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quinta-feira, 11 de abril de 2024

Eduardo Affonso (A invenção da linguagem)

Quando o primeiro ser humano descobriu que podia falar, antes de sair contando a novidade para todo mundo deve ter se dado conta da necessidade de dar nome às coisas – ou não teria nem como dizer que tinha adquirido o dom da fala.

Depois de milênios brincando de “imagem e ação” diante de qualquer evento – seja para dizer “eu te amo” ou “tem uma baratossaura pousada no seu ombro” – era um alívio poder simplesmente chegar e dizer “tem uma baratossaura pousada no seu ombro”, sem precisar levar os indicadores à testa imitando antenas, sacudir os cotovelos como se fosse levantar voo, e fazer cara de nojo.

Mas como dizer “tem uma baratossaura pousada no seu ombro” se nem o “ombro” nem a “baratossaura” tinham nomes, muito menos os verbos “pousar” ou “ter” (ainda mais no sentido de existir)?

O primeiro ser humano que descobriu que podia falar sentiu um peso maior sobre seus ombros ainda sem nome: nomear não só as coisas, mas também as ações, porque sem os verbos as palavras soltas não fariam muito sentido.

Vencida a etapa dos verbos e substantivos, o pobre ser humano deve ter entendido que havia a necessidade também dos adjetivos (era uma baratossaura pequenininha, de apenas dois palmos, ou uma daquelas que voam, e contra a qual não há tacape nem testosterona que deem jeito? Era um amor eterno e avassalador ou só um amorzinho legal agora à tarde enquanto os mamutes pastavam e os tigres dente de sabre faziam a sesta?). Vieram então os advérbios, as conjunções, os artigos definidos e indefinidos, o “que” relativo e todas aquelas malvadezas com as quais os professores de português nos torturaram.

Há de ter sido um desafio e tanto a nomeação do mundo. Olhar a baratossaura e pensar que nome sem muito valor para dar àquele bicho asqueroso. Olhar o ombro e imaginar um som que se ombreasse à beleza daquele patamar nascido da curva no final do pescoço e que iria morrer dali a pouco, em curva ainda mais bela, antes de virar braço. E criar palavras que se harmonizassem nessa sequência, fluindo sinuosamente – pescoço ombro braço.

Esse primeiro falante deve ter percebido que havia coisas demais no mundo, e que não daria conta sozinho. Aí chamou a família para ajudar (nascia a palavra “nepotismo”), e isso explica porque haja nomes tão esquisitos (dados pelo cunhado, talvez) e nomes esculpidos a cinzel (obra da cunhada); nomes tão límpidos (atribuídos pelo filho caçula), e outros tão obviamente equivocados (quem mandou chamar a sogra?).

Quem batizou a arara de “arara” deve ter sido uma criança. A mesma que nomeou o tatu, a cacatua, o jacaré, o pica-pau, o tico-tico e todos os bichos de nomes oxítonos ou onomatopaicos.

À filha teen coube dar nome ao beija-flor, ao bem-te-vi, à borboleta, ao arco-íris, à rosa dos ventos, ao bicho da seda, e às cores fúcsia, rosa-chá e off-white.

O cunhado denominou a fronha, o ornitorrinco, o fluxo piroclástico e as placas tectônicas (placas tectônicas e fluxos piroclásticos eram bastante populares naquela época).

Ele mesmo, o hipotético homem das cavernas, nomeou as coisas práticas (dia, noite, vida, morte, sexo, cerveja, chave de fenda, moto de quinhentas cilindradas, pênalti, impedimento, juiz ladrão).

A mulher criou palavras como ciclo, lua, cólica, leite, castigo, chantagem emocional, refogado, dor de cabeça, tédio, evasê, dupla jornada, empoderamento.

São indubitavelmente obra da sogra os nomes dados à bertalha, à seriguela, à alcachofra, à rebimboca e a todas as geringonças (sendo sua, inclusive, a invenção da palavra “geringonça”).

Por não terem inventado uma palavra que sintetize essa ideia, “eu te amo” continua, até hoje, difícil de dizer.

Fonte> Blog do Eduardo Affonso. 17 set 2019

Silmar Bohrer (Croniquinha) 109

Não sei quantos de nós percebemos que pequenos detalhes podem ser grandes detalhes. Boca-noitinha são instantes em que mosquitos invadem o ambiente em busca de alguma coisa importante para a sobrevivência. E sobrevivência pode ser abrigo ou busca por alimento. Abrigo - lugares fechados -, e o alimento pode ser o nosso sangue, através de picadas que inicialmente não percebemos. 

A pequena fisgada é o epicentro que ocasionará dores e acabamos irritados, mas com uma pomada qualquer amanhã estará esquecido. 

Cabe a analogia com o nosso cotidiano, no trabalho e outras ações, quando ficamos nervosinhos se algo emperra ou não dá certo, e queremos briga ou até desistência. Minúcias, como uma picada de mosquito, nem sempre são insignificantes. Ao contrário, por si só podem ser importantes como soluções improváveis. 

Resiliências nos pormenores. Quantos detalhes fazem a diferença! 

Fonte> Texto enviado pelo autor 

quarta-feira, 10 de abril de 2024

Monsenhor Orivaldo Robles (O sabiá)

“Minha terra tem palmeiras/ Onde canta o sabiá; / As aves que aqui gorjeiam/ Não gorjeiam como lá”. Fosse o seu Maranhão dominado, é provável que Gonçalves Dias não visse Coimbra como exílio, mesmo tendo lá vivido muito jovem, como estudante, dos 15 aos 22 anos. Nem talvez sentisse tanta saudade.

Desconheço que palmeiras eram as de Caxias (MA), sua terra, às que se refere. Não, com certeza, as garbosas palmeiras imperiais da nossa Avenida 15 de Novembro. Imperiais, porque o primeiro exemplar foi plantado por Dom João VI, no Jardim Botânico do Rio, em 1809.

Para cantar sabiá prefere mesmo palmeira? Jamais saberei. Durante muito tempo, bem cedinho, na Avenida 15 de Novembro, encantou-me a melodia de um sabiá-laranjeira. Nunca percebi se cantava em palmeira ou noutra árvore. Pela “Canção do Exílio” tinha que ser numa palmeira. Muitas vezes tentei, mas é impossível vê-lo na folhagem daquela altura. Sabia esconder-se o espertinho. Lá no alto emitia seu gorjeio, que musicava minha manhã nascente. Assim foi por meses, nem sei quantos.

Até que, em fins do ano passado, uma ruidosa e comercial programação de Natal tomou conta da cidade. Não sei se pelo foguetório ou se pelo vozeado interminável de locutores gritões, o certo é que o coitadinho assustou-se. Sumiu. Levou tempo para eu tornar a ouvi-lo. Desta vez, lá na Praça Presidente Kennedy. Calculo que era o mesmo, embora nunca o tenha visto. Prudentemente, há de ter buscado distância da barulheira que, até tarde da noite, não lhe dava sossego. Recentemente, voltei a perceber, de novo, seu canto nas palmeiras da Avenida 15. Voltou. Pelo visto, sabiá não se dá bem com saudade. Como Gonçalves Dias. Porém não canta com a mesma frequência de antes. Também a melodia soa um pouco diferente. Mais triste, me parece. Além de que ele abreviou o recital. Executa apenas meia partitura.

O amiguinho cantor trouxe-me à lembrança antigo colega seu, um ascendente longínquo talvez. No seminário do Batel, em Curitiba, sem falhar um dia, ele acompanhava nossa oração da manhã. Antes da missa, observávamos meia hora de meditação silenciosa. Éramos então brindados com seu primoroso concerto. Ele devia morar no bosque do alemão, nosso vizinho. Enfeitava com graciosas volteaduras o longo trinado. Um Milton Nascimento dos sabiás.

Fico matutando se também aos pássaros canoros antigamente não se exigia melhor técnica e potência vocal. Porque na raça dos humanos, hoje em dia, qualquer pobre diabo se considera cantor. Ainda que lhe falte voz, e careça, por completo, de ouvido musical. A tecnologia do estúdio disfarça as falhas.

Que imenso poder nós temos de modificar nosso planeta. Até aos pássaros conseguimos arrebatar-lhes o natural habitat. Em troca, lhes providenciamos uma versão moderna, que julgamos melhor: no campo, a monotonia da soja, da cana e do pasto; na cidade, a aridez dos prédios, do cimento e do asfalto. Nosso “progresso” condenou à morte até o último capãozinho de mato nativo, onde o ar era puro e a água corria limpa; onde havia fartura de insetos, sementes e frutas. Hoje, não Gonçalves Dias, mas o sabiá é que canta sua canção do exílio. Numa melodia empobrecida.

