grande oficina de um relojoeiro, com todos os relógios marcando "Tick, tack" e todos os relógios da torre batendo "Ding, dong". O barulho era insuportável. Por um longo tempo seus ouvidos se estenderam, mas por fim todo o barulho, os gritos, tornaram-se demais para um homem. Então "garotos de rua", de cerca de sessenta anos de idade - anos sozinhos não fazem homens - levantaram um tumulto, do qual o Ouvinte teria rido, exceto pela conversa caluniosa que se seguiu e ecoou por todas as casas e ruas; foi ouvido até nas estradas do país. A falsidade avançou e fingiu ser o mestre; sinos nos bonés dos tolos tilintaram e insistiram que eram sinos de igreja, até que o barulho se tornou demais para o Ouvinte e ele enfiou os dedos nos ouvidos. Mas ele ainda podia ouvir cantos falsos e sons malignos, fofocas e palavras vãs, escândalos e calúnias, gemidos e gemidos, por todos os lados - nada disso valia a pena ouvir. O Paraíso nos ajuda! Era impossível suportar; foi tudo muito louco! Ele enfiou os dedos cada vez mais fundo em seus ouvidos, até que finalmente seus tímpanos estouraram. Agora ele não ouvia absolutamente nada; ele não podia ouvir o verdadeiro, o belo e o bom; sua audição deveria ter sido a ponte pela qual ele teria atravessado para ela. Ele ficou taciturno e desconfiado, finalmente não confiando em ninguém, nem mesmo em si mesmo, e isso foi muito lamentável. Ele não seria capaz de descobrir e trazer para casa a joia divina, então desistiu; até se entregou, e isso foi o pior de tudo. Os pássaros que voaram para o leste trouxeram a notícia disso também para o castelo do pai na Árvore do Sol; nenhuma carta chegou lá, pois não havia serviço de correio.

"Agora vou tentar", disse o terceiro irmão. "Eu tenho um olfato acentuado."

Não era uma prática muito boa para ele se vangloriar assim, mas era o jeito dele, e devemos aceitá-lo como ele era. Ele tinha um temperamento alegre e era um poeta, um grande poeta; ele podia cantar muitas coisas que não sabia falar, e as ideias vinham a ele muito mais rapidamente do que a outros.

"Eu posso sentir o cheiro de um rato!" ele disse. E foi ao seu olfato altamente desenvolvido que ele atribuiu sua grande gama de conhecimentos sobre o reino do belo.

"Cada ponto perfumado no reino do belo tem seus habitantes", disse ele. "Alguns gostam do cheiro das flores de macieira; outros gostam do cheiro de um estábulo. Um homem sente-se em casa na atmosfera da taverna, entre as velas fumegantes de sebo, onde o cheiro de aguardente se mistura com a fumaça do tabaco barato. Outro prefere estar perto do cheiro forte de jasmim, ou perfumar-se com óleo forte de cravo. Alguns buscam a brisa fresca do mar, enquanto outros escalam a montanha mais alta para observar a pequena vida agitada abaixo."

Sim, assim ele falou. Parecia-lhe como se já tivesse estado no mundo inteiro e conhecido pessoas próximas a eles. Mas essa convicção surgiu de dentro dele; era o poeta dentro dele, o presente que o céu lhe dera em seu berço.

Despediu-se de seu lar ancestral na Árvore do Sol e seguiu a pé pelo agradável campo. Quando chegou aos limites de sua casa, montou um avestruz, que corre mais rápido que um cavalo, e quando mais tarde encontrou os cisnes selvagens, saltou sobre o mais forte deles, pois amava a variedade. Para longe ele voou através do mar para terras distantes de grandes florestas, lagos profundos, montanhas imponentes e cidades orgulhosas. E onde quer que ele aparecesse, parecia que a luz do sol viajava com ele pelo campo, pois cada flor e arbusto exalava uma nova fragrância, consciente de que por perto havia um amigo e protetor que os entendia e conhecia seu valor. Então a roseira aleijada estendeu seus ramos, abriu suas folhas e deu flores às mais belas rosas; até o caracol de madeira preto e viscoso viu sua beleza.

"Vou colocar minha marca na flor", disse o caracol. "Agora eu cuspi nele e não há mais nada que eu possa fazer por isso."

“Assim sempre se passa o belo neste mundo!”, disse o Poeta.

