terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

Caminhos da Ficção da África Portuguesa (Rita Chaves e Tânia Macedo)

Nomes como Mia Couto, José Luandino Vieira e Pepetela despontam na literatura dos países colonizados pelos portugueses. No uso da língua, os escritores reafirmam a diversidade. Nas tramas dos livros, combinam história recente e mitos do passado mais antigo. Em muitos casos, prevalece o olhar irônico por Rita Chaves e Tânia Macedo

Que lugar pode ocupar a literatura num continente devastado pela miséria, pelo analfabetismo, pelos conflitos armados, pela precariedade da vida? Se nos deixamos levar pela lógica das estatísticas, temos de assinalar que, de fato, a atividade literária na África não supera a marca do traço. Porém, segundo Mia Couto, um de seus mais prestigiados escritores, essa duríssima realidade não pode ser vista como um impedimento para o lugar do sonho que a literatura também pode abrigar. Aos escritores, cabe, portanto, encarar como um desafio o ato de escrever num quadro atravessado por tão duras contradições.

Em se tratando dos países colonizados por Portugal, a situação é verdadeiramente complicada. A inconsistência do projeto de colonização, o próprio atraso da metrópole e o prolongamento da empresa colonial estão na origem das difíceis condições de vida em Angola, Cabo Verde, Guiné Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe. Nos anos 70, quando o colonialismo lusitano foi interrompido pela vitória das lutas de libertação, encontravam-se as populações africanas mais distantes dos padrões ocidentais no que refere ao domínio da ciência e da tecnologia do que quando ele ali se instalou. As elevadíssimas taxas de analfabetismo eram apenas um dos reflexos do completo fiasco da “missão civilizadora”. Com exceção de Cabo Verde, que apresentava um quadro educacional menos constrangedor, os territórios ocupados caracterizavam-se por baixíssimos índices de escolaridade. A pluralidade lingüística, que poderia ser vista como sintoma da riqueza cultural, tornava mais complexa a situação dos países.

Moçambique, por exemplo, contava mais de duas dezenas de línguas. Reconhecendo a incomunicabilidade entre os vários segmentos que passaram a ser parte de um território comum como um dos mais cruéis legados do sistema colonial, os escritores enxergaram no exercício literário a possibilidade de reforçar um patrimônio comum que a história, mesmo à revelia, havia criado. O reforço dessa convergência seria uma estratégia importante para a libertação. A atividade literária converteu-se desde muito cedo em ato de resistência e um problema que logo se colocou foi o da escolha da língua em que se realizaria o projeto de integração que a literatura chamava para si.

Não acreditando noutras hipóteses, os escritores, sem ignorar a dimensão do problema, assumiram o português como um instrumento a ser utilizado a seu favor. A nacionalização da língua trazida com a invasão seria uma estratégia para a conquista maior. Esse movimento de nacionalização traduziu-se num esforço para conferir ao idioma conotado com a metrópole marcas que o tornassem também um espaço de identidade cultural de cada um dos territórios.

Passados mais de 30 anos desde a independência, o pragmatismo que está na base da escolha da língua oficial, embora tenha resolvido a questão principal, não afastou completamente aspectos que cercam a literatura. Vez por outra, o debate ressurge, sugerindo que essa é uma espécie de área minada, pois a preocupação com o problema permanece no imaginário de fecundos escritores. Em inúmeras vezes, José Luandino Vieira, um dos maiores ficcionistas angolanos, defendeu a idéia de que a língua portuguesa é uma espécie de despojo de guerra, portanto o seu uso é um direito dos africanos e não um sinal de alienação. O fato é que dos dilemas que a relação guarda têm nascido páginas belíssimas dessa literatura.

Entre os ficcionistas, há pelo menos três que se têm destacado pelo trabalho de reinvenção da língua que operam em seus textos: o próprio José Luandino Vieira e seu conterrâneo Boaventura Cardoso e o moçambicano Mia Couto. Dividindo-se entre o conto e o romance, esses autores trabalham a língua portuguesa buscando enfatizar a sua diversidade. Em seus textos, recorrem ao uso de neologismos, desobedecem à norma culta, empregam palavras das línguas de seus países, tornando-as, portanto, mais próximas das realidades apanhadas pelo texto literário. Diante de seus textos, o leitor percebe logo que o autor não é um português.

Ao leitor brasileiro, essa produção vai lembrar o nome de Guimarães Rosa, uma vez que, tal como o brasileiro que fez do sertão um espaço privilegiado, esses escritores, além de transformarem a língua com a interferência de construções um tanto insólitas, procuram trazer para a literatura certa dinâmica da oralidade. Não se trata simplesmente de recontar as lendas, os mitos e as fábulas que compõem as suas tradições, mas de revitalizar a escrita através do questionamento dos modelos ocidentais. Dessa forma, eles exprimem o impasse criado entre a recusa de uma tradição imposta pelo sistema colonial e a impossibilidade de retomar integralmente a tradição que fora submetida ao amordaçamento pelo mesmo sistema. A necessidade de resgatá-la em novas bases vai orientar a procura de novas falas que a literatura precisa abrigar.

Em Angola, onde a ficção se consolidou mais cedo, essa urgência de romper com a convenção que se tentou impor também condicionou logo a invenção de novos espaços e a predominância de personagens que durante a dominação foram desconsiderados pela chamada literatura colonial. Os pobres, os negros, os excluídos ganham a cena na prosa de ficção, alçados ao estatuto de protagonistas do que se pode chamar de uma outra história. Nos anos que antecederam a independência e no período imediatamente posterior, as obras publicadas empenhavam-se em oferecer versões da história que se contrapusessem às imagens disseminadas pelo discurso colonial. Os silenciados exercitavam o direito à voz, conquistado com a libertação. Romances como Mayombe, de Pepetela, e os contos de Sim, camarada, de Manuel Rui, vão revelar novos heróis, em textos que celebram a resistência.

Curiosamente, esses mesmos autores, ainda nos tempos de euforia revolucionária, publicam dois textos de forte conteúdo crítico. O cão e os caluandas, do primeiro, e Quem me dera ser onda, do segundo, com uma perspectiva muito irônica, que contamina a própria linguagem, fazem do humor um modo de abordar o tempo das carências materiais e da desorganização cultural que predomina nos primeiros anos da revolução. O processo de desagregação do projeto utópico começa a ser tratado pela literatura que anunciara a transformação.

A consciência crítica da realidade que sucedia ao sonho convive, todavia, com uma aposta na literatura como marca de identidade. Vamos encontrar assim o romance histórico como uma tendência significativa no itinerário do gênero. Do próprio Pepetela, podemos referir Lueji e A gloriosa família – o tempo dos flamengos. De Arnaldo Santos, temos A casa velha das margens, que, como A conjura, de José Eduardo Agualusa, remonta ao século XIX para oferecer elementos que permitam interpretar o presente. É interessante assinalar que esse tipo de narrativa, que teve seu modelo forjado no Ocidente, no contexto das literaturas africanas traz uma característica especial: para além das fontes documentais, os autores lançam mão da memória oral, confirmando a energia dessas matrizes no patrimônio cultural africano.

Tão forte em Angola, o romance histórico não tem o mesmo peso nos outros países. Ali, percebe-se o desejo de resgatar mitos que a história colonial havia desconsiderado, recuperando para muitos um papel edificante, compatível com a construção do nacionalismo orgulhoso, como é o caso de Nzinga Mbandi, de Manuel Pedro Pacavira. Até o presente, em Moçambique destacam-se apenas dois casos de romances que excursionam pelas páginas da história. O primeiro deles é Ualálapi, de Ungulani ba ka Khosa, publicado em 1987. E, muito curiosamente, a narrativa, em lugar de enaltecer o mito de Ngungunhane – o imperador de Gaza que resistiu bravamente aos portugueses –, oferece uma imagem em tudo contrária à dimensão heróica que o novo Estado procurava assegurar ao personagem. Mais recentemente, Mia Couto, em O outro pé da sereia, faz uma incursão pela história e vai ao século XVI colher material para uma reflexão sobre aspectos contemporâneos da realidade africana. Mais uma vez, a ironia está presente na estrutura da obra.

Muito embora seja reconhecido o peso do passado colonial na situação a ser enfrentada hoje, há uma inegável tendência de trazer a discussão para outros termos, responsabilizando as elites que tomaram conta do poder e contribuíram para o quadro de desagregação mais evidente num ou noutro país. Já em 1994, com O desejo de Kianda, Pepetela denunciava uma Luanda (cidade que foi fundamental na literatura que espelhava o desejo de mudança) vivendo a experiência da ruína. Esse processo de apodrecimento da cidade, que foi tão importante na geografia literária dos anos 60, quando ganhavam corpo os desejos da transformação, será intensificado pelo mesmo autor em obras como Predadores e Jaime Bunda, o agente secreto. Com Jaime Bunda e a morte do americano, este último integra uma série que, parodiando o romance policial, oferece-nos um registro mordaz da degradação das relações sociais e humanas numa sociedade que vive um intenso desregramento.

A ironia será também a marca da ficção em Cabo Verde. Uma boa dose de mordacidade marca o humor que emerge em romances como O testamento do senhor Nepomuceno e A família Trago, de Germano de Almeida. Em todos eles, o foco recai sobre a sociedade caboverdiana numa atualidade em que se refletem os traços de um passado não muito distante e em que se confirma o caráter mestiço da cultura das ilhas. Germano brinca com os estereótipos com que os ilhéus são muitas vezes pintados, mas consegue tratar algumas de suas peculiaridades de maneira corrosiva, sugerindo características que compõem a sua identidade ostensivamente mesclada.
Apesar de estar ainda numa fase incipiente, a prosa de ficção na Guiné-Bissau é marcada por um olhar ácido, incapaz de ver saída. Romances como Eterna paixão e Mistida, de Abdulai Sila, e Kikia Matcho, de Filinto de Barros, tematizam a desilusão diante daqueles que deveriam ser os novos tempos. O pós-independência é visto amargamente nessas duas últimas narrativas, nas quais o recurso àquilo a que se convencionou chamar de fantástico é utilizado para expressar a deterioração de valores que se quer apontar. Já em A última tragédia, de Sila, temos um recuo ao período anterior à independência, e figuras como o professor negro e um velho régulo traduzem uma ponta de esperança em meio ao drama colonial.

A tensão entre um presente difícil e a necessidade de encontrar alguma saída marca essa prosa de ficção. As diversas situações de instabilidade, o acirramento das contradições sociais e a convivência com a morte caracterizam essas realidades onde a guerra tem sido uma marca muito freqüente, o que explica que ela apareça em tantos textos. Melhor seria falar em guerras, pois elas, na verdade, são várias e de maneiras diferentes serão abordadas no interior das obras.

José Luandino Vieira faz da guerra o pano de fundo de duas de suas excelentes narrativas. Em Nós, os do Makulusu, escrita em 1967, ela é a expressão do dilaceramento de um mundo condenado. A sociedade colonial começa a experimentar a consciência de seu fim, e a morte de Maninho, alferes do exército colonial, vítima de uma emboscada, é uma espécie de metáfora do inconciliável para quatro personagens que na infância vivenciaram a comunhão. No livro com que se relança no mercado editorial, rompendo um prolongadíssimo silêncio, Luandino retomará o período e, dessa vez, mergulhará na ambiência da guerrilha no admirável Livro dos rios, com que abre a trilogia De rios velhos e guerrilheiros. Tal como no texto dos anos 60, Luandino recusa aqui qualquer atitude maniqueísta, fazendo, contudo, com que a participação na guerrilha seja uma espécie de travessia que integra a construção da identidade, em que também interfere a relação do homem com a natureza, metonimizada pelos rios que formam a terra angolana.

