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segunda-feira, 30 de julho de 2012

Nilto Maciel (Dicionário do Imperador Napoleão)

Quando estive em Paris, pela primeira vez (faz muito tempo), conheci a jeune femme Isabelle Girault. Convidei-a para um café ou um vinho. Não sabia ainda como me comportar diante de uma francesa na França. Falei, entusiasmado, de Napoléon Bonaparte, passei à Revolução Francesa e terminei na guilhotina. Só pude perceber tédio nela depois de meia hora de lengalenga.

Quando voltei da Europa a Brasília, tomei ciência de outro Napoleão, o Valadares, nascido em Arinos, Minas Gerais. Ofereci-lhe meu segundo livro Tempos de mula preta e ele me presenteou Os personagens de Grande Sertão: Veredas. Fizemo-nos amigos, quase confidentes. Contei minha paixão pela francesinha e ele apenas sorriu. Quase não disse nada. Só perguntou: Você pretende ir embora? Não, não posso. E ela virá morar aqui? Não. Ele riu mais um pouquinho e mudou de assunto.

Semana passada, chegou-me uma carta. Há tempos isso não acontecia. Sabem quem ma enviou? Sim, aquela jeune femme de 1983, agora com 49 anos. Descobriu meu paradeiro na Internet. Seu marido (casara-se ela em 1986 com o poeta mexicano Eraclio Chimal) há um ano a trocou por um imigrante brasileiro de nome Napoleão. Vejam o nome do imperador a me perseguir. Por pouco não morri de rir. Pois, no mesmo dia em que o carteiro me passou às mãos um pacote (não cabia na caixa), vindo de Brasília, na mesma tarde recolhi, na caixinha metálica onde está inscrito “cartas”, a missiva da traída Isabelle. O pacote continha exemplar do Dicionário de escritores de Brasília, de Napoleão Valadares. Como não me lembro mais da francesa e não me interesso mais pelo imperador da França, passei a semana a ler o dicionário. É possível ler um dicionário, como se lê um romance? Talvez não. Mesmo assim, conto a história desta obra.

A primeira edição é de 1994. Nesse tempo eu já esquecera a francesinha. Em 2002 saiu a segunda. Nesse tempo eu já me sentia muito próximo da italianinha que fez de minhas noites uma sucursal do paraíso. A edição de agora é a terceira: “atualizado, revisado e ampliado”.

Deixando de lado o compêndio, direi um pouco do autor, o “Imperador do Urucuia” (eu assim o chamo, de forma brincalhona, desde a publicação de seu romance Urucuia, 1990): Napoleão é um ano mais novo do que eu (fevereiro de 1946). Além de suas atividades como funcionário da Justiça Federal, tem se dedicado à cultura mineira e brasiliense, especificamente, e à brasileira, em geral. Organizou antologias (Planalto em poesia, 1987; Contos correntes, 1988; De Gregório a Drummond, 1999; Antologia de haicais brasileiros, 2003), exerceu a presidência da Associação Nacional de Escritores, tem romances, contos e poemas editados, ganhou importantes prêmios literários, etc.

Voltemos ao dicionário (sem nos esquecermos da França, de Isabelle e do imperador Bonaparte, que ainda estarão nesta crônica). O dicionarista brasiliense presta homenagem aos pioneiros da cultura literária da capital federal: Clemente Luz, José Marques da Silva, Garcia de Paiva e Joanyr de Oliveira. O primeiro verbete vai para o carioca Carlos Alberto dos Santos Abel (com quem troquei algumas palavras), falecido recentemente. O derradeiro se refere a Vera Cristina Zuffo, que desconheço.

A obra, de 390 páginas, mostra verbetes curtinhos (dos escritores menos notados nos corredores da literatura ou de bibliografia mais reduzida) ou mais robustos (não muito), o que é normal. Napoleão Valadares considerou escritores aqueles indivíduos que foram “publicados em livro”. E explica: “Não apresentamos biografias, mas sínteses biográficas, para ter-se um perfil profissional e intelectual de cada autor, para ter-se uma informação, ainda que elementar, sobre sua obra. Os verbetes mostram-se sucintos, sem opinião pessoal, sem crítica. A nossa preocupação não é fornecer o maior número possível de dados, mas apresentar dados precisos, tanto quanto possível”.

Para encerrar esta quase-notícia, informo o número das páginas onde me encontro: 197/8. E dou uma última notícia de minha amiga parisiense: gostava de rabiscar poemas curtinhos. Guardo, há quase trinta anos, este verso, escrito num guardanapo de papel: “Je suis une femme perdue et maladroite”. Foi no dia em que nos despedimos, num café próximo ao Aéroport Paris-Orly. Após o último beijo, ela abriu a bolsa, retirou um embrulho e mo entregou. Eu não sabia do que se tratava. Quando me acomodei na poltrona do avião, pude ver a biografia de Napoléon Bonaparte. E os lábios de Isabelle Girault impressos na folha de rosto, que beijei, a chorar.

Fortaleza, 27 de julho de 2012.

Fonte:
http://literaturasemfronteiras.blogspot.com.br/2012/07/dicionario-do-imperador-napoleao-nilto.html

sábado, 28 de julho de 2012

Nemésio Prata Crisóstomo (Sextilhas: Respostas)

Quando eu (Feldman) propus ao Nemésio participar de um Septeto em Sextilhas, ele assim respondeu:

Já pensou este "poeta"
passando por menestrel,
vai ficar todo enrolado
tal qual linha em carretel;
melhor eu ficar de fora
pra não "melar" o papel!

Só de pensar neste fato
sinto tremores cruéis,
lembrando do desafio
de seguir tais menestréis,
pois na frente dessa gente
não valho nem um "derréis"!

Após o aceite e elogios do Zé Lucas, Nemésio assim se declara:

Pelo dizer do Zé Lucas
pensa o mesmo ser o Prata
poeta, e eu agradeço,
porém, sem qualquer bravata,
reconheço, estou é longe
de fazer parte da nata!

Fazer parte deste clã,
mesmo sem o merecer,
desde já será pra mim
um verdadeiro prazer,
pois com estes seis poetas
terei muito o que aprender!

No segundo e no minuto,
na hora, e no dia certo
acertemos os ponteiros;
o meu tempo está aberto
para atender os amigos
com o coração liberto!

Fonte:
O autor

sexta-feira, 27 de julho de 2012

Nemésio Prata Crisóstomo (Sextilhas sobre o Sexteto em Setilhas) 2

Nossa espera foi bem pouca
pelos grandes menestréis
que agora formam Sexteto
de Sextilhas, bem fiéis,
e num risco de fagulha
cada qual mandou mais dez!

Ao lê-los fico babando
e pensando se serei
um dia, não sei nem quando,
se ainda vivo nessa grei,
um sexto de trovador
desse Sexteto de Lei!

quarta-feira, 4 de julho de 2012

Nilto Maciel (Gilmar de Carvalho: Singular e Plural)


Dos personagens que constituem a geração literária surgida por volta de 1970 no Ceará é Gilmar de Carvalho um dos mais singulares. Não participa de grupos. Não está à frente de movimentos. Não promove encontros, reuniões, com vista a levantar a poeira. Não corre atrás de figurões da intelectualidade, a pedir votos, apoio, indicações. Não imita este ou aquele escritor da moda, como não imita os antigos. Por tudo isso, dizem-no avesso a greis, clãs e famílias literárias. Ovelha negra. Pastores de todos os matizes o veem passar e apenas coçam a barba. Porque Gilmar nem escuta a zoada da mutuca. Prefere a pesquisa à pescaria de peixes ornamentais. Contraditoriamente, é um erudito voltado para a cultura popular. Além disso, é compositor de cantos e não mero contista, contador de histórias, embora ame os contadores de histórias do sertão e das periferias de Fortaleza, cantadores, cordelistas, violeiros, Patativa do Assaré.  

Perguntam-me: “Você se dá bem com Gilmar? Parece tão difícil, tão arredio.” De difícil acesso, querem dizer. Poucos contatos mantive com ele; conversamos apenas o necessário. Faltaram oportunidades. Primeiro porque somos de pouca conversa. Segundo porque me mantive longe do Ceará por muitos anos. No entanto, muito me falaram dele: genial, talentoso, arrogante, besta, orgulhoso... Os melhores e os piores adjetivos acompanham sua biografia. Ou seu perfil. Traços tortos em mesas de bar, dos maledicentes, dos invejosos, dos que nada fazem ou escrevem. 