Então ele cantou uma música sobre isso à sua maneira, mas ninguém ouviu. Então ele deu a um baterista dois centavos e uma pena de pavão, e então arranjou a música para o tambor, e o fez tocar por toda a cidade, em todas as ruas e vielas. Quando as pessoas ouviram, disseram que entenderam - foi muito profundo!

E assim o Poeta cantou outras canções sobre o belo, o bom e o verdadeiro, e as pessoas as ouviram entre as velas fumegantes das tavernas, ouvidas nos prados frescos, nas florestas e em alto mar. Parecia que esse irmão teria mais sorte do que os outros dois.

Mas isso irritou o Diabo, e então ele prontamente começou a trabalhar com todo o pó de incenso e fumaça que encontrou, o mais forte, que pode sufocar qualquer um, e que ele pode preparar com arte suficiente para confundir até mesmo um anjo - e certamente, portanto, , um pobre poeta! O Diabo sabe como se apoderar de um homem assim! Ele cercou o Poeta tão completamente com incenso que o pobre homem perdeu a cabeça, esqueceu sua missão, sua casa, tudo - até ele mesmo; ele então desapareceu na fumaça.

Quando os passarinhos souberam disso, ficaram tristes e por três dias não cantaram. O caracol de madeira preta ficou ainda mais preto, não de tristeza, mas de inveja.

"Eles deveriam ter queimado incenso para mim", disse ele, "pois fui eu quem lhe deu a ideia da mais famosa de suas canções, a canção de tambor sobre o caminho do mundo. Fui eu quem cuspiu na rosa! Posso trazer testemunhas para provar isso!"

Mas nenhuma notícia disso chegou à casa do Poeta na Índia, pois todos os passarinhos ficaram de luto e em silêncio por três dias; e quando o tempo de luto terminou, sua dor foi tão profunda que eles esqueceram por quem choraram. E é assim que acontece.

"Agora terei que ir para o mundo e ficar longe como os outros", disse o quarto irmão.

Ele tinha um humor tão bom quanto o terceiro, embora não fosse poeta, o que era um bom motivo para ele ter bom humor. Aqueles dois haviam enchido o castelo de alegria, e agora o que restava dessa alegria estava indo embora. Os homens sempre consideraram a visão e a audição os dois sentidos mais importantes, aqueles que é mais desejável fortalecer e aguçar; os outros três sentidos são geralmente vistos como subordinados. Mas essa não era a crença desse filho, pois ele cultivou especialmente seu gosto de todas as maneiras possíveis, e o gosto é realmente muito poderoso. Governa o que entra na boca e na mente; por isso este irmão provou tudo o que havia em potes e panelas, em garrafas e barris, explicando que esse era o lado grosseiro de sua função. Para ele, todo homem era uma vasilha com algo cozinhando dentro, e todo país era uma enorme cozinha,

"Talvez eu tenha mais sorte do que meus irmãos. Devo seguir meu caminho - mas como devo viajar? Os balões já foram inventados?" perguntou ao pai, que sabia de todas as invenções que haviam sido feitas ou que seriam no futuro. Mas os homens ainda não haviam inventado balões, navios a vapor ou ferrovias. "Então irei de balão", disse ele. "Meu pai sabe como eles são feitos e dirigidos, e isso eu posso aprender. Eles ainda não foram inventados, então as pessoas vão pensar que é algum espírito do ar. Quando eu terminar com o balão, vou queimá-lo e para isso, você deve me dar algumas peças de outra invenção que está por vir - fósforos."

Quando ele recebeu o que queria, ele voou para longe. Os pássaros voaram muito mais longe com ele do que com seus irmãos. Eles estavam curiosos para saber como seria o voo, pois pensaram que era algum novo tipo de pássaro. Mais e mais vieram verificar até que o ar estava preto com os pássaros; eles vieram como a nuvem de gafanhotos sobre a terra do Egito. E então agora ele, o último irmão, estava no mundo inteiro.

"O Vento Leste é um bom amigo e ajudante para mim", disse ele.

"Você quer dizer o Vento Leste e o Vento Oeste!" disseram os ventos. "Você não poderia ter voado para o noroeste se nós dois não tivéssemos ajudado você."

Mas ele não ouviu o que o vento disse, e isso não faz diferença. Os pássaros cansaram de voar junto com o balão. Muito se falou sobre aquela coisa, disseram alguns deles. Tornou-se vaidoso! "Não vale a pena voar; não é nada!" E então eles se retiraram; todos se retiraram, pois de fato muito havia sido feito do nada.

