quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Cláudio Moreno (Etimologia Médica)


1. À minha volta tem início uma animada conversa sobre signos e horóscopos. Eu começo a me remexer na cadeira, estudando furtivamente as possíveis rotas de fuga, quando o dono da casa, bom amigo de muitos anos e excelente anfitrião, olha para mim, sorridente, e já vai avisando aos circunstantes que, nestas questões astrológicas, não adianta falar comigo porque sou um incrédulo irremediável. Suporto, por alguns instantes, alguns olhares de sincera comiseração, mas é tudo: o recado está dado, e não preciso mais fugir. Eu estou me divertindo, resguardado pelo prudente silêncio que adoto nessas horas; o vinho é bom, a conversa é cordial e, como sobremesa, ainda colho algumas pérolas maravilhosas. Uma senhora comenta, em tom de confidência, que o casamento de Hitler era muito esquisito, pois ele gostava de arianas, mas tinha casado com Eva Braun, que era de Aquário. O anfitrião olha para mim, esperando que eu me manifeste, mas finjo que não ouvi. Não vou estragar o jantar desta boa alma explicando-lhe que não se trata aqui de alguém nascido sobre o signo de Áries, mas dos arianos, mitológico povo indo-europeu que representava, no delírio nazista, o ideal de pureza racial. A idéia de que ela sempre entendeu o discurso sobre a superioridade ariana como uma discriminação contra os nascidos nos demais signos, para mim, já vale a noite.

2. Como num ritual primitivo, as presentes vão anunciando, uma a uma, o signo a que pertencem. A roda gira e vejo que estou cercado de librianas, sagitarianas, capricornianas, piscianas, geminianas, taurinas - um desfile de adjetivos formados pelo mesmo molde, exceto em escorpianas, que, se seguisse o modelo derivacional de leão > [leon] > leonina, deveria dar algo como escorpioniana, palavra impronunciável que o filtro da língua simplesmente abortou. "Pois eu", diz enfim uma jovem senhora, "sou caranguejo. Caranguejiana não existe, não é, professor?". Pronto, agora é comigo. "Não, não existe; há caranguejeira e caranguejola, mas nada têm a ver com os signos. E canceriana? Não serve?", pergunto eu, com certa maldade. "Ah, mas essa eu nunca vou usar. Parece cancerosa! Sei que não há relação entre o câncer do signo e o câncer da doença, mas assim mesmo acho sinistro". Concordo, para ser gentil, mas hoje, algumas semanas depois, sinto-me confortável para revelar que a palavra é a mesma, desde a sua origem.

3. O zodíaco, derivado do mesmo elemento grego zoion ("animal; ser vivo"), que nos deu zoológico e zoologia, era uma faixa imaginária na esfera celeste, o zoidiakos kuklos ("círculo de animais"), que abrangia as constelações que deram nome aos signos - entre elas o caranguejo - cancer, em Latim -, animal que os romanos vinculavam à terrível enfermidade. Essa denominação já ocorria entre os gregos, que também designavam o bicho e a doença com a mesma palavra - karkínos -, de onde proveio carcinoma. Há várias hipóteses para explicar por que essa palavra adquiriu dois sentidos tão diferentes, mas nenhuma delas jamais será definitiva, o que é normal em todas essas designações baseadas em semelhanças e associações (quando o prezado leitor abrir o porta-malas e encontrar aquele mecanismo usado para erguer o carro, na troca de pneus, pense nisso: o que ele tem de semelhante com um macaco? Para os argentinos e uruguaios, não deve ter nada, pois o chamam de gato - por razões que também eles desconhecem).

Grande parte da nomenclatura médica do Português proveio da Antiguidade Clássica, especialmente do trabalho de dois médicos excepcionais, o grego Hipócrates (460-377 a.C) e o romano Galeno (131-200 a.C). As palavras que eles empregavam continuam a ser usadas ainda hoje, dois mil anos depois, embora o seu significado tenha sofrido alterações inevitáveis, já que vinham de uma época em que a ciência se limitava aos dados que pudessem ser captados pelos cinco sentidos do observador. Segundo Galeno, (que vivia em Roma mas escrevia em Grego), o nome câncer teria sido usado porque em alguns tumores as veias intumescidas que circundam a parte afetada assumem a aparência das patas de um caranguejo; outros atribuem o nome a uma sinistra metáfora: o local do tumor é corroído dolorosamente como se um caranguejo o devorasse; outros comparam a dureza da carapaça do crustáceo com um tipo de tecido canceroso — e assim por diante, mas todas essas hipóteses reforçam a ligação que a nossa dama tentava negar entre o signo e a doença. Afinal, é uma atitude compreensível; se ela é supersticiosa ao ponto de acreditar que algum astro deste infinito universo influi, de alguma maneira, na sua rica vidinha aqui em Porto Alegre, posso imaginar que ela considere esta coincidência de nomes um sinal de mau agouro.

Fonte:
Site Sua Língua, de Claudio Moreno. http://wp.clicrbs.com.br/sualingua/2009/09/05/etimologia-medica/

Cláudio Moreno



Cláudio Moreno nascido na cidade do Rio Grande/RS é professor, escritor, ensaísta brasileiro e colunista.

Ainda jovem radicou-se na cidade de Porto Alegre. Em 1969 concluiu o curso de Letras da Universidade Federal do Rio Grande Sul - UFRGS, com habilitação em Português e Grego.

Em 1972 ingressou como docente no Instituto de Letras da mesma universidade, tendo sido responsável por várias disciplinas nos cursos de Letras e de Jornalismo, assim como pela disciplina de Redação para os cursos de Pós-Graduação de Medicina.

Em 1977, concluiu o mestrado em Língua Portuguesa, obtendo em 1997, o título de Doutor em Letras.

Coordena, atualmente, a área de Língua Portuguesa dos Colégios Leonardo da Vinci Alfa e Beta, de Porto Alegre, do Sistema Unificado de Ensino.

É professor regular das Tele-aulas de Língua Portuguesa da Universidade Estácio de Sá, do Rio de Janeiro.

Na imprensa, assinou uma coluna mensal sobre etimologia na revista Mundo Estranho, da editora Abril, e escreve regularmente no jornal Zero Hora, de Porto Alegre, onde mantém uma seção sobre Mitologia Clássica e outra sobre questões de nosso idioma.

Publicou, em co-autoria, livros sobre a área da redação - Redação Técnica (Formação), Curso Básico de Redação (Ática) e Português para Convencer (Ática). Sobre gramática, publicou o Guia Prático do Português Correto em três volumes: Ortografia (2003), Morfologia (2004) e Sintaxe (2005).

Autor dos dois volumes do livro O Prazer das Palavras, editados em 2007 e 2008, com artigos sobre etimologia e curiosidades de nosso idioma. Além disso, é o autor do romance Tróia (2004) e de dois livros de crônicas sobre Mitologia Clássica, Um Rio que Vem da Grécia (2004) e Cem Lições para Viver Melhor (2008). Além da autoria de vários livros na área de gramática e redação, romance e crônica, Moreno mantém o site Sua Língua, no qual esclarece dúvidas e dá dicas de Português. http://wp.clicrbs.com.br/sualingua/

Fonte:
http://rio-grandinos.blogspot.com/search/label/*%20RIO%20GRANDINOS%20EM%20DESTAQUE

domingo, 13 de setembro de 2009

Trova LII

Antônio Torres (Segundo Nego de Roseno)



– Patrãozinho, me dê uma prata?

– Pra que você quer dinheiro, homem? – disse o menino.

– Me dê uma prata para eu tomar uma.

– Não vai trabalhar? Papai está te esperando.

– Eu vou mas é tomar uma.

– Tome duas e caia logo de vez – disse o menino, pondo as duas moedas na mão do homem e se retirando.

– Deus te ajude, patrãozinho.

Era terça-feira e era o fim de tudo – e o último ser vivo do mundo estava caindo de bêbado, nem bem o sol havia raiado.

Agora não havia mais missa nem feira nem barraca nem pão-de-ló e a rua voltou a ser o que sempre foi: uma solidão única.

O menino percebeu isso ao acordar. Estava sozinho. Como o padre, todos haviam retornado a suas casas de verdade, fazendolas e casebres miseráveis das redondezas que, se somadas, davam mai de nove léguas. Até tio Ascendino, o último dos beatos (o bêbado não contava), tinha abandonado o seu posto e retornado à sua marcenaria. Agora só lhe restava o caminho da roça. O pior não era a solidão. Era a fome. E assim, com as tripas roncando e esfregando os dedos nos olhos para limpar a remela, o menino foi descendo para a venda de Josias Cardoso. Ia comprar um pão de milho. Agora podia comprar o que quisesse, porque as três notas que o padre lhe dera compravam muitas coisas. Mas ia devagar. Lá na roça seu pai o aguardava com uma enxada.

Felizmente não sobraram apenas o menino, o bêbado e o dono da venda. Também havia Nego de Roseno e sua fubica parada na porta do armarinho. A fubica era um pouco mais que o veículo que transportava uma pança negra cheia de níqueis dos roceiros. Era o único orgulho motorizado do Junco – e o prêmio justo para um homem que passara toda uma vida carregando mercadorias no lombo de um burro. O menino também estava fascinado com o progresso desse homem e chegava mesmo a invejar-lhe a liberdade de poder rodar para cima e para baixo na boleia daquele caminhãozinho que, mesmo quebrando e atolando nas estradas, acabava sempre chegando a algum destino. E talvez fosse isso que ele estivesse querendo dizer, nesse momento. Imóvel dentro do armarinho, como se fosse mais um dos caixotes que Nego de Roseno tentava mudar de posição, o menino agora admirava a maneira delicada como ele, um homenzarrão desengonçado, arrumava os frascos de cheiro nas prateleiras. E foi que Nego de Roseno falou. Queria alguma coisa? Queria sim. Aquela camisa ali, quanto é?

Custava mais do que o dinheiro que ele tinha, mas Nego de Roseno deixou pelo dinheiro que ele tinha.

– Seu pai é um bom freguês – disse – Vou lhe fazer um desconto.
Seu pai. Agora precisava inventar uma boa mentira para contar em casa. Por que você demorou tanto? Porque...

Talvez levasse uma surra.

Mas tinha dois pães numa mão e uma camisa na outra – e isso, por enquanto, era o que importava. Uma camiseta branca, de mangas cavadas (diferente, moderna), a primeira coisa na vida que comprava com o seu próprio dinheiro. Também não mandou pôr os pães na conta do pai, como das outras vezes. O problema é que sua alegria não estava sendo maior que o seu medo. Quem mandou demorar tanto?

Quando chegou à marcenaria, tio Ascendino ainda cantava benditos. Era um velho muito só que vivia rezando e praguejando contra as maldades do mundo. Tio Ascendino parou de cantar, parou a enxó, ajeitou os suspensórios e mostrou um caminhão azul para o menino.

– Fiz esse para você. Gosta da cor azul?

O menino ofereceu um dos seus pães para o tio e tio Ascendino aproveitou para fazer um café. Enquanto esperava, e agora com uma alegria redobrada, por causa do presente, trocou de camisa.

– Só está é um pouco folgada – disse tio Ascendino – Mas não faz mal. Quando lavar, ela encolhe. E você está crescendo.

Esquecido do tempo e da enxada e da possibilidade de uma surra, o menino conversou muito, como se fosse um bom companheiro para o tio.

– Essa terra só se alegra quando tem missa, não é?

– É a pura verdade – disse tio Ascendino – È uma pena só ter missa de tempos em tempos. Já estamos precisando de um padre que more aqui e que celebre missa pelo menos todos os domingos.

– Também acho – disse o menino.

– E você, quando vai para o seminário?

– Não sei não, tio.

– Quando vejo você ajudando o padre, tão bonito, fico pedindo a Deus para ver você um dia metido numa batina. Ia ser o maior orgulho deste lugar. Mas talvez eu não viva tanto para ver isso.

Há uma certa hora no Junco que dá para se ouvir um carro de bois cantando do outro lado do universo. Entre 11 da manhã e 3 da tarde o sol treme e até as cigarras param de piar. O menino ia pela estrada atento aos buracos. Atento ao barulho das rodas de seu caminhãozinho, que ele empurrava com uma forquilha.