Em Mayombe, romance destacado na obra de Pepetela, a luta de libertação é palco de glorificação de heróis nacionais, fenômeno que será relativizado em A geração da utopia, quando o mesmo autor procura fazer um balanço do período que vai do começo dos anos 60 até o tempo indicado como “a partir de julho de 1991”. Em A parábola do cágado velho, Pepetela denuncia o absurdo dos combates que se prolongam para além da lógica de seus motivos iniciais e arrasam o país.

Dois autores angolanos, em tudo diversos, também terão na guerra um ponto de aproximação. Em Bom dia, camarada, o jovem Ondjaki surpreende oferecendo a memória de um tempo que, mesmo marcado pelas dificuldades e pela atmosfera algo sombria de um cotidiano povoado pela morte, abre espaço a uma experiência de infância em tudo avessa à desesperança que o cenário externo poderia levar. O narrador menino empresta seu olhar e o leitor pode recuperar alguns fios da vida que permitem encontrar luz onde o nosso senso de realidade teria dificuldade de localizar.

Outro livro fundamental sobre a guerra será Actas da Maianga dizer das guerras em Angola, de Ruy Duarte de Carvalho. Num texto de difícil definição temos uma análise dos conflitos proposta num panorama mais amplo, que tem como objetivo a discussão dos caminhos que se abrem à sociedade angolana logo após o acordo de paz assinado em abril de 2002.

No caso moçambicano, a guerra focalizada não é a luta anticolonial, mas aquela que derivou de conflitos de baixa intensidade alimentados por forças externas e se converteu numa terrível guerra civil. É essa a guerra abordada por Mia Couto em vários romances, como o belíssimo Terra sonâmbula, A varanda do frangipani e O último vôo do flamingo, além de ser uma referência muito significativa no volume de contos Estórias abensonhadas. Em Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, de 2003, Mia vai se debruçar sobre os efeitos da guerra naquilo que se pode chamar de processo de desagregação de valores, fenômeno também trabalhado em A varanda do frangipani. Terminada a guerra, para além dos rastros de destruição material, os moçambicanos confrontam-se com outros níveis de degradação. Em O último vôo do flamingo, um narrador irônico dirige seu olhar às forças estrangeiras que desembarcam no país para monitorar a paz.

É dessa mesma guerra civil que trata Paulina Chiziane em Os ventos do apocalipse. Também é a guerra que aparece em As duas sombras do rio, romance de João Paulo Borges Coelho, e no volume de contos Setentrião, do mesmo autor. São os sinais de uma devastação profunda que mobilizam a atenção dos escritores empenhados em avaliar o fenômeno que dominou a vida do país por tantos anos. Historiador de formação, João Paulo publicou esse que foi o seu primeiro romance em 2002. Daí para cá, mais dois romances e duas coletâneas de contos foram lançados, uma produção que tem confirmado a qualidade de sua escrita desde a estréia.

Essa convergência temática conduzida pela presença da guerra, no entanto, não determina a existência de uma uniformidade em relação aos elementos estruturais na prosa contemporânea. Não podemos sequer falar em predominância de um gênero, pois a variedade de propostas constitui um dado interessante dessa produção africana em língua portuguesa. Uma diversidade que podemos encontrar no interior da obra de um mesmo autor. Já consagrado como romancista, Mia Couto, que na ficção começou como contista, volta ao gênero que o consagrou. O fio das missangas, de 2004, surge na seqüência de vários romances.

O trânsito entre as diferentes modalidades literárias pode mesmo ser visto como uma característica dessa literatura nos vários países. Os autores migram de um gênero a outro, optando, a cada momento, por aquele que consideram mais adequado ao que têm a dizer. É esse o caso de João Melo, de Angola, que, conhecido inicialmente como poeta, tem se notabilizado como contista. Imitação de Sartre e Simone de Beauvoir, Os filhos da pátria e O serial killer são três dos títulos de coletâneas que têm em comum a focalização de cenas da realidade urbana do país. Também em Manuel Rui observamos essa capacidade de transitar entre os vários gêneros: o romancista de Rioseco regressa ao conto em Da palma da mão, no qual exercita a contenção de forma magistral. E vamos ainda encontrar o cronista em Maninha, para ficarmos apenas com três de seus títulos editados de 1997 para cá. Os exemplos se multiplicam se nos voltamos para Moçambique: é o caso de Nelson Saúte, que reúne em sua produção romance, contos e poemas. É o caso, também, do já citado João Paulo, que vai do conto ao romance.

Outro fenômeno muito interessante na prosa africana de língua portuguesa é a diluição das fronteiras entre os gêneros narrativos. Tanda, um livro recém-lançado pelo angolano Adriano Mixinge, mistura poesia, crítica literária e de artes plásticas, cartas e outras formas de discurso.

Cruzando o imaginário cultural com a história remota e recente do seu país, ele monta um painel da complexa realidade atual de Angola.

Essa tentativa de mesclar os gêneros vem sendo radicalizada por Ruy Duarte de Carvalho, como apontamos em Actas da Maianga. Em outras obras, o leitor pode se surpreender com esse escritor que faz da sua formação e experiência de antropólogo uma bagagem fundamental no domínio da atividade literária. Em Desmedida – Luanda – São Paulo – São Francisco e volta – crônicas do Brasil, de 2006, deparamo-nos com a mesma ousadia criativa que já havia sido demonstrada em Vou lá visitar pastores. São escritas orientadas pelo sentido da viagem, mas que ultrapassam em muito os limites de um diário. Muito diversas entre si, as duas narrativas têm em comum a combinação entre o compromisso com o conhecimento e a fidelidade à invenção. Essa mesma associação é trabalhada em obras que apresentam uma estrutura menos polêmica como Os papéis do inglês e As paisagens propícias. Em todas elas, o perfil multifacetado do autor (poeta, antropólogo, cineasta e artista plástico) está, de alguma maneira, presente.

São poucos os nomes de mulheres ficcionistas nas literaturas africanas de língua portuguesa, e as causas da ausência de uma sólida escrita feminina são variadas, mas não podemos deixar de considerar que, apesar das conquistas trazidas pela independência, elas ainda enfrentam as dificuldades geradas pela sua posição de subalternidade, socialmente falando. E aqui se desenha uma contradição, na medida em que a voz feminina é ouvida no círculo mais íntimo das relações familiares, no qual o contar histórias e o consolidar laços acabam sendo suas tarefas. Ocorre, no entanto, que as suas adivinhas e contos estão no domínio da oratura, e, infelizmente, entre o contar e o escrever há um hiato que impede o aproveitamento mais amplo dos seus saberes.

Nos poucos textos escritos hoje por mulheres nos países africanos de língua portuguesa, o leitor vai poder encontrar os problemas, os sentimentos e a intimidade femininos, abordando desde a marginalização e as tentativas de rebeldia em um mundo de carência, como no instigante A louca do Serrano, da caboverdiana Dina Salústio, até a experiência da solidão e do exílio nos contos da também cabo-verdiana Orlanda Amarílis, passando por mulheres que, submetidas a uma tradição que talvez já não corresponda ao seu papel na história, revoltam-se e denunciam a opressão, como se vê em Niketche, uma história de poligamia, da moçambicana Paulina Chiziane.

São textos que apresentam a singularidade da visão feminina da sociedade, dos seus dramas e da submissão a que larga parcela das mulheres continua condenada, mas que também constroem situações capazes de indicar a possibilidade de superação de suas limitações sociais. É o que o leitor encontra, por exemplo, e muito bem tratado pela angolana Ana Paula Tavares em seus dois livros de crônicas: O sangue da buganvília e A cabeça de Salomé. Mais uma vez, a literatura é vista como um espaço de discussão de problemas concretos e como um lugar em que se podem projetar saídas quando as circunstâncias convidam ao desânimo.

A notícia correu muito depressa, como aquele vento maluco que desde a ponta da Ilha sobre até a Lixeira, varre todo o musseque até o fundo da Calemba e da Maianga, pra ir morrer lá longe nos confins da Samba.
Foi assim mesmo, com um vento assanhado que trazia atrapalhação nas nuvens carregadas de chuva, que o caso começou naquele dia tão triste como esquina da Mutamba sem gente. Porque a raiva desse vento é que foi sacudir as vigas de ferro, fez voar os luandos e os zincos e, com um barulho muito grande, deixou cair a antiga kitanda de Xá-Mavu.
As kitandeiras ficaram sem o negócio, sem o dinheiro, muitas mesmo sem a vida. Naquele dia, rios de sangue correram no meio do peixe, dos kiabos, da takula, do jipepe e jisobongo, os gritos não calaram na boca dos feridos.”
Trecho de Estórias do Musseque, de Jofre Rocha.

O culpado que você procura, caro Izidine, não é uma pessoa. É a guerra. Todas as culpas são da guerra. Foi ela que matou Vasto. Foi ela que rasgou o mundo onde a gente idosa tinha brilho e cabimento. Estes velhos que aqui apodrecem, antes do conflito eram amados. Havia um mundo que os recebia, as famílias se arrumavam para os idosos. Depois, a violência trouxe outras razões. E os velhos foram expulsos do mundo, expulsos de nós mesmos.
Você há-de perguntar que motivo me prende aqui, nesta solidão. Sempre pensei que sabia responder. Agora, tenho dúvida. A violência é a razão maior deste meu retiro. A guerra cria outro ciclo no tempo. Já não são os anos, as estações que marcam as nossas vidas. Já não são as colheitas, as fomes, as inundações. A guerra instala o ciclo do sangue.”

Trecho de A varanda de frangipani, de Mia Couto

Costumo pensar que nossa geração se devia chamar a geração da utopia. Tu, eu, o Laurindo, o Vítor antes, para só falar dos que conheceste. Mas tantos outros, vindos antes ou depois, todos nós a um momento dado éramos puros e queríamos fazer uma coisa diferente. Pensávamos que íamos construir uma sociedade justa, sem diferenças, sem privilégios, sem perseguições, uma comunidade de interesses e pensamentos, o Paraíso dos cristãos, em suma. A um momento dado, mesmo que muito breve nalguns casos, fomos puros, desinteressados, só pensando no povo e lutando por ele. E depois...tudo se adulterou, tudo apodreceu, muito antes de se chegar ao poder. Quando as pessoas se aperceberam que mais cedo ou mais tarde era inevitável chegarem ao poder.
Cada um começou a preparar as bases de lançamento para esse poder, a defender posições particulares, egoístas. A utopia morreu. E hoje cheira mal, como qualquer corpo em putrefação. Dela só resta um discurso vazio.
”Trecho do livro A geração da utopia, de Pepetela

Fonte:
Rita Chaves e Tânia Macedo. Caminhos da Ficção da África Portuguesa
http://www2.uol.com.br/entrelivros/reportagens/caminhos_da_ficcao_da_africa_portuguesa.html

Academia de Trovas do Rio Grande do Norte

No ano de 1965, na pacata cidade dos Reis Magos, o desportista LUIZ convidou o apaixonado poeta LUIZ e o historiador LUIS para, juntamente com os grandes nomes, fundarem uma agremiação trovadoresca no estado do Rio Grande do Norte.

A idéia, na realidade, surgiu em dezembro de 1964, na grandiosa metrópole de São Paulo, numa reunião promovida pela Gazeta Esportiva e coordenada pelo poeta e trovador Paulo Bonfim, grande entusiasta da trova brasileira. E o desportista LUIZ, após ouvir calorosas declamações de trovas, foi incitado a criar um grêmio de trovadores norte-rio-grandenses, mesmo sem ser trovador.

Assim, na noite do dia 12 de novembro de 1965, nasceu o clube dos trovadores potiguares que, em 11 de fevereiro de 1967, passou a ser chamado de Academia de Trovas do Rio Grande do Norte. portanto o imensurável Luiz cumpriu a dificílima tarefa de reunir intelectuais, compromissados com a feitura da trova – da poesia metrificada, rimada e elaborada.