O balão desceu sobre uma das maiores cidades, e o aeronauta pousou no ponto mais alto, o campanário da igreja. O balão voltou a subir no ar, o que não deveria ter acontecido; não sabemos para onde foi, mas isso não importa, pois ainda não foi inventado. Lá o jovem sentou-se no campanário da igreja, os pássaros não mais pairando ao seu redor; ele estava tão cansado deles quanto eles dele.

Todas as chaminés da cidade fumavam fervorosamente.

"Aqueles são altares erguidos em sua homenagem", disse o Vento, que achou que deveria dizer algo agradável.

Ele se sentou lá em cima corajosamente e olhou para as pessoas nas ruas. Uma pessoa estava se exibindo, orgulhosa de sua bolsa; outro orgulhava-se da chave que trazia pendurada em seu cinto, embora não tivesse nada para abri-la; um estava orgulhoso de seu casaco comido por traças, outro de seu corpo comido por vermes.

"Vaidade!" ele disse. "Preciso descer, mergulhar meus dedos naquela panela e prová-la. Mas vou sentar aqui mais um pouco, pois o vento sopra muito bem em minhas costas; vou descansar um pouco. 'É bom dormir muito pela manhã, quando se tem muito que fazer', diz o preguiçoso. A preguiça é a raiz de todos os males, mas não há mal em nossa família. Ficarei aqui enquanto o vento soprar, isso é bom."

Então ele se sentou lá; mas como estava sentado no catavento do campanário, que girava e girava com ele, teve a falsa ideia de que ainda soprava o mesmo vento, por isso ficou sentado ali; ele poderia muito bem ficar um longo tempo e ter um bom gosto.

De volta à Índia, no castelo da Árvore do Sol, ficou vazio e silencioso depois que os irmãos, um após o outro, foram embora.

"As coisas estão indo mal com eles", disse o pai. "Eles nunca trarão para casa a joia brilhante; não é para mim. Eles estão todos mortos e enterrados!" E então ele se curvou sobre o Livro da Verdade e olhou para a página que deveria lhe contar sobre a vida após a morte, mas não havia nada para ele ver ou aprender com ela.

Agora sua filha cega era sua única alegria e consolo; ela se agarrou a ele com profunda afeição e, para sua felicidade e paz de espírito, desejou que a preciosa joia fosse descoberta e trazida para casa. Com tristeza e saudade, ela pensou em seus irmãos. Onde eles estavam? Onde eles poderiam estar morando? De todo o coração ela desejou poder sonhar com eles, mas, estranhamente, nem mesmo em seus sonhos ela poderia alcançá-los.

Por fim, certa noite, ela sonhou que suas vozes soavam até ela, chamando-a do vasto mundo, e ela não pôde se conter, mas viajou para muito, muito longe; e ainda assim ela parecia ainda estar na casa de seu pai. Ela nunca conheceu seus irmãos. mas em seu sonho ela sentiu uma espécie de fogo queimando em sua mão que não a doía - era a joia brilhante que ela trazia para seu pai.

Quando acordou, pensou por um momento que ainda segurava a pedra na mão, mas era o cabo da roca que segurava. Durante aquela longa noite ela fiara incessantemente, e na roca havia um fio mais fino que a mais fina teia de aranha; os olhos humanos não podiam distinguir os fios separados nele, tão finos eram. Ela o havia umedecido com suas lágrimas e era forte como uma corda. Ela se levantou; sua decisão foi tomada - o sonho deve se tornar realidade.

Ainda era noite e seu pai estava dormindo. Ela deu um beijo em sua mão e então, pegando sua roca, amarrou a ponta do fio no castelo de seu pai. Se não fosse por isso, em sua cegueira, ela nunca teria conseguido encontrar o caminho de casa; ela deve se apegar a esse fio e não confiar nem em si mesma nem nos outros. Da Árvore do Sol ela arrancou quatro folhas; estes ela confiaria aos ventos para levar a seus irmãos como cartas de saudação, caso ela não os encontrasse lá fora, no vasto mundo.

Como ela poderia se sair, aquela pobre criança cega? Ela poderia agarrar-se ao seu fio invisível. Ela possuía um dom que faltava a todos os outros - sensibilidade - e em virtude disso parecia ter olhos na ponta dos dedos e ouvidos no coração.