O presente do tio também serviu de perdão para a sua demora. O que não lhe perdoaram foi o fato de ele ter dado o seu dinheiro numa camisa que não valia nada. Burro. Burro e besta. Seu pai ordenou:

– Volte lá e devolva isso. Traga o dinheiro de volta.

Tinha que voltar à rua. Não havia outro jeito. No caminho, pedia a Deus que lhe jogasse na frente as três notas que ganhara do padre e que agora se encontravam nas mãos de Nego de Roseno. Se isso acontecesse, ele poria a camisa fora e voltava para casa sem ter que enfrentar o dono do armarinho. Era uma humilhação ter que se desfazer de um negócio que fizera por sua livre vontade. Mas se Deus não o iria socorrer, muito menos Nego de Roseno. Pediu o apoio de Dirce, com os olhos molhados. Dirce não se moveu. Pediu o apoio de Neguinho, que um dia havia caído a seus pés, no meio da rua, durante um ataque de epilepsia. Neguinho também não disse nada. Que espécie de homem era ele?, perguntava Nego de Roseno. Comprava uma coisa e depois se arrependia? Além do mais, a camisa estava melada de suor. Em casa, além de enxada, agora aguardava uma nova bateria de ameaças e descomposturas. E esse incidente iria perturbar-lhe o sono durante largo tempo da sua vida.

Como no dia que Neguinho se jogou no tanque velho e morreu afogado, para se vingar de um tapa que levara do pai. Em seus sonhos, o menino via Neguinho se debatendo e espumando no chão, com os olhos arregalados e suplicantes, como se estivesse lhe pedindo socorro. Essa cena iria se repetir noites a fio, por mais que menino pela alma de Neguinho.

Só muito depois, quando a camisa já estava rasgada e não servia mais para nada, foi que ele deu o caso por encerrado.

Uma noite seu pai voltou um pouco tarde da rua e ficou conversando com sua mãe. Estava contado a respeito do que ouvira uns homens dizer sobre o menino.

– Estava eu, Josias, compadre Zeca e Nego de Roseno.

O menino ficou de orelha em pé. Ainda não haviam se esquecido daquela coisa.

– Aí Nego de Roseno disse: dá gosto ouvir aquele menino falar. Aquele menino é um homem – contava o velho – Os outros, todos, disseram a mesma coisa.

Agora, sim. Seu pai estava orgulhoso.

O filho dele era um homem, segundo Nego de Roseno.

Fonte:
Torres, Antônio. Meninos, eu conto. RJ: Record, 1999.

Antônio Torres (Saudade. Uma palavra para melhor se conhecer os poetas)


Genuinamente lusitana, portanto, intraduzível - ou de difícil tradução. E definida, um tanto abstratamente, como a presença da ausência. Musa inspiradora dos suspiros e ais das mais compungidas almas deste mundo, dos excelsos vates (Punge-me agora trágica saudade...)e cancioneiros populares (Saudade, palavra triste, quando se perde um grande amor), aos mais comuns dos mortais (Saudade de você), ela é, antes de qualquer coisa, uma palavra-chave para um começo de conversa que tem tudo para ir longe.

Sua definição, origem e história ainda instigam estudiosos da língua portuguesa. Entendida como um sentimento mais ou menos melancólico de incompletude, ligado pela memória a situações bem vividas, significando isto privação da presença de alguém ou de algo que muito se quer, ou a ausência de certas experiências e prazeres do passado que se deseja reviver, ela traz na sua essência alegria e martírio, tristeza e beleza, riso e lágrima.

Tais ambiguidades ainda seduzem os lexicógrafos contemporâneos, como se pode constatar no verbete que lhe dedicou o educador paulista Paulo Nathanael Pereira de Souza no livro 100 palavras para melhor conhecer o Brasil, organizado pelo prof. Arnaldo Niskier, e publicado em 2008 em edição nipo-brasileira, dentro das comemorações do centenário da imigração japonesa para o nosso país. Diante da esfinge que poderia devorá-lo, tornando-o um saudosista, ele se interroga: “Quem poderá aprofundar melhor do que qualquer outra pessoa as singularidades poéticas que se enrodilham na essencialidade dos sentimentos humanos e suas expressões vocabulares, senão um poeta? E não precisa ser dos maiores. Basta que seja poeta”.

Certo, mestre - pieguices à parte. Pois de Camões (o que escreveu: Se de saudade morrerei, ou não, os meus olhos dirão), a Vinícius de Morais, que a cantou belamente no Samba em prelúdio, que compôs com Baden Powell (Ai, que saudades, que vontade de rever nossas vidas...), e isso, imagine, anos depois do seu grande sucesso, Chega de saudade (daquela vez em dupla com Tom Jobim),nem todos foram capazes de tratá-la com o mesmo engenho e arte. O que não falta nos dois lados de Atlântico é o uso e abuso da coitada da saudade em poesia barata, ou no mínimo de gosto duvidoso, e bota aurora da vida e infância querida nisso.

Nesse sentido, o exemplo clássico é um livro publicado em 1836, e que entrou para a história literária como o marco inicial do Romantismo brasileiro. Título: Suspiros poéticos e saudades. Autor: Gonçalves de Magalhães. Foi ele o precursor de uma corrente que cantava o desgosto da vida, a infância, o amor impossível, a melancolia, a tristeza – ai, meus sais! O inefável poeta veio a se superar em outro volume, intitulado Cantos fúnebres.

Passos mais adiante, a saudade viria a ser mais bem tratada (ou retratada) nas mãos do maranhense Gonçalves Dias, que se consagrou como o primeiro grande poeta romântico do Brasil, e que sentia orgulho de ter em seu sangue as três raças formadoras da nação, por ser filho de um comerciante português com uma mestiça de índios e negros. Estamos falando do autor de Ainda uma vez mais, adeus e Canção do exílio, este escrito quando ele cursava direito na Universidade de Coimbra e morria de saudades do seu país: Minha terra tem palmeiras/ onde canta o sabiá – precisa continuar?

Outra exceção à regra foi o pop star do Romantismo made in Brazil, e sua mais bela cabeleira, o baiano Castro Alves, que, embora tivesse colocado a sua pena a serviço de um mundo mais justo, ao comprometer-se com a construção de uma nova ordem social, e com a causa republicana e abolicionista, não deixou de ser também um flamejante poeta do amor e da melancolia. Na sua obra há pelo menos uns sete poemas com um Adeus no título. Em Horas de saudade escreveu: No piano saudoso, à tua espera/ Dormem sono de morte as harmonias/ E a valsa entreaberta mostra a frase/ A doce frase qu’inda pouco lias”. Castro Alves e Gonçalves Dias foram os românticos brasileiros que deixaram saudade.

Esta pequena dor à portuguesa
tão mansa quase vegetal
Alexandre O’Neill/ Um adeus português

Mas como, onde, quando e por que surgiu tal palavra, tão usada e abusada em prosa e verso? Até o autor destas linhas já a maltratou um bocado, como se pode ler no capítulo que lhe dedicou no recém-publicado Dicionário amoroso da língua portuguesa,organizado pelo carioca Marcelo Moutinho e o portuense (ou tripeiro, como se diz em Portugal) Jorge Reis-Sá. Voltemos, porém, ao que interessa aqui:

Filha legítima da última flor do Lácio, portanto tendo o latim no seu DNA, a saudade descende de Solitas e Solis, quer dizer, de uma família chamada Solidão. E por ser vista, por séculos, seculorum, amém, como uma enlutada viúva à beira do cais, a salgar o mar de fados, boleros e guarânias, sambas-canções, toadas, valsas, xotes, maracatus e baiões, presume-se que ela remonta à era das grandes navegações, quando a língua portuguesa atravessou os mares na voz dos intrépidos navegantes que atingiram o Cabo Bojador em 1434, chegaram à Foz do Congo em 1483, dobraram o Cabo da Boa Esperança em 1487 e deram com os seus costados no Brasil (oficialmente) em 1500. Quem partia levava saudades, choradas pelos que ficavam. E assim sendo, a palavra conquistou o seu lugar de pertencimento no coração dos marinheiros e dos que em terra aguardavam o retorno deles, antes mesmo de o português se consolidar como língua literária, entre os séculos XV e XVI, cujo coroamento foi a publicação de Os Lusíadas, em 1572, como sabemos todos um livro monumental escrito por um soldado chamado Luís de Camões, que se meteu em guerras na Índia durante quinze anos, tendo sido ele próprio um herói da epopéia que escreveu. Pronto. Saudade e mar português, tudo a ver, conforme a síntese dessas navegações feita por Fernando Pessoa: Quem quer passar além do Bojador/ Tem que passar além da dor.

Do heróico tempo ficou-se a ver navios. E com olhar esfíngico e fatal. E a fitar o futuro do passado, vendo entre a cerração um vulto baço, que torna. E quem seria esse saudoso vulto cujo retorno se esperou, século após século? De quem poderia ser, senão de O Desejado, o rei morto no campo de batalha em Alcácer-Quibir, no dia 4 de agosto de 1578, seis anos depois da publicação de Os Lusíadas? Este, sim, passou além da dor, salgando o mar com o mais transatlântico saudosismo legado ao mundo que o português criou.

Agora, com a palavra os cantores brasileiros. Luiz Gonzaga, o rei do baião: “Ai quem me dera voltar, pros braços do meu xodó/ saudade assim faz doer/ amarga que nem jiló”. Adoniran Barbosa (nas vozes dos Demônios da Garoa): “Saudosa maloca/ maloca querida...” Ataulfo Alves: saudades da Amélia, que era a mulher de verdade, da professorinha, que lhe ensinou o bêabá. Tom Jobim e a saudade do Rio de Janeiro, no Samba do avião. Um sanfoneiro rasgando as Saudades de Matão num arrasta-pé do interior. Ellis Regina cantando Saudades do Brasil. Dorival Caymmi: “Ai se eu escutasse o que mamãe dizia”. Saudades da Bahia.

Fontes:
http://www.antoniotorres.com.br/vida&obra.htm
Imagem = http://br.geocities.com/.../amigos1/marcos/saudade2.jpg

Antônio Torres (1940)


Antônio Torres nasceu na pequena cidade de Junco (hoje Sátiro Dias), no interior da Bahia, no dia 13 de setembro de 1940. Ainda menino, mudou-se para Alagoinhas para fazer o Ginásio, mais tarde foi parar em Salvador, capital baiana, onde se tornou repórter do Jornal da Bahia. Aos 20 anos transferiu-se para São Paulo, empregando-se no diário Última Hora. Lá, mudou de ramo e passou a trabalhar em publicidade. Viveu por três anos em Portugal e atualmente mora no Rio de Janeiro, onde passou a se dedicar exclusivamente à atividade literária. É casado com Sonia Torres, doutora em literatura comparada, professora da Universidade Federal Fluminense (UFF), e tem dois filhos, Gabriel e Tiago.

Aos 32 anos, Antônio Torres lançou seu primeiro romance, Um cão uivando para a Lua, que causou grande impacto, sendo considerado pela crítica “a revelação do ano”. O segundo “Os Homens dos Pés Redondos”, confirmou as qualidades do primeiro livro. O grande sucesso, porém, veio em 1976, quando publicou Essa terra, narrativa de fortes pinceladas autobiográficas que aborda a questão do êxodo rural de nordestinos em busca de uma vida melhor nas grandes metrópoles do Sul, principalmente São Paulo.

Hoje considerada uma obra-prima, Essa terra ganhou uma edição francesa em 1984, abrindo o caminho para a carreira internacional do escritor baiano, que hoje tem seus livros publicados em Cuba, na Argentina, França, Alemanha, Itália, Inglaterra, Estados Unidos, Israel, Holanda, , Espanha e Portugal. Em 2001 a Editora Record lançou uma reedição comemorativa (25 anos) de Essa Terra. Torres, porém, não restringiu seu universo ao interior do Brasil. Passeia com a mesma desenvoltura por cenários rurais e urbanos, como em Um cão uivando para a Lua, Os homens dos pés redondos, Balada da infância perdida e Um táxi para Viena d’Áustria.

Em 1997, Torres decidiu retornar ao tema e aos personagens do consagrado Essa terra. Vinte anos depois, narrador e protagonista voltam à pequena Junco em O cachorro e o lobo, para encontrar uma cidade já transformada pela chegada do progresso. É um romance de fina carpintaria literária que foi saudado pela crítica, tanto no Brasil como na França, onde foi publicado em 2001.