Hoje, passados mais de 30 anos, superando obstáculos naturais à intelectualidade, a ACADEMIA DE TROVAS DO RIO GRANDE DO NORTE é motivo de orgulho para quem vive na terra do petróleo, do sal, do algodão e dos suspiros da natureza. Seus acadêmicos brilham em livros, revistas e jornais vislumbrados pelos olhos do Brasil.

Grandes presidentes proclamaram o nome da instituição e subiram, com ela, os degraus da glória. É o caso do primeiro presidente LUIZ DE CARVALHO RABELO, importante intelectual brasileiro que dedicou os grandes momentos da vida à poesia; sendo mestre da métrica, do verso livre e da rima. Assim escreveu Rabelo, embalado pelas musas:

O mártir da Galiléia
esta verdade traduz:
Não morre nunca uma idéia,
mesmo pregada na cruz!

Tem sentido alto e profundo
este provérbio que diz:
que não é pobre o mundo,
quem, sendo pobre, é feliz.

Mesmo sem ver-te Jesus,
minha fé em ti persiste:
- O cego não vê a luz,
mas sabe que a luz existe...

Outros nomes representativos da cultura potiguar honraram nossa Academia, ocupando a presidência da casa: o poeta José Amaral que coordenou o I Congresso Nacional de Trovadores, realizado em Natal, de 23 a 29 de outubro de 1969: o Desembargador Wilson Dantas, poeta de inspiração ilimitada; o poeta do verso medido e humorado Revoredo Netto; o lírico poeta Sebastião Soares; o poeta Giovani Xavier que foi Juiz de Direito da capital potiguar; o matemático e poeta José Haroldo Teixeira Duarte – todos trovaram para elevar o verso potiguar à categoria das raridades poéticas. São exemplos de pérolas raras da poesia brasileiras as trovas de:

José Amaral:
Teus olhos são pisca-pisca
do carro azul da saudade,
correndo em estrada arisca
levando-me a mocidade

Dois beijos. Dois, e mais nada,
me comoveram na vida:
um – que te dei na chegada,
o outro – que te dei na saída.

Wilson Dantas:
Céu com três letras escreve
mãe também se escreve assim,
e neste nome tão breve
existe um céu para mim.

Meu pai, na sua velhice,
tão bom era aos olhos meus,
que se Deus não existisse
meu pai seria o meu Deus.

Revoredo Netto:
Vivendo, embora, a existência
distante da perfeição
que me falte a luz da ciência,
mas nunca a luz da razão.

A natureza descerra
do tempo o infinito véu:
de dia – descobre a terra,
de noite – descobre o céu...

Sebastião Soares:
Sino, nossa estranha sorte
Deus assim que ver comprida,
canta o tormento da morte
que eu vou chorando os da vida!

Eu sei de uma negra cruz,
de tão negra não tem nome:
essa que o pobre conduz
pelo calvário da fome.

Giovani Xavier:
No torvelinho das águas,
como jangada perdida,
fiz de alegrias e mágoas
os remos da minha vida.

José Haroldo Duarte:
Quando passa o vaga-lume
pelas noites sem luar,
foge da flor o perfume,
para teus lábios beijar.

Neste ano de 1997, na sede natalense da AABB, às vinte horas do dia 22 de março, tomei posse como presidente da academia, após ter sido reeleito, por aclamação, para o biênio 1997-1998. Naquela noite serena relembramos os feitos da nossa administração passada. O primeiro aconteceu no dia 18 de junho de 1995, à 20:00h, no Teatro Sandowal Wanderley, quando, de corações abertos recebemos os trovadores Joamir Medeiros e Maria Antonieta Bittencourt Dutra de Souza como novos acadêmicos. O segundo foi, ainda em 1995, a realização do I CONCURSO DE TROVAS EDUCATIVAS da Academia, enfocando o tema AIDS; um trabalho aprovado pelo Ministério da Saúde para correr o mundo através da INTERNET. Na noite de 05 de outubro de 1995, numa quinta-feira de luz, na Capitania das Artes, nesta Natal invulgar, aconteceu o lançamento dos sonhos dos trovadores norte-rio-grandenses, uma coletânea de trovas dos imortais da Academia.

Em 18 de julho de 1996, Dia do Trovador, Dia de Luis Otávio, mais uma vez na intimidade do Teatro Sandowal Wanderley, abrimos os corações e por eles entraram os nossos acadêmicos Fabiano Wanderley, Severino Campelo, Ivaniso Galhardo e Roberto Mota. E na noite do dia 23 de dezembro de 1996, dois importantes acontecimentos embelezaram, ainda mais, aquele sábado primaveril; o primeiro foi a posse de Luiz Xavier e o segundo foi a entrega dos prêmios do XVI CONCURSO NACIONAL DE TROVAS DA ACADEMIA, cujo tema, o RIO POTENGI, encheu os olhos dos trovadores potiguares. Outro maravilhoso momento da entidade foi o renascimento do jornal “O TROVADOR” que estava fora de circulação há, mais ou menos, 30 anos. Um grande sonho não aconteceu – a conquista de uma sede para a ACADEMIA DE TROVAS DO RIO GRANDE DO NORTE.

Hoje, mesmo sem sede própria, a nossa Academia vive dias de glória. Nossas reuniões mensais estão sendo realizadas no auditório do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, graças ao amante das artes, da prosa e da poesia o escritor Enélio Petrovich, dirigente da Casa das Memórias Potiguares. Graças também, aos antigos presidentes que perpetuaram a chama da trova norte-rio-grandense para que, mesmo sem sede, a Academia chegasse aonde chegou. Por isso, merecem os mais calorosos aplausos, alem dos presidentes, todos os imortais que lutaram pela trova e os amantes da poesia sintética. Estamos cientes da missão do trovador; promover o bem, usando a trova como veículo de mensagens educativas, ecológicas históricas, líricas, filosóficas e humorísticas.

Hoje, 26 de março de 1997, numa tarde outonal, recebo das mãos do criador da Academia, Luiz Gonzaga Meira Bezerra, um presente de aniversário, um envelope com três fotos da noite da fundação do Clube dos Trovadores Potiguares. Na primeira estão os três Luiz – Rabelo Bezerra e o inolvidável Cascudo. O sorriso de Luiz G. M. Bezerra demonstrava a realização de um sonho; o eclético poeta Luiz Rabelo espreita, atentamente, a mímica do eterno e encantador mestre Luiz da Câmara Cascudo – patrimônio cultural do Rio Grande do Norte. A segunda foto mostra Luiz G. M. Bezerra no comando dos trabalhos. A terceira foto mostra o auditório do PALÁCIO DO COMÉRCIO, no histórico bairro da Ribeira, repleto de cabeças pensantes da época.

Naquela noite de 12 de novembro de 1965, mais de 50 trovadores embalaram o momento, sacudindo a fundação da Academia com versos explosivos, relâmpagos, metafóricos e conclusivos. Versos que adornaram o Palácio do Comércio, embelezando segundos e centímetros da festa, ecoando no ouvido de uma platéia, religiosamente atenta: Virgílio Trindade, Evaristo de Souza, Jaime Wanderley, Francisco Menezes de Melo, Silvino Bezerra Neto, João Figueiredo de Souza, Enélio Lima Petrovich, Revoredo Netto, Mariano Coelho, Carlos Homem Siqueira, Bernardino Vasconcelos, João Guimarães, Antídio de Azevedo e outros.

Certamente algumas trovas que brilharam no Palácio do Comércio estão impressas no livro antológico da ATRN, o nosso troféu SINFONIA DE TROVAS, como estas:

Antídio de Azevedo
Se a areia que pisas tanto,
adivinhasse quem és,
vibrava toda, garanto,
beijando, louca, teus pés.

Jaime Wanderley
Poesia! Suave perfume,
que obra milagre profundo,
pois multiplica e resume,
toda beleza do mundo!

João Carlos de Vasconcelos:
Natal é cidade amada,
do Potengi a consorte.
- É bela jóia engastada
No Rio Grande do Norte.

João Guimarães:
Se tudo em mim se renova
Quando te vejo, querida,
É porque tu és trova,
Que eu canto na minha vida.

Mariano Coelho
Mesmo que a noite ostentasse
multidões de sete estrelas,
não creio que superasse
a noite dos teus cabelos.

E tudo Transcorreu, na noite da fundação, sob a aura intelectual do papa da cultura potiguar, o maestro das letras LUIS DA CÂMARA CASCUDO; fato que demonstra que a trova sempre foi cantada por grandes literatos como o mais perfeito manifesto poético, tanto pela grandiosidade da síntese, como pela beleza da rima e da métrica. Por isso todo trovador é imortal sente-se impelido a fazer estas reflexões:

Maior prêmio cultural
nas artes, prosa e poesia,
merece aquele imortal
Que ama a própria Academia.

Todo imortal deveria,
enquanto vida tivesse,
pedir pela Academia,
a Deus, em forma de prece.
Presidente da ATRN

Fonte: Academia de Trovas do Rio Grande do Norte. http://www.academiadetrovasrn.com/

Carlos Drummond de Andrade (Os Ombros Suportam o Mundo)

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teu ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

Fonte:
ANDRADE, Carlos Drummond. Nova Reunião. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1985, pág. 78. Disponível em http://www.releituras.com/

domingo, 10 de fevereiro de 2008

Em Tempo (69a. Tertúlia Literária)

69a TERTÚLIA* LITERÁRIA do Movimento Médico Paulista do Cafezinho Literário - MMCL será levada a efeito na Sociedade Médica de Sorocaba na 4a feira, dia 20 de fevereiro, às 19h30 e para a qual convidamos todos os que se interessam em literatura não científica, levando sua participação em forma de conto, crônica, ensaio, poesia, etc. São reuniões extremamente agradáveis em 13 cidades do Estado de São Paulo onde reunimos além de médicos escritores, professores, engenheiros, técnicos em computação, advogados, psicólogos, fonoaudiólogos, músicos, artistas plásticos, marceneiros, militares, promotores; enfim, uma enorme variedade de pessoas com um denominador comum que é serem todos amantes das letras. A entrada é franca.
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*Tertúlia: segundo o Dicionário Caudas Aulete:
sf. 1 Reunião de parentes ou amigos 2 Agremiação literária ou encontro de escritores para conversa e leitura

Fonte:
Colaboração de Douglas Lara

I Concurso Estadual/ Nacional de Trovas do Site Trova Une Versos

1)Para o concurso TROVA é a forma poética composta de quatro versos de sete sílabas métricas cada um deles, com ocorrência de rimas do 1º verso com o 3º e do 2º com o 4º, tendo o conjunto sentido completo;

2)As TROVAS, em nº de 02(duas), LÍRICAS OU FILOSÓFICAS, serão enviadas entre 01.12.07 a 29.02.08, EXCLUSIVAMENTE PELA INTERNET para trovauneversos@gmail.com ; devendo ser inéditas e de autoria do poeta ou poetisa concorrente;

3)Serão acolhidas TROVAS somente em língua portuguesa, o que não exclui os trovadores de outros países, desde que se sirvam dessa língua;

4)Do e-mail deverão constar obrigatoriamente:
- Nome do autor (completo);
- Endereço postal (completo);
- Nº do telefone (se houver);
- E-mail;
- TROVAS (duas).

5)As TROVAS terão por temas:

LENDA(S) – concorrentes domiciliados no estado do Rio Grande do Norte;

SONHO(S) – à exceção do Rio Grande do Norte, para os demais estados do Brasil e outros países;

6)A Comissão Julgadora escolherá em cada segmento 10 (dez) trovas, assim distribuídas:

- 1º, 2º e 3º lugares – Trovas Campeãs (Ouro / Prata / Bronze);
- 4º, 5º e 6º lugares – (Menções Honrosas);
- 7º, 8º, 9º e 10º lugares – (Menções Especiais).