Os sabiás novos desconhecem o precioso repertório dos antigos. Também, nem lugar sobrou para os coitados ensaiarem. Assim, como vão aprender?

Fonte> Recanto das Letras. 09 março 2014

terça-feira, 9 de abril de 2024

A. A. de Assis (Purificação da Noosfera)

Neste exato momento da história da humanidade seria difícil avaliar como anda essa competição. Quem está vencendo – o bem ou o mal?

Noosfera é uma palavra rica, embora pouco presente na literatura e muito menos na conversa informal. Vem do grego “nóos” (ou “nous") e contém a ideia de espírito, mente, saber, noção (latim noscere, cognoscere; inglês to know). Assim como existem a litosfera, a hidrosfera, a biosfera, a atmosfera, há também a noosfera – o mundo das ideias, formado pelas energias espirituais, pelos produtos culturais, teorias, conhecimentos. Resumindo: é a esfera do pensamento humano.

Na verdade, só me lembro de ter visto essa palavra – noosfera – nos livros do padre, médico e filósofo maranhense João Mohana (1925 - 1995) e do padre, filósofo, teólogo e paleontólogo francês Teilhard de Chardin (1881 - 1955). Porém acho o tema fascinante.

Na noosfera, segundo pude entender, misturam-se tudo o que sabemos, o que pensamos, o que sentimos, o que desejamos, tudo o que sonhamos. O bem e o mal. O amor e o ódio. O trigo e o joio. Daí o conflito que vem desde Abel e Caim e que somente terminará, na perspectiva dos que acreditam na vitória do bem, no momento em que a “mente universal” estiver inteiramente despoluída, ou seja, livre de todos os resíduos do mal.

Neste exato momento da história da humanidade seria difícil avaliar como anda essa competição. Quem está vencendo – o bem ou o mal? Muito provavelmente os torcedores do bem sejam maioria, aliás a grande maioria, contudo a minoria que forma a torcida do mal parece mais atuante, ou pelo menos mais barulhenta.

Onde estão os geradores de energia ruim? Em todos os lugares onde haja pessoas que se deixem decair como pessoas, na medida em que se fazem escravas da soberba, da mentira, da intolerância, da inveja, da ira, do preconceito, da ganância, da depravação. da perversidade, e que passam todo o tempo tramando contra a sociedade e praticando toda forma de indignidade, desonestidade, violência,  injustiça.

E onde estão os geradores de energia boa? Estão nos lares onde pais e filhos procuram viver segundo as melhores normas da civilização; estão nas escolas onde, além de ensinar ciências e técnicas, também se valorizam bons princípios; estão nos locais onde se reúnem fiéis de todas as religiões para desenvolver virtudes como a generosidade, a esperança, a mútua ajuda, o mútuo respeito; estão nas associações onde as pessoas se dedicam a prestar serviços comunitários gratuitos; estão onde quer que alguém esteja ajudando uma criança, um velhinho, um doente; estão nos clubes onde homens, mulheres, crianças se encontram para praticar esportes, lazeres, atividades culturais e artísticas; enfim em todos os lugares onde se exercite a harmoniosa convivência humana num clima de boa vontade, paz, alegria e fraternidade.

Quanto mais gente houver, no mundo inteiro, pensando, desejando e fazendo coisas ruins, maior a carga de energia negativa. Quanto mais gente pensando, desejando e fazendo coisas boas, mais pura e saudável será a noosfera.

Fonte> Texto enviado pelo autor 

Laé de Souza (Separados?)

Já fazia um tempo que a cama estava pequena para os dois.

A necessidade de mais espaço e liberdade no dormir fez com que Belarmino deitasse mais vezes no sofá. Joanita, a princípio, reclamou, depois foi se acostumando e se esparramando pela cama.

Belarmino começou a perceber e a reclamar das suas coisas fora do lugar. Sempre que queria usar aquela camisa ou calça, estavam sem passar. Nunca sabia onde se escondia o que procurava e ainda ouvia insinuações de dependência e de querer tudo nas mãos.

As ideias foram se formando e aquilo martelando, até que, a partir de um programa de televisão, resolveu montar uma casa só sua, embora continuasse o casamento.

Joanita achou a decisão um absurdo, mas Belarmino estava disposto a levar em frente a decisão e confessou que estava cansado de morar em sua casa e não ter liberdade para mandar e desmandar. E descarregou seus motivos:

- A casa, na verdade, pertence a ti, Joanita e não a mim. Se, por acaso, chegar aqui com aqueles amigos do futebol e depois de tomar uns pileques, ficarmos a falar das jogadas, de quem foi o erro, de quem foi o gol e da próxima partida, sem preocupação de horas, tu vais aceitar?

Por acaso já vim alguma vez com amigos que tocam legal um cavaquinho e ficamos até alta noite cantando? 

Sabes que eu já passei vontade de fritar um ovo, eu mesmo, e deixar no ponto, sem ligar para gorduras espalhadas pelo fogão?

Sabes que é a contragosto que eu fecho o box e que a toalha molhada no chão não é esquecimento, pois gosto de deixar lá mesmo? E que me enraivece após a barba guardar imediatamente o aparelho e a pasta?

Sabes que quando estou ouvindo minha ópera e tu reclamas de dor de cabeça, pedindo para abaixar o som, me dá vontade de levá-lo nas alturas? E já reparastes que toda vez que eu ouço surge a tua dor de cabeça?

Já notastes que eu deixo sempre o meu chinelo do lado da cama e quando chego, tu já guardastes no lugar certinho e eu sempre esqueço?

Sabes que não gosto nada, nada, daquele quadro do toureiro pendurado na parede da sala? E que várias vezes me passou pela cabeça atirá-lo no chão? – desabafou mais e mais, até que a Joanita concordou.

Alugou um apartamento e foi a custo que o Belarmino conseguiu colocar uma ou outra coisa onde queria. Seu sonho de praticabilidade foi por água abaixo e os cômodos se encheram de móveis, ao gosto da Joanita. 

As coisas foram entrando devagarinho. Numa coisa ou outra, ela cedeu, mas tinha sapateira e porta toalhas. Foi quando ela ameaçou colocar um quadro na parede, que ele disse; "Chega!" Bagunçou tudo e exigiu que ela não arrumasse mais nada na casa que agora era só sua.

Mas foi no dia do blecaute que Belarmino percebeu que, em algumas coisas, a Joanita estava com a razão e que tinha sentido o conselho da mulher para que guardasse um maço de velas naquele cantinho do armário (que por sinal é uma bagunça total].

Fonte> Laé de Souza. Acredite se quiser. SP: Ecoarte, 2000. Enviado pelo autor.

Aparecido Raimundo de Souza (Era só um buraco na camada de ozônio)

NAQUELE MOMENTO, o céu lá no sempiterno não ia além de uma neblina densa e chata –, dessas que parecem esconder segredos cabeludos e distorcer as realidades deixando o que está quieto e calmo numa espécie de alteração desenfreada. Apesar disso, saí e iniciei a minha caminhada de todas as manhãs. De repente, assim do nada, um espanto atarantado me deixou boquiaberto. Me deparei com um relógio grudado em um painel em frente à entrada de um prédio de uns dez andares. Até aquele momento, não me lembro de tê-lo visto. Será que a idade está me deixando pirado, a ponto de ver coisas que não existem? Não importa. O mostrador marcava oito e meia. Lembro que as oito horas em ponto, havia saído de casa. Decidira empreender um passeio, uma caminhada simples objetivando espairecer as ideias. Uma jornada breve, de passos curtos, sem rumo definido. Apenas seguindo os rastros da névoa que se entrelaçavam com meus devaneios e pensamentos meio que conturbados. Apesar do prédio e do relógio, me pus adiante. Me embrenhei sem rumo certo. 

Passei por vielas estreitas, onde as casas com grandes janelas de várias cores e formatos me davam a impressão de fundidos umas às outras, como se fossem espelhos gigantescos que refletiam infinitamente imagens de uma centena de parques de diversões. Logo, ruas à frente, árvores sussurravam segredos em línguas estranhas. Pássaros voavam em círculos, assim como se dançassem irmanados numa coreografia invisivelmente inexistente. Foi então que ao cruzar com a igreja e mudar de uma calçada para outra, me deparei com uma porta de madeira antiga na entrada de uma loja onde uma tabuleta indicava, em letras garrafais, a comercialização de “roupas femininas.” Uma entrada a meu entendimento, de cútis carrancuda, me espiou da cabeça aos pés com olhos arregalados e as feições convexas. Esse acesso construído em madeira antiga, se fartava com entalhes intricados que pareciam contar histórias de outros tempos que não os meus. Não havia maçaneta para as mãos. Apenas um espelho em formato de coração embutido, como se alguém o tivesse colocado ali por algum motivo sem uma meta definida. 