Foi condecorado pelo governo francês, em 1998, como “Chevalier des Arts et des Lettres”, por seus romances publicados na França até então (Essa terra e Um táxi para Viena d'Áustria). Em 2000, ganhou o Prêmio Machado de Assis 2000, da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto da sua obra. Em 2001, foi o vencedor (junto com Salim Miguel por Nur na escuridão) do Prêmio Zaffari & Bourbon, da 9a. Jornada Nacional de Literatura de Passo Fundo, RS, por seu romance Meu querido canibal, no qual Torres se debruça sobre a vida do líder tupinambá Cunhambebe, o mais temido e adorado guerreiro indígena, para traçar um painel das primeiras décadas de história brasileira.

Dando seqüência às suas pesquisas históricas, ele escreveu o romance O nobre sequestrador, que trata da invasão francesa ao Rio de Janeiro em 1711, comandada por René Duguay-Trouin, o corsário de Luis XIV, que sequestrou a cidade durante 50 dias, até que lhe fosse pago um alto resgate para que ela fosse devolvida a seus habitantes. O nobre sequestrador foi finalista no Prêmio Zaffari & Bourbon de 2003.

Em 2006, Antônio Torres publicou o romance Pelo fundo da agulha, com o que fechou uma trilogia iniciada com Essa terra e prosseguida com O cachorro e o lobo. Este livro foi um dos vencedores do Prêmio Jabuti e finalista do Prêmio Zaffari & Bourbon, da Jornada Literária Nacional de Passo Fundo.

Em resumo: autor premiado, com várias edições no Brasil e traduções em muitos países, Antônio Torres é um dos nomes mais importantes da sua geração, com um obra expressiva que abrange 11 romances, 1 livro de contos, 1 livro para crianças, 1 livro de crônicas, perfis e memórias. além de dois projetos especiais (O centro das nossas desatenções, sobre o centro do Rio de Janeiro - e que rendeu um documentário para a TV Cultura, São Paulo -, e O circo no Brasil, da série História Visual, da Funarte, Fundação Nacional de Arte).

Bibliografia
Um cão uivando para a lua - 1972
Os homens dos pés redondos - 1973
Essa terra - 1976
Carta ao bispo - 1979
Adeus, velho - 1981
Balada da infância perdida - 1986
Um táxi para Viena d’Áustria - 1991
O centro das nossas desatenções - 1996
O cachorro e o lobo - 1997
O circo no Brasil - 1998
Meninos, eu conto - 1999
Meu querido canibal ¾ 2000
Essa Terra (edição comemorativa de 25 anos) - 2001
O Nobre Sequestrador - 2003
Pelo Fundo da Agulha - 2006
Menu, o gato azul - 2007 (história para crianças)
Sobre pessoas - 2007 (crônicas, perfis e memórias)

Fontes:
http://www.antoniotorres.com.br/vida&obra.htm

Estante Virtual nas Bienais do Livro


Estante Virtual na Bienal do Livro de Curitiba

Do dia 27 de agosto ao dia 4 de setembro Curitiba sediou a sua primeira Bienal do Livro. E a Estante Virtual esteve lá, representada por seis dos mais de 50 livreiros curitibanos já conectados ao site. Foi a primeira presença física do portal nos eventos do setor!

O stand contou com quatro sebos e dois livreiros virtuais. Foram eles a Tomorrow Brasil, Livraria Fênix, Livro e Cia, Acervo Almon, Sebo Releituras e Espaço Alternativo. Cada um colocou à venda uma amostra dos seus livros, que também estavam cadastrados no portal. Além disso, o stand contou com 6 computadores para que os visitantes da bienal pudessem acessar o site e fazer seus pedidos dali mesmo, fazendo jus ao anúncio que colocamos na entrada do stand: "Bem vindo! Nosso stand tem 20 milhões de livros!"

Segundo os livreiros participantes, os visitantes que não conheciam o portal adoraram a novidade de ter um país inteiro de sebos ao alcance do mouse. E os que já conheciam, mostraram grande satisfação em saber que a Estante também estava presente fisicamente no evento, transcendendo o mundo virtual.

Estante Virtual na Bienal do Livro do Rio de Janeiro

Às vésperas do aniversário de 4 anos (20 de outubro próximo) presença da Estante Virtual no stand R20 do Pavilhão Verde.

Tente imaginar: uma estante gigante, com 4 metros de altura por 5 metros de largura, que irá abrigar livros vindos de sebos de todo o Brasil. Inclusive neste momento, há algumas centenas de livros nos céus, rumando de diversas partes do país para o Rio. E claro, além dos livros, voarão também os livreiros. Em cada um dos dias da Bienal, no stand, livreiros de diferentes partes do Brasil, que estarão disponíveis para tirar dúvidas sobre livros, pedir sugestões de leitura, enfim, uma verdadeira consultoria literária.

E não é só. Oferecerem um serviço totalmente inédito nas Bienais: a troca de livros. Como funciona? Leve para a Bienal um livro que você já leu e troque no stand por qualquer livro da estante gigante. E ao final do evento, os livros que estiverem no stand serão doados para estimular a leitura em alguma instituição ou comunidade que os próprios visitantes do stand vão indicar.

Já aqueles que, mesmo com tanta coisa "ao vivo", quiserem acessar a estante virtual, haverá um pool de computadores para buscas de outros milhões de livros que permaneceram em solo, nas outras 254 cidades onde há livreiros conectados ao portal.

E se você estiver muito cansado - afinal a Bienal é muito grande - , há também alguns sofás para sentar e relaxar, enquanto lê algum livro que poderá literalmente puxar da estante na hora (com a mão mesmo!). No sofá, terá a companhia de uma grande personalidade da literatura brasileira.

XIV Bienal Internacional do Livro do Rio de Janeiro

Data: 10 a 20 de setembro de 2009

Local: Riocentro

Avenida Salvador Allende, nº 6.555 - Barra da Tijuca

nosso stand R20, Pavilhão Verde

Ingressos a R$ 12 inteira e R$ 6 meia

Fonte:
Newsletter Estante Virtual. Edição Nº 25 - 09 de setembro de 2009. Colaboração de André Garcia, diretor e criador da Estante Virtual, que está no site http://www.estantevirtual.com.br/

Antonio Olinto (A Viagem)



Já estavam no mar há muito tempo, Suliman, que marcava os dias a faca numa pilastra de madeira, dizia que eram vinte e oito, quatro semanas, certa manhã o navio amanheceu parado, Mariana saiu para o convés, o mar parecia um pano estendido até lá longe, nada se mexia, as velas pendiam murchas, não havia vento nem ondas, os homens se debruçavam sobre a amurada, a filha de Dona Júlia riu no seu jeito e disse:

- Já era tempo, não agüentava mais aquelas sacudidelas o dia inteiro.

Suliman olhou para ela sério:

- Não diga o que não sabe, moça. O pior que pode acontecer num veleiro é falta de vento.

Contudo houve uma alegria geral naqueles primeiros dias, Mariana brincou mais à vontade, o mulato pernambucano bateu num atabaque até tarde, Maria Gorda jogou uma coisa no mar, seria presente para Iemanjá?, a avó lembrou-se com nitidez de uma velha imagem, a do momento em que o homem que a levara de canoa de Abeokutá a Lagos apontara para longe e dissera: Olha. A lagoa estava tão quieta como este mar de agora, e o que vira fora o conjunto de casas da cidade em que o tio a vendera. Durante vários dias o vento não veio, o mar não se moveu, depois de uma semana de imobilidade o capitão pediu que todos se reunissem no convés, apareceu e explicou:

- Estamos numa zona de calmaria. Nossa água dá para mais de oito meses e quanto à comida não há problema, cada um trouxe o que podia e o navio tem provisões para muito tempo.

Os homens comentavam que não se via mais o Cruzeiro do Sul, durante o dia muita gente pescava, apareceram caniços e anzóis, um crioulo forte chamado Rodrigo pegava peixes enormes e um dia descobriu que mariscos se haviam agarrado ao casco do navio imóvel, desceu até lá numa corda, arrancou os mariscos, pediu a Epifânia que os fervesse e juntou amigos para partilharem do prato. Mariana olhava o céu, nunca vira tantas estrelas, algumas riscavam a noite, o capitão conversava com ela e falava-lhe dos outros planetas, das estrelas cadentes, de outros mundos, de sóis, de cometas.

A alegria dominou durante outra semana ainda o navio, mas foi-se diluindo em pedaços cada vez maiores de silêncio, Mariana começou a sentir moleza no corpo, mulheres e crianças deixaram de sair normalmente ao convés, só os homens é que andavam de um lado para o outro, ficavam olhando o mar parado, alguns mascavam fumo, à noite quase todos bebiam cachaça, então voltava a aparecer um pouco de alegria. O primeiro a ficar doente foi o mulato de Pernambuco, um dia não saiu da cama, o capitão foi vê-lo, a menina ouviu a palavra desinteria, e logo havia mais três doentes, uma das irmãs Borges em vez de coco fez sangue , levaram o vaso para o capitão ver, apareceram remédios surgidos não se sabia de onde, Epifânia tratou de Luzia Borges com todo o cuidado, a avó não abandonava o seu lugar, imóvel num canto da cama, às vezes encolhida, Epifânia era quem fazia agora toda a comida, a água tinha hora certa, vinha numa tina grande que um marinheiro trazia e distribuía para cada um, Mariana voltou a subir ao convés, encontrou todos os malês curvados no chão, rezando em direção a Meca, levantavam-se de vez em quando, tornavam a se ajoelhar, Sulivan ficara mais magro, suas roupas davam a impressão de ter crescido, Mariana acostumou-se a passar horas olhando o mar, Mariana e o mar, perdia-se nele, esquecia as coisas, revia a enchente do Piau, a cara de Padre José, os olhos de vidro do carneiro morto, sentia-se tonta em certos momentos e então voltava a ver o mar, Mariana e o mar, parecia-lhe que o navio se movimentava, mas não, tudo estava quieto, no dia seguinte levou um pedaço de pano para um lugar mais alto, perto do leme, estendeu o pano sobre uma tábua, deitou-se e ficou olhando o mar assim, os dois olhos viam o horizonte igual, perdeu a fome, Epifânia teve de ir buscá-la, deu-lhe comida à força, Emília e Antonio brincavam menos, o cheiro lá embaixo começava a ficar forte, era de azedo, coisa podre, depois de alguns minutos a gente se acostumava, não pensava mais naquilo, a farinha com arroz se atulhava na garganta, fazia a menina tossir, não havia água para lavar as mãos depois da comida, Mariana regressava a seu posto e esperava anoitecer, muita gente passava a noite no convés, de manhã quase ninguém saía do lugar, o capitão distribuía água e bolachas, a menina ia ver a mãe e a avó, o número de doentes aumentava. Epifânia enxugava o rosto dos de cama, limpava a boca de Luzia Borges, uma noite os tambores soaram com mais força, houve dança no meio do porão, marinheiros com facas na cintura ficaram parados vendo os passageiros dançarem, um dia Mariana não conseguiu acordar direito, a mãe deu-lhe água e biscoitos, mais tarde ferveu um pedaço de carne-seca, a menina mastigou com cuidado, não sabe quanto tempo esteve ausente da vida no navio, lembra-se de uma noite de luar, então já estava boa, o mar parecia continuar o convés, a água se imobilizava iluminada.