7)Aos vencedores serão concedidos DIPLOMAS de acordo com a classificação;

8)O site TROVA UNE VERSOS anunciará o resultado em 20.04.08;

9)Trovas que estiverem em desacordo com os Artigos deste Regulamento serão excluídas automaticamente do Concurso e a remessa de mais de 02(duas) trovas resultará na desclassificação do(a) participante;

10) Pela simples remessa das TROVAS o(a) concorrente aceita as normas do presente regulamento.
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Conheça o site http://www.trovauneversos.hpgvip.ig.com.br/
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Fonte:
email enviado pela Trova Une Versos

sábado, 9 de fevereiro de 2008

As Lendas Árabes

As histórias de Fadas sempre foram contadas pelas mães a seus filhos e depois a seus netos. Ninguém sabe quão velhas elas são ou quem as contou primeiro. Os netos de Noé podem tê-las ouvido na Arca, durante o Dilúvio. Heitor pode tê-las ouvido na Cidade de Tróia e é quase certo que Homero as conheceu. Algumas delas podem ter surgido no Egito, no tempo de Moisés. Pessoas em países diferentes contam-nas de forma diferente, mas são sempre as mesmas histórias. As mudanças só são percebidas em matéria de usos e costumes, como o tipo de roupa usada, títulos e locais.

Há sempre muitos reis e rainhas nos contos de fadas, simplesmente porque, no passado, havia bastante reis e países. Um cavaleiro, porém, poderia ser um escudeiro ou um rei, dependendo de onde a história era contada. Essas histórias antigas, nunca esquecidas e sempre recontadas, foram escritas em tempos diferentes e em lugares diferentes e em todos os tipos de línguas, formando o conteúdo do Grande Livro dos Contos de Fadas.

As Lendas Árabes, em sua maioria, são contos de fadas do Oriente, compreendendo Ásia, Arábia e Pérsia, escritas no seu próprio modo de narrar, não para crianças, mas para adultos. Não havia romances então, nem qualquer livro impresso, mas havia pessoas cuja profissão era divertir os homens e mulheres contando contos. Eles recontavam essas histórias, destacando personagens pelos seus valores muçulmanos. Os acontecimentos ocorriam freqüentemente no reino do grande Califa Haroun al Raschid, que viveu em Bagdá do ano de 786 ao de 808. O vizir que acompanhava o Califa também era uma pessoa real da grande família dos Barmecidas. Ele foi condenado à morte pelo Califa de um modo muito cruel e ninguém nunca soube o motivo.

As histórias devem ter sido contadas por um longo tempo, depois que o Califa morreu, quando ninguém mais sabia o que realmente tinha acontecido exatamente. Contadores de histórias, finalmente, escreveram os contos, fixando-os em sua forma definitiva, isto é, narrados a um cruel Sultão pela sua esposa.

Pessoas na França e Inglaterra não souberam quase nada sobre As Noites Árabes nos reinados da Rainha Anne e do Rei George I, até que fossem traduzidos em francês por Monsieur Galland. Adultos eram então muito apaixonados por contos de fadas, que julgavam essas histórias árabes as melhores que tinham lido. Eles se deliciavam com os Ghouls, que viviam entre as tumbas, com Gênios, com Princesas que faziam feitiços mágicos e com Peris, as fadas árabes. Simbad viveu aventuras que talvez tenham sido inspiradas pela Odisséia, de Homero, da mesma forma que histórias narradas na Bíblia podem ter sido contadas e recontadas, assumindo a forma de um conto de fada, depois de muito tempo. Há estreitas ligações, por exemplo, entre a história narrada no livro de Ester e a história de Sherazade, em Mil e Uma Noites.

Nada impediu, também, que ao longo do tempo essas histórias destinadas aos adultos sofressem mudanças e acabassem se tornando histórias para crianças. Após o surgimento do livro impresso e da proliferação de uma nova literatura, retratando valores locais e resgatando aspectos do passado dos povos, o interesse gradativamente se voltou para esses novos títulos. As Lendas Árabes, no entanto, jamais perderam seu encanto e até hoje fascinam, pela criatividade e pela imaginação, leitores de todas as partes do mundo.

Fonte:
BAÇAN, L. P.
Lendas Árabes - E-book Virtual
Pérola, PR: Ed. do Autor, 2007.

Lenda Árabe: O Falcão do Rei de Furs

Contam que o rei de Furs era grande amigo de divertimentos, de passeios e de todo tipo de caça. Possuía um falcão treinado por ele próprio que não o abandonava nenhum momento. Mesmo durante a noite, o rei o trazia preso ao seu punho. Quando ia à caça, levava consigo. No pescoço dessa ave, tinha mandado pendurar uma vasilha de ouro, onde lhe dava de beber. Um dia, em seu palácio, o rei viu, subitamente, chegar o encarregado dos bosques e florestas.

Disse-lhe esse encarregado:
— Ó rei, estamos de novo na época das caçadas!
— Isso me deixa muito feliz! — exultou o rei e começou a fazer os preparativos para a partida.

No dia seguinte, com o falcão em seu punho, partiram, rumando para um vale, onde estenderam as redes de caça. Repentinamente, uma gazela ficou presa na rede.

Então o rei alertou:
— Matarei aquele que deixá-la escapar!

Começaram a puxar a rede em torno da gazela, que se acercou do rei, ergueu-se sobre as patas traseiras, encolhendo junto do peito as patas dianteiras. Nisso o rei bateu as mãos uma contra outra, espantando a gazela, que saltou e fugiu, passando-lhe por cima da cabeça e desaparecendo no meio das árvores.

O rei se voltou para os guardas e viu que eles piscavam os olhos uns para os outros, referindo-se a ele, o rei. Percebendo isso, perguntou ao grão-vizir:
— Que têm os soldados?

O grão-vizir respondeu:
— Eles dizem que tu juraste matar quem quer que deixasse escapar a gazela!

Falou o rei, em seguida:
— Pela minha cabeça, precisamos perseguir aquela gazela e trazê-la de volta!

Começou a galopar, seguindo a pista do animal. Libertou o falcão, incitando-o a perseguir a presa. O falcão rapidamente a localizou e, num vôo rasante e certeiro, atirou-se sobre a gazela, enterrando-lhe o bico aguçado nos olhos, cegando-a. O rei apanhou seu bastão, bateu no animal, fazendo-o rolar. Desceu resolutamente, degolou-a, esfolou-a e prendeu a caça a sua sela.

Fazia calor e o local era árido e sem água. O rei teve sede e cavalo também. Olhando ao redor, o monarca viu uma árvore de onde escorria um líquido parecido com manteiga. O rei tinha a mão coberta com uma luva de pele, onde pousava o falcão. Apanhou a vasilha do pescoço da ave, encheu-a com aquele líquido e colocou-a diante do falcão. Inesperadamente, o animal, com um golpe de uma de suas garras, entornou-a. O rei apanhou a taça pela segunda vez, encheu-a, imaginando que a ave também tinha sede, mas o falcão, pela segunda vez, entornou-a.

O rei ficou enraivecido com o falcão e deu-lhe o líquido pela terceira vez. O falcão novamente o entornou e o rei disse:
— Que Alá te enterre, ave infernal!

Dizendo isso, feriu o falcão com sua espada, cortando-lhe as asas. O falcão ergueu a cabeça e sinalizou para o rei:
— Olha o que há sobre a árvore! — queria ele dizer.

O rei levantou a cabeça e viu uma serpente monstruosa na árvore. O que escorria era seu veneno. O rei, arrependido de ter cortado as asas do falcão, levantou-se, tornou a montar a cavalo e partiu levando a gazela. Mandou o cozinheiro preparar a gazela, depois se sentou no seu trono, tendo o falcão no punho. Percebeu, então, que a luva que vestia estava empapada de sangue. Imaginou que fosse da corça, mas, ao observar o falcão, percebeu as pelas coladas a pele pelo sangue que escorria dos ferimentos.
— Meu amigo, você não pode morrer! — lamentou o rei, apertando a ave junto ao peito.

O falcão, às portas da morte, apontou a taça que trazia ao pescoço e fez sinais para que o rei a enchesse de vinho. Aflito, o rei assim o fez, aproximando-a do bico da ave. Novamente o falcão fez sinais, dando a entender ao rei que desejava que este tomasse o primeiro gole. O rei o atendeu, bebendo um gole do vinho, depois voltou a oferecer o vinho ao falcão, que soltou um longo soluço e morreu. Vendo aquilo o rei soltou gritos de luto e aflição por ter matado o falcão que o salvara da morte. Sentiu um aperto no coração, mas estava por demais concentrado em seu sofrimento para perceber que o resto do veneno da serpente, que ficara na taça, o estava matando.

Fonte:
BAÇAN, L. P.
Lendas Árabes - E-book Virtual
Pérola, PR: Ed. do Autor, 2007.

Lenda Árabe: A História do Burro, do Boi e do Comerciante

Havia, no tempo do grande Califa Haroun al Raschid, que viveu em Bagdá, um comerciante, senhor de muitas posses, casado e pai de muitos filhos. Alá, o Altíssimo, lhe deu o dom de entender a língua dos animais. Esse comerciante morava numa região fértil à margem de um rio e tinha um burro e um boi.

Certo dia o boi chegou ao lugar que era ocupado pelo burro e o encontrou varrido e regado de água. No cocho havia cevada bem joeirada e palha desfiada. O burro estava deitado, em repouso, como se fosse uma figura importante. Indignado, o boi se lembrou que, quando seu senhor montava o burro, era apenas para uma curta viagem, quando havia urgência, pois o burro voltava logo ao seu repouso. Protestou, então, sem perceber que o comerciante o ouvia.
— Comes do bom e do melhor e que isso te seja saudável, proveitoso e de fácil! Eu estou fatigado e tu, repousado. Tu comes a cevada bem joeirada, a palha desfiada e és bem cuidado em seu estábulo. Se às vezes, por alguns momentos, teu senhor te monta, bem depressa te traz de volta! Quanto a mim, sirvo apenas para a labuta e para o trabalho pesado do moinho!

Então o burro disse em resposta:
— Ó pai do vigor e da paciência, em vez de te lamentares, faze o que vou te dizer. Digo-te isso por amizade, simplesmente pelo gosto de Alá. Quando saíres para o campo e meterem o jugo no teu pescoço, atira-te por terra e não te levantes, mesmo que te batam. Quando te levantares, deita-te depressa pela segunda vez. Se te fizerem voltar ao estábulo e te apresentarem favas, não as coma. Finge-te de doente e esforça-te por não comer nem beber por uns três dias. Dessa maneira, repousarás da fadiga e do trabalho e te trarão da melhor palha e da melhor cevada para tua alimentação.

O comerciante, escondido, ouviu aquelas palavras. Quando o tratador foi para junto do boi para lhe dar forragem, viu que o animal comia muito pouco. No dia seguinte, pela manhã, quando foi buscá-lo para o trabalho, encontrou-o doente. Foi depressa e comunicou o fato ao seu senhor, que lhe disse em resposta:
— Leva o burro e faze com que ele trabalhe no lugar do boi, durante o dia todo!

O tratador assim fez e levou o burro no lugar do boi, fazendo-o trabalhar durante o dia inteiro. No fim do dia, quando o burro voltou para o estábulo, o boi lhe agradeceu a benevolência, que permitiu que ele, o boi, repousasse de sua fadiga durante aquele dia. Arrependido, o burro não respondeu.

Na manhã seguinte, um semeador foi buscar o burro e o fez trabalhar o dia inteiro. O burro voltou com o pescoço esfolado e vencido pela fadiga. O boi, vendo-o naquele estado, agradeceu efusivamente, glorificando o amigo com louvores.

Disse o burro, então:
— Antes, eu estava muito tranqüilo. A minha esperteza me condenou. Mas é preciso que eu lhe diga que ouvi nosso amo dizer que o boi não se levantar de seu lugar, será dado ao magarefe para que o mate e faça de sua pele um couro para a mesa. Eu ouvi e tive muito medo por ti. Aviso-te, portanto, para tua salvação.