Pombas! Do lado de fora? – Inquiri com meus botões!  Esquisito, ou melhor, intrigante. Quem teria a maluca ideia de colocar um espelho ao relento e na escadaria de um comércio de roupas íntimas? Estanquei. Ao sofrear os passos, percebi os meus reflexos reproduzidos olhando escancaradamente para mim. Eles me sondavam com butucas de olhos esbugalhados curiosos, como se também quisessem desvendar algum secreto existente em um oculto que eu carregasse invisível. Extremamente abelhudo, sem hesitar em seguir meu plano traçado, empurrei a pesadona e entrei. Do lado de dentro, não havia chão. Apenas um buraco enorme. Como se estimulado por mãos invisíveis, caí nele, ou sei lá, flutuei, não lembro. O tempo, a partir desse passo, e da minha intromissão, foi como se alguém poderoso tivesse desfeito as minhas vontades e tomado conta total dos meus controles. Vi-me em um espaço separado. Um recinto, ou um mundo insondado e impróprio, meio que extravagante. Para me deixar mais intrigado, havia um jardim e no meio dele, muitas árvores. 

Elas tinham raízes de fogo e os pássaros que voejavam, centelhavam um encantamento inexplicável. Uma fascinação embevecida de luzes as mais variadas cores, brincavam com a claridade do dia mavioso. As flores cantavam canções antigas e os pequenos fios de água corrente lembravam trilhas de estrelas. Assim, do nada, me flagrei parte integrante desse cenário, tipo uma criatura híbrida repleta de sonhos e realidades. Saídos de algum espaço ainda não vislumbrado, encontrei outros viajantes. Seres iguais a mim que também haviam, obviamente, cruzado a porta com o espelho. Após os cumprimentos, conversamos (desconheço como) em línguas duvidosas. Compartilhamos histórias e memórias que não eram nossas. Não havia passado nem futuro, apenas o presente. E esse presente se fazia eterno. À medida que explorávamos esse universo, percebi que o espelho não tinha o condão de apenas ser uma mera passagem. Ele se distendia além e se abria numa metáfora. Como tal, refletia nossos desejos mais profundos, sopesava nossos medos mais obscuros. 

De repente, viramos fragmentos de um mesmo sonho dançando na borda do real e do imaginário. Foi magnânimo! Assim, nesse lugar sem tempo –, aprendi, ou melhor –, compreendi que a realidade que nos atravanca os passos, nada mais é que apenas uma ilusão. O surreal, por sua vez, é especificamente o cubículo onde habitamos. O espelho nos mostrou que somos feitos de luzes e sombras, de mistérios e encantos. Quando finalmente voltamos para a saída, encaminhei o nariz para minha casa. Não sei o tempo dos demais. Apenas registrei que o meu relógio de pulso marcava oito e meia. Entretanto, o relógio na entrada da porta do prédio de dez andares, não marcava coisa alguma. Novamente dei uma esticada para o espelho e tornei a rever meu reflexo sorrindo. Ele sabia o que eu havia sem querer, descoberto: e o que, de fato, eu harmonizara nessa breve saída do meu habitat natural?  Fácil o entendimento. Em conclusão, aprendi que a vida é uma jornada insana e longa dentro de uma porta com um espelho. Nesse espelho existe um labirinto de outras entradas e lacunas, de desvãos, e águas-furtadas, onde o oculto nos espera para rodopios em formas de danças em seus braços mágicos. 

O resto... bem, o resto são apenas corriqueiras intimidações e sobressaltos. Contemplações benfazejas com pequenas rusgas, ou simpáticos dissabores fáceis de serem suportados. Esses contratempos, esses infortúnios são brandos. Trazem pitadas de atemorizações e intimidações –, todavia, nenhuma tristeza ou enfermidade, tampouco resquícios de situações que possam nos fazer um mal que não consigamos suportar. ou seja, em resumo, nada sério, ou fora de um propósito coerente. Tem um Ser Superior no controle. Nada considerado profundo e penoso que nos desvirtue dos trilhos do “Amor Sublime,” ou nos leve à deriva, à uma loucura descabida –, ou dito de forma mais objetiva: nenhum contratempo que nos desvie da complexidade de estarmos vivos e respirando as boas coisas que nos foram legadas pelo Pai Maior. O Deus piedoso que nos contempla sorrindo lá do mais alto com a sua infinita e perpétua “Graça Celestial.” 

Fonte> Texto enviado pelo autor 

segunda-feira, 8 de abril de 2024

Coelho Neto (As formigas)

À sombra de uma faia, no parque, enquanto o príncipe, que era um menino, corria perseguindo as borboletas, abriu o velho preceptor o seu Virgílio e esqueceu-se de tudo, enlevado na harmonia dos versos admiráveis.

Os melros cantavam nos ramos, as libélulas esvoaçavam nos ares e ele não ouvia as vozes das aves nem dava pelos insetos: se levantava os olhos do livro era para repetir, com entusiasmo, um hexâmetro sonoro.

Saiu, porém, o príncipe a interrompê-lo com um comentário pueril sobre as pequeninas formigas que tanto se afadigavam conduzindo uma folhinha seca. Disse:

— Deus devia tê-las feito maiores. São tão pequeninas que cem delas não bastam para arrastar aquela folha que eu levanto da terra e atiro longe com um sopro.

O preceptor, que não perdia ensejo de educar o seu imperial discípulo, aproveitando as lições e os exemplos da natureza, disse-lhe:

— Lamenta V. A. que sejam tão pequeninas as formigas... Ah! meu príncipe, tudo é pequeno na vida: a união é que faz a grandeza. Que é a eternidade? Um conjunto de minutos. Os minutos são as formigas do Tempo. São rápidos e a rapidez com que passam fá-los parecer pequeninos. São eles, entretanto, que, reunidos, formam as horas, as horas fazem os dias, os dias compõem as semanas, as semanas completam os meses, os meses perfazem os anos, e os anos, Alteza, são os elos dos séculos.

“Que é um grão de areia? Terra; uma gota d'agua? Oceano; uma centelha? Chama; um grão de trigo? Seara; uma formiguinha? Força. Quem dá atenção à passagem de um minuto? É uma respiração, um olhar, um sorriso, uma lágrima, um gemido; juntai, porém, muitos minutos e tereis a vida.

“Ali vai um rio a correr — as águas passam aceleradas, ninguém as olha. Que fazem elas na corrida? Regam, refrescam, dessedentam, brilham, cantam e lá vão, mais ligeiras que os minutos. 

“Quereis saber o valor de um minuto, disso que não sentis, como não avaliais a força da formiga? Entrai do mergulho na água e tende-vos no fundo — todo o vosso organismo, antes que passe um minuto, estará protestando, a pedir o ar que lhe falta. Ora! O ar de um minuto, que é isso? direis. É a vida, Alteza.

“Vedes a formiguinha que vai e vem procurando migalhas na terra — se a encontra e pode carreá-la leva-a; se é superior à sua própria força, recorre à companheira que passa; outras chegam, ajuntam-se em chusma e ei-las fazendo com facilidade o trabalho que seria impossível a uma só.

“Se a formiga desanimasse nunca iria provisão ao formigueiro. Assim vós, meu Príncipe, pretendeis um conhecimento, ides ao livro que o contém e inclinais-vos sobre ele. No primeiro instante tudo vos parece obscuro; desanimais, aborreceis-vos. Se lançardes de vós o livro ficareis sempre em ignorância, mas se persistirdes, apelando para todas as forças do vosso engenho, pouco a pouco ireis removendo as dificuldades e chegareis ao caminho franco da certeza.

“Assim é em tudo na vida. O que pretende governar deve ver o trabalho da formiga, porque é um ensinamento. Não pôde o príncipe alhanar um embaraço só com o seu juízo, chama a conselho os homens de mais experiência e tino, ouve-os, delibera com eles e, juntos, facilmente arredam o que, no princípio, parecia imóvel. Tudo é proporcional na vida. Deus não fez o insuperável. O “Impossível” é uma expressão inventada pelos fracos.

“O que é para a formiga um carreto, voa com o sopro débil de uma criança; o que é para o homem empecilho as águas levam de roldão; onde não pode a força de um braço supre-a o instrumento e, se ainda o embargo se obstina, então o homem apela para o homem como a formiga reclama a companheira e, conjuntamente, afastam o pesado entrave.