A primeira composição dele a me chegar aos olhos (antes de publicada, antes de incluída em livro) terá sido “Pluralia tantum”. Duas folhas de papel. Li-a com estranheza (admiração e susto). Que diabo era aquilo? Todos os plurais clássicos. Apenas isto. Mas me agradaram. Pela novidade, pela pesquisa, pela singularidade, pela ousadia. Nada de enredo, começo, meio e fim, protagonista, foco narrativo. Nada de usual da forma do conto. Muitos anos depois, conheci o livro Pluralia Tantum. E senti novo impacto. Mais forte, porque não mais um “texto” curto diferente de tudo, mas diversos “cantos” (não contos, não narrativas, não histórias como as que eu costumava ler) em linguagem renovada. E não só isso: a Bíblia, a mitologia grega, as lendas indígenas e da cultura negra brasileira, o candomblé, os orixás, as danças, a cultura de massas. 

Com Pluralia tantum, Gilmar se tornaria conhecido no microuniverso dos intelectuais (usava-se muito este termo) cearenses. Conhecido e admirado. Mais adiante, encontrei-o, por acaso, na Praça do Ferreira. Mostrou-me as provas de novo livro. Demonstrava euforia (nem tanto, porque não é de euforias), porque sabia da importância de sua obra. Pois, para espanto de todos, logo viria a lume o mais singular romance da segunda metade do século XX brasileiro: Parabélum. 

Gilmar se sabe homem de difícil trato. Reconhece: “Não devo ser dos mais fáceis. Faço análise, com interrupções, há 40 anos”. Vontade de mudar, de ser diferente do que é? “Talvez tenha pouca paciência com pessoas que tenham projetos diferentes dos meus. Não compreendo como o projeto de um escritor seja fazer parte de uma instituição anacrônica (como as academias de letras) fundada no século XIX. Não tenho paciência para Clube do Bode”. É verdade, as rodinhas literárias de Fortaleza estão repletas de pequenos escritores cujos sonhos maiores não são escrever obras fundamentais ou, pelo menos, de algum valor literário, mas ingressar na Academia Cearense de Letras. Ou aparecer nas páginas (colunas sociais) dos jornais da província.

Comigo o trato tem sido fácil. Conversamos como civilizados: índios do Cariri e da Serra de Baturité, negros, cafuzos, curibocas. Mas como podem julgá-lo de “difícil trato”, se não fala de ninguém, se não faz crítica literária? “Não tenho tempo para falar mal dos outros. O meu tempo é voltado para a pesquisa e a produção. Inclusive finais de semana”. Por isso, suas opiniões a respeito da literatura cearense não se tornam públicas. Prefere silenciar, embora tenha lá os seus ídolos. Gosta de Moreira Campos, Juarez Barroso e Gerardo Mello Mourão. E não esconde essa predileção. Mas quem não gosta deles? “Dos vivos, gosto muito de Marly Vasconcelos. Mas é difícil falar dos vivos”, confessou-me.

Dia desses fiz-lhe um pedido. Teria como me presentear o Parabélum e o Pluralia tantum? Não os encontramos mais nas livrarias e ambos me foram surrupiados de casa, por algum visitante inescrupuloso?

Gosto de ler Gilmar de Carvalho. Mas também de ouvir sua fala inteligente, plural. Gostaria de vê-lo mais. Entretanto, eu o tenho visto muito mais na televisão, a falar de cultura popular, em debates e homenagens, do que pessoalmente.  

            Fortaleza, janeiro de 2010.

Fonte:
http://www.niltomaciel.net.br/node/209

terça-feira, 3 de julho de 2012

Nilto Maciel (Noções de Sujeito)


Quando o sujeito nasceu, um anjo lhe disse: Vai, sujeitinho, ser simples na vida. E ele conheceu outros sujeitos: mãe, pai, irmãos. Sentia-se muito simples mesmo. Porque tudo ao seu redor aparentava modéstia: o berço, o quarto, as parede, o teto. Acostumou-se com isso e nem imaginava o que não fosse natural e comedido. Entretanto, logo passou a ouvir reclamações: Você é simples demais. Trate de ser mais elegante, mais afetado. Tenha orgulho de ser você mesmo. Havia quem dissesse: Seja mais composto, mais cuidadoso consigo. Um dândi? E pensava: Como poderia ser sujeito composto, se era um? Queriam-no dois, dez, mil, plural? Não, nunca seria mais de um. Gostava de ser singular. Exigiam-lhe atitudes, modos, sem mencionar quais: Tome uma atitude, homem. Que atitude? De atividade ou de passividade? Se agia, chamavam-no de agente. Se permanecia apático, diziam-no paciente. Ou o pretendiam neutro? Nem agente nem paciente?

Aproximou-se de sujeitos ocultos, como o próprio anjo que o empurrou para a vida, deuses, deusas, querubins, demônios. Sentia-se olhado, espionado, no quarto escuro, no banheiro, no quintal. Escondiam-se atrás de árvores, feito serpentes. E o incitavam a pecar. Às vezes caía em tentação. E pedia perdão a outro sujeito oculto, dito o maior, o criador de todos. Iniciada uma tempestade, olhava para o céu, em busca do supersujeito oculto, e clamava: Livrai-me do mal. 

Por uns tempos, pensou em se afastar dos conhecidos, dos sujeitos visíveis que lhe causavam aborrecimentos. Aspirava a ser também sujeito oculto. Para que ninguém o visse. Poderia se esconder onde bem quisesse. Perder-se por aí, pelas grotas, pelos sertões, pelas matas. Não adiantou nada. Achavam-no sempre. Impossibilitado de se ocultar, pensou em ser diferente dos demais: ser culto. Estudou tudo: filosofia, filologia, teosofia, teogonia. Ambicionava ser o culto da família, do bairro, da cidade. Não aprendeu muito. Até chegar o dia de se iniciarem as importunações da maturidade. O pai o queria casado. De preferência com moça rica, hábil em prendas domésticas, educada, católica apostólica romana. Todos determinavam o seu casamento: o padre (que pregava Jesus para crescer e se multiplicar), o comerciante (que cobiçava alhos e borralhos), o banqueiro (que jurava não ser dono do mundo), o primo pobre, o amigo do peito. Não o queriam só, solteiro, coitado. A mãe nem tanto: Meu filhinho, elas só querem o seu pé, o seu peito, o seu bolso. Elas, as sujeitas. Queriam-no casado, bem comportado, religioso (mas nem tanto), trabalhador, barrigudo, cheio de filhos, torcedor do time mais popular, eleitor do centro (nada de extremos, rapaz!). E sentenciavam: Homem solteiro ou não é homem ou não é homem. Ele gostava do adjetivo solteiro.

Com o passar dos tempos, fez-se íntimo dos objetos diretos e indiretos. Do seio da mãe não queria mais largar. Do leite tornou-se dependente. E de outros líquidos. Relacionou-se com quase todos os verbos: regulares, irregulares, defectivos, abundantes, reflexivos, impessoais, unipessoais, auxiliares. Desde mamar, morder, sentir, até os mais perversos, como extorquir, extirpar, exterminar. Assim como qualquer sujeito, sujou-se. E compreendeu que todos são sujos. E foi descobrindo os adjetivos, dos mais singelos aos mais afetados. Aproximou-se de sujeitos ativos e passivos. O tempo passava, e ele mais assimilava passado, presente e futuro. Batia no peito e dizia: Sou um sujeito de sorte. 

Comporte-se como gente. Desde criança ouvia aquilo. Pulava cercas, galgava telhados, escalava muros, chutava bolas que estilhaçavam vidraças, brigava, dizia nomes feios. Outros sujeitos não viam mal nenhum nessas estripulias: Deixem ele brincar. Alguém corrigia o anjo da guarda do sujeito: Deixem-no brincar.  E ele mais brincava. E como sabia conjugar o verbo brincar. Nunca brinque de boneca. Longe delas, meu filho. Isso é coisa de menina, de fêmea. Quis descobrir as fêmeas. Olhava para elas, embevecido. Desejava ver-lhes as chamadas partes íntimas. Não, isso não.

Se o queriam ignorar, não pronunciavam o seu nome. Tornava-se sujeito indeterminado. Ouvia conversas, mentiras, e se aborrecia: Cortaram o fio da meada. Por que não diziam a verdade inteira? Pois fora ele o sujeito da ação, ele cortara o fio. Aborrecido, sumia sem desaparecer, como se inexistisse. Como se fosse possível sumir sem desaparecer, inexistir sem morrer. Olhava para o céu: Chovia. E ele, o sujeito, molhado, friorento, triste. Mais sujeito às intempéries do que nunca.