Ao ouvir as palavras do burro, o boi agradeceu-lhe e disse:
— Amanhã mesmo irei livremente com o tratador, cuidar de minhas ocupações.

Na mesma hora começou a comer toda a forragem. Nenhum dos dois percebeu, no entanto, que o comerciante, escondido, ouvia cada uma das palavras deles. Quando o dia amanheceu, o comerciante saiu com a esposa para onde ficavam os bois e as vacas e ali sentaram. Veio o tratador, tomou o boi e saiu. Como não estava acostumado com a comida que havia ingerido durante aquele tempo de inatividade, inesperadamente e à vista de seu amo, o boi começou a agitar a cauda e a soltar ventos ruidosamente, girando como doido de um lado para outro. O comerciante foi tomado de tal ataque de risos que caiu de seu assento. Sua esposa quis saber:
— De que te ris tanto?

Ele respondeu:
— De uma coisa que vi e ouvi, mas que não posso divulgar sem morrer.

Ela insistiu:
— Eu exijo que me contes a razão de teu riso, mesmo se devesses morrer por isso.

Ele replicou:
— Não posso divulgar isso, porque tenho medo da morte.

Ela lhe disse:
— Mas então estás rindo de mim!

Concluindo isso, não cessou de discutir com ele e de o atormentar com palavras, teimosamente. Tanto fez que, por fim, ele se sentiu obrigado a lhe contar. Fez vir seus filhos a sua presença e mandou chamar o cádi e testemunhas, pois queria fazer seu testamento, antes de revelar o mortal segredo à esposa, a quem ele amava e com quem tinha vivido um tempo considerável de sua vida. Ao saberem da exigência da mulher, amigos e parentes disseram:
— Por Alá! Deixa de lado essa história pelo temor que morra teu marido, o pai dos teus filhos!

Mas ela lhes disse:
— Não lhe darei paz enquanto não me tiver dito seu segredo, mesmo que deva morrer!

Então cessaram de falar com ela. E o mercador se levantou de junto deles e se dirigiu para o lado do estábulo, no jardim, a fim de fazer suas abluções e voltar para contar o segredo e morrer. Ocorre que ele tinha um galo valente, capaz de satisfazer cinqüenta galinhas. Tinha também um cão muito valente. Ele ouviu, naquele momento, o cão que chamava o galo, insultava-o, dizendo:
— Não tens vergonha de te mostrares alegre quando nosso senhor vai morrer?

E o galo disse ao cão:
— Como é isso?

O cão contou toda a história e o galo disse:
— Por Alá! Nosso senhor é bem pobre de inteligência. Eu, que tenho cinqüenta esposas, sei me desembaraçar delas, agradando uma e ralhando com outra! Ele tem uma só e não sabe nem o bom meio nem a maneira de tratar com ela! Ora, é bem simples! Não tem senão que cortar, em intenção dela, algumas boas varas de amoreira, entrar bruscamente em seu reservado e bater-lhe até que ela morra ou se arrependa: e nunca mais ela tornará a importuná-lo com qualquer pergunta que seja!

Ao ouvir aquelas palavras, o comerciante sentiu a luz voltar a sua razão e ele resolveu espancar a esposa. Assim, ele entrou no quarto reservado de sua esposa, depois de ter cortado em sua intenção as varas de amoreira e de as ter escondido.

Disse-lhe, chamando-a:
— Vem até o quarto reservado para que eu te diga o segredo e ninguém me possa ver morrer depois!

Ela entrou com o marido e ele fechou a porta do quarto reservado sobre ambos e caiu-lhe em cima a golpes dobrados, até vê-la desmaiar.

Exclamou ela em altos brados, então:
— Eu me arrependo! Eu me arrependo! — e se pôs a beijar as mãos e os pés do marido, demonstrando que estava verdadeiramente arrependida.

Depois, saiu com ele e toda a assistência se regozijou. O casal viveu no estado mais feliz e afortunado até a morte. O burro jamais tentou ser mais esperto que seu amo e o boi jamais lamentou sua sorte novamente. Como gratidão, o comerciante dobrou a quantidade de galinhas aos cuidados de seu galo.

Às vezes, quando o comerciante, sozinho a um canto, começava a rir, lembrando daquilo que não podia contar, sua esposa imediatamente se lembrava da surra de varas de amoreira e espantava toda a curiosidade de seu coração.

Fonte:
BAÇAN, L. P.
Lendas Árabes - E-book Virtual
Pérola, PR: Ed. do Autor, 2007.

Lenda Árabe: A História do Jovem Rei das Ilhas Negras

(Ao redor da fogueira, na tenda do sultão, que estava de passagem por aquelas terras, fazendo justiça, todos prestavam atenção à história que o jovem contava. Ele escondia o corpo num manto longo. Seu rosto estava parcialmente coberto por um turbante cujas abas pendiam sobre uma de suas faces. O fogo, no entanto, provocava naquela parte de seu rosto estranhos reflexos, como chamas se refletindo no mármore polido.)

Saibam vocês que meu pai era Mahmoud, o rei das Ilhas Negras, assim chamadas por causa de quatro pequenas montanhas que um dia foram ilhas. A capital era no lugar onde agora há o grande lago e o deserto. Minha história lhes contará como estas mudanças ocorreram. Meu pai morreu quando tinha sessenta e seis anos e eu o sucedi. Casei-me com minha prima, a quem amei ternamente e acreditei que me amava também.

Mas uma tarde, quando eu estava meio adormecido, e estava sendo abanado por duas de suas escravas, ouvi uma dizer à outra:
— Que pena que nossa ama já não gosta de nosso senhor! Eu acredito que ela gostaria de matá-lo, se pudesse, porque ela é uma feiticeira.

Eu logo acabei concordando com elas. Quando seu escravo favorito ficou gravemente ferido num acidente, ela implorou que a deixasse construir um palácio no jardim, onde o chorou e o lamentou durante dois anos, cuidado e conservando seu corpo. Eu lhe implorei, então, que deixasse de lamentá-lo, pois ele não podia falar nem se mover e somente era mantido conservado daquela forma graças aos encantamentos que ela usava. Ela se virou contra mim furiosa e proferiu algumas palavras mágicas e eu me tornei imediatamente como vocês me vêem agora, meio homem e meio mármore. Essa feiticeira má transformou a capital, uma populosa e florescente cidade, no lago e no deserto que há agora. E não há um só dia que ela não venha a minha procura e me bata com um chicote feito de couro de camelo.

Quando o rei jovem terminou sua triste história triste, o Sultão demonstrou ter ficado sensibilizado com seu destino.
— Conte-me — ordenou ele, — onde está essa mulher má?
— Onde ela vive agora que eu não sei — respondeu o infeliz príncipe infeliz, — mas ela vai diariamente, ao amanhecer, ver se o escravo fala com ela, depois de me bater.
— Rei desgraçado! — exclamou o Sultão. — Serei sua vingança!

Consultou o rei jovem qual seria o melhor modo para agir, traçando um plano para o dia seguinte. O sultão foi descansar, prometendo ao jovem rei que tudo se resolveria favoravelmente. Quando o dia começou a nascer, o sultão entrou no palácio do jardim onde o escravo jazia. Sacou a espada e destruiu a pouca vida que permanecia nele, depois lançou o corpo num poço. Ele se deitou, então, na cama onde estava o escravo e esperou pela feiticeira. Ela primeiro procurou o jovem rei, em quem aplicou cem chibatadas. Em seguida, ela foi para o quarto onde pensava que o escravo ferido estava, mas o Sultão ocupava seu lugar.

Ela chegou até perto do leito e disse:
— Está melhor neste dia, meu querido escravo? Fale pelo menos uma palavra para mim.
— Como eu posso estar melhor — respondeu-lhe o Sultão, imitando a língua do escravo, — quando eu nunca posso dormir por causa dos gritos e gemidos de seu marido?
— Que alegria ouvi-lo falar! — exclamou a rainha. — Quer que eu devolva a ele a forma normal? Peça o que quiser e lhe concederei.
— Por favor! — disse o Sultão. — Livre-o de sua maldição e lhe dê liberdade para que eu não ouça mais os gritos dele.

A rainha saiu imediatamente, levando uma xícara de água. Disse algumas palavras que fizeram o conteúdo ferver como se estivesse no fogo. Então ela lançou isso em cima do príncipe, que imediatamente recuperou sua forma totalmente humana. Ele ficou feliz com isso, mas a feiticeira lhe disse:
— Suma daqui imediatamente e não volte nunca mais. Se não fizer isso agora mesmo, eu o matarei!

O jovem rei fingiu que fugia em desabalada carreira, mas foi ele se esconder para ver o fim do plano do Sultão. A feiticeira voltou ao Palácio das Lágrimas e disse:
— Eu fiz o que você desejou!
— O que você fez — disse o Sultão, — não é o bastante para me curar. Vá agora mesmo e liberte todas as pessoas que enfeitiçou até agora. Vá e lhes devolva a forma humana.

A feiticeira saiu apressadamente e disseram algumas palavras na direção do lago. Os peixes se transformaram em homens, mulheres e crianças. Tudo voltou ao normal. As ruas estavam cheias novamente e as casas e lojas fervilhavam como se nada tivesse acontecido. Assim que ela terminou de desfazer seus encantamentos, a rainha regressou ao palácio.
— Você está bem melhor agora? — indagou.
— Venha para bem perto de mim — disse o Sultão. — Mais próximo ainda.

Ela obedeceu. Então ele pulou sobre ela e com um assobio, sua espada cortou-a a meio, matando-a.

Então ele procurou e encontrou o príncipe.
— Regozije-se — disse ele. — Seu cruel inimigo está morto.

O príncipe não sabia o que fazer para agradecer o sultão.
— Vá governar seu país com justiça e igualdade. Para que sua felicidade e a minha sejam completas, mandarei vir de Bagdá Suleima, minha sobrinha favorita, para que se case com você e o faça feliz para sempre. Ela será o símbolo da nossa aliança. De agora em diante, você é um protegido meu e nenhum mal acontecerá com você ou com seu reino.

Algum tempo depois, a graciosa princesa, sobrinha do sultão, chegou às Ilhas Negras, onde se casou com o jovem rei, numa festa que durou noventa dias.

Foram felizes para sempre!

Fonte:
BAÇAN, L. P.
Lendas Árabes - E-book Virtual
Pérola, PR: Ed. do Autor, 2007.

O Conto de Fadas


Considerado no seu sentido literal, o termo refere-se somente a histórias fantásticas sobre fadas, seres de tamanho muito reduzido que habitavam o reino da fantasia e que fizeram parte integrante das crenças populares da Antiguidade greco-latina e da cultura medieval européia. São seres imaginários, míticos, representados geralmente por mulheres dotadas de poderes sobrenaturais usados para o Bem (Fadas Madrinhas) ou para o Mal (Bruxas ).

Atualmente, o termo engloba uma variedade de narrativas, sobretudo histórias que por regra possuem elementos "atemporais" e que normalmente recorrem a heróis (ou heroínas) quase sempre jovens, corajosos e habilidosos que passam por aventuras estranhas, por vezes mágicas, que lhes servem de teste para um eventual destino feliz, e madrastas malévolas (ou padrastos) cuja função é dificultar-lhes a vida ao longo da narrativa. Toda a história se desenrola no sentido de demonstrar um princípio moral que ou aparece em apêndice (como no caso dos contos de Perrault) ou é construído ao longo do texto (como no caso dos contos de Grimm). Exemplos de histórias como estas encontram-se em muitos países. Apesar das suas características ditas "universais", o conto de fadas tem sofrido alterações ao longo do tempo, de acordo com os gostos conscientes ou inconscientes de cada geração. Tal como o mito, também o conto de fadas apresenta seres e acontecimentos extraordinários, mas, em contrapartida e tal como a fábula, tende a desenrolar-se num cenário temporal e geograficamente vago, iniciando-se e terminando quase sempre da mesma forma: "Era uma vez..." e "Viveram felizes para sempre." Entre os muitos exemplos destacam-se; "A Cinderela"; "A Branca de Neve e os Sete Anões"; "A Bela Adormecida"; "O Capuchinho Vermelho"; "João e o Feijoeiro Gigante", etc.