“Se eu vos pudesse levar ao labirinto, que é o reino subterrâneo das formigas, veríeis a perfeita ordem que nele há, a disciplina que o compõe, a harmonia que o rege e se cá fora pudesse ser aplicada a lei que regula a sociedade dos insetos exemplares fácil vos seria governar o povo porque todos os homens dar-se-iam por felizes nos seus postos, não haveria inveja nem ambição, males que tanto malsinam as sociedades.

“Qual é a força da formiguinha? É pouca para um grão de açúcar, entretanto, a formiga pode mudar montanhas se o formigueiro se ajunta em esforço solidário. Que é uma gota de orvalho? Um nada para o calor de um raio de sol, lançai-a ao mar, entrará na vaga concorrendo para o soçobro das maiores naus de guerra.

“Quereis ver a força da formiga, procurai-a no formigueiro, que é a união.” 

Assim falou o preceptor. E, como passasse uma borboleta azul e o príncipe saísse a persegui-la, abriu, de novo, o seu Virgílio e continuou, delicadamente, a leitura interrompida.

Fonte> Coelho Neto. Fabulário. Porto/Portugal: Livraria Chardron, de Ceio & Irmão Ltda, 1924. Disponível no Portal de Domínio Público.

Samuel da Costa (A epístola de Cassilda: Calibor, o doutor sono!)

Camilla, minha querida irmã! Digo que fiquei alarmada, mas não surpresa, com a tua última carta, eu bem queria te responder de outra forma, tamanha a minha aflição. Mas, por fim, uma carta é a melhor forma para nós duas, pelo menos no momento atual.

Infelizmente, a praga que você mencionou também chegou até aqui! Tu bem sabes, que por aqui a vida e o tempo se arrastam de forma lenta e com poucas mudanças. E, hoje, tenho saudades do bom tempo em que as nossas únicas preocupações sobre violências eram com os poucos roubos de bicicletas e de passarinhos furtados. 

Li e reli a última carta, que tu me enviaste e não pude fazer certas ligações com casos isolados, que ocorreram por aqui, as nossas pequenas tragédias. Lembras do Sebastião? O nosso velho Tião, da nossa meninice, sempre bêbado e sempre andando e caindo pelas ruas da cidade? Inofensivo, pedindo dinheiro para mais um trago, pois bem, depois de muitos tragos o velho Tião, um dia ao final da tarde, ele cai no meio da rua. Pois bem, pensamos que por fim tinha morrido, mas não morreu e a história é um pouco estranha. Um policial que fazia a ronda na praça da cidade, que o viu caindo no chão, verificou os sinais vitais e percebeu que o Sebastião ainda estava vivo, e o policial chamou uma ambulância. E assim foi o maltrapilho e barbudo Tião parar no hospital, na cidade vizinha. Camila, minha irmã, foi um fato trágico, embora mais que esperado. E poucos deram mais atenção ao fato em si. E outra tragédia veio para abalar a nossa calmaria, longe dos grandes centros.

Camilla, tu te lembras do Luide? O nosso bom amigo de meninices faceiras! Pois bem, tu bem sabes dos problemas mentais que ele teve quando era mais moço, andando sem rumo pelas ruas da cidade e indo e vindo pelas cidades vizinhas, até ser reconhecido por alguém e o levarem de volta para casa. Ele sempre falava sozinho, interagindo com gente e coisas que não existem. Pois um dia ele ficou mais agitado, gritava, chorava, ria, esbraveja, se encolhia em desespero e por fim era um pouco agressivo. Até que por fim, ele também caiu no meio da rua, no mesmo lugar e na mesma hora que Tião caiu. Também foi socorrido, os socorristas notaram que estava desacordado, e mais uma vez, mais um dos nossos foi socorrido ao hospital.

Essas duas tragédias, em três dias de diferença, não chamaram a atenção de ninguém com muita profundidade, e Camilla, nem o jornal e o rádio de nossa cidade mencionaram os dois casos. O padre, da nossa paróquia, na missa de domingo pediu para rezarmos pelos nossos irmãos convalescidos. E, também, nas pequenas igrejas neopentecostais e protestantes, os pastores pediram orações pelas duas pobres almas.

Camilla, o mais trágico vem depois, Arthur, que tu não conheceste bem, era filho da Glória, a nossa amiga de escola, tu bem sabes que ela era minha amiga, éramos inseparáveis. Se lembra dela estudando? A Glorinha, sempre na nossa casa e às vezes, ela dormia na nossa casa! E o papai nunca deixava eu dormir na casa dela, era sempre uma briga com papai e mamãe e eu a Glorinha sempre chorávamos, quando ouvíamos o não de papai.

Pois bem irmã, tu bem sabes que eu dou aulas de inglês, português e literatura na escola que Glorinha era diretora. A mesma escola, que a gente estudou e nos formamos. Pois, minha querida Camilla, por Deus, Camilla, fui eu que escolhi o nome do primeiro e único filho dela, Arthur. Sempre adorei as lendas do rei Arthur como bem sabes, Camila. Por Deus, Camilla, não se sabe como e nem por quais circunstâncias, o nosso jovem Arthur, o nosso doce Arthur, professor de literatura, muito querido por todos e todas, sempre calmo, estudioso e bem comportado, estava andando pelas ruas da cidade. Estava encharcado de sangue, balbuciando palavras ininteligíveis, era um idioma estranho que ninguém entendia. E ele caiu inconsciente, no mesmo lugar, por Deus, Camilla, foi no mesmo lugar, na mesma hora, no final da tarde. Em um espaço de três dias.

Assim como os outros casos, ele caiu desacordado e mais uma vez foi socorrido por uma ambulância e levado ao hospital. E te confesso que não tive coragem de avisar a minha amiga querida, a minha irmã de coração. Por Deus, Camilla, me contaram depois que a nossa Glorinha não estava mais viva, Arthur a tinha matado. Pensei em uma briga entre os dois, pois era sempre assim quando Arthur perguntava pelo pai dele, quem eram, se estava vivo e onde vivia. Eu mesmo nunca soube e nem perguntei quem era o pai de Arthur. Mas os vizinhos não ouviram nada, pois os dois sempre que brigavam faziam muito barulho. Mas naquele sábado, ninguém percebeu nada e somente um estranho silêncio reinava na casa.

Pois bem, Camilla, soube mais tarde que Arthur estava desacordado no hospital. Os três casos, em um intervalo de três dias. E nesta hora, que tu passas os olhos nesta carta, você deve estar se perguntando porque você, de nada ficou sabendo. Pois bem, você tinha acabado de sair daqui, para dar as tuas aulas de música e em meu amor infinito por ti, não imaginava você voltando para casa e não era justo para contigo. Aqui se repetiu o mesmo silêncio que acontece por aqui, um hiato inexplicável.

O que aconteceu depois, minha querida Camilla, algo muito estranho, para além das estranhas tragédias que abalaram a nossa calmaria interiorana. Uma equipe médica, veio ver os três pacientes. Você sabe que poucas coisas escapam de um universo tão pequeno como o daqui. Uma aeronave descendo em uma fazenda por aqui não passou despercebida. E quando sai de dentro da aeronave uma equipe médica, na luz do dia, fica muito difícil de se esconder. Desembarcaram aqui e depois foram para o hospital na cidade vizinha.

E um nome começou a circular pela cidade, Calibor, o doutor sono. Só depois fiquei sabendo que ele era um neurologista estrangeiro, reconhecido no mundo da medicina. Eu gostaria de não o ter conhecido, mas tive o desprazer de o conhecer, pois este homem era tudo, menos o que se espera de um médico mundialmente renomado. Soubemos de muitas coisas, porque muitos médicos, médicas, enfermeiras e enfermeiras que trabalham no hospital, vieram viver por aqui na zona rural. Gente de fora que veio trabalhar no hospital.

Pois bem, Camilla, este sujeito passou por aqui, na nossa cidade, neste fim de mundo. Vi este homem de pele escura, sem um fio de cabelo na cabeça, rosto fino, um cavanhaque, parecia um egípcio. Não usava um jaleco branco como os médicos e o povo da saúde usam, ele estava usando um jaleco amarelo pálido.

E lá estava ele, analisando o local onde os três tinham caído, ele e seu séquito, homens e mulheres bem alinhados, e mais o diretor do hospital onde estavam os internados os infelizes cidadãos de nossa cidade.