Fortaleza, abril de 2010.

Fonte:
http://www.niltomaciel.net.br/node/235

sábado, 9 de junho de 2012

Nilto Maciel (Com Unhas e Dentes)


Há uma semana Dalila virava a cara para Aleodoro. Se ele fazia pergunta, ela não dava resposta. Ou respondia “com quatro pedras nas mãos”. Por qualquer motivo mandava os cinco dedos na cara dos filhos. E deixava o arroz queimar, esquecia de descongelar a carne, quebrava pratos na pia.

Aleodoro não pedia explicações. Sabia muito bem a causa de tanta birra. Andava cansado, aborrecido, sem vontades. Tantos anos de trabalho, e nem uma casa onde morar. Tanta dedicação à família, e aqueles filhos vagabundos, idiotizados. Tantos sonhos, e só desilusões.

Poderia muito bem pedir desculpas pelas palavras ásperas, pela cerveja em excesso, pela falta de carinho. Mas não queria se render, se humilhar, virar cachorrinho.

Aleodoro lia pedaços do jornal, imaginava Dalila pintando unhas. Não, aquilo não eram horas para pintar unhas. Resolveu tomar uma cerveja. A goles lentos, passaria mais uma hora. Tempo para Dalila voltar.

Não, aquela mulher estava se excedendo. Melhor dar um basta naquilo. Ora, nem o almoço fizera! Um desaforo! “E já estou de saída. Vou ao salão de beleza”.

Os filhos, aqueles inúteis, não sabiam de nada. Talvez Dalila estivesse na cozinha. Ou na vizinha. Por que não batia à porta do vizinho?

Absurdo um homem não almoçar, depois de quatro horas de trabalho! “Então arranje uma cozinheira”.

Rasgou o jornal, desligou a televisão, bebeu um trago de conhaque. Onde andava Dalila? Não podia estar ainda no salão. E se tivesse sido atropelada na rua?

Apavorado, o homem tomou outra dose e saiu. Devia ir primeiro ao salão ou aos hospitais? Talvez à polícia. E apressou o passo. Não, a desgraçada de sua mulher com certeza pintava unhas e dentes. E ria dele, o cachorrinho faminto. Melhor tomar umas cervejas regadas a fumegantes bifes acebolados. E só voltar para casa de madrugada.

Decidido a vingar-se, parou diante do primeiro bar. Bêbados gritavam, gargalhavam, expandiam-se. Todos livres de suas megeras domésticas.

Aleodoro ia sentar-se, quando uma gargalhada medonha explodiu a seu lado. Olhou: a cena lhe pareceu impossível: Dalila, cercada de três senhores, afetava toda a alegria do mundo, os dentes luzindo na noite.

Fonte:
Pescoço de Girafa na Poeira. Brasília:Secretaria de Cultura do Distrito Federal/Bárbara Bela Editora Gráfica, 1999.

sábado, 2 de junho de 2012

Alexandre Drayton (Domingo de chuva)


 Domingo, mais um dia como tantos outros, no frio janeiro da Cidade Luz. Dia de lavar a roupa suja, de tentar arrumar a bagunça (permanente!) da casa, de passar o pano no chão, de pensar na semana que começa. Um momento de reflexão desleixada, de estudar o atrasado, dia diferente talvez. 

É pena que a meteorologia não ajudou, empurrando todo mundo algumas horas a mais na cama. Vento, chuva, frio e tempo cinzento podem vencer a idéia de visitar um museu gratuitamente, como é o caso do primeiro domingo de cada mês. E sou capaz de apostar que muitos cederam à tentação da preguiça e, absortos neste clima envolvente, em pouco ou quase nada pensaram.

 E comigo não foi diferente. Até que a físico-química dependência de “checar“ o e-mail, fez-me vir ao tal computador. Eis-me aqui, sem sono e com o estoque de sites a visitar esgotado, tentando escrever algo que tenha sentido ao fim.

 Experimento dar uma sacudida e animada no espírito, saindo um pouco para espiar o tempo. Teve jeito não: as amigas ventania e temperatura baixa me receberam com pompa e circunstância. Sem outra opção entrei, e teimoso como sou, recomecei a teclar.

 Foi difícil não sentir o que se tenta afastar num dia como esse: a tal da cruel saudade. Palavra impar, que dizem só existir em português, chegou sem pedir licença. Entrou, puxou a cadeira e, saboreando um café amargo com Malboro ligths, pôs-se a me incomodar. Esboçando uma resistência esqueço-me dela por longos segundos, ao fim dos quais recebo um direto de direita, perdendo por nocaute.

 Numa ultima tentativa, ensaio comparar àquela do inicio, quando cheguei, essa de hoje. Queria ver se tinha amadurecido, se era mais forte, se podia vir a ser exemplo para os amigos recém-desembarcados. Uma vez mais, o gongo deu-lhe ganho de causa. Houvera de fato apenas uma mudança de nomes, pois a antiga Senhora Saudade hoje se chamava La Madame Nostalgie.

 E assim continuei a senti-la, na certeza de que uma vez mais um mundo de lembranças viria-me à mente. Pensei na família distante, nos amigos que ha’ muito não vejo, em praia, na comidinha gostosa do fundo da panela. Imaginei coisas simples, lugares comuns, mentiras infantis e os tempos de infância. Em verdade, senti-me só.

 Vi, portanto, que solidão e saudade são almas gêmeas. Velhas conhecidas de outrora, promovem incômodos e aleatórios encontros, onde tentam desafiar o sorriso e a alegria, banindo-os para longe algumas vezes. E foi justamente num desses rendez-vous casuais em que vi-me metido. Pensei poder sair de fininho, mas ao final do corredor encontrei porta fechada.

 Não existia outra alternativa, a não ser mascar feito chiclete e digerir sozinho minha angústia. Injusto seria fazer conjecturas, pois tristeza que se preze não se explica, sente-se. E caminhando por essa mesma estrada, imaginei os milhares de solitários mundo afora: habitantes de um mesmo universo, do grande consciente coletivo poeticamente chamado “la solitude”.

 Mas percebi que esta mesma solidão, inenarrável, dura e difícil, tinha outras facetas. Não era a maior de todas, pois conseguia guardar traços de beleza dentro de si. A maior solidão, na verdade, é dos quem não amam e fecham-se no absoluto vazio do nada. Solitários são aqueles que temem a ajuda mútua e que não partilham com o próximo os pequenos segundos da vida. Triste e mísero é o homem que evita sentir suas emoções, permutando solidariedade com egoísmo. A maior solidão é a dos que não acreditam e fazem de seus sentimentos algo torpe, que reflete o amargo e apaga a luz do bem-viver. Solidão real é aquela do infeliz que perdeu suas esperanças, vivendo um pesadelo constante, permeado de pseudo-angústias e cego em relação ao belo mundo ao seu redor.

 Eu, do alto dessas tolas idéias, acreditando na vida e num mundo melhor, vi-me um feliz e pequeno solitário, nada mais. Pois, como bem disse o poetinha:

 — “A fé desentope as artérias; a descrença é que dá câncer“.
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Alexandre Drayton, nascido em Fortaleza (CE),  enquanto se especializava na área médica na França, encontrava tempo, em “domingos de chuva”, para escrever crônicas sobre os acontecimentos cotidianos e, sobretudo, a saudade que se abate sobre os que vivem longe de sua pátria.

Fonte:

quinta-feira, 31 de maio de 2012

Francisco José Pessoa/ CE (Bordado)


Nemésio Prata Crisóstomo (Pavilhão!)


Trovas sobre as postagens de ontem

Beleza de produção
destes grandes trovadores
que nos enchem de emoção.
Viva, pois, os vencedores!


Também vem no Pavilhão

dois grandes maranguapenses,
a mostrar o alto padrão
dos autores cearenses!

De quebra, vem Patativa,
o grande Poeta, inconteste,
com sua verve intuitiva
cantando o nosso nordeste!

De Maputo, que hoje vive
dias de uma nova vida,
vem Adérito Mazive
com seu Beco sem Saída!

Por fim, para apresentar
novas trovas, bem ecléticas
vem o Poeta Macedo
com as Mensagens Poéticas!

É por isso que eu repito
todo dia, sem cessar:
mesmo não sendo erudito
quero fazer meu trovar!