A primeira morte ocorreu quando a calmaria durava mais de mês, foi de um preto de Alagoas, tinha sido dos mais silenciosos, deixara de comer, como viajava sem família ninguém lhe deu atenção, amanheceu morto, o capitão mandou que o corpo fosse levado para cima dentro de um lençol, Mariana seguiu o acompanhamento, no convés os rostos olhavam para a cara do morto, um marinheiro rezou um Padre-Nosso e uma Ave-Maria em voz alta, os homens que seguravam o lençol levaram-no até a borda do navio, deixaram o morto escorregar, mas o corpo não afundou, ficou boiando, daí a pouco havia peixes que atacavam o cadáver, o capitão disse que deviam ter amarrado um peso no morto, só que não havia muita coisa pesada a bordo que pudesse ser dispensada, os homens ficaram olhando o morto ser arrastado pelos peixes, depois cada um voltou para sua cama, poucos foram os que , na amurada, continuaram de olhos na luta sobre o mar. O segundo morto foi o mulato de Pernambuco, acharam-no no convés com pedaços de biscoito nas mãos, a boca parecia ter sido detida no ato de mastigar, quando seu corpo caiu nas águas um pedaço de pano saiu boiando sobre o liso da superfície. Morreu em seguida a menina Joana, irmã de Abigail, tinha chorado muito durante dias seguidos, uma tarde ficou quieta. Depois de três meses sem vento seis pessoas haviam morrido, Catarina fazia agora questão de subir de manhã para o convés, tomava sol apoiada pela filha e pelos netos, no fundo do pensamento passara a só ver a chagada a Lagos, nada mais existia, mortes não a tocavam, sol e comida, sim, eram importantes, comia com decisão, mastigava bem a farinha e o arroz, às vezes um orobô, pedia que a levassem para a cama no momento em que o sol ficava demasiadamente forte, fechava os olhos e concentrava-se na espera. Diziam que o navio se movera fora do caminho, uma tarde morreu um dos malês, os outros rezaram para o morto, amarraram-lhe os pés, com pedaços de pedra achados no porão, o corpo mergulhou no mar num mergulho sem ruído, Mariana arrastava-se muitas vezes pelo chão, a mãe segurou-lhe o rosto um dia, olhou-a espantada, disse:

- Minha filha, você está com treze anos.

Estava. Sentia-se mais velha, só queria conversar com Abigail, que já era moça, mas de vez em quando corria para perto dos irmãos menores, doida para brincar de roda, ou passava horas sem dizer nada, fitando os objetos, as pessoas, o mar era como se fosse um enorme assoalho brilhante, dava a impressão de que qualquer um podia andar por cima dele. Notou que a comida tinha diminuído, o capitão andava com um revólver aparecendo e chegou o dia em que morreram duas pessoas de uma vez. Mariana estava meio dormindo quando ouviu a notícia. A voz de Maria Gorda tinha um tom de susto:

- Esta noite partiram dois: o Sebastião e o filho do Ribeiro.

A menina foi ver o lugar em que dormia a família Ribeiro, faltava o menino que sempre estivera no grupo, quis achar o Sebastião, um perto magro, de barbicha, e não o encontrou. Soube que os dois tinham sido atirados ao mar durante a noite.

O vento, quando começou a chegar, não parecia suficiente para empurrar o navio. O ar se agitou ligeiramente por muitos dias, os marinheiros entraram numa atividade incessante, quase ninguém comia mais a bordo, o cheiro de fezes se acentuava em certos lugares, o capitão comandou três homens para limparem tudo, jogavam água no porão, no convés, esfregaram o chão com vassouras, mesmo assim morreram três pessoas numa só tarde, num momento em que as ondas se formavam e o navio começava a jogar. Duas velhas e um velho, em que Mariana jamais havia reparado, envoltos em lençóis foram levados para cima, a capitão rezou por eles, desta vez o barulho dos corpos no mar soou nítido no início da noite. E logo os tambores bateram com violência, a avó percebeu que era o toque dos eguns, o axexê dos mortos, mas também era um toque de alegria, dos eguns passaram os atabaquistas a bater para Iansã, Abigail saltou para o meio do porão, dançou forte no assoalho velho, agitou as mãos num abandono, cantou em iorubá. Na manhã seguinte o navio andava, as velas se sacudiam no ar, as cordas balançavam de um lado para o outro, o convés ficou cheio, os rostos negros tomavam sol, pouco se falava, ao meio-dia a comida foi comida com entusiasmo, Epifânia botou dendê no peixe seco, reuniu os filhos ao redor de si, Mariana, Emílai e Antonio comeram em silêncio, as mãos pegavam no peixe, punham farinha no dendê, amassavam tudo até que se formasse um bolo, depois metiam na boca, Emília era a mais delicada, não limpava as mãos no vestido, Mariana encostou-se no corpo da avó depois de comer, ficaram ali de torpor, sentindo o vento que atravessava o convés.

O navio pegou vento durante muitos dias, às vezes vento forte, poucos podiam atravessar o convés em segurança, Maria Gorda levou um tombo. Mariana lembrou-se da queda de Susana na ladeira da Bahia, ela rira de não conseguir parar, hoje não achava graça nas coisas, as contrário, apesar do vento e da animação que voltava a bordo, a menina continuava a sentir o corpo mole, sem vontade de fazer coisa alguma, comer chegava a ser esforço. O vento já soprava há suas semanas quando morreu um marinheiro, foi a última das mortes na viagem, diziam que o homem passara dias sem tomar conhecimento do mundo, a reunião para jogar o corpo no mar se fez quase com raiva, os passageiros olhavam sérios para o lençol, cada um voltado para o rosto quase roxo do morto, carecia atirá-lo o mais depressa possível nas águas, enquanto o faziam era como se soubessem que não haveria outras mortes e tornava-se necessário acabar depressa com aquela, dispor do cadáver rápido e concentrar a atenção no vento que lavava o navio em subidas e descidas sobre as ondas, a tempestade que se abateu sobre ele naquela noite não provocou medos, vento e chuva não permitiam que a embarcação se detivesse, a calma da manhã seguinte foi que assustou, mas o vento continuava a bater nas velas.

Fonte:
OLINTO, Antonio. A casa da água. RJ: Bloch, 1969
Imagem = Toucan Art

Antonio Olinto (1919 – 2009)


Antonio Olinto (Nome completo: Antonio Olyntho Marques da Rocha) nasceu em Ubá (MG), em 10 de maio da 1919, filho de José Marques da Rocha e de Áurea Lourdes Rocha.

Depois dos estudos primários na cidade natal, ingressou no Seminário Católico de Campos (RJ), onde concluiu o curso secundário. Prosseguiu os estudos no curso de Filosofia do Seminário Maior de Belo Horizonte (MG) e no Seminário Maior de São Paulo. Tendo desistido de ser padre, foi durante dez anos professor de Latim, Português, História da Literatura, Francês, Inglês e História da Civilização, em colégios do Rio de Janeiro. Publicou então seu primeiro livro de poesia, Presença. Foi secretário do Grupo Malraux, tendo organizado a 1.a exposição de poesias, montada na Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro. Juntamente com sua atividade de professor ingressou no setor publicitário e no jornalismo. Seu livro Jornalismo e Literatura foi adotado em cursos de jornalismo em todo o Brasil. Da mesma época é seu livro de ensaios o Diário de André Gide.

Foi crítico literário de O Globo ao longo de 25 anos, responsável pela seção “Porta de Livraria”, onde noticiava os principais fatos da vida literária e livreira, e colaborou em jornais de todo o Brasil e de Portugal. Convidado pelo Governo da Suécia para as comemorações do Cinqüentenário do Prêmio Nobel em 1950, fez então conferências nas universidades de Estocolmo e Uppsala e entrevistou William Faulkner, Bertrand Russell e Per Lagerkvist. Em 1952, a convite do Departamento de Estado dos Estados Unidos, percorreu 36 estados norte-americanos fazendo conferências sobre cultura brasileira. Poeta e ensaísta, a sua obra está vinculada, cronologicamente, à Geração de 45. Teve publicados na década de 50 quatro volumes de poesia e dois de crítica literária.

Nomeado Diretor do Serviço de Documentação do então Ministério da Viação e Obras Públicas, pelo presidente Café Filho, em setembro de 1954, ali lançou a Coleção Mauá, de livros técnicos, promoveu exposições de pintura dedicadas a obras que privilegiassem ferrovias, estradas e os caminhos do mar – Salão do Automóvel, Salão Ferroviário, Salão da Estrada, Salão do Mar – e dirigiu a revista Brasil Constrói, redigida em quatro idiomas. Data dessa época o lançamento de mais de trinta concursos literários ligados a livros (exemplos: as melhores vitrines com livros, cartilhas, contos esportivos), culminando com o lançamento do Prêmio Nacional Walmap, considerado o pioneiro dos grandes prêmios literários do país.

Nomeado Adido Cultural em Lagos, Nigéria, pelo governo parlamentarista de 1962, em quase três anos de atividade fez cerca de 120 conferências na África Ocidental, promoveu uma grande exposição de pintura sobre motivos afro-brasileiros, colaborou em revistas nigerianas, enfronhou-se nos assuntos da nova África independente e, como resultado, escreveu uma trilogia de romances – A Casa da Água, O Rei de Keto e Trono de Vidro – hoje traduzidos para dezenove idiomas (inglês, italiano, francês, polonês, romeno, macedônio, croata, búlgaro, sueco, espanhol, alemão, holandês, ucraniano, japonês, coreano, galego, catalão, húngaro e árabe) e com mais de trinta edições fora do Brasil. Seu livro Brasileiros na África, de pesquisa e análise sobre o regresso dos ex-escravos brasileiros ao continente africano, tem sido, desde sua publicação em 1964, motivo de teses, seminários e debates. De 1965 a 1967 foi Professor Visitante na Universidade de Columbia em Nova York, onde ministrou um curso sobre Ensaística Brasileira. Na mesma ocasião, fez conferências nas Universidades de Yale, Harvard, Howard, Indiana, Palo Alto, UCLA, Louisiana e Miami. Escreveu uma série de artigos sobre a Escandinávia, o Reino Unido e a França.

Em 1968 foi nomeado Adido Cultural em Londres, onde desenvolveu uma atividade incessante, através de conferências e um mínimo de cem exposições ao longo de cinco anos.

Membro do PEN Clube do Brasil, ajudou a organizar três congressos do PEN Clube Internacional no Brasil: em 1959, 1979 e 1992. Passou a participar também das atividades do PEN Internacional, com sede em Londres, tendo sido eleito, no começo dos 90, para o cargo de Vice-Presidente Internacional. Na qualidade de Visiting Lecturer vem dando cursos de Cultura Brasileira na Universidade de Essex, Inglaterra.

Dirigiu e apresentou os primeiros programas literários de televisão no Brasil, na TV Tupi, e em seguida nas TVs Continental e Rio. Fez conferências sobre cultura brasileira em universidades e entidades culturais em Tóquio, Seul, Sidney, Luanda, Maputo, Dacar, Lomé, Porto Novo, Lagos, Ifé, Warri, Abidjan, Tanger, Arzila, Buenos Aires, Lisboa, Coimbra, Porto, Madri, Santiago, Barcelona, Lion, Paris, Marselha, Milão, Pádua, Veneza, Bérgamo, Florença, Roma, Belgrado, Zagreb, Bucareste, Sófia, Varsóvia, Cracóvia, Moscou, Estocolmo, Copenhague, Aarhus, Londres, Manchester, Liverpool, Colchester, Newcastle, Edimburgo, Glasgov, St. Andrews, Oxford, Cambridge, Bristol, Dublin.

Conheceu, em 1955, a escritora e jornalista Zora Seljan, com quem se casou. A partir de então, os dois trabalharam juntos em atividades culturais e literárias. Quando Antonio Olinto foi crítico literário de O Globo, Zora Seljan assinava a crítica de teatro no mesmo jornal, sendo que às vezes as duas colunas saíam lado a lado na página. Antes de os dois seguirem para a Nigéria, já Zora havia escrito a maioria de suas peças de teatro afro-brasileiras, das quais, mais tarde, em Londres, uma delas, Exu, Cavaleiro da Encruzilhada, seria levada em inglês por um grupo de atores ingleses e norte-americanos sob a direção de Ray Shell, que participara de produção de Jesus Christ Superstar. Na Nigéria Zora Seljan foi leitora na Universidade de Lagos. De volta da África, Antonio Olinto publicaria um relato de sua missão ali, Brasileiros na África, e Zora Seljan lançaria dois livros: A Educação na Nigéria e No Brasil ainda Tem Gente da Minha Cor?. Em 1973, os dois fundaram um jornal, em Londres e em inglês, The Brazilian Gazette, que vem existindo continuamente até hoje.

Antonio Olinto e Zora Seljan foram eleitos para o Conselho Fiscal do Sindicato dos Escritores, em 7 de maio de 1997.

Zora Seljan faleceu no Rio de Janeiro em 25 de abril de 2006.