Camilla, eu não queria ter visto, mas vi, pois do alvoroço da cena que tinha mobilizado a cidade, eu não escapei do canto da sereia. Eu vi quando o doutor tirou os óculos escuros e redondos de aro de tartaruga, as lentes eram espelhadas, vi os olhos dele, Camilla, os olhos não eram frios, e nem exalavam maldade, eram olhos blasfemos. Eram profundos, abissais e álgidos! Depois eles foram embora, como se nada fossemos, pois nem mesmo os políticos locais conseguiram convencer aquele homem estranho a ficar mais tempo na nossa cidade. Foram embora em uma limusine, levantando poeira.

Camilla, que cena, horrível ver aquele homem ali, eu senti na minha alma, eu bem sabia que algo de ruim estava por vir e veio. E o que passo a pensar que começou aqui, na nossa cidade, Camilla, vi nascer aqui a tempestade que te assola aí no litoral. É um sentimento meu, que guardo para mim e agora divido contigo. 

Da tua irmã Cassilda.

Fonte> Fragmento do livro Sono paradoxal, de Samuel da Costa. Enviado pelo autor.

domingo, 7 de abril de 2024

Newton Sampaio (Inspiração)

O grupo ficou estatelado com a saída absurda de Damião. Que diabo acontecera ao rapaz? Corria a prosa tão animada, e eis que ele se levanta e zarpa, sem pedir licença.

— Ora, já se viu?

O Silvino engole violentamente o resto do cafezinho, em sinal de protesto. Mas o Damião caminha, na rua deserta, indiferente à fúria do Silvino. Nem sente direito o vento que corta a cidade de ponta a ponta.

— Eta invernão!

A caminhada não é longa. Damião sobe a escada de três em três degraus, fecha a porta à chave. Toma posição, sem mesmo despir o sobretudo.

Maciazinha, a pena do bico de pato! Uma beleza, de macia... Compraria meia dúzia delas, no dia seguinte. Imediatamente, porém, expulsa, do cérebro em faiscações, essa ideia mesquinha de compra e de meia dúzia. Urge encetar a obra. Por isso escreve devagarinho.

Tudo passa. O destino, esse fatal desvelador.

Bota uma vírgula bem caprichada, no fim da linha. E repete, em voz alta:

— “Tudo passa. O destino, esse fatal desvelador.”

Bem esse, o começo que idealizara.

— Fatal desvelador. Fatal... Bonito adjetivo. Só que parece um pouco trágico. Mas não. Quem manda no verso é o desvelador. Desvelador... Vai bem. Vai bem.

Precisa de um complemento para destino. O destino tem que fazer qualquer coisa. Escreve:

“Que prevalece na paixão e predomina no amor.”

— Muito comprida, essa linha.

Resmunga e olha o teto, vagamente.

— Pre-va-le-ce... Pre-do-mi-na.. Vá lá.

(Pausa).

— Amor... Paixão... Estas palavras significam o mesmo? Será o tal pleonasmo?

Corre ao dicionário.

“Pleonasmo, s.m. (gr. Pleonasmos)”

— Vem do grego, hein?

Sentencia o Dicionário Prático Ilustrado (edição revista, com 6000 gravuras, 110 quadros, 90 mapas e um suplemento extremamente útil sobre “tradução e aplicação das principais locuções latinas e estrangeiras” — ab imo pectore, abyssus invocat, alea jacta est, a quelque chose malheur est bon, etc., etc.): “Repetição de ideias ou de palavras que têm o mesmo sentido; viciosa, quando inconsciente ou devida à ignorância; legítima, quando propositada, para dar maior força à frase”.

— Legítima, quando propositada. É esse o meu caso. Exatamente. Eu repeti, para dar maior força à ideia. À ideia... Que ideia? O que eu queria era falar da Ofélia. Comecei com tudo passa para lembrar que tudo já passou.

Cresce, dentro de si, a imagem de Ofélia. Até parece um sonho.

— Ah! Um sonho... Direi que sonhei com ela. Isso mesmo.

A pena bico de pato trabalha febrilmente. Risca tudo, tudo, tudo. 

É o seguinte, o novo texto:

“Eu te sonhei assim, Ofélia querida.”

— Assim, de que jeito?

Cata uma ideia. Uma, duas, três vezes. Nada! Quase desiste. Então se lembra de que o casaco pesadão poderia ser o culpado do enguiço. Saca-o fora, incontinenti. Tem movimentos mais livres. E é com verdadeiro júbilo que encontra:

“Dama então pra mim desconhecida.”

— Querida, desconhecida. Boa rima. Será que o primeiro verso pode rimar com o segundo? Acho que pode.

Corre dificílimo, o parto. Em todo o caso, sempre dá para terminar assim, a primeira quadra:

“Em cujo olhar todo cheio de candura.
Não lia a causa da minha desventura.”

— Candura... Desventura... Está rimado. A candura é dela. A desventura é minha.

Trabalha mais duas horas. De repente, exclama:

— Pronto!

Não parece mau, o verso final:

“Foi assim que te sonhei, Ofélia querida. Foi assim... Foi assim...”

Só então nota o cansaço. Os rins estão doendo.

Relê a obra, em voz alta, passeando no quarto, em diagonal. Depois, escreve o título, a lápis vermelho, em admirável cursivo:

“Eu te sonhei assim...”

Nessa noite, Damião dormiu como um bem-aventurado.

Fonte> Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014.

sábado, 6 de abril de 2024

Geraldo Pereira (Adeus à Torradeira)

Mudou a paisagem noturna do meu entorno. Depois que o governo fez as recomendações para a economia de energia, apagaram-se as luzes que sempre brilharam nos apartamentos da vizinhança. Ninguém dorme mais com a lâmpada do banheiro acesa e não há claridade nos salões de festas, sequer a sonoridade costumeira das sextas ou dos sábados, quando Nelson entoava a toada da normalista e Gonzaga repetia a sina da Asa Branca. Calaram-se os poetas do verso popular. A mocinha que ia até tarde em seu computador, por certo que trocando juras de amor num chat qualquer, tirou da tomada o equipamento e sentou-se na praça em frente – um refúgio como me ensinaram –, pra fiar conversa, cara a cara, com o pretendente de ocasião. A outra, de quem só divisava a silhueta, dispensou o namorado que lhe abraçava às claras no quarto de dormir. Nem só de pão vive o homem, refletiu!

E agora? É ver para crer! Anda-se dentro de casa tateando as paredes, batendo aqui e peitando ali, contanto que se possa alcançar os 20% dos interesses estatais. O vidro espesso da mesa da sala fere a perna do primeiro incauto que tropeçar. Se o jarro de porcelana fina tombar de seu suporte – Valha-me Deus! – a bronca vai ser grande! Na cozinha estão interditados o forno de microondas e a lavadora de louças. Não adianta querer se livrar dos pratos sujos de domingo e das xícaras de café ainda com açúcar. Melhor segurar a bucha e pingar o detergente colorido, esfregando até à limpeza completa. Na área de serviços há uma máquina de lavar roupa recentemente comprada, de moderno desenho, diferente da anterior, por isso não se presta ao uso como mesinha para ler jornais. De uma vez todas as calças, camisas, vestidos e blusas serão submetidos à água corrente e ao sabão em pó!

Ar condicionado virou luxo, ligar, de forma alguma! O tempo não volta, mas quando menino dormia de pijama, cujo paletó tinha as mangas compridas e não havia no comércio sequer ventilador, senão umas peças enormes, pesadas, para uso comercial. Acordava, todos os dias, molhado em suor, sem dispensar, todavia, os sonhos e os devaneios, vez ou outra um pesadelo rolando pela escada de casa, de dezessete degraus contados e recontados na infância. O chuveiro elétrico virou enfeite, o banho frio, gelado tantas vezes, volta ao cotidiano de toda gente ou a chaleira fervente será resgatada de um exílio de muitas décadas. Era assim no passado, com os temores maternos intervindo no higiênico exercício dos filhos, sob a constante ameaça de gripe. A ama cuidava de enxugar a meninada e às vezes excedia-se em cuidados com certas e detalhadas partes do corpo. 

A torradeira de pão, que faz reviver o sanduíche da Confiança, com o queijo se derretendo na massa de trigo espremida, está suspensa, relegada ao segundo plano dentre os equipamentos de cozer e assar. Uma vez na semana o ferro será ligado e quente, bem quente, há de engomar as roupas todas. Difícil conseguir do pretérito o velho equipamento de cor preta, que esquentava à força das brasas postas no interior, tiradas do fogareiro a carvão com o pegador a isso destinado. A lavadeira, como se dizia ou a engomadeira, como também se falava, passava peça por peça, cuidadosamente, borrifando água com a mão, mesmo. O terno de linho branco de meu pai precisava da goma para ficar mais encorpado e, sobretudo brilhar à luz do sol. Os vestidos de minha mãe, de igual forma, pois que seriam usados em recepções a que comparecia ou nas festas de Isnar de Moura, jornalista do batente.