Nemésio Prata (UBT-Fortaleza)

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Nilto Maciel (Teoria do Amor Socrático)

O professor Mendes não sabia com precisão quando ti­vera a idéia de escrever seu inconcluso livro. E não se arrisca­va sequer a falar do ano.

— Mais ou menos — instavam seus amigos.

— Pode ter sido em 64, muito antes, ou muito depois; não sei.

Bem, se não se lembrava do tempo da fecundação, disses­se então por que decidira criar a obra — exigiam os outros. Por querer celebrizar-se? Por admiração ao filósofo? Por pu­ro diletantismo?

Mendes ou não levava a sério as preocupações dos cole­gas, ou também vivia em dúvida:

— Se não me engano, nasci para escrever este livro — e abanava um bloco de folhas escritas a mão, como se desse ba­nanas ao mundo inteiro.

As tais folhas andavam sempre entre as páginas de um livro impresso e este debaixo do braço, o que as fazia suadas, amassadas e emporcalhadas. Dias e dias com o mesmo livro, embora já o tivesse lido e relido.

— Ainda com a República? — ignorava alguém.

E Mendes aproveitava a observação para mostrar suas “anotações filosóficas” ao curioso. Alguns bons minutos de leitura, quer o outro tivesse pressa, quer pudesse perder tempo.

As pessoas queixavam-se constantemente da impertinên­cia de Mendes.

— Ele enche o saco com essas suas anotações — lastimava-se uma.

— O pior é que não escolhe suas vítimas. Podia chatear apenas seus colegas de Filosofia — opinava outra.

Para Mendes, todo ouvinte era um ouvinte, bastava ter ouvidos. Com certeza, iria entender tudo e gostar do texto.

Apesar de ninguém saber exatamente quando a primeira idéia germinara naquele crânio incompreendido, o certo é que o livro há anos vinha sendo escrito. Ou anotado, como o pró­prio Mendes dizia.

Um de seus amigos pilheriava: primeiro conhecera o li­vro, depois o autor. Até aí nada de engraçado, porque geral­mente o leitor não conhece o escritor.

— Ocorre que não fui leitor, mas simplesmente ouvidor. O leitor foi ele, o Mendes — contava o piadista. — Primeiro leu para mim umas anotações filosóficas e só depois se apre­sentou: — “Sou Pereira Mendes, filósofo”.— “Prazer em co­nhecê-lo”.

Os ouvintes da pilhéria se enchiam de curiosidade: quan­do havia ocorrido o fatídico primeiro encontro dos dois?

— No primeiro dia de aula do primeiro ano de minha car­reira de professor.

— Então já faz algum tempo! — admiravam-se todos.

— Se não ocorrer nenhum incidente na minha vida, deve­rei me aposentar daqui a dez anos.

Ao tempo do fato, Mendes devia ser ainda estudante, tal­vez calouro de faculdade.

Estranhavam ainda seus ex-mestres, colegas, amigos, alu­nos, todos quantos o ouviam diariamente, o não se apresentar ele como Apolodoro. Assinava-se A. Pereira Men­des, quer nos artigos que escrevia para a revista da escola, quer em documentos e papéis da vida civil.

— Não quero que digam: dedicou-se à filosofia só porque tem nome de filósofo.

Do nome do filho passavam à pessoa do pai. Com toda a certeza, o falecido José Mendes adorava filosofia.

– De jeito nenhum — replicava o professor. — Aliás, ele mal sabia ler. Não ia além dos jornais mais vagabundos.

E completava a informação: a lenda falava de um vizinho do pai, um sujeito metido a intelectual, como autor da idéia do nome.

De qualquer forma, aquele nome o levara a se interessar por filosofia. Primeiro procurou saber quem diabo tinha sido o tal Apolodoro.

— Para vocês terem uma idéia de como meu pai era um idiota, escutem só esta: ele me disse que Apolodoro era um influente político do tempo de Getúlio, um ex-tenente revo­lucionário, ou coisa assim.

E durante muito tempo o menino acreditou na história política de seu nome. Só descobriu a verdade quando chegou ao ginásio, às aulas de latim. Falavam de Apolo, e para Apolodoro foi um pulo.

Mendes nunca se mostrou um menino prodígio, desses que lêem Homero aos sete anos de idade. Pelo contrário, só lia o estritamente exigido pelos professores: sonetos da Esco­la Mineira, capítulos do Iracema, trechos de Rui.

Só às portas do vestibular conseguiu ler dez páginas so­bre o pensamento grego, onde o jornalista falava de Sócrates, Platão e Aristóteles, além de meia dúzia de nomes de boa pro­núncia.

— Havia Apolodoro?

— Nesse tempo eu era doido por Fátima e passava dias e noites a imaginar encontros aventurosos, palavras amorosas e beijos sulfurosos.

No entanto, a vida também passava. Mendes ingressou na faculdade, meteu-se no movimento estudantil, leu centenas de jornalecos, distribuiu panfletos incendiários e quase pe­gou em armas. Quando parou para de novo sonhar amores, Fátima havia casado com um comerciante de São Paulo e sumido para sempre.

Mendes queria ser jornalista. Se não fosse possível, advo­gado. Não havia vaga, porém, nem para uma nem para outra. Restava um lugarzinho na Filosofia.

— Do assunto eu só conhecia mesmo o amor platônico.

— Donzelo até essa idade? — brincavam os amigos.

Não, ele até poderia ser considerado um estróina prema­turo. Freqüentava cabarés desde os treze anos, na compa­nhia de um primo. Chegavam a gazear aulas, para ir atrás das mulheres, em pleno dia.

— Ainda me lembro da primeira vez. A mulher riu, mas eu me fiz forte, como se fosse experimentado garanhão.

Esse relacionamento com as raparigas se estendeu ao lon­go da vida de Mendes, a tal ponto de nunca querer se casar. Morou com os pais até a mãe morrer. A seguir, o velho também deu adeus à vida. Os irmãos e as irmãs então já tinham constituído suas famílias, cheios de filhos.

— Eu só casaria com aquela que eu amasse muito, e eu nunca encontrei este amor — confessava.

Não admitia as chamadas repúblicas de rapazes. Coisa de homossexuais enrustidos, defendia-se. Preferia viver só. Ha­bitavam sua casa, porém, livros, discos e quadros. A bibliote­ca tomava conta de quase tudo, da sala ao quarto. Pura ma­nia de colecionador, porque nos últimos tempos mal conse­guia ler uma página por semana.

— Primeiro preciso ler tudo sobre Sócrates.

Sua escrivaninha vivia abarrotada daquilo que conside­rava essencial ao seu interesse: histórias da Grécia antiga, di­cionários de filosofia e grego, obras filosóficas, especialmen­te o Banquete, Fédon, Memórias de Sócrates, Apologia de Sócrates e outras relacionadas ao mestre de Platão. No entanto nem só de filosofia vivia Mendes. As mulheres ocupavam lugar es­pecial em sua mente. Como Maria Helena.

Tratava-se de uma secretária epicurista, que conhecera num bar. Em suas conversas, no entanto, nenhuma filosofia tinha vez. Falavam de si mesmos, generalidades, palavras à toa. Primícias de cópulas sonhadas.

— O amor não precisa de filosofia — justificava-se.

Apesar disso, não abandonava nunca as folhas soltas de seu projeto de livro sempre espremidas entre as páginas de um filósofo qualquer, grego ou troiano. E, aqui e ali, relia para os amigos suas obscuras anotações, repletas de acrologias, agnosias e alegorias.

— Eu precisava saber mais sobre Xantipa, que tipo de amor havia entre ela e Sócrates — comunicava aos amigos, em meio à leitura.

Na faculdade, nem o mais humilde funcionário desconhe­cia o livro de Mendes. O livro e suas lacunas.

— Não descobriu nada ainda sobre o amor de Xantipa? — indagava o porteiro.

— Não.

— Nem vai descobrir — atrevia-se o outro. — O amor é o mesmo em qualquer época e em todo lugar – ensinava.

Professor e porteiro se perdiam então em longas digres­sões pelos caminhos do conhecimento. Cuidavam, formava-se verdadeira assembléia ao seu redor, composta de funcioná­rios, alunos e professores. Muitas vezes chamaram a polícia, a fim de dispersá-los. Do contrário, ninguém trabalhava nem es­tudava — garantia o diretor.

Além da filosofia ou, mais especificamente, de Sócrates, se deixava seduzir por outras manias o celibatário Mendes. Assim, adorava também música e pintura. Em todas as pare­des de seu pequeno apartamento havia quadros e mais quadros. A maioria reproduções de pinturas famosas, como A Banhista, As três graças e Mona Lisa.