Então ela saiu silenciosamente para o mundo estranho, barulhento e rodopiante, e onde quer que ela fosse, o céu ficava tão brilhante com a luz do sol que ela podia sentir os raios quentes; e o arco-íris se espalhou pelo ar azul onde antes havia nuvens escuras. Ela ouviu o canto dos pássaros e sentiu o cheiro dos pomares de laranjeiras e macieiras com tanta força que parecia sentir o gosto da fruta. Tons suaves e sons deliciosos alcançaram seus ouvidos, mas com eles vieram uivos e rugidos; múltiplos pensamentos e opiniões se contradiziam estranhamente. Os ecos dos pensamentos e sentimentos humanos penetraram nas profundezas de seu coração. Um refrão soou tristemente:

Nossa vida terrena está cheia de névoa e chuva; E no escuro da noite choramos de dor!

Mas então ela ouviu uma melodia mais brilhante:

Nossa vida terrena é como uma roseira, tão brilhante; Está cheio de sol e verdadeiro deleite!

E se um refrão soasse amargamente:

Cada pessoa pensa apenas em si; Esta verdade para nós é frequentemente mostrada.

Do outro lado veio a resposta:

Ao longo de nossa vida, uma Fada do Amor Guia nossos passos lá do céu.

Ela podia ouvir as palavras:

Há mesquinhez aqui, por toda parte; Tudo tem seu lado errado.

Mas então ela ouviu:

Tanta coisa boa é feita aqui Que nunca chega aos ouvidos do homem.

E se às vezes as palavras zombeteiras soavam para ela:

Goze de tudo, ria de brincadeira, Ria junto com todo o resto!

Uma voz mais forte veio do coração da Cega:

Confie em Deus e em si mesmo; ore então que Sua vontade seja feita para sempre.

Sempre que a Cega entrava no círculo da humanidade e aparecia entre as pessoas, jovens ou velhas, o conhecimento do verdadeiro, do bom e do belo brilhava em seus corações. Onde quer que ela fosse, quer entrasse no estúdio do artista, ou no salão decorado para a festa, ou na fábrica lotada com suas rodas giratórias, parecia que um raio de sol estava entrando, como se a corda de um alaúde soasse, ou um flor exalava seu perfume, ou uma refrescante gota de orvalho caía sobre uma folha murcha.

Mas o Diabo não suportou isso. Com mais astúcia do que dez mil homens, ele concebeu uma maneira de realizar seu propósito. Do pântano ele coletou pequenas bolhas de água estagnada e murmurou sobre elas um eco de palavras falsas, para dar-lhes força. Em seguida, misturou poemas heroicos comprados e epitáfios mentirosos, tantos quanto pôde encontrar, ferveu-os em lágrimas de inveja, coloriu-os com tinta gordurosa que raspou das faces desbotadas de uma velha senhora, e com tudo isso formou uma donzela , com a aparência e porte da Cega, o bendito anjo da sensibilidade. Então a trama do Diabo foi consumada, pois o mundo não sabia qual dos dois era o verdadeiro e, de fato, como o mundo poderia saber?

Confie em Deus e em si mesmo; ore então que Sua vontade seja feita, para sempre.

Cantou a Menina Cega com total fé. Então ela confiou aos ventos as quatro folhas verdes da Árvore do Sol como cartas de saudação a seus irmãos, e ela estava certa de que eles chegariam a seus destinos e a joia seria encontrada, a joia que ofusca todas as glórias do mundo. Da fronte da humanidade brilharia até a casa de seu pai.

"Até na casa de meu pai", ela repetiu. "Sim, o lugar da joia é nesta terra, e trarei comigo mais do que a promessa dela. Posso sentir seu brilho; em minha mão fechada ela cresce cada vez mais. Cada grão de verdade, por mais fino que seja era, que o vento girava em minha direção, eu apanhei e entesourei; deixei penetrar nela a fragrância do belo, que há tanto no mundo, mesmo para os cegos. Ao primeiro acrescentei o som do coração batendo, fazendo o bem. Trago apenas pó comigo, mas ainda é o pó da joia que procurávamos, e é em grande quantidade. Tenho toda a minha mão cheia dele!"

Então ela estendeu a mão para o pai. Ela estava em casa. Ela havia viajado para lá com a rapidez dos pensamentos em fuga, sem nunca ter soltado o fio invisível que conduzia ao lar.

Com a fúria de um furacão, os poderes do mal varreram a Árvore do Sol, e suas rajadas de vento correram pela porta aberta, para dentro do santuário do Livro da Verdade.