Sou nascido no blecaute da guerra, fui amamentado na escuridão e nos primeiros anos de vida quase não via luz elétrica acesa, por essa e por outras, não me incomodarão os dias do porvir, condenados à negritude da noite. A lua há de alumiar dos céus os caminhos e as estradas, enfeitiçar os casais enamorados e inspirar os poetas que sofrem com a perda dos amores vividos. O sol há de raiar todas as manhãs, embalando o sono das madrugadas, despertando os homens de boa vontade para o trabalho e as crianças que de má vontade vão às escolas e têm raiva de quem inventou o estudo. Os postes de Casa Amarela, que não se apagam com a claridade, servirão de mote à oposição municipal. E outra vez o acendedor de lampiões que meu pai conheceu – Boca de Uruá – na cidade em que nasceu, passará com o seu bordão apagando a luz!

∗ Texto escrito durante um tempo de racionamento elétrico no Recife, por conta da falta de chuvas nas cabeceiras do rio São Francisco, de cujas cachoeiras a energia provém.

Fonte: Geraldo Pereira. Fragmentos do meu tempo. Recife/PE. Disponível no Portal de Domínio Público

sexta-feira, 5 de abril de 2024

George Abrão (Virado de feijão com café)

Nunca gostei de postar fotos ou de relatar aqui o que como ou bebo (também nada tenho contra quem o faz). Mas hoje não resisti, acabei de comer um virado de feijão, bem soltinho, acompanhado de café (sem leite) bem forte e doce. Quem nunca provou, não sabe o que está perdendo, é como diz o goiano: “É bom demais da conta! ”, ainda mais com esse tempo chuvoso aqui de Maringá. 

Falando em chuva, não entendo o porquê, mas parece que a chuva abre (mais) o nosso apetite e nos faz lembrar de coisas boas para comer, como bolinho de chuva (óbvio), bolo de fubá (gosto mais do farelo que fica no prato do bolo do que do próprio), pamonha doce, arroz-doce com canela e outras tantas guloseimas que povoaram a nossa infância.

Ah, infância! Quando eu era pequeno, lá na doce e bela Jaguariaíva, nós morávamos em uma casa onde na cozinha (é claro) havia um grande fogão de lenha, daqueles que têm uma plataforma na enorme boca para se colocar toros maiores de lenha. Pois bem, no inverno fazia muito frio pela manhã e, antes de irmos para a escola (a minha era o belo e saudoso Grupo Escolar “Izabel Branco”), minha mãe, dona Sara, fazia uma grande panela de virado de feijão para comermos em prato de ágata, acompanhado de café. Eu me sentava bem junto ao fogo, colocava os meus pés na beirada da plataforma para a lenha e mandava ver o delicioso virado (comido com colher), bebia uma “canecona” de café, e estava pronto para o que desse e viesse, estava pronto para a vida.

Isto posto, quem nunca comeu virado de feijão bem soltinho acompanhado de café (preto) bem forte e doce, ainda dá tempo, é só ir à cozinha e preparar.

Fonte> George Roberto Washington Abrão. Momentos – (Crônicas e Poemas de um gordo). Maringá/PR, 2017. Enviado pelo autor.

quinta-feira, 4 de abril de 2024

Arthur Thomaz (Inquieto fantasma)

Jocelene era uma jovem que cursava artes cênicas, esperançosa e apaixonada pela profissão. 

Inocentemente, foi até um set de filmagem e declarou-se interessada em fazer parte do projeto.

Levada até os fundos do local, pelo velho diretor, viu-se em um recinto em que havia apenas um sofá.

Imediatamente, compreendeu o que significava o famoso e execrável “teste do sofá”. Retirou-se aos prantos, ainda sentindo o hálito de bebida e o repugnante toque das mãos úmidas e enrugadas do velho tentando apalpá-la, horrorizada com o contraste da fria realidade com o que imaginava de sua tão sonhada carreira

Desiludida, optou por outra profissão, nunca mais pensando naquele nefasto acontecimento.

Durante toda a vida, apaixonada pelas artes cênicas, frequentou e assistiu a todas as encenações teatrais e congêneres.

Amealhou algum dinheiro e tempos depois comprou um velho e decadente teatro, já sem o glamour de outrora, mais ainda lindo aos seus olhos. Reformou-o com desvelo e quando estava prestes a reabri-lo, foi acometida de uma doença rara e fatal.

Mas seu espírito, inconformado com esse desfecho, recusou-se a seguir o natural caminho, decidindo-se a vagar inquieto até encontrar uma cena final que o satisfizesse. 

O secretário de Cultura do município, ao saber dessa situação, notando aí uma chance de ganhar dinheiro fácil, desapropriou o local e passou a um irmão a exploração do teatro. Sempre afirmando ser para fomentar a arte no município, alugou o espaço para todos os tipos de espetáculos, desde apresentações de gogoboys em despedidas de solteiras, até para exibições de sexo explícito.

O espírito de Jocelene não titubeou ao ver o início da degradação de seu sonho e começou a assustar os que se atreviam a subir ao palco.

Cobriu-se com um lençol branco com enormes manchas vermelhas, e aos gritos, invadiu o camarim das atrizes do primeiro espetáculo a ser protagonizado.

Histeria, correria e abandono da encenação. 

A terceira trupe era daquele diretor canalha, que agora em total decadência, encenava peças de última categoria.

Metamorfoseou-se em bela jovem e foi solicitar uma vaga no elenco. O velho fauno assanhou-se é a levou aos fundos do teatro. Ao ser tocada, transformou-se na figura de um demônio que causou um fulminante infarto no asqueroso ser.

Parcialmente satisfeito com a vingança, ainda havia algo mais a realizar para enfim descansar. Devido ao prejuízo causado e a perspectiva de não auferir lucro, o irmão do secretário abandonou o escuso projeto.

O espírito foi ao local de seu antigo curso de artes cênicas e depois de observar várias alunas, encontrou uma jovem que pareceu preencher os requisitos necessários para concluir seu antigo projeto.

Subliminarmente, infiltrou pacientemente ideias no pensamento da aluna. Chegando a induzir uma ida até o velho teatro. Até que ela, por conta própria, tomou a iniciativa de descobrir uma maneira de explora-lo.

O corrupto secretário ficou aliviado em livrar-se do traste que nada lhe rendeu e repassou por uma módica quantia a posse do imóvel, sempre invocando a intenção de fomentar a cultura no município.

Com o teatro na posse da jovem, o espírito de Jocelene conseguiu, enfim, retomar seu caminho natural.

Fonte> Arthur Thomaz. Leves contos ao léu: imponderáveis. Volume 3. Santos/SP: Bueno Editora, 2022. Enviado pelo autor 

quarta-feira, 3 de abril de 2024

Antonio Brás Constante (OPS! Acho que apertei a tecla DEL...)

Diz a lenda que há algum tempo, dentro do passado que já se foi, um menino queria ser escritor, mas ele não queria simplesmente escrever, queria tocar profundamente as pessoas com suas palavras, mexendo com seus sentimentos de ódio, tristeza, alegria, raiva e felicidade entre outros tantos. Mas o que isto tem a ver com informática? Bem, dizem que hoje em dia este mesmo menino já crescido, trabalha na Microsoft, sendo ele quem escreve as mensagens de erro que aparecem no sistema operacional Windows, para total e completo desespero de seus usuários. Recebi está piadinha e resolvi utiliza-la na abertura deste texto para mostrar como em muitos casos a informática consegue realizar os sonhos de alguém, simplesmente transformando-os nos pesadelos de outros.

Ainda falando sobre as tais mensagens de sistema, podemos notar que algumas delas conseguem até mesmo causar certos constrangimentos ao homem. Por exemplo: dependendo do sistema, o indivíduo poderá vir a receber mensagens perguntando se gostaria de dar o BOOT. Como assim dar o BOOT? E, principalmente, o que raios é esse tal de “BOOT”?