— Para mim não existe mulher mais bela em toda a pintu­ra universal.

— Você sabe que é um auto-retrato? — provocava-o um colega.

– Se for, não deixará de ser mulher, para mim.

Chegou a confessar que a personagem de da Vinci só per­dia em beleza para um retrato de sua mãe quando jovem. No entanto nem só por figuras pictóricas apaixonavam-se os olhos filosofais de Mendes. Assim, além da pretérita Fátima, da epicurista Maria Helena, de tantas e tantas mulheres, morava também em seus sonhos Rosana, tida por alunos e profes­sores como a ninfa da escola.

— Pena que ele tenha chegado tarde — debochava a garota.

E isto — apaixonar-se por moças bonitas — constituía-se uma quarta ou quinta mania nele.

— Quem sabe, Mendes, ela muda de idéia — confortava-o um amigo.

— Não se preocupe comigo — resignava-se. — Afinal, as mulheres são efêmeras.

E Sócrates voltava à baila, e também a cicuta, os sico­fantas, Xantipa, Platão, Apolodoro, ele mesmo, suas famosas “anotações” para o sempre inconcluso O amor socrático.

— Mas o que vem a ser mesmo esse amor socrático? —impacientou-se, um dia, seu melhor amigo.

— Se eu soubesse, já teria concluído o livro — aborreceu-se Apolodoro.

E o aborrecimento virou ira, o sentimento pelo melhor amigo desfez-se e as “anotações filosóficas” para o livro ter­minaram reduzidas a mil pedaços de papel, que voaram, por todo o resto do dia, pelo pátio da Filosofia.

Fonte:
Nilto Maciel. Contos Reunidos. vol. II. Porto Alegre, RS: Bestiário, 2010.

sábado, 19 de maio de 2012

Vicência Jaguaribe (A Matrioska)


Para a Andrea,
a menina que não conseguiu
ficar com a sua matrioska.


Era a primeira vez que ia ao apartamento da amiga. Uma amiga recente, com quem se afinara. Tinham gostos muito parecidos. Naquele momento, ela lhe mostrava os cômodos, cuja decoração misturava o antigo com o moderno, mistura de que ela também gostava.

Pararam em frente a um pequeno armário de parede, afixado no espaço que ficava entre dois dos três quartos. A amiga abriu as duas portas do pequeno móvel suspenso, no interior do qual, envolvida pela quase penumbra do ambiente, ela identificou uma forma inconfundível.

— Que bonequinha é aquela, lá no fundo? — a pergunta sendo mais um desejo de confirmação do que propriamente uma tentativa de identificar.

— Ah! É uma matrioska. Linda, não?

Ela não ouviu a resposta da amiga. Ouviu a voz da avó, que vinha do passado, de um passado tão distante, meu Deus! que ela não pensava que ainda se lembrasse daquele episódio, muito menos daquela conversa.

A avó abrira a cristaleira e tirara lá do fundo uma bonequinha feita de madeira e pintada de cores vivas. Aquele mimo sempre atraíra a neta — ela sabia. Sentou na cadeira de balanço e pôs a menina no colo. Ela tinha o quê? Quatro, cinco anos... talvez seis. Entregou-lhe a boneca:

— Abra! Ela é oca. Veja o que há dentro dela.

Com muito cuidado, a menina abriu a boneca — separada que era em duas partes por um corte horizontal na altura da região dos quadris — e viu, surpresa, que dentro dela havia outra boneca menor. A avó, então, mandou que ela continuasse abrindo as bonecas menores. A menina foi abrindo, abrindo, abrindo... A cada nova boneca seus olhos demonstravam mais surpresa e encantamento. A operação continuou até chegar a uma minúscula boneca compacta. Junto com a avó ela contou: uma, duas, três... sete bonecas! E elas se encaixavam umas dentro das outras de maneira tão perfeita que quem via a maior não suspeitava que dentro dela havia outras seis bonecas. Era como se fosse um mundo dentro do outro, mas cada um existindo por si próprio, independente, sem misturar-se.

— Sei que você gosta muito desta boneca. E um dia ela será sua, mas não pode ser agora. Vai ser a sua herança. O nome dela é matrioska, palavra russa que significa mãezinha. Algumas pessoas acham que ela representa a família, sempre protegida pela mãe. Contam que essas bonecas se originaram no Oriente: um pintor artesanal russo, chamado Sergei Maliuntin, viu no Japão uma peça representando os Shichi-fuku-jin, os sete deuses da fortuna, que se encaixavam uns nos outros como as bonecas feitas hoje. Ele, então, pensou em aproveitar a ideia dos japoneses, só que fazendo bonecas representando pessoas. Fez a primeira e pintou-a como uma camponesa russa. E nasceu a matrioska.

A menina ficou toda animada. Em suas visitas à casa da avó, passava pela sala da cristaleira e demorava longos minutos olhando a sua boneca. A boneca que era sua, mas com a qual não podia brincar.

Nos fins de semana, nas férias, a menina ia à casa da avó. Uma grande casa assobradada, no Benfica, com muitas e frondosas árvores, principalmente mangueiras, nas quais ela, seus irmãos e primos gostavam de brincar. Escanchavam nos galhos mais altos e faziam de conta que estavam num campo de batalha, montados em belos cavalos árabes.

Um dia, ela teve coragem e perguntou:

— Mãe, o que é uma herança?

— Uma herança é dinheiro ou bens que a gente recebe quando morre um parente rico.

A menina ficou de cara amarrada o resto do dia. Então, a vovó ia morrer? Ela dissera que a boneca russa ia ser a sua herança. Eu não quero que a vovó morra. Mas também quero a bonequinha, ela pensava. Era um grande conflito atormentando a cabecinha da menina. E ela só tinha seis anos.

Um ano depois, a avó morreu. Enquanto a família toda chorava, a menina sentia o coração bater em um compasso diferente. E não era propriamente vontade de chorar o que ela experimentava. Mas precisava parecer triste. Ninguém podia desconfiar que ela, apesar de sentir a morte da avó, estava feliz porque ia ganhar a matrioska. Três dias após o enterro, o pai chamou-a para ir com ele à casa do Benfica. A menina alegrou-se como se o pai a tivesse convidado para ir a um parque de diversões. Pronto, chegara o dia de receber a desejada herança. Era só abrir a cristaleira e de dentro dela tirar aquele mimo que tanto a fascinava.

Parou em frente ao móvel, mas antes de abri-lo olhou para a sua boneca. Quase desmaia. A matrioska não estava mais em seu lugar. E as lágrimas começaram a escorrer. E os soluços se fizeram ouvir por toda a sala. Os adultos a cercaram e tentaram consolá-la pela morte da avó. E quanto mais a família tentava consolá-la, dizendo que a vovó estava no céu, mais ela chorava. Chorava e sentia remorso: ela não chorava pela avó, chorava pela matrioska, que não mais seria sua. Alguém se antecipara e achara-se no direito de ficar com a sua boneca. E todas as vezes em que a família se reunia no casarão do Benfica ela chorava. Chorava pela boneca, mas todos pensavam que era pela avó. Ela sentia vergonha e remorso daquelas lágrimas.

— Uma matrioska! Foi sempre meu sonho possuir uma dessas bonecas. — Só agora ela respondia à observação da amiga.

A amiga impressionou-se com o tom de sua voz e com o ar triste e desconsolado que lhe cobria o rosto. Tirou a matrioska do armário e a pôs em suas mãos.

— Pronto. A boneca é sua.

Ela não pôde de imediato agradecer à amiga, porque estava novamente sentada no colo da avó, que lhe contava a história da matrioska e lhe dizia o que ela sempre quisera ouvir:

— Sei que você gosta muito desta boneca. E um dia ela será sua, mas não pode ser agora. Vai ser a sua herança. O nome dela é matrioska, palavra russa que significa mãezinha...

Fonte:
Câmara Brasileira de Jovens Escritores. Painel 2012 de Novos Autores Brasileiros - Contos - Maio de 2012

domingo, 13 de maio de 2012

Kideniro Teixeira (1908–2008 )


O poeta Kideniro Flaviano Teixeira nasceu em Águas Belas, município de Ipueiras, no Ceará, em 16 de agosto de 1908. Faleceu em Fortaleza, a 18 de agosto de 2008.

Morou por longos anos em Manaus, AM. Naquela cidade diplomou-se em Direito, advogou, foi jornalista em A Tarde e professor na Escola Técnica Federal e no Colégio D. Bosco.