"Vai ser levado pelo vento!" gritou o pai, e ele agarrou a mão que ela havia aberto.

"Nunca!" ela respondeu com calma segurança. "Não pode ser soprado; posso sentir os raios aquecendo minha alma."

E o pai percebeu uma chama deslumbrante, bem onde o pó brilhante derramava de sua mão sobre o Livro da Verdade, que daria a certeza de uma vida eterna. Agora, na página em branco brilhava uma palavra brilhante - uma palavra apenas -

ACREDITEM

E mais uma vez os quatro irmãos estavam com o pai e a irmã. Quando a folha verde caiu sobre o seio de cada um, uma grande saudade de casa se apoderou deles e os trouxe de volta; os pássaros de passagem os seguiram, assim como o cervo, o antílope e todas as criaturas selvagens da floresta, pois todos desejavam compartilhar de suas alegrias - e por que não deveriam quando podiam?

Muitas vezes vimos como uma coluna de poeira gira em torno de onde um raio de sol irrompe por uma fresta de uma porta em uma sala empoeirada. Mas isso não era poeira comum e insignificante; até as cores do arco-íris são sem vida em comparação com a beleza que se mostrou aqui. Da página do livro, da brilhante palavra Acredite, surgiu cada grão de verdade, enfeitado com a beleza do belo e do bom, flamejando mais brilhante do que a poderosa coluna de fogo que conduziu Moisés e os filhos de Israel à terra de Canaã. E da palavra Acreditar surgiu a ponte da Esperança, estendendo-se ao amor eterno no reino do Infinito.

Fonte:
Traduzido do Inglês por GP Feldman, do Wikisource. Publicado originalmente em 1858.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

Edy Soares (Manuscritos (Di)versos) – 25: Tempo de Amar

 

Filemon Martins (Conto da vida)


Gilberto estava casado há mais de sete anos. Muitos foram os seus romances na juventude. Mas poucos sabiam que o seu verdadeiro amor ficou perdido há treze anos atrás. Miridan, era este seu nome, com dezessete anos, morava no bairro do Limão, em São Paulo. Ele, com vinte e três anos, numa pensão do Brás. No velho e nostálgico bairro do Brás. Trabalhava a semana inteira, mas no sábado e domingo, lá estava ele com sua amada. O tempo passou e não se sabe exatamente porque, eles não se casaram.

Gilberto ficou arrasado. Queria fugir da vida. Isolou-se completamente. Tentou esquecê-la. Não deu mais notícias, nem quis saber notícias dela. Tempos depois, ainda jovem, ele se casou. Morava na periferia de São Paulo. Naquele bairro, já havia comprado uma casa e levava uma vida relativamente boa. Trabalhava, é verdade, mas quem não trabalha hoje em dia? Só se estiver desempregado. Não era o caso do Gilberto.

Do seu casamento, nasceram dois filhos. Lindos. Eram o sol de sua vida. Aparentemente, não lhe faltava nada. Parecia feliz. Que mais ele queria? A esposa também trabalhava, dividindo a despesa, que ninguém é de ferro.

Quase sempre tomavam o trem até a estação do Brás.

Numa certa manhã, entraram no trem, e a esposa se sentou; ele, porém, ficou em pé. Depois, a esposa lhe disse: há um lugar ali, sente-se. De imediato, obedeceu. Não observou que no banco já havia uma moça, com quem, mais tarde, começou a conversar.

Ficou meio tonto. Aquela voz não lhe era estranha. Havia alguma coisa no ar. Olhou e pensou em silêncio: não é possível, é ela, a Miridan. Estava ali, lado a lado, com sua paixão maior. Fora ela, há treze anos atrás, sua inspiração, sua razão de viver. Não queria acreditar. Seu coração batia cada vez mais forte. E começou a matutar: Nem o destino resistira a tanto amor. Era demais. Agora, ela estava ali, perto dele, também casada e com um filho. Cursava o último ano de Direito. Inteligente. Batalhadora. Mas não era feliz no casamento.

Passaram-se alguns dias e algumas noites e ele continuou pensando nela. E ela, pensando nele. Não era possível esperar mais. Marcaram encontro. Foi-se o primeiro, o segundo, o terceiro... Não havia como fugir. Era a força do amor, a emoção de sentir a vida. De viver outra vez.