Em 31 de julho de 1997 foi eleito para a ABL na Cadeira n.o 8, sucedendo ao escritor Antonio Callado. Foi eleito para o cargo de diretor-tesoureiro nas gestões de 1998-99 e 2000. Nesse período foi também diretor da Comissão de Publicações. Sob a sua direção saíram 24 volumes da Coleção Afrânio Peixoto. Coordenou o seminário Monteiro Lobato: Meio Século Depois (1998) e o ciclo A Língua Portuguesa nos 500 Anos do Brasil (ABL, 1999) e participou do seminário A Língua Portuguesa em Questão (CIEE-São Paulo, 1999) e dos ciclos de conferências sobre Machado de Assis e Rui Barbosa (ABL, 1999).

Nos últimos anos proferiu ainda conferências em seminários no Brasil e no exterior. A convite do Governo português, em 2000, participou das Jornadas da Lusofonia realizadas em Lisboa, Estocolmo, Gotemburgo, Lund e Copenhague.

Em 1998 voltou a circular o Jornal de Letras (n.o 0 em agosto), sendo Antonio Olinto o editor-chefe desta nova fase. Em setembro, no quadro das comemorações do Sete de setembro, a Embaixada do Brasil na Romênia inaugurou, em Bucareste, a Biblioteca Antonio Olinto.

Em 1º de janeiro de 2001 foi nomeado por ato do Prefeito do Rio de Janeiro, Sr. César Maia, para o cargo de Diretor Geral do Departamento de Documentação e Informação Cultural, da Secretaria das Culturas, dirigida pelo Dr. Paulo Alberto Moretzsohn Monteiro de Barros (o Senador Artur da Távola). Encontra-se até os dias de hoje nesse setor, agora com o Secretário das Culturas, Ricardo Macieira, e na sua gestão já inaugurou duas bibliotecas em comunidades carentes, como manteve as 23 bibliotecas municipais em prédios fixos, além de dirigir o Museu da Cidade e o Arquivo Geral da Cidade.

Em 2002, foi eleito presidente da Comissão Nacional Organizadora do Centenário de Nascimento de Ary Barroso, que foi celebrado com várias comemorações pelo país e pelo exterior. Para homenagear Ary Barroso, Antonio Olinto lançou o livro Ary Barroso, a História de uma Paixão, que está sendo apresentado em várias capitais e em sua cidade natal, Ubá.

No dia 17 do mês de julho de 2003 apresentou seus quadros naives no Shopping Cassino Atlântico, juntamente com o lançamento de seu livro Ary Barroso.

Em 2004, ministrou na UniverCidade curso de doze conferências subordinado ao tema “Uma visão literária do Brasil de Anchieta a Rachel de Queiroz”. Por sua iniciativa foi criado o Instituto Antonio Olinto e Zora, que recebeu o patrimônio cultural do casal, de que constam duzentas esculturas de madeira da África, bem como 15 mil volumes da biblioteca de ambos e cerca de 5 mil fotografias ligadas à literatura brasileira.

Recebeu o Prêmio Machado de Assis – 1994, pelo conjunto de obras, da Academia Brasileira de Letras, a mais alta láurea literária do Brasil. Em 2000, recebeu o título de Doutor Honoris Causa, da Faculdade de Letras do Conjunto Universitário de Ubá (MG) e o Diploma de Excelência da Universidade Vasile Goldis, de Arad (Romênia), pelo seu trabalho de difusão da cultura brasileira naquele país. Em 2003, inaugurou na Faculdade de Letras Ozanan Coelho, de Ubá, uma biblioteca de 34 mil volumes que recebeu o seu nome. Em 2004, o Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro outorgou-lhe o Título de Sócio Grande Benemérito.

Em março, teve problemas de saúde e foi internado, mas voltou para casa, onde contava com a ajuda de uma secretária. Faleceu de falência múltipla de órgãos, em sua casa em Copacabana, no Rio de Janeiro em 12 de setembro de 2009.

O corpo do escritor Antonio Olinto, que cintava com 90 anos de idade, foi enterrado no sábado, 12 de setembro, no mausoléu da ABL (Academia Brasileira de Letras) no cemitério de São João Batista, em Botafogo, zona sul do Rio.


Sua obra abrange poesia, romance, ensaio, crítica literária e análise política.

Bibliografia

Poesia
– Presença. Rio de Janeiro: Editora Pongetti, 1949.
– Resumo. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1954.
– O Homem do Madrigal. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1957.
– Nagasaki. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1957.
– O Dia da Ira. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1959.
– As Teorias. Rio de Janeiro: Edição Sinal, 1967.
– Antologia Poética. Rio de Janeiro: Editora Leitura, 1967.
– A Paixão segundo Antonio. Rio de Janeiro: Editora Porta de Livraria, 1967.
– Teorias Novas e Antigas. Rio de Janeiro: Editora Porta de Livraria, 1974.
– Tempo de Verso. Rio de Janeiro: Editora Porta de Livraria, 1992.

Ensaio
– Jornalismo e Literatura. Rio de Janeiro: MEC, 1955.
– O “Journal” de André Gide. Rio de Janeiro: MEC, 1955.
– Dois Ensaios. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1960.
– Brasileiros na África. Rio de Janeiro: Edições GRD, 1964.
– O Problema do Índio Brasileiro. Embaixada do Brasil em Londres, 1973.
– Para onde Vai o Brasil?. Rio de Janeiro: Editora Arca, 1977.
– Do Objeto como Sinal de Deus. Ensaio sobre a arte africana. Londres: RIEX, 1983.
– O Brasil Exporta. História da exportação brasileira. Banco do Brasil, 1984.
– Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: Editora LISA, 1994.
– Antonio Olinto apresenta Confúcio e o Caminho do Meio. Rio de Janeiro: Editora Bhum – Ao Livro Técnico, 2001.

Romance
– A Casa da Água. Rio de Janeiro: Edições Bloch, 1969.
– O Cinema de Ubá. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1972.
– Copacabana. Rio de Janeiro: Editora LISA, 1975.
– O Rei de Keto. Rio de Janeiro: Editorial Nórdica, 1980.
– Os Móveis da Bailarina. Rio de Janeiro, 1985.
– Trono de Vidro. Rio de Janeiro: Editorial Nórdica, 1987.
– Tempo de Palhaço. Rio de Janeiro: Editorial Nórdica, 1989.
– Sangue na Floresta. Rio de Janeiro: Editorial Nórdica, 1993.
– A Dor de Cada Um (Coleção Anjos de Branco, vol. 1). Rio de Janeiro: Editora Mondrian, 2001.
– Ary Barroso. A História de uma Paixão. Rio de Janeiro: Editora Mondrian, 2002.

Conto
– O Menino e o Trem. Rio de Janeiro: Editora Blhum – Ao Livro Técnico, 2000.

Literatura infantil
– Ainá no Reino do Baobá. Rio de Janeiro: LISA, 1979.

Crítica literária
– Cadernos de Crítica. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1958.
– A Verdade da Ficção. Rio de Janeiro: COBRAG, 1966.
– A Invenção da Verdade. Rio de Janeiro: Editorial Nórdica, 1983.

Gramática
– Regras Práticas para Bem Escrever / Laudelino Freire (1873-1937) – ampliada e atualizada por Antonio Olinto. Rio de Janeiro: Lótus do Saber Editora, 2000.

Fonte:
Academia Brasileira de Letras

sábado, 12 de setembro de 2009

Trova LI

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Rodrigo Garcia Lopes (Poetas do Paraná)



STANZAS IN MEDITATION
para Henry David Thoreau

Folhas negras caem, rufam em profusão. O vento encrespa a
Água, Tempo, enruga
faces. Um vale revela
canyons, grutas:
em silêncio, exploramos o interior

destas montanhas: uma chuva fina, estranha,
começa a cair
e súbito dissipa —
O ruído áspero
de uma vespa. Este é o céu, claro, como metal. E aquilo,

A fumaça abandonada por um trem, talvez. Flores
Se dissolvem nos olhos, e nos debruçamos sobre velhas lendas
conferindo as pegadas de um animal desconhecido.
A trilha termina num riacho.
A água se surpreende com este vento todo
que vem do Oeste
e que agita a sinfonia das árvores.

Neblina nítida, colinas, um vapor neste espelho.
Num ponto qualquer da paisagem captamos
seus olhos verdes, mudos, fixos na relva úmida.
Um animal e você contemplam do mirante
este milagre
a baía vazia
— a areia do dia exibindo sua rasante —
rochedos & distâncias, como antes,
animada pelas danças do vento
fazendo desta ausência
presenças manifestas em tudo:

chuva
que desaba
entre os olhos
abertos
da serpente.
Um flash
de luz
entre os bambus

o silêncio do sonho
traduzindo
uma imagem-movimento
que se desfaz
entre a verdade dos instantes.


ERÓTICA DAS SOMBRAS

Lendo na contraluz que o tempo alucina
Nas rótulas de ondas que em amarelo artéria barbarizam
Enquanto a boca apressa, sibilina,
entre sons (devorados de sentidos). Içam
o mar vertiginoso e kanjis de nuvens
nos olhos cheios de deus, Sal.
No biombo das montanhas — rugem
No sfumatto mental da fala e do Caos.
Na textura sépia da superfície de sons
Uma face letal lateja e se transmuta
(Estátua de estrondos, trilha de acenos)
Muda e nos sorri. Escuta
os espelhismos cifrados da manhã,
Lábio, na pele da romã.
*
inimigo
espelho da face
ecoa
(inacabado)
cai em rubra cortina
—em
câmera
lenta —
dobras sobre colinas
atordoado argumento:
qual paisagem
é real?
A de Jade, pedra de flanco, ou a que é já?
Vôos reluzem (circulares) — é o azul que se desfolha
Entre jatos
Minaretes-araucárias imprimem em símbolos
inventam a fala na pele de Laylak.
A hora furiosa solta-se, inçada
de vegetais e estática.
Sombras vomitam a distância,

Mandala de espantos.

*
No centro, alguma agulha o olho —
Agharta: lágrima no céu laranja.
Plumas de carne escrevem
a tarde celofane.
Ouro ecoa.
Quando voa —
está dormindo.
No agora gótico das sombras
teu lábio (calêndula) modula (calcina)
o matiz da invisível voragem
de ondas gongas:
Tempo, tudo o que a íris invê
no sudário das dunas, na curva de um silêncio.

SOMOS PESSOAS ESTRANHAS

somos
pessoas
estranhas
nem sabemos
que sonhos
que somos

esses
olhos
poucos

essas
folhas
secas?

esqueçam
fiquem
calados

somos
estranhos
no entanto

esta noite
dormiremos
lado a lado

SEU CORPO É UMA PRAIA DESERTA

Seu corpo é uma praia deserta
onde uma música desperta
numa onda esperta e a deserda:
espumas a ferem como pétalas.

Desterra, em tradução infinita,
pérolas na orla do olhar, ilha
que ainda está por ser escrita.

NA PASSAGEM DOS CÉUS QUE FOGEM DE NÓS

Na imagem das coisas que retornam sem nós,
Na miragem dessa solidão, você aqui:

Na repetição das antigas sensações
Na fala a provocar o pensamento
Parecendo um passado que se dobra
Sobre esta polpa de presente:

Se a linguagem é nossa realidade
E coisas forem apenas palavras
Então nos restará apenas a veracidade -
Esse vácuo que nos acua ao avançar.

PENSAGEM

Têmporas do vazio,
acolham o resto
de gravidez dos segundos.

Unha e carne
Céu e árvore
O vento arme.

Cada gesto
de seda decifre
o Hades da ira
onde pesado levita.

Homem em transe
acue o nada
a noite exangue
em cada fala-cadafalso.

Trevas se atiram
da margem oposta
das minhas artérias -
imagem, matéria.

RITO

Alertas, trapaças, cobranças, compromissos:
Quantas ilhas sem edição, vidas sem viço,
A morte visita sem aviso?
E, afinal, pra que mesmo tudo isso?

O que deu nesse mundo, caduco,
O que ficou do tempo em que viver
Era mais que só mudar de assunto
Era rito, um estado de espírito?

Ou quando olhar era uma reza,
Pensar que revelava a leveza,
Música vindo de dentro
(Precisa de centro?)

Uma revolução do sentir nos fez ateus:
Quisemos então ver a face de Deus.