Posteriormente, retornou ao Ceará, onde passou a atuar como Promotor de Justiça.

Residia na cidade de Santa Quitéria, em seu Estado natal.

Após prolongado silêncio, que esteve a trabalhar de modo obscuro e sem que ninguém o pressentisse, eis que, para a surpresa de todos e alegria da numerosa falange dos seus amigos e admiradores, KIDENIRO FLAVIANO TEIXEIRA surge diante de nós, a ostentar as primícias de sua nobre inteligência, encerradas num relicário de beleza e deslumbramento. Intitula-se MANDACARUS o novo manancial que temos sobre a mesa, onde (...) deixou as pinceladas fortes e incisivas de sua tenacidade forte e intelectiva. Realmente em MANDACARUS, de 114 páginas, encontra-se contínuo desfilar de rimas e de ritmos tudo isto em meio a surpreendentes surtos de imaginação, o que toma o volume referto de encanto e sonoridade. Delineou aspectos de nossa terra e paisagens do Inferno Verde, onde o ilustre poeta permaneceu por algum tempo, não se podendo afirmar, em meio a tantos poemas de incontestável beleza, qual o mais formoso e surpreendente.(...) Pelo que aí fica, podemos aquilatar que MANDACARUS é livro dos mais radiosos dos últimos tempos (...). Nossas felicitações a Kideniro (...), cujo livro nos deixou a impressão, não de um feixe de mandacarus, mas de um roseiral esplendente capaz de a todos embevecer.
CARLYLE MARTINS, Tribuna do Ceará, 30/07/1977

Ao completar 100 anos, estava lúcido e em atividade literária, tendo antecipado que finalizava mais um livro de poesia, que se intitularia CARDOS-SANTOS.

Obra poética publicada:
LANTERNA AZUL (1944),
MANDACARU (1976) e
ILUMINURAS DA TARDE (2000).

Fonte:
http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/amazonas/kideniro_teixeira.html

domingo, 15 de abril de 2012

Vicência Jaguaribe (Onde Está a Margarida?)


Tarde do domingo. Uma tarde agradável, ventilada e clara. A ida à missa dominical. A chegada antecipada, para que a Margaridinha, filha única, tivesse oportunidade de encontrar-se com outras crianças e brincar um pouco. Ela tinha feito amizade com algumas garotas de sua idade cujos pais frequentavam a mesma igreja. E todas as semanas o casal fazia questão de dar à filha aquele momento de prazer. Eles sentavam-se nos bancos de cimento que ficavam no espaço cercado pelas grades que circundavam a igreja. Os pais das outras meninas iam chegando e sentavam-se com eles para vigiar os folguedos das filhas. Naquela tarde, brincavam de roda, cantando “A Margarida”. A pequena Margarida, a única que tinha esse nome — homenagem à avó paterna —, estava no centro da roda. As outras pegavam na barra de seu vestido largo — que parecia ter sido feito para aquela brincadeira — e formavam uma roda, fora da qual outra menina cantava e dançava. E seu canto se alternava com o das garotas da roda.

As garotas tiveram tempo de cantar “A Margarida” duas vezes somente. O sino da igreja anunciou o início da missa e elas se aproximaram dos pais.

A igreja era uma construção grande e larga. Os bancos, confortáveis, espalhavam-se estrategicamente por todos os cantos, formando ângulos com o altar principal, de modo que, de onde estavam sentados, todos os fiéis tinham a visão completa da celebração.

O padre iniciou o ritual católico da Missa, e todos se recolheram em oração. As crianças tentavam imitar os adultos, mas distraíam-se. Olhavam para as pessoas ao redor, conversavam com o irmão ou o amiguinho sentado ao lado, coçavam-se, bocejavam... De vez em quando, o pai ou a mãe lançavam-lhes um olhar ameaçador, e elas voltavam a comportar-se. A Margaridinha encostou-se na mãe e ameaçou dormir, quando o padre deu início à leitura do Evangelho.

— Margarida, escuta. O Padre vai falar das crianças. Vai ler uma história muito bonita.

A menina abriu os olhos, empertigou-se e ouviu direitinho o Evangelho de Marcos. Quando o Padre anunciou a saudação dos fiéis, ela, vendo algumas amiguinhas na porta da igreja, disse à mãe que ia ficar com elas. O pai acompanhou-a com os olhos e viu quando ela desceu os degraus.

As três, enfadadas com a missa comprida demais, não tornaram a entrar na igreja. Sentaram-se em um dos bancos de cimento e ficaram conversando.

Com a bênção final, os fiéis foram se retirando devagar. Os pais da Margarida olharam-se e interrogaram-se mudamente. O olhar que um devolveu ao outro parecia dizer, com preocupação, Eu pensei que você sabia onde ela estava! Apressaram o passo e encontraram as duas meninas que o pai vira a filha abraçando.

— Vocês viram a Margarida?

— Ela não estava com vocês!?

— Um homem veio e levou ela — respondeu uma das meninas, meio amedrontada com o semblante de preocupação do pai da amiguinha.

— Que homem, meu Deus? Como era esse homem?

A dona da banca de bombom aproximou-se.

— Eu vi quando ele levou a menina. Pensei que era alguém da família. Ela foi com ele sem problema.

Já uma aglomeração cercava os pais da menina. Um senhor descreveu alguns traços do desconhecido: moreno, estatura mediana, camisa vermelha. Infelizmente, não lhe vira as feições. Alguém sugeriu aos pais irem imediatamente à delegacia. Nesses casos, quanto mais cedo se começava a busca, mais chances se tinha de evitar uma tragédia.

A mãe chorava e tremia. Uma conhecida que fora de carro à igreja ofereceu-se para levá-los à delegacia. O pai não conseguia raciocinar. Em sua cabeça ecoava, todo o tempo, sem intervalo, os primeiros versos da cantiga de roda que a filha cantara antes da missa: Onde está a Margarida, / Ô lê, ô lê, ô lá / Onde está a Margarida / Ô lê, seus cavalheiros. Meu Deus, onde estaria a sua Margarida naquele momento? Onde estaria a sua menininha?

Diante do delegado, não teve condições de falar. Nem ele, nem a mulher. Foi a dona do carro que registrou a queixa. Imediatamente, o delegado acionou soldados e investigadores, e a busca começou. O bairro todo já tomara conhecimento do que acontecera. Os jornais foram informados, e os carros de reportagem já se encaminhavam à igreja e à casa dos pais da menina.

Na cabeça do pai, ainda ecoavam os versos da cantiga de roda, impedindo-o de raciocinar para tentar ajudar na busca: Ela está em seu castelo / Ô lê, ô lê, ô lá / Ela está em seu castelo / Ô lê, seus cavalheiros. O único castelo que ele pudera erguer para protegê-la fora o castelo do seu amor e dos seus cuidados. Mas não havia sido suficiente, e ele sentia-se culpado. Não tinha coragem de olhar para a esposa, em estado de choque. O médico do posto de saúde fora chamado. Sabia que ele iria querer dopar os dois. Mas ele não tomaria nenhuma droga. Queria enfrentar tudo bem acordado. Não dissera a ninguém, mas não tinha esperança de que encontrassem a filha com vida. Como ele queria que essa sua impressão não se confirmasse! Que ela estivesse errada, meu Deus! Mas sabia — eram tantos os casos de violência contra crianças! — que não adiantava enganar-se. Como ele gostaria de ver a filha mais uma vez, de abraçá-la, de dizer que a amava mais do que a qualquer outra pessoa no mundo!

O médico chegou e fez os dois tomaram um calmante. A mãe continuou sob o efeito do remédio até o dia seguinte, mas ele, o pai, estava de pé logo depois da meia noite. Quando as buscas recomeçaram, ele achou que tinha condições de ajudar, e seguiu um dos grupos. À tarde, o corpo da criança, com evidências de estupro, foi encontrado em um bairro vizinho. O pai tomou conhecimento da tragédia e dirigiu-se a casa. Queria estar com a mulher quando ela recebesse a notícia. Os versos finais da cantiga de roda, que ecoaram por todo o seu corpo, pareciam ironizar a sua dor: Apareceu a Margarida / Ô lê, ô lê, ô lá / Apareceu a Margarida / Ô lê, seus cavalheiros. Sim, ela aparecera, mas não como deveria ter aparecido. Menos ainda como ele queria que ela aparecesse.