Passamos o tempo todo tentando suprir os desmandos do equipamento que vive (artificialmente) enviando mensagens sobre como devemos proceder, ou seja, ao invés dele fazer o que queremos, somos nós que acabamos seguindo as ordens do computador. Ainda outro dia o sistema me pediu para impostar uma senha que não fosse de fácil dedução, e eu escrevi: “IMPOSTO DE RENDA”, cuja dedução é sempre dificílima. A propósito, se aparecer uma mensagem no seu sistema dizendo: “SUA SENHA VENCERÁ EM TRES DIAS", não se anime muito, pois isto definitivamente não quer dizer que sua senha se tornará uma vencedora.

O tempo é algo relativo em informática (principalmente por se tratar de um mundo meio real, meio virtual e meio mágico, regido por elfos, fadas e hackers de um lado e Trolls, bruxas e crackers do outro). Para exemplificar, vale lembrar que um mesmo sistema que parece demorar horas para processar alguma coisa, leva décimos de segundos para deletar algo que não queríamos que fosse deletado.

Apesar dos milhares de recursos e ferramentas apresentadas como verdadeiros milagres da tecnologia, as tarefas sempre são difíceis de se executar, justamente porque em muitos casos os tais facilitadores incorporados ao sistema são extremamente complexos de se operar ou mesmo entender, por outro lado tudo é muito simples de se perder, apagar, errar. E o que é pior, esses erros tão fáceis de se cometer tornam-se, na grande maioria das vezes, dificílimos de se consertar, onde a única certeza é de que em algum lugar existirá um log com o registro de que foi você o responsável pelo erro.

Geralmente quando lemos nos menus dos aplicativos as opções: SALVAR, ABRIR e IMPRIMIR, nós podemos imaginar que existem outros tópicos que apesar de não estarem visíveis ficam subentendidos tais como: REPRIMIR, HUMILHAR e TORTURAR O USUÁRIO.

Enfim, o computador se tornou vital para as necessidades do homem, porém, é bem provável que no futuro o homem não seja mais necessário ao computador, e com isso a soberba de nos acharmos criaturas absolutas torne-se obsoleta.

Fonte> Recanto das Letras. 08 junho 2009.

Lygia Fagundes Telles (A Estrela Branca)

Ah, meu Deus, meu Deus! Como poderei contar todo esse horror, se tenho a boca seca como se tivesse engolido um punhado de areia e se as minhas mãos estão geladas como as mãos dos afogados?! É a realidade ou um pesadelo? Desde quando estou assim rodando desgovernado feito um pião, com as palmas das mãos comprimindo com força os meus olhos — espera, eu disse os meus olhos?…

Espera, calma, um pouco de calma e saberás tudo, vamos pelo começo. 

Foi há dois meses, que tateante e apoiado numa bengala cheguei a esta ponte, um cego mas um cego orgulhoso, nunca quis ter aquele cão-guia que vai indo assim na frente silencioso e triste. Ah! Querem tanto se libertar e a libertação dos guias e dos cegos só pode ser a morte.

Naquele dia, tomado por uma alegria quase insuportável consegui chegar a esta ponte e fiquei ouvindo as águas tumultuadas do rio correndo lá embaixo e que me chamavam: “Vem!…” Para não despertar a atenção dos passantes, eu pousei a minha bengala no chão, segurei no gradil de ferro e cheguei a sorrir tão feliz como naquela minha última noite em que vi a minha estrela branca pela última vez, palpitando lá no céu. Estava tão próxima que se estendesse a mão poderia segurá-la. Ah! Era linda essa última visão antes de mergulhar nesta treva. Dormi feliz e quando acordei não enxerguei mais nada e então comecei a gritar: “Estou cego, estou cego!” E as pessoas em redor pensando que eu tinha enlouquecido, antes fosse loucura, mas era mesmo a cegueira. Fui levado para o hospital e durante um ano os médicos tão atônitos quanto eu, mesmo tratando deste cego sem solução e sem explicação, os dias, os meses correndo e aquele espanto, aquela perplexidade… Então pensei: “Não quero isto, não quero!” E de repente resolvi fugir. Lembrei-me daquele rio correndo caudaloso e que seria a minha libertação. Fugi do hospital e perguntando e tateando pelas ruas quase gritei de alegria quando a voz do rio foi ficando mais próxima, mais próxima e me chamando: Vem!

Poucos passantes na ponte e assim tentei fazer uma cara tranquila quando pousei a bengala no chão e me agarrei ao corrimão de ferro, agora, já! Sussurrei crispado como um gato antes de saltar. Foi então que alguém me agarrou pelo braço. Voltei-me enfurecido, e então?!… Quem vinha se intrometer, quem?!… O desconhecido — era um homem — apanhou a bengala no chão e disse com voz tranquila: “Boa tarde!” Crispei a boca, baixei a cabeça. Não respondi e ele ainda me segurando. Ah! Mas o que significava isso? Respirei de boca aberta, calma! Fiquei repetindo a mim mesmo: “E se ele resolvesse chamar a polícia? Deve ser proibido se matar, hein?!” A mão que me segurava era forte, vigorosa. Levantei a cabeça e tentei sorrir: “Quer ter a bondade de me soltar?” eu pedi. Ele afrouxou a mão e em voz baixa, para não chamar a atenção dos passantes disse que eu adiasse o suicídio. Era possível adiar o suicídio? Dilatei as narinas e pensei, ele devia ser um médico, cheirava a hospital.

— Médico?

— Doutor Ormúcio — ele respondeu baixando o tom de voz. — Há quanto tempo está cego?

Ah! meu Deus, meu Deus, quer dizer que ia começar tudo de novo?! Ele tinha aquele mesmo tom obstinado dos médicos lá do hospital. Ah, sim, eu conhecia bem essa raça, melhor ir com calma, decidi e devo ter sorrido porque senti que ele sorriu também.

— Faz um ano, doutor. Pela última vez vi no céu uma estrela e depois dormi e quando acordei não vi mais nada. Fui levado para o hospital e lá fiquei internado, especialistas me trataram, me viraram do avesso e nada, nada, continuava cego. Então eu pediria agora que seguisse seu caminho e me deixasse em paz, agradeço a intervenção, mas largue do meu braço, por favor, e me deixe. É pedir muito?

— Mas há quanto tempo?…

— Estou cego? Há mais ou menos um ano, está satisfeito? Agora adeus, doutor. Siga o seu caminho e seguirei o meu, gratíssimo e adeus!

Ele aproximou-se mais. Falou com a boca quase encostada ao meu ouvido.

— Acontece que andei fazendo algumas descobertas importantes, está me escutando? Você não tem nada a perder, é jovem ainda, quantos anos?

— Trinta e dois.

— Ótimo! Se o meu tratamento falhar, voltará aqui, as águas esperam, este rio não vai desaparecer… O tratamento não será dolorido, isso eu prometo. E não precisará me pagar, serei belamente recompensado com o sucesso dessa operação… Está claro?

— Claríssimo — eu sussurrei.

Ele fez uma pausa. Senti seu olhar atento. Tentei relaxar, Calma! pedi a mim mesmo. O intruso parecia bem-intencionado, era melhor relaxar e assim quem sabe ele me deixaria em paz.

— Tem família? — perguntou.

— Não. Sou só, não tenho nada a não ser a solidão e esta treva. Agradeço de coração a sua proposta, vou pensar nela e agora, se me permite eu me despeço muito grato pelo seu interesse doutor…

— Doutor Ormúcio. Moro só com o meu empregado. Venha comigo e conversaremos melhor, não vai se arrepender, a morte pode esperar, concorda?

Deixei-me levar como uma criancinha. “Esta é a minha casa, e este é o meu empregado”, ele disse quando chegamos. O empregado era um homem ainda jovem, de voz mansa. Parecia estar habituado às singularidades do patrão porque não demonstrou nenhuma surpresa quando Ormúcio pediu-lhe que preparasse o quarto para o hóspede.

Foram dias calmos, eu estava indiferente, apático e foi sem nenhuma emoção que ouvi Ormúcio me dizer depois de um prolongado exame que eu estava em condições de ser operado. “Ah, é uma operação?” eu disse. Ormúcio confirmou e daí por diante não estivemos mais juntos, ele passava o tempo todo no consultório ou no hospital e eu já pensava em fugir quando certa manhã ele entrou no meu quarto.

— Hoje vamos para o hospital.