E você a meu lado, lembra
De quando bastava uma fagulha
Pra explodir uma Bastilha?

A LUME SPENTO

Colhe com seus olhos a fumaça que insinua
ao penetrar - sendo incenso e silêncio -
sua mente em meio ao tráfego intenso
da manhã, relumbre em suas mãos nuas.

Daqui das margens desse sonho
ideogramas de formas obscuras
reescrevem seus gestos num bazar estranho
sem saber ao certo o que procura:

Se meus olhos, opacos, entre bijuterias
baratas que você arremessou
(como quem dedilha um sol menor ou
a linha acesa de minhas artérias)

Mas sem querer você abre, de leve,
as persianas e invade uma sutil
reminiscência do que nunca existiu
(Ou, como seu rosto, foi tão breve).
-------------
Fonte:
NA VIRADA DO SÉCULO: poesia de invenção no Brasil ( organização de Claudio Daniel e Frederico Barbosa). São Paulo: Landy, 2002.
http://www.antoniomiranda.com.br

Rodrigo Garcia Lopes (1965)



Poeta e tradutor, nasceu em Londrina (PR), em 1965.

Mestre em Artes pela Arizona State University e doutor em Letras/Inglês pela Universidade Federal de Santa Catarina.

Integrou as antologias Artes e ofícios da poesia (Artes e ofícios, Porto Alegre, 1990), Outras praias (Iluminuras, 1998) e Esses poetas (Aeroplano, 1998).

Publicações:
– Livros de poemas Solarium (Iluminuras, 1994), Visibilia (Sette Letras, 1997) e Polivox (Azougue Editorial, 2002).
– Sylvia Plath — poemas (Iluminuras, 1991) e Iluminuras (gravuras coloridas), de Rimbaud (Iluminuras, 1994), ambos em parceria com Maurício Arruda Mendonça.
– Vozes e visões —panorama da arte e cultura norte-americanas hoje (Iluminuras, 1996), com entrevistas com poetas, críticos e artistas plásticos dos EUA.

Foi um dos editores da revista Medusa, e hoje edita a revista Coyote, com Ademir Assunção e Marcos Losnak.

Em 2001, lançou o CD de música e poesia Polivox.

Fonte:
http://www.antoniomiranda.com.br

José Carlos Brandão (O Emparedado)



Eu sempre calado
entre estranhos dobres.
Eis-me limitado
por estanho e cobre.
Eis-me emparedado
no meu quarto pobre.
Ainda mais me calo,
por mais que me dobres.
Sempre o mesmo avaro,
por mais que me cobres.

Parco de palavras
e outros marcos úteis.
Nessas minhas lavras,
sempre mais inúteis.
Memórias escravas,
minhas cobras fúteis.
Meus anjos de lavas,
trevas, barros súteis.
Eis-me em lande escassa:
longe, as formas dúcteis.

Esse o meu destino.
Moldar a estrutura
de encruados mitos.
Na pedra mais dura
forjar um estilo
de vaga ventura.
Nesta arte prossigo,
hera de ternura.
Neste brando rito,
palavra mais pura.

Do quarto as paredes
a pele do corpo.
Isolam as sedes
deste vário horto,
lançadas as redes
onde tudo é morto.
Onde eram as lendas
é um olho torto.
Por que se desvendem
as vozes do orco.

E o que era talvez
um menino antigo
finda-se de vez.
Desse mito findo
o muro de pez
e íntimo granito.
Dessa viuvez
no verbo falido.

– Um poema não lês,
não se lê o olvido.
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Fontes:
BRANDÃO, José Carlos. O Emparedado. Rio de Janeiro: Companhia Editora Americana, 1975.
Imagem = http://vitrinedemim.blogger.com.br

José Carlos Brandão (Parada em Ventania)

Aqui venta sempre desse jeito, sim senhor. Acho que é por isso que chamaram aqui de Ventania. Em Dois Córregos também venta muito. Foi a minha irmã, a Cida, que me contou. Não, eu não conheço lá. O senhor não está vendo as minhas pernas? Eu não conheço lugar nenhum, eu só conheço aqui. A Cida é quem me conta as coisas. Ela diz que Dois Córregos não é muito grande, mas que é muito maior do que aqui. E deve ser bem maior mesmo, pelas coisas que ela conta que tem lá. É, sim senhor, eu só conheço as coisas de ouvir contar. Ah, também já vis as figuras de umas revistas que a Cida emprestou uma vez.

O senhor está cansado de esperar? Sente um pouco, fique à vontade. Logo passa um trem. Eu não sei se esse pára aqui, tem algum que pára. Mas o senhor viu o horário na estação, não é? Aqui a gente tem todo o tempo do mundo, não é preciso pressa. Pode olhar as coisas, não se acanhe. Tem sempre muita coisa para se ver. Eu não tenho muleta, não senhor. A Cida vem na hora do almoço, depois da escola, não sei a hora certa. Ela faz a comida, faz o meu prato, depois leva para o meu pai e a minha mãe lá na roça. Depois ela fica ajudando lá até de noite.

Mas o senhor parece que está impaciente. A gente precisa não se aborrecer com as coisas. Eu gosto muito de conversar. Se eu não estou chateando o senhor, eu continuo. É a Cida quem conversa comigo, quando ela está em casa e tem tempo e paciência. O meu pai às vezes tem tempo, mas não tem paciência nunca. Ele só fala "essa desgraça, essa desgraça", e olha minhas pernas moles, e bebe pinga. A minha mãe só fica chorando. Mas a Cida não, ela dorme na mesma cama que eu e fica ouvido enquanto eu falo tudo que eu penso. Eu durmo um pouco de dia e não tenho sono logo de noite e então eu falo, eu falo muito e ela me escuta. Às vezes parece que ela está dormindo, mas ela fala que está prestando atenção. O senhor também parece que sabe prestar um pouco de atenção.

Eu aprendi muito bem como prestar atenção. É assim que eu passo o dia. Mas eu presto atenção só no que me interessa. É esse o segredo. O senhor fica olhando esse relógio bonito toda hora. O senhor não viu aquele sabiá-poca ali no mamoeiro, não é? Olhe como ele faz com a cabeça, como ele ergue o pescoço e gira para um lado e para o outro. Olhe como ele fareja o ar, como ele vigia tudo.

O senhor fica olhando feito bobo as minhas pernas. Eu já aprendi a viver com elas. Eu não sei o que deu em mim, não. Foi uma doença que ninguém sabe o que é. Um dia elas começaram a bambear, logo ficaram assim molengatas até hoje. Eu até já pensei em me matar. Não era melhor acabar com a vida do que só dar trabalho, não prestar para nada? Foi o que eu falei para o meu pai. Ele ficou louco da vida, disse que ninguém pode mudar as coisas.

Ainda lembro daquela hora. A minha mãe olhou para mim e começou a chorar. Então eu ri para ela, eu queria mostrar que tudo estava bem, afinal eu até estava rindo. Mas ela chorou mais ainda.

Foi naquele dia que o padre veio aqui em casa e começou a rezar e a falar que era a vontade de Deus. Foi então que meu pai explodiu. Ele disse que só a vida tem remédio para a vida. Mandou o padre embora e pegou o garrafão de pinga. Eu admiro muito o meu pai, ele gosta muito de mim.

E é assim que é a minha vida. Eu não sou muito triste, não. Só de vez em quando. A gente se acostuma com as coisas. Eu comecei a gostar de ficar aqui parado na porta de casa. Eu tenho muito tempo. Fico ruminando as coisas, imaginando. Gostando de imaginar coisas boas. E também eu tenho tanta coisa para olhar. Aqui nunca acontece nada, mas eu fico olhando o mato e cada vez gosto mais das coisas que eu estou vendo.

Tem gente que acha que eu fiquei meio bobo, mas eu não me importo. Acho até bom assim ninguém fica com dó de mim.

O senhor não está com dó de mim, não é? O senhor parece que já se cansou de me ouvir, não é. Desculpe não ter nada para lhe oferecer. Tem água no pote, se o senhor está com sede. Se o senhor gosta de pinga, também tem, está atrás da porta. Tinha um pedaço de bolo, a Cida levou na escola. Ela nunca leva lanche, hoje ela levou. É até ruim, é capaz dos outros ficarem com lombriga.

O senhor já vai? Daqui a pouco tem um trem, sim senhor, mas eu não sei se esse pára aqui. Também pode ser de carga. Um tempo eu prestava atenção nos trens. Eu conhecia todos, só de ouvir. Eu só queria pegar um e ir para bem longe, numa cidade grande, bobagem minha.

Mas o senhor já vai mesmo? Não quer ficar mais um pouco? Eu estava gostando de falar com o senhor. Prefere esperar o trem na estação? O senhor não disse nada. Bom. Se quer ir, o senhor que sabe. Então até logo, senhor.
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Sobre o autor:
José Carlos Mendes Brandão publicou quatro livros de poesia: O Emparedado (1975); Exílio (1983), Prêmio José Ermírio de Moraes, do Pen Centre de São Paulo, para melhor livro do ano; Presença da Morte (1983), Prêmio “V Bienal Nestlé de Literatura Brasileira”; e Poemas de Amor (1999). Recebeu ainda o Prêmio Nacional de Literatura “Cidade de Belo Horizonte” (2000), por um romance inédito.
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Fontes:
http://www.gargantadaserpente.com/coral/contos/jc_ventania.shtml5/9/2009
http://poesiacronica.blogspot.com/
Imagem = http://www.geocities.com/Athens/Sparta/8579/trem42.jpg

Fernando Sabino (Vinho de Missa)



Era domingo e o navio prosseguia viagem. Os passageiros iam sendo convocados para a missa de bordo.

- Vamos à missa? convidou Ovalle.

O passageiro a seu lado no convés recusou-se com inesperada veemência:

- Missa, eu? Deus me livre de missa.

- Não entendo - tornou Ovalle, intrigado:

- O senhor pede justamente a Deus que o livre da missa?

- No meu tempo de menino eu ia à missa. Mas deixei de ir por causa de um episódio no colégio interno, há mais de trinta anos. Colégio de padre - isso explica tudo, o senhor não acha?

Ele achou que não explicava nada e pediu ao homem que contasse.

- Pois olha, vou lhe contar: imagine o senhor que havia no colégio um barbeiro, para fazer a barba dos padres e o cabelo dos alunos. Vai um dia o barbeiro me seduz com a idéia de furtar o vinho de missa, que era guardado numa adega. Me ensinou um jeito de entrar na adega - e um dia eu fiz uma incursão ao tonel de vinho. Mas fui infeliz: deixei a torneira pingando, descobriram a travessura e no dia seguinte o padre-diretor reunia todos os alunos do colégio, intimando o culpado a se denunciar. Ia haver comunhão geral e quem comungasse com tão horrenda culpa mereceria danação eterna. Está visto que não me denunciei: busquei um confessor, tendo o cuidado de escolher um padre que gozava entre nós da fama de ser mais camarada: "Padre, como é que eu saio desta? Eu pequei, fui eu que bebi o vinho. Mas se deixar de comungar, o padre-diretor descobre tudo, vou ser castigado." Ele então me tranqüilizou, invocando o segredo confessional, me absolveu e pude receber a comunhão. Pois muito bem: no mesmo dia todo mundo sabia que tinha sido eu e eu era suspenso do colégio. O homem respirou fundo e acrescentou, irritado:

- Como é que o senhor quer que eu ainda tenha fé nessa espécie de gente?

Ovalle ouvia calado, os olhos perdidos na amplidão do mar. Sem se voltar para o outro, comentou:

- O senhor, certamente, achou que o confessor saiu dali e foi direitinho contar ao diretor.

- Isso mesmo. Foi o que aconteceu.

- O vinho era bom?

- Como?

- Pergunto se o senhor achou o vinho bom.

O homem sorriu, intrigado:

- Creio que sim. Tanto tempo, não me lembro mais... Mas devia ser: vinho de missa!

Então Ovalle se voltou para o homem, ergueu o punho com veemência:

- E o senhor, depois de beber o seu bom vinho de missa, me passa trinta anos acreditando nessa asneira? O homem o olhava, boquiaberto:

- Asneira? Que asneira?

- Será possível que ainda não percebeu? Foi o barbeiro, idiota!