Tal como acontece com as nursery rhymes, também o conto de fadas sobreviveu à custa da tradição oral até ser compilado e fixado num texto por escritores e não foi, na sua origem, concebido para crianças pois tratava-se de narrativas complexas que descreviam o reino das fadas e duendes e que culminavam em finais infelizes. Gradualmente, este tipo de narrativas simplificou-se introduzindo-se nos domínios da leitura infantil. O conto Dwarf da Condessa d' Aulnoy é disso um bom exemplo: o fim trágico que apresentava no século XVIII foi substituído por um happy end no século XIX.

Os contos mais modernos devem a sua origem a Charles Perrault e aos seus Contes du Temps Passé ou Contes de ma Mère l'Oie (1697) e à Condessa d' Aulnoy com os Contes des Fées (4 vols. publicados entre 1710 e 1715). Entre os contos de Perrault, encontram-se "A Bela Adormecida", "A Cinderela " e "O Gato das Botas", por exemplo. O autor recupera contos populares esquecidos e apresenta versões modernas, usando um estilo simples e natural, cujo objetivo único é o de entreter as crianças. Apesar da pedagogia do Iluminismo condenar o mundo imaginário apresentado às crianças, os contos de Perrault ganham enorme projeção internacional.

Tal como aconteceu em França, também na Alemanha os pedagogos do Iluminismo denegriram a imagem do conto de fadas, defendendo que se tratava de histórias contadas por mulheres ignorantes, desprovidas de intelecto e que afastavam a criança da realidade. No entanto, encorajados por um espírito de nacionalismo romântico, que influenciou a Europa no século XIX afetando fortemente a literatura infantil, os irmãos Grimm [Jakob Ludwig Karl (1785- 1863) e Wilhelm (1786-1859)] compilaram contos de fadas alemães a partir de histórias contadas por amigos, parentes e aldeões. A sua obra intitulada Kinder und Hausmärsmarchen foi publicada sob a forma de volumes sequenciais em 1812, 1815 e 1822 e tornou-se famosa por toda a Europa, sendo traduzida para inglês em 1823 como German Popular Stories.

Na Inglaterra, o Puritanismo condenava os ideais religiosos e cristãos divulgados por alguns contos de fadas, mas o gosto popular sobrepôs-se e quando Tales of the Fairies foi publicado e Mille et Une Nuits (12 vols. 1704-1717) de Gallant foi traduzido para inglês, os "chapmen" rapidamente compraram as obras e colocaram-nas no mercado. Em 1729, Robert Samber traduz os contos de Perrault como Histoires or Tales of Past Times, mais conhecidos por Tales of Mother Goose, não se limitando apenas a traduzir os contos franceses mas adaptando-os, atribuindo por exemplo às personagens nomes de personalidades inglesas.

Em meados do século XVIII, a literatura infantil renova-se e o conto de fadas passa a ser encarado como um veículo essencial de transmissão de lições morais, elaboradas especificamente para crianças, assistindo-se à sua introdução nos programas escolares como exercício de leitura. Contudo, a controvérsia que se gerou em torno do conto de fadas vai marcar a literatura infantil do século XIX. Por um lado, surgem os defensores do seu valor educacional que, devido ao caráter fantasioso induz nas crianças o gosto pela leitura, por outro, aqueles que defendem que a leitura destes mesmos contos reduz a capacidade criativa das crianças e ilude-as porque as afasta da realidade. No entanto, estas divergências não impediram que, por volta de 1846, os contos de Hans Christian Andersen (1805-1875), Eventyr, fossem traduzidos para inglês e se popularizassem por toda a Europa. Andersen foi considerado por muitos o mestre na arte dos contos de fadas. O seu engenho, sensibilidade e forte sentido do maravilhoso atribuíram às suas histórias um apelo perpétuo e universal. Entre os seus contos destacam-se "O Patinho Feio", "A Pequena Sereia" e "As Roupas Novas do Imperador".

A popularidade de Andersen foi tal que deu origem ao aparecimento de outro tipo de contos na literatura infantil inglesa, tais como Mopsa the Fairy (1869) de Jean Ingelow; The Princess and the Goblin (1872) de George MacDonald; The Happy Prince (1888) de Oscar Wilde, merecendo real destaque Alice's Adventures in Wonderland (1865) e through the Looking-Glass (1872) de Lewis Carroll. As duas últimas obras são extremamente complexas, repletas de jogos lógico-matemáticos e lingüísticos. Muitos autores encontraram nelas códigos secretos que sugerem uma sátira política e social. Independentemente da intenção de Carroll, o fato é que são obras que ganharam o estatuto de clássicos, que têm como ponto de partida uma Alice que se desloca no mundo dos adultos (descrito como um mundo de "malucos"), tornando-se o exemplo de uma criança que se afirma no mundo Vitoriano repressivo. Os livros de Carroll popularizaram-se sendo traduzidos para a maior parte das línguas.

Em Portugal, devido ao rígido sistema religioso e de imprensa, a publicação de contos de fadas foi proibida entre o século XVII e o início do século XIX. Só após essa data, se assiste à tradução destes contos para Português e, à semelhança do que aconteceu nos outros países, também eles foram adaptados à realidade nacional, sofrendo alterações com o passar dos anos.

No século XX, surgiu uma tentativa por parte de alguns psicólogos, tais como Sigmund Freud, Carl Jung e Bruno Bettelheim de interpretar determinados elementos dos contos de fadas como manifestações de desejos e medos. Bettelheim, no seu livro Psicanálise dos Contos de Fadas (1975) defende que a leitura de contos de fadas não só oferece à imaginação da criança novas dimensões que seria impossível ela descobrir por si só, como também contribui para o seu crescimento interior. Para este psicólogo, os contos de fadas são verdadeiras obras de arte plenamente compreensíveis para as crianças, como nenhuma outra forma de arte o consegue ser.

Fonte:
Sónia Jacinto e Carlos Ceia. Conto de Fadas.

Armando Oliveira Lima (1934)

Nasceu em Sorocaba aos 30/10/1934 e é funcionário público aposentado.

- Professor formado em Filosofia pela FAFI ), lecionou na Organização Sorocabana de Ensino, no Instituto de Educação “Ciências e Letras” e na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Tatuí.
- Presidiu a Academia Sorocabana de Letras. Membro da Associação Sorocabana de Imprensa, do Núcleo de Cultura Afro-brasileira e da Fundação Cafuné.
- Membro Efetivo da ASL- Academia Sorocabana de Letras.
- Foi Membro do Conselho Municipal de Cultura em Sorocaba.
- Foi colunista durante muitos anos no Jornal O Diário de Sorocaba.

- Atualmente preside o Instituto Darcy Ribeiro. Autor de várias peças teatrais. Foi co-fundador do Teatro dos Três e presidente da Federação de Teatro Amador da Baixa Sorocabana (FETABAS).
- É escritor e autor dos seguintes livros:
- Pés no Chão .
- A Luta pela Independência .
- Ave, Cristo .
- Emília no Mundo dos Livros .
- Impróprios Culturais

- É o criador e organizador do concurso de poesia “Depoesia” de Sorocaba que atualmente encontra-se em sua sétima edição.
- Foi também co-fundador do Gabinete de Leitura Sorocabano e da Academia Sorocabana de Música. Por curto período foi patrono do Centro Acadêmico da Faculdade de Filosofia de Sorocaba.
- Co-fundador do MUE – Movimento Universitário Espírita e da Revista “A Fagulha”. Nessa época foi difusor do espiritismo, proferindo palestras e escrevendo artigos sobre o tema.
- Detém o título de Cidadão Emérito, outorgado pela Câmara Municipal de Sorocaba.
- Grande incentivador da criações culturais dos mais diversificados grupos artísticos.
- Admirador profundo do escritor Monteiro Lobato, desenvolveu importantíssimos trabalhos voltados a ele, tornando-se um expert em Monteiro Lobato.
- Com espírito sempre inovador, editou o livro intitulado “Impróprios Culturais “, que contém 400 novas palavras, criadas por ele a apartir da junção de outras duas.

Fonte:
http://www.sorocult.com/

Armando Oliveira Lima (Diálogos Imaginários...)

Pai, a sabedoria é fruto da velhice?
- A sabedoria, filho, é fruto da experiência, do viver intenso. Se deseja chegar à sabedoria, viva! Intensamente.

Pai, você tinha, como eu, inveja do seu pai? Vejo-o falando dele amiudadamente sempre com carinho e admiração.
- Tinha filho. Não tenho mais. Aprendi que cada vez que queria ser ele, deixava de ser eu mesmo. Quando era eu mesmo me parecia com ele.

Pai, o que você sente ao ver uma árvore florida?
- Sinto, filho, o divino prazer de dar flores multicoloridas e produzir frutos sazonais.

Pai, o que é poetar?
- Poetar, filho não é ato vão. Poetar é fazer a limpeza no nosso próprio porão.

Pai, às vezes tenho imensa vontade de morrer. E só tenho quinze anos ...
- Pois eu, filho, tenho imensa vontade de viver. E só tenho sessenta e quatro anos...

Pai, como você se comportaria se eu, nos meus quinze anos, lhe dissesse que um dia tive uma experiência sexual?
- Não sei, filha. É difícil prever comportamentos futuros, trabalhar sob hipóteses. O que sei é que felicidade se transmite, às vezes, pela vida sexual. A tragédia também. Portanto é preciso cuidar-se.

Pai, responda: você traiu mamãe alguma vez?
- Ô, filho! Isso é pergunta que se faça?
- Fique tranqüilo, velho. É segredo nosso...

Pai, você me ama?
- Muito.
- Mas não demonstra, né?
- Você é que não percebe, filha.

Pai, meu chefe não gosta de mim. Ele me persegue. O que posso fazer?
- Nada, se não olhar fundo nos olhos dele, sem rancor. Será o bastante. A linguagem dos olhos, como a lixívia, lava. As almas.

Pai, meu grande sonho é ser alguém amanhã.
- Filho, pessoa alguma será alguma será alguém no futuro senão a partir de considerar-se alguém agora. O futuro é hoje!

(Partes do trecho total)

Fonte:
http://www.sorocult.com/

George Orwell (Resumo: 1984)

No mais famoso romance de George Orwell, a história se passa no "futuro" ano de 1984 na Inglaterra, ou Pista de Pouso Número 1, parte integrante do megabloco da Oceania. É comum a confusão dos leitores com o continente homônimo real. O megabloco imaginado por Orwell tem este nome por ser uma congregração de países de todos os oceanos. A união da Alca (Área de Livre Comércio das Américas), Reino Unido, Sul da África e Austrália não parece estar tão distante da realidade.

E a transformação da realidade é o tema principal de 1984. Disfarçada de democracia, a Oceania vive um totalitarismo desde que o IngSoc (o Partido) chegou ao poder sob a batuta do onipresente Grande Irmão (Big Brother).

Narrado em terceira pessoa, o livro conta a história de Winston Smith, membro do partido externo, funcionário do Ministério da Verdade. A função de Winston é reescrever e alterar dados de acordo com o interesse do Partido. Nada muito diferente de um jornalista ou um historiador. Winston questiona a opressão que o Partido exercia nos cidadãos. Se alguém pensasse diferente, cometia crimidéia (crime de idéia em novilíngua) e fatalmente seria capturado pela Polícia do Pensamento e era vaporizado. Desaparecia.