Nesse instante a ideia de enxergar novamente sacudiu-me com violência. Poderei descrever aquele tempo que antecedeu à operação? “Não me faça perguntas”, Ormúcio ordenava. E eu obedecia, verdadeiro autômato nas mãos daquele homem que ora se me afigurava um deus, ora um demônio, impenetrável como a própria escuridão. Fui um desses bonecos de mola esquecido num canto e que de repente alguém se lembrou de dar corda e a corda foi excessiva, tudo se embaralhou e me descontrolei numa volúpia de movimentos que já era uma alucinação. No meu peito arfante o desespero e a esperança num rodízio enlouquecedor, às vezes eu me sentia rolando no espaço sem direção e sem socorro. Mas de repente um jorro de luz me inundava e eu me preparava para “aquilo” com o entusiasmo de um menino a se aprontar para uma festa. Já nem fazia mais ideia há quanto tempo estava internado à espera quando de repente, numa madrugada — devia ser madrugada — Ormúcio aproximou-se.

— Venha comigo.

Obedeci em silêncio, habituado a fazer o que me ordenavam sem perguntar “por quê”. Conduziu-me por um longo corredor que achei frio e deteve-se diante de uma porta. Segurou no meu braço.

— Ele sabe que vai morrer logo, falência múltipla dos órgãos — sussurrou-me e pela primeira vez notei um leve tremor na sua voz. — Creio que não passa de amanhã… Ele me pediu para falar com você, antes ele quer falar com você.

— Ele quem?

Silêncio. Comecei a tremer porque de repente senti que alguma coisa terrível ia ser revelada e assim todo o meu ser se inteiriçava na expectativa “daquilo” que meus sentidos pressentiam. Estaquei resfolegante como à beira de um abismo.

— Ele quem? — repeti num sopro de voz. — Quem é que quer falar comigo antes de morrer?

— Ele… O homem de quem você vai herdar os olhos.

Encostei-me à porta para não cair. Então era isso, era isso. Meus olhos iam ser arrancados e nos buracos seriam colocados os olhos daquele homem que estava morrendo. O moribundo me fazia presente dos olhos, eu ia herdar um par de olhos!

Desatei a rir e logo o riso se transformou em soluços.

— Vamos, nada de cenas, acalme-se! — Ormúcio ordenou a sacudir-me com força. — É um mendigo, há meses está internado aqui. Naquela tarde em que impedi seu suicídio, eu já estava pensando nele, nos olhos dele que são perfeitos e que poderiam servir para alguém. Nem eu nem ele, nós não queremos nada em troca, ele se contenta em lhe ceder os olhos e eu serei pago com o sucesso da operação. Compreendeu agora?

Fiz que sim com a cabeça. Compreendia tudo e estava de acordo com tudo, como não havia de estar de acordo? Eu queria enxergar, não era isso? E para enxergar, usaria de todos os meios, fossem quais fossem. Enxuguei o suor que me empastava os cabelos e entrei no quarto. No silêncio, só se ouvia uma respiração ansiosa. Inclinei-me. Senti um hálito fétido.

— É este? — uma voz áspera perguntou voraz. Era tão asqueroso o bafo que vinha daquelas cobertas e tão desagradável aquela voz que instintivamente recuei.

— Sim, ele é bem jovem! — prosseguia a voz sem esperar pela resposta. Havia nessa voz um tom de insuportável alegria. — Quer dizer que viverei muitos anos ainda! Muitos anos!

Continuei calado, voltando o rosto para não sentir mais o bafo que vinha em lufadas do meu benfeitor. Ah, benfeitor, benfeitor!… Se eu soubesse, meu Deus! Que ridícula soa agora esta palavra, benfeitor! Decerto ele está delirando, pensei e só mais tarde aquelas frases voltaram cheias de sentido, verdadeiras hienas a devorarem a paz do meu coração.

— Se você não fosse tão jovem eu não lhe daria meus olhos — exclamou o moribundo apertando avidamente a minha mão. — Meus cabelos caíram, meus dentes caíram, minha carne murchou, de toda esta ruína, só os olhos se salvaram. Pois fique com eles e bom proveito!

Ormúcio impeliu-me para o corredor e fechou apressadamente a porta do quarto mas ainda pude ouvir atrás a voz triunfante:

— Continuarei em você! Continuarei!

Fomos para o jardim. Ormúcio acendeu um cigarro e colocou-o entre meus dedos.

— Não imaginei que ele começasse a delirar justamente na hora em que você… Enfim, passou — disse Ormúcio secamente.

Deixei cair o cigarro e aspirei o perfume fresco da folhagem orvalhada. A voz medonha, o hálito repugnante, tudo aquilo parecia agora pertencer a um pesadelo.

— A última coisa que meus olhos viram foi uma estrela branca cintilando no céu, a minha estrela! Da cama, eu a via sempre pela janela aberta. Naquela noite ela se apagou. Aceito tudo para vê-la novamente.

Dessa operação e dos dias que se seguiram nada poderei dizer, porque minha memória partiu-se em mil pedaços, assim como um espelho. Sei que certa manhã ouvi a voz sussurrante de Ormúcio segredar a um colega: Amanhã saberemos!

Um tremor violento sacudiu-me todo. E quando veio a enfermeira da noite avisando que as bandagens seriam retiradas, pedi-lhe que saísse um pouco do quarto, eu queria ficar só para rezar. Ela obedeceu. Então sentei-me na cama e freneticamente fui arrancando as gazes, arrancando tudo… A princípio, ainda o negrume! E eu já ia desabar sobre mim mesmo, dilacerando-me quando aos poucos um armário branco, um crucifixo, uma cadeira começaram a emergir das sombras, vagamente, meio dissolvidos como os destroços de um naufrágio. Vieram à tona, à tona… dançaram na minha frente indecisos sob um véu de lágrimas. Depois foram se firmando. E se fixaram.

Sufoquei um grito. E delirando de alegria, saltei do leito e escancarei as janelas, era noite, era noite. E a minha estrela? Quis saber, erguendo a cara para o céu, queria vê-la de novo, branca e cintilante, ela que se tornara cinzenta, onde estará, onde?

Foi nesse instante que o horror começou. Ah, mas de que modo explicar a hediondez da minha descoberta? Ergui a face para o céu, ergui a face, mas os olhos… os olhos não obedeciam. “Quero olhar a estrela, a estrela!”, repeti mil vezes num esforço desesperado. E os olhos baixavam obstinados para o jardim como se fios poderosos os dirigissem para o lado oposto daquele que minha vontade ordenava. Como descrever o horror que senti? Como explicar minha cólera ao verificar que fora enganado, miseravelmente enganado, porque nunca aqueles olhos seriam meus! Que me adiantava tê-los herdado, ter-lhes dado vida se eram independentes, se não me obedeciam? Penso que jamais poderei reproduzir as tentativas alucinadas que fiz naquelas horas para arrancá-los, da força medonha que os mantinha na direção oposta daquela que eu determinava, insolentes, livres. Tentei fechá-los, mas esbugalhados como se quisessem saltar, eles rodaram nas minhas órbitas como dois piões num rodopio enlouquecedor e agora se divertiam à minha custa, riam-se de mim naquela brincadeira infernal. Corri para o espelho. Na minha cara pálida e encovada, só os olhos do morto pareciam ter vida, tão brilhantes quanto cruéis. E se deliciavam em me examinar com uma expressão triunfante, gozando o contraste que faziam com o meu rosto retorcido pelo horror. “Eu continuarei em você!” Não foi o que disse o monstro asqueroso?

Cobri a cara com as mãos. Ormúcio triunfara porque a operação fora um sucesso, o morto também triunfara porque continuava vivendo dentro das minhas órbitas, mas e eu?!

Sorrateiramente, antes que o sol raiasse, fugi do hospital saltando pela janela. Ormúcio ficaria na dúvida, era esta a minha paga, ele não saberia jamais se fracassara ou não. E do morto, como vingar-me dele?

Aqui estou no mesmo lugar de onde Ormúcio me arrastou para a sua experiência. Agora os olhos ficaram obedientes, me atendem. Ah! Eles me obedecem, vejo o que quero, estas águas que são mais escuras e turbulentas do que eu imaginava, vejo as nuvens, vejo uma criança correndo lá longe… Eis que agora os olhos me obedecem apavorados porque descobriram meu plano, sabem por que fugi do hospital e por que vim a esta ponte, eles sabem! E já não zombam de mim, não, não zombam mais, sabem que me sepultarei no negrume das águas, desaparecerei como a minha estrela sepultada no negrume do céu, ela e eu teremos o mesmo destino. Agora não posso deixar de rir, de gargalhar até perder o fôlego porque tudo está sendo muito engraçado! O morto queria viver à minha custa, dono de mim! Só que ele não contava com isso, agora sou eu que me rio dele e ainda estarei rindo até o instante em que os seus olhos monstruosos se dissolverem nas águas, como duas miseráveis bolotas de miolo de pão.

Fonte> Lygia Fagundes Telles. Um coração ardente, 2012.