- O barbeiro? - balbuciou o outro:

- É verdade... O barbeiro! Como é que na época não me ocorreu...

-- Vamos para a missa - ordenou Ovalle, tomando-o pelo braço.

Fontes:
SABINO, Fernando. A mulher do vizinho. Rio de Janeiro: Sabiá, 1962.
Imagem = http://lusawines.com

A Formação da Língua Portuguesa no Brasil



A língua é um organismo vivo que se modifica ao longo do tempo. Palavras novas surgem para expressar conceitos igualmente novos; outras deixam de ser utilizadas, sendo substituídas.

Na época das grandes navegações, Portugal conquistou inúmeras colônias e o idioma português foi influenciado pelas línguas faladas nesses lugares, incorporando termos diferentes como "jangada", de origem malaia, e "chá", de origem chinesa. O período renascentista também provocou uma série de modificações na língua, que recebeu termos eruditos, especialmente aqueles relacionados à arte.

Os colonizadores portugueses, principalmente os padres jesuítas, difundiram o idioma no Brasil. No entanto, diversas palavras indígenas foram incorporadas ao português e, posteriormente, expressões utilizadas pelos escravos africanos e imigrantes também foram adotadas. Assim, o idioma português foi se juntando à família lingüística tupi-guarani, em especial o Tupinambá, um dos dialetos Tupi. Os índios, subjugados ou aculturados, ensinaram o dialeto aos europeus que, mais tarde, passaram a se comunicar nessa "língua geral", o Tupinambá. Em 1694, a língua geral reinava na então colônia portuguesa, com características de língua literária, pois os missionários traduziam peças sacras, orações e hinos, na catequese.

Com a chegada do idioma iorubá (Nigéria) e do quimbundo (Angola), por meio dos escravos trazidos da África, e com novos colonizadores, a Corte Portuguesa quis garantir uma maior presença política. Uma das primeiras medidas que adotou, então, foi obrigar o ensino da Língua Portuguesa aos índios.

Desde o século XVI, época da formação do Português moderno, o português falado em Portugal manteve-se mais impermeável às contribuições lingüísticas externas. Já o Brasil, em decorrência do processo de formação de sua nacionalidade, esteve mais aberto às contribuições lingüísticas de outros povos.

Ainda hoje o português é constantemente influenciado por outras línguas. É comum surgirem novos termos para denominar as novas tecnologias do mundo moderno, além de palavras técnicas em inglês e em outros idiomas que se aplicam às descobertas da medicina e da ciência. Assim, o contato com línguas estrangeiras faz com que se incorporem ao idioma outros vocábulos, em sua forma original ou aportuguesados.

Atualmente, existem muitas diferenças entre o português que falamos no Brasil e o que se fala em Portugal. Tais diferenças não se limitam apenas à pronúncia das palavras, facilmente notabilizada na linguagem oral. Existem também diferenças de vocabulário (só para citar um exemplo, no Brasil dizemos "trem", em Portugal se diz "comboio") e de construção gramatical (enquanto no Brasil se utiliza uma construção como "estou estudando", em Portugal prefere-se a forma "estou a estudar").

Fonte:
So Portugues
http://www.soportugues.com.br/secoes/portuguesFormacao.php

Dicionário do Folclore (Letra S)


SÁ-DONA. Tratamento que os homens do interior, camponeses, dão às senhoras casadas (Nordeste).

SABÃO. É uma dança do fandango no Rio Grande do Sul, São Paulo e Pernambuco, bastante popular nos meados do século XIX.

SABER-ONDE-O-CALO-APERTA. Saber, a pessoa, as suas dificuldades, os seus problemas.

SABONGO. É um doce feito com coco ralado e com mel de engenho ou de rapadura até o ponto apertado, para ser comido puro ou com farinha de mandioca. A mesma coisa que cocada, com um ponto mais brando.

SACI-PERERÊ. É um duende conhecido em diversas regiões brasileiras do sul, é um negrinho que só tem uma perna, ágil, astuto, atrevido, traquinas, gosta de fumar cachimbo, tem as mãos furadas, usa uma carapuça vermelha que tem poderes mágicos e que lhe cobre a carapinha. À noite, ele assobia, inquietando as pessoas, criando-lhes dificuldades, apagando o fogo, queimando os alimentos, assustando os viajantes durante a noite. O Saci é associado ao Diabo entre os mestres de folias de reis. Tudo faz crer que o Saci tenha nascido no século XIX.

SACOLÉ. É um picolé feito em casa, mas acondicionado em pequenos sacos plásticos, amarrados com linha, sem o pauzinho. Para saboreá-los só é preciso cortar uma das extremidades do saquinho e puxá-la para baixo.

SAGUIM. É um macaquinho que anda aos bandos. Dizem que o saguim morre se alguém lhe fizer uma careta. Também é conhecido como saguí, sauí e sauim.

SAIA-SAIÁ. Dança do fandango, do Paraná.

SAIA-VERDE. As meninas da saia verde são entidades que se manifestam no catimbó nordestino. São incontáveis, moram no fundo do mar, um dos reinos invisíveis.

SAIDEIRA. É como se diz do último copo de bebida na despedida de um dos parceiros ou quando a farra se acaba.

SAIETA. É um doce tradicional em Minas Gerais, feito da polpa de coco da palmeira buriti.

SAL. Usado no batismo da Igreja Católica, com aplicação universal para afastar os malefícios sobre a criança. Um dos feitiços que se possa fazer para maltratar uma pessoa é misturar sal com areia na pegada de uma criatura tendo, no meio, uma unha, um cabelo e um pedaço de roupa íntima. O contra feitiço é diluir o sal na água do mar. Pôr sal à porta de uma rival, obriga-a a deixar o namorado. Derramar sal na mesa é agouro. A sabedoria popular diz que para se conhecer um amigo, a pessoa tem que comer sal com ele, isto é, conviver algum tempo. O sal era a moeda circulante entre alguns povos antigos e dizem até que entre os indígenas brasileiros. Por isso a palavra salário é derivada de sal.

SALA-DE-DANÇA. Nome que se dá, na Bahia, aos candomblés que não seguem a tradição autenticamente africana.

SALGAR-O-GALO. É tomar a primeira dose do dia. É matar o bicho.

SALIVA. Com a saliva Jesus curou cegos e surdos-mudos. Na década de 40 andou pelo Agreste e Zona da Mata de Pernambuco um cidadão que se dizia médico e que aplicava injeções de saliva para curar determinadas doenças. A saliva tinha que ser de uma criança. Já na feitiçaria, a saliva pode até matar. Na medicina popular vamos encontrar a saliva usada para combater o mau-olhado. A saliva não deve ficar exposta, mas, coberta com areia ou esmagada com os pés para que o diabo não se apodere dela, hábito muito nordestino na zona rural.

SALTAR FOGUEIRA. Acontece por ocasião das festas do ciclo junino, quando as fogueiras são acesas; saltá-las, é um folguedo tradicional, como prova de coragem e agilidade de quem assim procede.

SAMBA. É baile popular nas cidades e na zona rural, sinônimo de função, pagode, fobó, arrasta-pé, balançar-o-esqueleto, balança-flandre. A palavra samba vem de semba e significa umbigada na língua dos escravos de Luanda que aqui chegaram. Somente em 1916 apareceu, pela primeira vez, a primeira música impressa mencionando a palavra samba: "Pelo telefone", de Donga, compositor carioca.

SAMBA-DE-LENÇO. O samba-de-lenço tem sua origem africana. Homens e mulheres, em fila, todos com um lenço na mão acenando para os cavalheiros e, homens e mulheres, formando pares, se dirigem ao centro, dançam ao som de uma caixa e, às vezes, pandeiros e guaiás.

SAMBOCA. É uma mistura de água de coco com açúcar.

SAMBURÁ. É um cesto feito de cipó, de tamanho pequeno, preso por um cordão grosso, para se trazer a tiracolo. Os pescadores botam no samburá os peixes que pescam. Na linguagem popular barriga de samburá é a pessoa que tem barriga grande. Pescar para o seu samburá é cuidar de seus negócios, de seus interesses.

SANFONA. É o mesmo que acordeona ou acordeon, fole, harmônica. No Rio Grande do Sul este instrumento musical é conhecido como gaita.

SANGRIA. 1. É uma mistura de vinho tinto com água e açúcar, aconselhada às mulheres que dão à luz, para aumentar o leite; 2. É uma incisão que se faz numa das veias para soltar o sangue, tratamento de algumas doenças quando a medicina estava engatinhando.

SANGUE-DE-BARATA. Como se sabe, a barata não tem sangue. E quando se diz que uma pessoa tem sangue-de-barata significa que essa pessoa é insensível, calma demais.

SANHAÇU. Pássaro também conhecido por sanhaço, que gosta muito de comer mamão. Na linguagem popular, sanhaçu é a pessoa que gosta de beber.

SANSA. É um instrumento musical trazido pelos escravos africanos, feito com um casco de jabuti no qual são presas tiras metálicas. Toca-se como um instrumento de corda.

SANTA RADI. É uma santa popular canonizada pela população do Alto Madeira, Amazonas, onde nasceu, viveu e morreu. Era uma moça de uma beleza sem igual, que ensinava catecismo às crianças, tocava violino sem saber música e vivia sempre rezando. Restabelecia a paz doméstica quando os casais brigavam e curava as pessoas quando estavam com paralisia, erisipela e outras doenças.

SANTA VITÓRIA. Era o nome dado à palmatória nas escolas, antigamente. Os alunos, às escondidas da professora, escondiam ou mesmo davam fim à palmatória para não serem castigados quando se comportavam mal ou não sabiam as lições.

SANTO-DO-PAU-OCO. Frase irônica aplicada a um menino travesso, traquinas, com ares de bonzinho. A explicação desta expressão é a seguinte: as imagens de santos, esculpidas em madeira, eram ocas, e vinham de Portugal, cheias de dinheiro falso.

SANTOS SEM DIA. Todo dia tem seu santo. Acontece que os 365 dias do ano não acomodam todos os santos da Igreja Católica que, para corrigir tal deficiência, determinou que o primeiro domingo do ano depois de Pentecostes, fosse o Dia de Todos os Santos. Hoje o Dia de Todos os Santos tem data fixa: 1° de novembro. O povo, para se ver livre de obrigações, criou um santo que não tem dia: é o Dia de São Nunca. Inventou, também, o Dia São Pagomião, que é o dia móvel em que os assalariados recebem seus salários e pagam suas contas.

SÃO JORGE. É um santo muito popular, também conhecido por Ogum nos ritos afro-brasileiros, patrono de corporações militares, escolas de samba, clubes de futebol. Justiceiro, protetor dos oprimidos e injustiçados, São Jorge é cultuado não somente nas igrejas católicas como também em terreiros de todas as linhas. Como Ogum-beira-mar, comanda o povo do mar. Como Ogum-ronda, cuida da segurança das pessoas, dos veículos, das casas de residência e comerciais. É conhecido como o Santo Guerreiro e festejado no dia 23 de abril, com procissões católicas e atividades nos terreiros. A espada-de-são jorge é uma planta usada nos banhos e libações. É bom ter um pé de espada-de-são jorge plantado no jardim das casas que ficam, assim, protegidas de todo o mal.

SÃO SEBASTIÃO. São Sebastião nasceu na Narbônia e foi legionário do Imperador Carino. Era o chefe dos Pretorianos que, na antiga Roma, se encarregavam de distribuir a justiça. Como ele era cristão, e foi denunciado ao imperador, ele, depois de amarrado numa árvore, foi crivado de setas até a morte. É um santo muito popular no Brasil. É o padroeiro da cidade do Rio de Janeiro e dá seu nome a dois municípios fluminenses: São Sebastião do Rio de Janeiro e São Sebastião do Alto. Conta a lenda que, na batalha final que expulsou os franceses que ocupavam o Rio de Janeiro, São Sebastião foi visto, de espada na mão, entre os portugueses, mamelucos e índios, lutando contra os franceses calvinistas. O dia da batalha coincidiu, exatamente, com o dia do santo, celebrado no dia 20 de janeiro. São Sebastião é o protetor da humanidade contra a fome, a peste e a guerra.