Inspirado na opressão dos regimes totalitários das décadas de 30 e 40, o livro não se resume a apenas criticar o stalinismo e o nazismo, mas toda a nivelação da sociedade, a redução do indivíduo em peça para servir ao estado ou ao mercado através do controle total, incluindo o pensamento e a redução do idioma. Winstom Smith representa o cidadão-comum vigiado pelas teletelas e pelas diretrizes do Partido. Orwell escolhera este nome na soma da 'homenagem' ao primeiro-ministro Winston Churchill com o uso do sobrenome mais comum na Inglaterra. A obra-prima foi escrita no ano de 1948 e seu titúlo invertido para 1984 por pressão dos editores. A intenção de Orwell era descrever um futuro baseado nos absurdos do presente.

Winston Smith e todos os cidadãos sabiam que qualquer atitude suspeita poderia significar seu fim. E não apenas sair de um programa de tv com o bolso cheio de dinheiro, mas desaparecer de fato. Os vizinhos e os próprios filhos eram incentivados a denunciar à Polícia do Pensamento quem cometesse crimidéia. Fato comum nos regimes totalitários.

Algo estava errado, Winston não sabia como mas sentia e precisava extravassar. Com quem seria seguro comentar sobre suas angústias? Não tendo respostas satisfatórias, Winston compra clandestinamente um bloco e um lápis (artigos de venda proibida adquiridos num antiquário).

Para verbalizar seus sentimentos, Winston atualiza seu diário usando o canto "cego" do apartamento. Desta forma ele não recebia comentários nem era focalizado pela teletela de seu apartamento. Um membro do Partido (mesmo que externo como Winston) tinha de ter um teletela em casa, nem que fosse antiga. A primeira frase que Winston escreve é justificavel e atual: Abaixo o Big Brother!

A vida de repressão e medo nem sempre fora assim na Oceania. Antes da Terceira Guerra e do Partido chegar ao poder, Winston desfrutava uma vida normal com os seus pais.

Mesmo Winston tinha dificuldades para lembrar das recordações do passado e da vida pré-revolucionária. Os esforços da propaganda do Partido com números e duplipensamento tornavam a tarefa quase impossível já que o futuro, presente e passado eram controlados pelo Partido.

O próprio ofício de Winston era transformar a realidade. No Miniver (Ministério da Verdade), ele alterava dados e jogava os originais no incinerador (Buraco da Memória) de tudo que pudesse contradizer as verdades do Partido. A função de Winston é uma crítica à fabricação da verdade pela mídia e da ascenção e queda de ídolos de acordo com alguns interesses.

O Partido informa: a ração de chocolate semanal aumenta para 20g para cada cidadão. O trabalho de Winston consistia em coletar todos os dados antigos em que descreviam que a ração antiga era de 30g e substitui-los pela versão oficial. A população agradece ao Grande Irmão pelo aumento devido aos propósitos midiáticos do poder. Winston entendia que adulterava a verdade, por muito tempo ele encobria a verdade para si, mas, aos poucos, ele começava a questionar calado e solitariamente. O medo de comentar algo era um dos trunfos do Partido para o controle total da população. Winston tinha esperança na prole. Na sua ingênua visão, que confunde-se com a biografia de Orwell em sua visão durante a guerra civil espanhola, a prole é a única que pode mudar o status quo.

Winston lembra dos "Dois minutos de ódio", parte do dia em que todos os membros do partido se reunem para ver propaganda enaltecendo as conquistas do Grande Irmão e, principalmente, direcionar o ódio contido contra os inimigos (toteísmo usado amplamente pelo ser humano: odeie o seu inimigo e se identifique com o seu semalhante). Durante este ato, Winston repara num membro do Partido Interno, seu nome é O'Brien. Winston separou-se devido à devoção de sua esposa ao Partido. Ela seguia as determinação que o sexo deveria ser apenas para procriação de novos cidadãos. O sexo como prazer era crime. Ao ver uma bela mulher, lembrou-se da última vez que fizera sexo. Havia três anos e com uma prostituta repugnante. Boicotar o sexo, como pretendem os atuais donos-do-mundo é uma das forças-motrizes para dominar a mente. Winston anotava tudo o que se passava pela sua cabeça. Um exercício proibido mas necessário. Anotar e lembrar pode ser muito perigoso. O caso mais escandaloso que revoltava Winston era o de Jones, Aaronson and Rutherford, os últimos três sobreviventes da Revolução. Presos em 1965, confessaram assasinatos e sabotagens em seus julgamentos. Foram perdoados, mas logo após foram presos e executados. Após um breve periodo Winston os viu no Café Castanheira (Local mal-visto pelos cidadãos que não queriam cometer crimidéia). No ano do julgamento Winston refez uma matéria sobre os três 'traidores'. Recebeu através do tubo de transporte que eles estavam na Lestásia naqueles dias, mas ele sabia que eles confessaram estar na Eurásia (naquela época a Eurásia era a inimiga, mas num piscar de olhos, a Lestásia deixava de ser a aliada e passava a ser a inimiga).

Esta é uma crítica às alianças políticas, principalmente ao pacto de Hitler e Stalin. Os nazistas chegaram ao poder financiados também por setores dos EUA para combater o avanço do comunismo. Durante a vigoração do pacto, a aliança entre Moscou e Berlim sempre existiu para a população dos dois países. Eles não eram amigos, eles sempre foram amigos! No ano seguinte, rumo ao 'espaço vital alemão', os russos sempre foram os inimigos. Sempre tinham sido. Bastante atual se compararmos o apoio logístico e bélico dado aos estaduinedenses a Saddam Hussein e Osama bin Laden para combater o comunismo. Agora, eles são os inimigos eternos.

A mentira do Partido era a prova que Winston procurava para si. Havia algo podre na Oceania. Winston, que era curioso mas não era burro, joga o papel que podia incriminá-lo no buraco da memória. Revoltado, escreve no seu diário que liberdade é poder escrever que dois mais dois são quatro. As fábricas russas ainda contém placas com o lema: dois mais dois são cinco se o partido quiser.

Não era bem-visto que membros do Partido freqüentassem o bairro proletário. Winston estivera havia poucos dias no mesmo local para comprar seu diário. Depois de um costumaz bombardeio, Winston entrevista pessoas sobre como era a vida antes da guerra, mas os idosos não lembram mais, apenas futilidades e coisas pessoais. Ao voltar ao antiquário o propietário tem uma surpresa para o curioso por antiquidades. Winston esperava ver algum objeto anterior ao Partido, mas o que o sr. Carrrington lhe mostra é um quarto com arrumação e mobílias antigas. Sem teletelas.

Winston, ao sair do antiquário, vê uma mulher e desconfia que ela seja uma espiã da Polícia do Pensamento. No dia seguinte, a encontra no Ministério da Verdade, o que aumenta o seu temor em ser denunciado. Ao passar por Winston, ela simula uma dor para desviar a atenção das teletelas, e lhe passar um bilhete escrito: "Eu te amo".

As normas do Partido deixavam claro que membros do Partido, principalmente dos sexos opostos, não deveiam se comunicar a não ser a respeito de trabalho. Passaram-se semanas em conversas fragmentadas até conseguirem marcar um encontro num lugar secreto longe dos microfones escondidos. Winston só descobre seu nome após beijá-la. Júlia confessa que ficou atraída por Winston pelo seu rosto que parecia ir contra o partido. Estava na cara que Winston era perigoso à ordem e ao progresso.

Winston se surpreende ao saber que Júlia se 'apaixonava' com facilidade. O desejo dela era corromper o estado por dentro, literalmente. Para continuar seu romance com Júlia, Winston têm a idéia de alugar aquele quarto do antiquário.

Winston ficou impressionado e passou a acreditar que Júlia seria uma ótima companheira de guerra. Por enquanto, era a pessoa que Winston podia compartilhar seus sentimentos e secreções. Apaixonado, ele recupera peso e saúde. Enquanto isso, o partido organizava a "A Semana do Ódio " (paródia dos mega-eventos políticos, principalmente as Reuniões de Nuremberg promovidas pelo partido Nazista e das paradas militares comunistas) e algumas pessoas desapareciam. Syme, filologista que dedicava-se a finalizar a décima-primeira edição do Dicionário de Novilíngua, tornou-se impessoa. Seu nome não estava mais nos quadros. Nunca esteve.

Certo dia, O'Brien, um membro do Partido Interno, percebe também que Winston era diferente dos outros. O'Brien o convida, para despistar as teletelas, a ir ao seu apartamento ver a nova edição do dicionário de novilíngua. O convite de O'Brien era incomum e fez Winston se animar com a possibilidade de uma insurreição. Ele passa a crer que a Fraternidade não era apenas peça de propaganda, a organização anti-Grande Irmão responsável por todos os danos causados na Oceania tal qual Bola-de-Neve em a "Revolucão dos Bichos".

Winston leva Júlia ao encontro. Para espanto do casal, O'Brien desliga a teletela de seu luxuoso apartamento. Alguns integrantes do partido Interno tinham permissão para se desconectar de suas 'bandas-largas' por alguns instantes. Winston confessa seu desejo de conspirar contra o Partido, pois acreditava na existência da Fraternidade e para tal suas esperanças estavam depositadas em O'Brien. Os planos eram regados a vinho digno, artigo inviável para os integrantes do Partido Externo, e o brinde destinado ao líder da Fraternidade, Emanuel Goldstein. Dias depois, Winston recebe a obra política de Goldstein em seu cubículo.

Winston "devora" o livro enquanto Júlia não demonstra o mesmo interesse. Winston ainda acredita nas proles mesmo ao ver uma mulher cantando uma música pré-fabricada em máquinas de fazer versos. Nada muito distante da música atual. "Nós somos os mortos" filosofa Winston ao contemplar a vida simples da prole. A ignorância dos menos abastados não era perigo para o Partido e, portanto, não sofria tanta repressão quanto os membros, superiores e inferiores do Partido, a classe-média. "Nós somos os mortos" repete uma voz metálica. Sim, era uma teletela escondida atrás de um quadro. Guardas irrompem o quarto e Winston vai para uma cela, provavelmente, no Ministério do Amor.

Até as celas tinham teletelas que vigiavam cada passo de um Winston doente e faminto. Os prisioneiros têm a fisionomia dos do campo de concentração. Ao encontrar O'Brien, Winston que pensara que ele também fora capturado, escuta a frase mais enigmática do livro: "Eles me pegaram há muito tempo".

Winston vai para uma sala e O'Brien torna-se o seu torturador. O'Brien explica o conceito do duplipensar, o funcionamento do Partido e questiona Winston das frases de seu diário sobre liberdade. O'Brien não esquece o que o Winston escreveu. A liberdade é o tema para que O'Brien explique durante a tortura o controle da realidade. Se fosse necessário deveriam haver quantos dedos em sua mão estendida o partido quisesse. A verdade pertence ao Partido já que este controla a memória das pessoas. Winston, torturado e drogado começa a aceitar o mundo de O'Brien e passa ao estágio seguinte de adaptação que consiste em: aprender, entender e aceitar Winston sabia que já estava se adaptando e confessando que a Eurásia era inimiga e que nunca tinha visto a foto dos revolucionários. Mas ainda faltava a reintegração e este ritual de passagem só podria ser concluído no Quarto 101. Segundo O'Brien, o pior lugar do mundo.

O Quarto 101 é um inferno personalizado. Como Winston tem pavor de roedores, os torturadores colocaram uma máscara em seu rosto com uma abertura para uma gaiola cheia de ratos famintos separada apenas por uma portinhola. A única forma de escapar era renegar o perigo maior ao Partido, o amor a outra pessoa acima do Grande Irmão. "Pare. Faça isso com a Júlia." Grita Winston.

Winston, libertado, termina seus dias tomando Gim Vitória e jogando sozinho xadrez no Castanheira Café. Ao fundo, seu rosto aparece na teletela confessando vários crimes. Ele foi solto e teve sua posição rebaixada para um trabalho ordinário num sub-comitê. Trajetória de milhares de pessoas de regimes totalitários, como o tcheco Thomaz de "A Insustentável Leveza do Ser" de Milan Kundera, o caso do médico que vira pintor de paredes ao renegar as ordens do partido não é muito diferente daqueles que não se adaptam em suas profissões no mundo livre S/A.