Fonte:
Câmara Brasileira de Jovens Escritores. "Contos de Outono" - Edição Especial 2012 - Abril de 2012.

sábado, 14 de abril de 2012

Francisca Clotilde / CE (Livro de Sonetos 2)


À PAZ

Estende sobre nós as asas benfazejas,
Afasta para longe a sanguinária guerra;
És astro protetor, a iluminar a terra,
És anjo divinal nas hórridas pelejas.

Teu sorriso traz bonança e, qual íris, descerra
O negror da procela... Abençoada sejas;
Oh! Paz consoladora o nosso bem almejas,
Estrela vesperal que doce luz encerra.

Vem os homens unir, vem espalhar o amor,
Tem pena do sofrer das mães em ansiedade,
De ternos corações mova-te a íngreme dor;

Temos sede de ti, lenitiva à orfandade,
Com eflúvios do céu, num gesto animador,
Lembra o santo dever, as leis da caridade!

ANDORINHA

Passando do inverno a pérfida inclemência...
Andorinha ligeira, vai buscando
Outro clima mais puro, ameno e brando,
Outro céu de mais doce transparência.

Gozas da luz a tépida influência,
Reunindo-te ao alegre bando,
Que recorta este azul de quando em quando,
Desejando mais plácida existência

Podes fugir, voar com as asas leves
Expandir-te ao calor do sol
De bendito verão, delícias breves.

Como eu te invejo: Enquanto vais seguindo,
Sofro a tortura do mais rude inverno
E o azul me esconde o seu sorrir, fruindo

VISÕES DE OUTRORA

Que formosa ilusão! Vejo presente
O caminho feliz e perfumado,
Onde outrora, risonho e docemente,
Meu viver deslizou-se abençoado.

Como tudo mudou! Mas corrente
Que espalhava dos céus o trecho amado
Continua a gemer triste e dolente,
Relembrando bem vivo o meu passado

Era aqui... bem o sei neste recinto
Que floriam as rosas e os jasmins
Desatava o botão nas alvoradas;

E parece, meu Deus, que vejo e sinto,
Através das imagens reavivadas,
O olhar de minha mãe pousado em mim!

DESERTO

Esta casa que vês arruinada,
Solitária e deserta no caminho,
Foi outrora de noivos casto ninho
De ilusões e de risos povoada.

E hoje, como fúnebre morada...
Já não conserva o traço de um carinho,
Nem se ouve o trinar do passarinho,
Em seu muro, ao romper da madrugada.

Assim meu coração d’antes repleto
De esperanças e cândidos amores
É hoje como um túmulo, deserto;

E o vergel onde outrora as lindas cores
Das rosas de um porvir risonho e certo
Brilhavam, tem espinho em vez de flores!

LUZ E SOMBRA

Por toda parte a luz, a placidez, o amor,
A graça festival do campo e do perfume,
A beleza sutil que traduz e resume
A ventura, a inocência, a primavera em flor....

É mais sereno o azul... Das águas o frescor
Tem um doce carinho, e misterioso nome,
De terra a repelir os rancores e o ciúme,
Imprime à natureza idêntico fulgor.

Será crível, meu Deus, perante este cenário?
Tão belo e encantador, tão puro e deslumbrante...
Que eu tenha o coração preso o triste fadário?

Que eu tenha o coração envolto em negros véus,
Sendo deste concerto a nota dissonante
A nuvem que perturba a limpidez do céu?!

O SONHO DE COLOMBO

Dorme embalado na caricia rude
Da vaga azul, indoôita, fremente,
E um áureo sonho ao viajar ilude
- Bela visão do labio sorridente -

É ela, a Gloria? Oxalá não mude
O rumo ousado ao genial dormente,
Que durma, pois, assim tranquilamente
Do velho mar na intérmina amplitude!

Que sonho é esse? Um Mundo, o Mundo Novo
E no futuro o progredir de um povo,
Grande na páz, impávido na guerra;

Eis que o gajeiro brada alviçareiro;
E o brado ecoa no universo inteiro
Levanta-te, Colombo! Terra. Terra.

CRIANÇA

Nem um prazer enubla-lhe a existência
Vive a sorris feliz e descuidosa,
Do azul do seu olhar na transparência
Reflete-se do céu a luz formosa

Irmã dos lírios, bela como a rosa
Tem dos anjinhos a divina essência,
Orna-lhe a fronte o mundo da inocência
Fúlgido como estrela radiosa

Eu, quando a fito meiga e pequenina
Botão de flor que a coragem militança
Num doce alfaz o envolício decerra

Desejo vê-la assim sempre criança
Rindo a brincar num sonho de esperança,
Cheia de graça que a inocência encerra

NINHO DESFEITO

Inda há pouco cantava docemente,
Num transporte de candidos amores,
O casal de avesinhas inocentes,
A tercer o seu ninho entre as flores.

Embebidas num sonho transparente,
Elas iam saudando os esplendores
Do sol que, despontando sorridente,
Resplendia da serra nos verdores.

Mas ah! Um caçador disapiedado
Perturbou os idílios de noivado
Roubando ao par gentil a f’licidade,

Hoje o ninho balouça-se deserto
_ Monumento gentil que lembra incerto
Um mistério de amor e saudade!

MÊS DAS FLORES

És das flores o mês, o belo mês festivo,
Em que virgem do céu, a terra inteira exalta;
Tem do inverno o esplendor no verde que se esmalta
Quase sempre num tom mais nítido e expressivo.

Ao ver-te quem não sente em ti o anseio vivo
De gozar teu encanto e a graça que ressalta
Da linda primavera e brilha inspirativo,
Se o afeto docemente a alma me assalta?

Que lembranças de outrora! Ao rosicler da infância
Feliz eu te esperava e a cândida fragrância
Espalhavas do bem em doce alacridade.

És sempre o mês florido, ameno e perfumado,
Mas para que um coração em mágoas torturado
Tens em meio da flor o espírito da saudade.

VISÃO CAMPESINA

Que mimosa casinha emoldurada
De baunilhas em flor ! Um doce ninho...
Murmureja um regato, ali pertinho,
Ri-se a campina verde e perfumada.

Não lhe falta o cantar de passarinho,
Numa orquestra de amor bem afinada,
Que me faz esquecer o torvelinho
Dessa vida de praça emocionada.

O céu sereno e azul... Faceira a brisa,
Aqui tudo me enleva e, alegre sinto
Que o tempo mansamente se desliza.

Uma casinha só ! Qualquer cidade
Por ela não trocara... Em seu recinto
Gozei do bem a paz, a suavidade!

MISTÉRIOS

Há um encanto secreto, um mistério insondável
No seio da floresta, e o seu recesso esconde
Tanta coisa ideal, sobre a rendada fronde,
Na beleza sem par, selvática, admiravel!

A ave que desata a voz límpida, inefável
A voejar pelo azul exprime de onde em onde
Um idílio de amor que a brisa ressponde
E o aroma a se espargir , num eflúvio adorável.

Nos esponsais da flor, oh! Que ternura existe!
Que pode compreender a força que persiste,
A vibrar no mistério, a palpitar no arcano?

Quem pode do porvir traçar o intenerário,
Investigar quem ousa o pensamento vário
E o supremo mistério – o coração humano?

Fonte:
http://www.sonetos.com.br/biografia.php?a=74

domingo, 8 de abril de 2012

Vicência Jaguaribe (A Última Visita)


A autora é de Fortaleza / CE

Quando o último dos irmãos morreu, os herdeiros resolveram vender o casarão da família. Lá a avó criara todos os filhos e de lá o marido e ela própria haviam partido em sua viagem definitiva. Lamentei profundamente aquela venda. Mas ninguém tinha dinheiro para restaurar a enorme casa praticamente em ruínas. Vendêramos, na verdade, o terreno, o local. A estrutura de alvenaria estava condenada.

Antes da entrega da chave ao comprador, senti vontade de rever a casa. Sozinha, entrei no casarão, maior por estar vazio. Fechei a porta e dispus-me a percorrer os aposentos. De repente, a casa ganhou vida — som, cheiro, cor e movimento. E um estranho frio que me fez cruzar os braços.

A sala de visitas enfeitou-se com as modestas cadeiras de vime e com o rádio. Ouvi, então, a voz de minha avó, perguntando quem estava ali. Assustei-me. E, como uma criança que acaba de ser surpreendida fazendo arte, recuei para o vão da janela. Mas a voz tornou a soar e tive de responder:

— Sou eu, vovó. Vou entrando. — Resolvi mergulhar naquele cenário que tinha certeza (tinha mesmo essa certeza?) ser fruto de minha imaginação. Mas eu não quisera penetrar aquele planeta habitado somente por lembranças — as lembranças de meus mortos? Então? Agora não fazia sentido recuar. Tinha de ir em frente. Também não sabia se estava sentindo medo ou se era só a emoção das lembranças.