Tinha que partir. E assim o fez. Um belo dia, largou tudo: mulher, filhos e partiu. Em busca de uma nova vida. De um novo e antigo amor. Definitivo, duradouro ? Quem sabe ?

Algum tempo depois foi visto numa outra cidade e pelo que se sabe, sua mulher e filhos nunca mais o viram, nem tiveram notícias dele. Sua esposa o esperou por mais de 6 ou 7 anos com a aliança no dedo. Aqui, nunca mais ele voltou. Desapareceu do mapa. Não se sabe se o Gilberto encontrou a tão sonhada felicidade e sequer se ficaram juntos ou se ainda vivem para confirmar esta história.

Fernando Pessoa (Caravelas da Poesia) XLIX


O céu de todos os invernos

 
O céu de todos os invernos
Cobre em meu ser todo o verão...
Vai pras profundas dos infernos
E deixa em paz meu coração!

Por ti meu pensamento é triste,
Meu sentimento anda estrangeiro;
A tua ideia em mim insiste
Como uma falta de dinheiro.

Não posso dominar meu sonho.
Não te posso obrigar a amar.
Que hei de fazer? Fico tristonho.
Mas a tristeza há de acabar.
Bem sei, bem sei...

A dor de corno
Mas não fui eu que lho chamei.
Amar-te causa-me transtorno,
Lá que transtorno é que não sei...

Ridículo? É claro. E todos?
Mas a consciência de o ser,
fi-la bastante clara deitando-a a rodos
Em cinco quadras de oito sílabas.
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O Contra-Símbolo
 
Uma só luz sombreia o cais.
Há um som de barco que vai indo.
Horror! Não nos vemos mais!
A maresia vem subindo.

E o cheiro prateado a mar morto
Cerra a atmosfera de pensar
Até tomar-se este como porto
E este cais a bruxulear.

Um apeadeiro universal
Onde cada um 'spera isolado
Ao ruído - mar ou pinheiral? -
O expresso inútil atrasado.

E no desdobre da memória
O viajante indefinido
Ouve contar-se só a história
Do cais morto do barco ido.
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Ó curva do horizonte, quem te passa,
 
Ó curva do horizonte, quem te passa,
Passa da vista,
não de ser ou 'star.
Não chameis à alma, que da vida esvoaça,
Morta. Dizei: Sumiu-se além no mar.
Ó mar, sê simbolo da vida toda -
Incerto, o mesmo e mais que o nosso ver!
Finda a viagem da morte e a terra à roda,
Voltou a alma e a nau a aparecer.
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Ó ervas frescas que cobris
 
Ó ervas frescas que cobris
As sepulturas,
Vosso verde tem cores vis
A meus olhos, já servis
De conjeturas.

Sabemos bem de quem viveis
Ervas do chão,
Que sossego é esse que fazeis
Verde na forma que trazeis
Sem compaixão.

Ó verdes ervas, como o azul medo
Do céu sem Ser,
Cunhado como entre segredo
Da vida viva, e outro degredo
Do infinito haver.

Tenho um terror como todo eu
Do verde chão...
Ó sol, não baixes já no céu,
Quero um momento ainda meu
Como um perdão.
= = = = = = = = = = = = = = = = = =

O grande sol na eira
 
O grande sol na eira
Talvez seja o remédio...
Não quero quem me queria,
Amarem-me faz tédio.

Baste-me o beijo intacto
Que a luz dá a luzir
E o amor alheio e abstrato
De campos a florir.

O resto é gente e alma:
Complica, fala, vê.
Tira-me o sonho e a calma
E nunca é o que é.
= = = = = = = = = = = = = = = = = =

Ouço passar o vento na noite
 
Ouço passar o vento na noite.
Sente-se no ar, alto, o açoite
De não sei quem em não sei quê.
Tudo se ouve, nada se vê.

Ah, tudo é igualdade e analogia.
O vento que passa, esta noite fria.
São outra coisa que a noite e o vento -
Sonhos de Ser e de Pensamento.

Tudo no narra o que nos não diz.
Não sei que drama a pensar desfiz
Que a noite e o vento passados são.
Ouvi. Pensando-o, ouvi-o em vão.

Tudo é uníssono e semelhante.
O vento cessa e, noite adiante,
Começa o dia e ignorado existo.
Mas o que foi não é nada isto.

Fonte:
Fernando Pessoa. Poesias Inéditas (1930 – 1935).
http://www.jornaldepoesia.jor.br/pessoa.html