Júlia escapa também do Quarto 101. O Partido os separou e os dois só voltaram a se encotrar ocasionalmente. Já não eram mais as mesmas pessoas. Tinham "crescido" e se traído. Winston, no Café Castanheira, sorri. Está completamente adaptado ao mundo. Finalmente ele ama o Grande Irmão.

Fonte:
Leonardo Silvino - Resumo do Livro 1984 de George Orwell. Publicado em 24.07.2004 in
http://www.duplipensar.net/

George Orwell (Resumo: A Revolução dos Bichos)

George Orwell (pseudônimo de Eric Arthur Blair - 1903 - 1950)
A história, desde a expulsão de Jones até a "transformação completa de Napoleão em "humano" durou aproximadamente 6 anos. Na Granja do Solar, situada perto da cidade de Willingdon (Inglaterra), viviam bichos, que como dono tinham o Sr. Jones. O Velho Major (porco) teve um sonho, sobre uma revolução em que os bichos seriam auto-suficientes, sendo todos iguais. Era o princípio do Animalismo.

O Major morreu, mas mesmo assim os animais colocaram em prática a idéia do líder, fazendo a Revolução dos Bichos. Depois da Revolução, a Granja passou a se chamar Granja dos Bichos, e quem a administrava era Bola-de-Neve (porco). Bola-de-Neve seguia os princípios do Animalismo, e mesmo sendo superior (em quesitos de inteligência e cultura) em relação aos outros animais, sempre se considerou igual a todos, não tendo privilégios devido à sua condição. Bola-de-Neve tinha um assistente, Napoleão (porco), que na ânsia pelo poder, traiu o amigo, assumindo a administração da Granja.

Napoleão mostrou-se competente e justo no começo, mas depois passou a desrespeitar os Sete Mandamentos, os quais firmavam as idéias animalistas. Depois de aproximadamente 5 anos, Napoleão já ocupava a casa do Sr. Jones, bebia álcool, vestia as roupas do ex-dono , andava somente sobre duas pernas e convivia com seres humanos, enfim agia em benefício próprio, instalando um regime ditatorial, dominando e hostilizando os demais animais, considerados seres inferiores e sem direitos. Por essa época, já não era possível distinguir, quando reunidos à mesa, o porco tirano e os homens com quem se confraternizava. Napoleão conseguiu sair vitorioso graças à ajuda de Garganta, porco servil e obediente e que, através de bons argumentos, convencia os animais de que tudo o que acontecia era para o bem deles.

Os Sete Mandamentos do Animalismo eram os seguintes:
1 - Qualquer coisa que ande sobre duas pernas é inimigo;
2 - Qualquer coisa que ande sobre quatro pernas, ou tenha asas, é amigo;
3 - Nenhum animal usará roupas;
4 - Nenhum animal dormirá em cama;
5 - Nenhum animal beberá álcool;
6 - Nenhum animal matará outro animal;
7 - Todos os animais são iguais.

Napoleão, aos poucos, alterou todos os mandamentos. Foi Bola-de-Neve quem escreveu os Sete Mandamentos. A Revolução dos Bichos é um livro de extrema importância para entendermos o funcionamento de sociedades comandadas por diferentes tipos de governo, além de mostrar de forma genial a ambição do ser humano, o "sonho do poder". O Senhor Jones era o dono da Granja e, como tal, explorava o trabalho animal em benefício próprio, para acumular capital. Em troca dos serviços prestados, ele pagava com a alimentação, que nem sempre era boa e suficiente. Temos aí o retrato de uma sociedade capitalista: quem mais trabalha é quem menos ganha. A Revolução que se deu por idéia do "Major", tinha por princípio básico a igualdade; sendo assim, o Animalismo corresponde ao Socialismo, regime em que não existe propriedade privada e em que todos são iguais, e todos trabalham para o bem comum. A princípio, houve um socialismo democrático, em que todos participavam de assembléias, dando idéias e sugestões, liderados por Bola-de-Neve, bem aceito pelos animais em geral. Napoleão representa o desejo da onipotência, do poder absoluto e, para conseguir seus objetivos, tudo passa a ser válido: mentiras, traições, mudanças de regras. Tempos depois instaurava-se na Granja uma verdadeira Ditadura, o regime em que não há liberdade de expressão, direito a opiniões etc. Na sede pelo poder e pela riqueza, Napoleão entra em contato com os homens para com eles negociar, comprar, vender, enfim, acumular riquezas e tudo graças ao trabalho dos animais, verdadeiros empregados mal – remunerados, ajudando o "patrão" a ter regalias, bens materiais, capital. A situação fica mais crítica do que quando Jones era o dono da Granja porque, mais do que nunca, os direitos humanos, ou seja, dos animais foram violados de forma cruel e tendo conseqüências gravíssimas como a morte de alguns, o desaparecimento de outros e muita tortura. Com base nos fatos ocorridos podemos concluir que a história nos mostra os dois tipos de dominação existentes – a dominação pela sedução: Garganta persuadia os animais com seus argumentos convincentes e eles aceitavam pacificamente as mudanças efetuadas, e a dominação pela força bruta: quem se rebelasse contra as ordens era punido fisicamente, torturado por cães treinados e levados até à morte.

Fonte
http://www.coladaweb.com/

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

Rainer Maria Rilke (Carta a um jovem poeta)

RAINER MARIA RILKE Poeta alemão / 1875 - 1926
Paris, 17 de fevereiro de 1903

Meu estimado senhor:

Recebi sua carta há poucos dias. Quero lhe agradecer a grande e amável confiança que esta representa. Mas pouco mais posso fazer. Não examinarei os seus versos, pois sempre fui alheio a qualquer intenção crítica. Para penetrar uma obra de arte, nada pior do que as palavras da crítica, que somente levam a mal-entendidos mais ou menos infelizes. Nem tudo se pode saber ou dizer, como nos querem fazer acreditar. Quase tudo o que sucede é inexprimível e decorre num espaço que a palavra jamais alcançou. E nada mais difícil de definir do que as obras de arte - seres misteriosos cuja vida imperecível acompanha nossa vida efêmera.

Após isso, apenas acrescento que os seus versos não revelam uma maneira própria. Possuem, é certo, sinais de personalidade, porém ainda tímidos e ocultos. Senti-o no seu último poema, "Minha Alma". Neste, qualquer coisa peculiar procura achar solução e forma. E em toda a formosa poesia "A Leopardi" se sente uma espécie afinidade com este príncipe, este solitário. Entretanto, as suas poesias não têm existência própria, nem mesmo a última, nem mesmo a que é dedicada a Leopardi. Na sua missiva encontrei a explicação de certas insuficiências que, ao lê-lo, já havia percebido, mas a que não me foi possível dar nome. Indaga-me se os seus versos são bons. Pergunta a mim, depois de Ter perguntado a várias pessoas. Manda-os para as revistas, compara-os a outros versos e alarma se quando certos jornais repelem os sus ensaios poéticos. Doravante (já que me permite aconselhá-lo) peço-lhe que renuncie a tudo isso. O seu olhar está voltado para o exterior. Eis o que não deve tornar a acontecer. Ninguém pode dar-lhe conselhos nem ajudá-lo - ninguém! Só existe um caminho: penetre em si mesmo e procure a necessidade que o faz escrever. Observe se esta necessidade tem raízes nas profundezas do seu coração. Confesse à sua alma: "Morreria, se não me fosse permitido escrever?" Isso, principalmente. Na hora mais tranqüila da noite, faça a si esta pergunta: Sou de fato obrigado a escrever?"Examine-se a fundo, até achar a mais profunda resposta. Se ela for afirmativa, se puder fazer face a tão grave interrogação com um forte e simples "Sou", então construa a sua vida em harmonia com essa necessidade. A sua existência, mesmo na hora mais indiferente e vazia, deve tornar-se sinal e testemunho de tal impulso. Aproxime-se então da natureza. Depois procure como se fosse o primeiro homem, dizer o que vê, vive, ama e perde. Não escreva poesias de amor. Evite, de início, os temas demasiado comuns: são os mais difíceis. Nos assuntos em que tradições seguras, às vezes brilhantes, se mostram em grande número, o poeta só pode realizar obra pessoal na plena maturidade de sua força. Fuja dos grandes assuntos e aproveite aqueles que o dia-a-dia lhe oferece. Fale de suas tristezas e dos seus desejos, dos pensamentos que o tocam, da sua fé na beleza. Diga tudo com sinceridade calma e humildade. Utilize, para se exprimir, os objetos que o rodeiam, as imagens dos seus sonhos, as suas lembranças. Se o quotidiano lhe parece pobre, não o acuse: acuse-se a si próprio de não ser muito poeta para extrair as suas riquezas. Para o criador nada é pobre, não há lugares mesquinhos e indiferentes. Mesmo num cárcere cujas paredes abafassem todos os ruídos do universo, não lhe ficaria sempre a sua infância, essa preciosa, essa esplêndida riqueza, esse tesouro de recordações? Volte, para esta direção, o seu espírito. Procure fazer regressar à superfície as impressões submersas desse longínquo passado. A sua personalidade fortificar-se-á, a sua solidão povoar-se-á, tornando-se, nas horas incertas do dia, uma espécie de moradia fechada aos sons exteriores. E se lhe vierem versos deste regresso a si próprio, deste mergulho no seu cosmo, não pensará em indagar se são bons ou não, não tentará conseguir que periódicos se interessem pelos seus trabalhos, porque desfrutará deles como de uma posse natural, como de uma de suas formas de vida e expressão. Uma obra de arte é boa quando nasceu por necessidade: é a natureza da sua origem que a julga. Por isso, meu prezado senhor, apenas me é possível dar-lhe este conselho: mergulhe em si próprio e sonde as profundidades de onde jorra a sua vida. Só desta maneia encontrará resposta à pergunta: "Devo criar?" De tal resposta recolha o som, sem desvirtuar o sentido. Talvez chegue à conclusão de que a Arte o chama. Neste caso, aceite o seu destino e siga-o, com o seu peso e a sua majestade, sem jamais exigir uma recompensa que possa vir de fora. O criador deve ser um mundo para si próprio, tudo encontrar em si e nesse pedaço de natureza com que se identificou. Pode suceder que, depois dessa descida em si mesmo, ao âmago solitário de sim mesmo, tenha de renunciar a ser poeta. (Basta, no meu entender, sentir que se poderia viver sem escrever para não mais se ter o direito de fazê-lo.) Mesmo assim, a introspecção que lhe peço não terá sido inútil. A sua vida, desde aí, encontrará caminhos próprios. Que estes sejam bons, ricos e largos, é que lhe desejo, muito mais do que lhe posso exprimir.

Que poderei acrescentar? Acredito ter abordado o essencial. No fundo, apenas fiz questão de aconselhá-lo a progredir segundo a sua lei, de modo grave e sereno. Não lhe seria possível perturbar mais violentamente "para fora", do que esperando "de que fora" as respostas que apenas o seu sentimento mais secreto, na hora mais silenciosa, poderá talvez proporcionar-lhe.

Gostei de encontrar na sua carta o nome do professor Horacek. Dediquei a esse sábio uma grande estima e uma gratidão que já duram anos. Quer transmitir-lhe isso da minha parte? É bondade dele, que muito aprecio, lembrar-se ainda de mim.

Restituo-lhe os versos que me confiou tão amigavelmente e mais uma vez lhe agradeço a cordialidade e a amplitude da sua confiança.

Procurei, nesta reposta sincera, feia o melhor que pude, tornar-me um pouco mais digno dela do que realmente sou, na minha qualidade de estranho.

Com toda a dedicação e toda a simpatia.

Rainer Maria Rilke

Fonte:
http://www.portrasdasletras.com.br/