Enfiei-me pelo comprido corredor, atravessei a sala de jantar e entrei na copa. Sentada diante da almofada, a avó criando suas peças de renda. Era assim que eu a recordava sempre.

No primeiro momento, assustei-me. Não, assustei-me, não, surpreendi-me. Pois era de se esperar que a avó estivesse exatamente ali, diante da almofada, tecendo suas peças de renda. Os dedos ágeis jogavam os bilros de uma mão para outra. De vez em quando, reunia-os todos na mão esquerda, e a mão direita subia até o papelão, para mudar a posição dos espinhos que marcavam os arabescos do desenho da peça.

A avó parou o movimento das mãos e encarou-me:

— Que é que você faz aqui, minha filha?

Sua voz soou entre triste e preocupada. Perdera o tom autoritário que sempre a caracterizara.

— Vim ver a casa. A senhora sabe que ela foi vendida?

— Sei. E fiquei com pena. Uma casa tão boa! Que guarda grande parte da história de nossa família! Mas entendi. Ela se tornou um estorvo, não foi?

— Não é bem assim, não, vovó — tentei contemporizar.

Ela baixou novamente a cabeça e voltou aos seus bilros.

— Onde está a Aldenora, vovó? — Perguntei sobre a menina que ela havia criado e que morrera há alguns anos.

— A Aldenora foi para a casa dos pais. Você gostava dela, não gostava?

Respondeu-me, sem tirar a vista dos bilros e do papelão. De repente, parou as mãos e tirou do bolso do vestido uma peça de renda, enrolada em um fino pedaço de madeira. Entregou-me.

— É para você. Faça uma blusa de cambraia de linho e enfeite com ela.

Nesse momento, senti um aroma que me trazia a infância e, junto com ela, a Aldenora. Era o aroma do arroz temperado da avó, no qual, depois de pronto, ela salpicava uma colher de vinagre. Minha avó levantou-se e dirigiu-se ao velho fogão a lenha.

— Vou tirar o arroz do fogo, senão ele queima.

Mudei por um instante a direção do olhar e, quando voltei a procurar minha avó, não mais a vi. Nem a ela, nem à almofada, nem à cadeira. Olhei para as mãos e lá estava a peça de renda. Então não fora ilusão. Voltando-me para a área descoberta que acompanhava as salas e ia até o quintal, assustei-me: a trepadeira de pequeninas flores cor de rosa, que formava um grande caramanchão, estava mais viva e bonita do que nunca. Enfiei a renda no bolso da calça jeans e puxei um galho longo e cheio de flores. Mas esta trepadeira morrera juntamente com a vovó! E ninguém conseguira que pegasse novamente. Como é que estava tão bonita agora? Enrolei o flexível galho no pescoço, à guisa de colar.

Transpus a cozinha olhando para o fogão a lenha, cujas chamas crepitavam como se alguém acabasse de alimentá-lo com as finas achas que a vovó conservava no chão. E, em cima da chapa, a panela da qual exalava o cheiro de arroz temperado e salpicado de vinagre. Apressei o passo e ganhei o quintal. O grande quintal de minha avó, com uma cacimba que fornecia água também para a casa vizinha, onde morara, por muito tempo, uma enteada sua — a tia Adélia.

No meio do quintal, cordões de estender roupa, com algumas peças penduradas, molhadas como se alguém as tivesse lavado há pouco. Abaixei-me e recolhi uns galhos de boa-noite plantados na cova de um coqueiro. Olhei em frente. Lá, o quarto grande que abria para a outra rua e que, no meu tempo de criança, já se encontrava em ruína. Pegado a ele, outro espaço coberto — o depósito da lenha que alimentava o fogão, com as achas subindo até o teto, exatamente como antes, e o portão pelo qual se podia entrar e sair do casarão. Ali gostávamos de brincar, sempre debaixo dos carões da vovó — este não era lugar pra brincar; podem se machucar na lenha; pode aparecer uma cobra...

Resolvi sair pelo portão mesmo. Não me daria o trabalho de percorrer toda a casa para alcançar a porta da frente. Ou era medo o que sentia? Fosse o que fosse, como havia trazido a chave do portão — no meu tempo de criança, ele só tinha uma tramela e um ferrolho por dentro —, resolvi que sairia mesmo por ali. Olhei em direção à casa, como a despedir-me de minhas lembranças. Vindo em minha direção, já no meio do quintal, minha avó, acompanhada de um grupo de pessoas relativamente numeroso. Algumas não consegui identificar, mas outras, sim — ou porque com elas havia convivido ou porque as vira em fotografia.

Mesmo com as pernas fraquejando e sentindo a cabeça rodar, resolvi sair daquele local impregnado dos fluidos da morte. Abri o portão e, sem olhar para trás, transpus a soleira e tranquei-o. Cheguei em casa tremendo.

— De onde você vem desse jeito? E o que é isso no seu pescoço?

— Da casa da vovó — respondi, enquanto puxava o galho de trepadeira, que trazia como um colar. Que significava aquilo? O que tinha nas mãos não era aquele galho cheio de flores, mas um galho seco, sem flores, um galho morto.

— E na mão, o que você tem?

Abri a mão e lá estavam folhas e flores secas de boa-noite. Escorregando-me do bolso da calça, minha tia viu a bela peça de renda de almofada. Pegou-a e começou a desenrolá-la.

— De onde você tirou isso, menina? Que peça linda! — Era a voz de uma prima que comercializava artesanato.

— Comprei no mercado — menti —, mas só tinha essa peça. Não sei nem quem me vendeu. — Fechei a mentira, para não ter que dar explicações.

Fonte:
Câmara Brasileira de Jovens Escritores. "Contos Fantásticos" - Edição Especial 2012 - Fevereiro de 2012

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Nilto Maciel (A Salvação da Alma)

Constantino acordou sobressaltado. Mais um minuto de sono e chegaria atrasado à igreja. O padre estaria nervoso e seria capaz de o mandar embora.

— Você não se emenda, traste — brigava a mulher.

Aquilo acontecia quase todo dia. Saía da igreja e entrava nas bodegas. E bebia feito uma raposa. Insaciado, antes de ir para casa, Constantino pedia uma garrafa cheia e mandava o bodegueiro anotar a despesa. No fim do mês, quando o padre pagasse o ordenado, saldaria a dívida.

E assim era há muitos anos.

— Cala a boca, mulher — gritava.

E se preparava para sair. Mais um dia de muita labuta naquela igreja imensa e sempre cheia de poeira.

Como todo dia, pôs-se a espanar o altar e seus arredores. Nenhum cisco poderia ficar sobre nada. O padre exigia limpeza total. Padre exigente!

Passou aos bancos onde os fiéis se sentavam e oravam. Sempre havia sujeira. E objetos esquecidos: terços, missais, véus, dinheiro, bilhetes.

Imensa igreja para um homem só zelar. Aquele padre era também mesquinho. Podia arranjar mais um zelador. E pagar ordenado maior.

Ninguém, no entanto, falava mal do padre na cidade. Nem mesmo nas bodegas. Todos preferiam falar de si mesmos, dos vizinhos, dos cachorros de rua...

— Como vai a igreja, Constantino?

Além do altar e dos bancos dos fiéis, havia outros lugares e móveis a limpar. Como os confessionários.

E o cansado zelador abriu a portinhola de um dos confessionários. Olhou para o assento de palha. Nenhuma sujeira aparente. Nenhum cheiro de mofo ou peido. Nada a limpar. No entanto, que bom lugar para descansar! E Constantino sentou-se, puxou a porta, abraçou o espanador. Num minuto, virava padre. Do lado de fora do confessionário uma fiel contava pecados. Nem muito graves nem pouco leves.

— A senhora está perdoada.

— Nenhuma penitência, padre Constantino?

— Sim, a senhora vai limpar a igreja todo dia, até o fim de sua vida.

— E tem pagamento?

— Tem: a salvação de sua alma.

Mal ditou a penitência da pecadora, um berro o acordou:

— Constantino, saia já daí, seu preguiçoso!

Dos olhos do padre saltavam chispas de ódio.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Pescoço de Girafa na Poeira, contos. Brasília: Secretaria de Cultura do Distrito Federal/Bárbara Bela Editora Gráfica, 1999.