SAPATOS. Os sapatos estão ligados às crendices do povo. O povo acredita que deixar um sapato emborcado, isto é, de solado para cima, está chamando a morte do dono. É comum o uso de sapatinhos feitos de madeira, osso ou metal, como adorno, para a pessoa ter boa saúde, boa sorte e situação financeira equilibrada. Tem também a estória daquele homem que era tão econômico que os filhos só usavam um sapato para não gastar o par, de uma só vez.

SAPOS. O sapo é muito usado nas bruxarias, nos feitiços. Escrever o nome de uma pessoa na boca de um sapo, costurando-a, em seguida, traz muito mal à pessoa que é dona do nome. Acontece, também, que os sapos chamam a chuva e são seus guardiães. Diz-se que a pessoa tem a boca de sapo quando tem a boca muito grande. Uma das cantigas de ninar mais conhecidas no Brasil é a do sapo-cururu, com a qual as mães embalam seus filhos: "Sapo-cururu/Da beira do rio,/Quando o sapo canta, ó maninha,/Diz que está com frio!..."

SARABAGUÉ. É uma dança da Santa Cruz, em Carapicuíba-SP, ao som de uma viola de dez cordas, pandeiros, cuíca e reco-reco.

SARAPATEL. O sarapatel foi trazido da Índia pelos portugueses. É uma comida que conta com os seguintes ingredientes: sangue de porco, uma garrafa de vinagre, uma colher de sopa de sal, todos os miúdos do porco, temperos secos e verdes, duas folhas de louro, meio quilo de banha. É uma comida considerada como pesada, significando que, depois de comer sarapatel, uma pessoa não pode dormir nem tomar banho. Para cortar o peso do sarapatel o povo costuma tomar, depois de saborear um gostoso sarapatel, um cálice de cachaça ou de batida.

SARARÁ. É uma formiga vermelha, de asas. É o mulato de cabelos vermelhos, como a formiga de igual nome.

SARNA. É uma dança do Rio Grande do Sul. Enquanto dançam, os pares fingem que se coçam, como se estivessem com sarna, uma coceira que ataca as pessoas e que só passa com enxofre.

SARRABULHO.1. O mesmo que SARAPATEL; 2. Diz-se que uma pessoa leva um sarrabulho quando é derrubado por uma onda do mar quando está brabo.

SARUÉ. É uma dança que mistura a quadrilha francesa com a americana e também com passos do sertão. É a corrutela de soireé ou sarau.

SAUÍ. Veja SAGUIM.

SAUIM. Veja SAGUIM.

SAÚVA. Também conhecida como saúba, carregadeira, formiga-de-roça e sobitu. As fêmeas são as tanajuras, um prato tradicional, e fazem parte do molho do tucupi. Há um antigo slogan que diz: "Ou o Brasil acaba com a saúva, ou a saúva acaba com o Brasil."

SEGREDO-DE-ABELHA. Diz-se quando qualquer coisa é muito cheia de mistério impenetrável.

SEIXEIRO. É a pessoa que engana, passa calote, não paga a dívida contraída.

SEIXO. É uma pedra que de tanto percorrer a correnteza dos rios ficou arredondada, perdendo as quinas.

SEM-PÉ-NEM-CABEÇA. Diz-se de tudo que não tem nexo, não tem sentido, não tem começo nem fim.

SENTINELA. É o mesmo que velório, em Pernambuco, Alagoas e Ceará. Na Paraíba, no Rio Grande do Norte e também no Ceará, é quarto ou guarda. Em São Paulo, é guardamento.

SENZALA. Casa onde moravam os escravos nos antigos engenhos e significa morada, habitação, ambundo. A palavra é de origem africana.

SEQUILHOS. De origem portuguesa, os sequilhos são rosquinhas de massa seca, com ou sem amêndoas, castanhas de caju ou amendoim, de forma arredondada.

SER-FILHO-DO-PADRE. Diz-se de quem tem muita sorte em tudo que faz, em tudo em que se mete, negócios, mulheres, agricultura, tudo, enfim.

SER-O-CÃO-DO-SEGUNDO-LIVRO. Nas décadas de 20 e 30 o Primeiro e o Segundo Livro de Leitura, de Felisberto de Carvalho, eram adotados nas escolas primárias brasileiras. Mas era justamente no Segundo Livro de Leitura que os meninos daquela época se deparavam, a páginas tantas, com o desenho do Cão – como é mais conhecido o Diabo, o Satanás, o Demônio no Nordeste. Era uma figura terrível, de chifres, de cauda, botando fogo pelo nariz e empunhando um tridente, figura que causava medo na época em que tudo que se fazia era pecado e ainda existia o inferno. Daí a expressão popular ser-o-cão-do-segundo-livro com dois significados diferentes: a) como sinônimo de feio, horrível; b) significando danado de bom, inteligente, brabo, valente, bom em futebol, jogo de cartas, cantando, dançando, etc.

SER-UM-RAPADO. Ser um pobretão, não ter onde cair morto, nada ter de seu.

SERÁ-O-BENEDITO? Expressão popular equivalente a Será possível? É inacreditável!

SERAFIM. Santo italiano da Ordem dos Capuchinhos, canonizado pelo Papa Clemente X. Ele tinha uma das mãos tortas e as crianças costumavam brincar, assim: - "Uma esmola para São Serafim! Quem não der fica assim", diziam entortando uma das mãos.

SERENATA. Um pequeno grupo de rapazes entre os quais um toca violão ou piston e que, nas noites de lua, vão cantar à janela da moça pela qual um dos componentes do grupo está apaixonado. Alguns pais não gostam de serenatas e, às vezes, até mesmo atiravam ou derramavam urina sobre os rapazes da serenata.

SERENGA. É o canto entoado pelos romeiros por ocasião da festa do Divino Espírito Santo quando, remam, em suas canoas, para o encontro festivo das duas bandeiras, rio abaixo e rio acima.

SERENO. Ficar no sereno é o ato de quem não é convidado e fica do lado de fora, olhando, através das janelas, os bailes familiares.

SERESTA. Veja SERENATA.

SEREIA. A sereia é metade mulher muito bonita e a outra metade é peixe, que seduz os pescadores, fazendo com que eles morram afogados.

SERICÓIA. É um pássaro, uma espécie de saracura que, quando canta, está anunciando que vai chover.

SERPENTE. A serpente tem muito valor na sabedoria popular. Ela significa vida, força, mistério. O povo acredita que uma serpente cortada ao meio vira duas serpentes. Quando a serpente entra num rio, deixa o veneno fora d’água, e se morder uma pessoa, por mais venenosa que seja a serpente, a pessoa nada sofrerá. Se uma mulher grávida passar por cima de uma serpente, esta morrerá. Depois que Deus fez o mundo, o Diabo, muito invejoso e mau, pediu-lhe licença para também fazer seus bichinhos e tanto suplicou que Deus atendeu a seu pedido. O Diabo, então, fez a serpente, a cobra. O homem do interior tem seus remédios contra as picadas de cobras venenosas. Os rezadores também têm suas rezas para combater o mesmo mal.

SERRAÇÃO-DE-VELHA. Serra-a-velha é uma brincadeira muito antiga, trazida pelos colonizadores portugueses, e que consiste no seguinte: um grupo de pessoas se reunia à porta de uma velha e, chorando, gritando, com um serrote, serravam um pedaço de madeira, gritando "Serra-a-velha!". Às vezes o serra-velha terminava em tragédia quando os familiares da pessoa que estivesse sendo serrada disparava velhas espingardas contra os serradores. Pessoas até jogavam água quente ou urina sobre os serradores. A brincadeira acontece durante a Quaresma, até o Sábado de Aleluia. Em algumas cidades do interior nordestino ainda persiste esta brincadeira.

SERRANA. É uma dança dos fandangos do Rio Grande do Sul.

SEXO. Prever qual é o sexo da criança que vai nascer, é uma tradição corrente e popular na Europa. Foi o colonizador português o responsável pela divulgação dessa tradição entre nós. Vejamos como saber qual o sexo das crianças que ainda vão nascer: 1. Ferver um quiabo e, se ele se abrir depois da fervura, nascerá uma menina e, em caso contrário, será um menino; 2. Dá um talho num coração de galinha e fazê-lo cozinhar; se o coração conservar o talho aberto, nascerá uma menina e, se ficar fechado, nascerá um menino; 3. Põe-se uma folha de salsa na chapa do fogão; se a folha se encrespar, ficar encolhida com o calor, nascerá uma menina e, se não encolher, nascerá um menino; 4. Ao subir numa escada se a mulher grávida começar a subir com o pé direito, nascerá um menino e, em caso contrário, uma menina; 5. Pedir à mulher grávida que mostre a mão; se a estender com as costas da mão para cima, nascerá um menino e se mostrar a palma da mão, nascerá uma menina; 6. Se o ventre da mãe for pontudo, nascerá um menino e, se for arredondado, nascerá uma menina; 7. Se o feto for muito buliçoso, nascerá um menino e, se não for buliçoso, nascerá uma menina; 8. Manda-se, também, que a mulher fique em pé, encostada numa parede e pede-se que ela comece a andar. O sexo da criança depende do primeiro passo: se for dado com o pé direito, será do sexo masculino e, se for dado com o pé esquerdo, será do sexo feminino; 9. A primeira pessoa que bater em casa, no momento em que a mulher começa a cortar o enxoval do filho, também indicará o seu sexo; se a pessoa que bateu na porta da casa for um homem, a criança será do sexo masculino e, se for mulher, a criança será do sexo feminino; 10. Pelo bico do seio da gestante também é possível saber o sexo do futuro filho: se a coroa que se forma em seu redor for escura, nascerá um menino, e se for clara, quase natural, será uma menina.

SILÊNCIO. Lara, Mata e Tácita são a mesma deusa do silêncio, festejada no dia 18 de fevereiro. No folclore, o silêncio está nas superstições dos remédios, do tratamento das mordidas de cobra venenosa, de guarda-defuntos, do ato de desenterrar dinheiro dado por almas do outro mundo, de viagem noturna, de promessa de acompanhar procissão e outros – são coisas que a pessoa tem que fazer calada, no mais absoluto silêncio. No Brasil, alguns jogos infantis em que perde o menino que quebra o silêncio, isto é, fala, grita, chora.

SILVIO ROMERO nasceu no dia 21 de abril de 1851, na cidade de Lagarto, SE. Fez o primário com o professor Badu e, aos doze anos, estudou os preparatórios no Rio de Janeiro, onde também cursou o Ateneu Fluminense. Com 17 anos chegou ao Recife para cursar a Faculdade de Direito, bacharelando-se no dia 12 de novembro de 1873. Cursou a Faculdade, naquele tempo com Tobias Barreto, de quem se tornou amigo. Em 1871 colaborou no Correio de Pernambuco, no Diario de Pernambuco, no Jornal do Recife e na A República. Do Recife passou a residir no Rio de Janeiro, publicando ensaios, artigos e muitos livros. Na área de Folclore, salientamos: Contos populares do Brasil (1882), Etnografia brasileira (1888) e Estudos sobre a poesia popular no Brasil (1888). Pertenceu à Academia Brasileira de Letras do qual foi um dos fundadores. Faleceu no dia 18 de junho de 1914, na cidade do Rio de Janeiro.

SIMPATIA. É uma prática muito difundida entre as diversas classes sociais, empregada com a finalidade de chamar chuva, curar doenças, afastar formigas, encontrar noivo, achar emprego, fazer chover, etc. Entre as muitas simpatias, lembramos: 1. Para menino aprender a andar: dar de beber à criança água da primeira chuva de janeiro; 2. Para câimbra: amarrar um barbante virgem na perna; 3. Para dor de dente: aplicar na cárie cera de ouvido de cachorro; 4. Para bronquite: matar uma barata, colocar num saquinho de pano e amarrar no pescoço do paciente; 5. Coceira: passar urina de vaca no lugar afetado; 6. Embriaguês: colocar um pedaço de limão no bolso do bêbado; 7. Insônia: colocar três folhas de alface na fronha do travesseiro; 8. Para dor de barriga: tomar chá feito com olhos da goiabeira; 9. Suor nas mãos: passar as mãos na parede de uma igreja; 10. Urina solta: urinar dentro de uma casca de ovo e enterrá-la num formigueiro.

SINHÁ. É como os escravos chamavam as mulheres de seus senhores. Sinhazinha eram as filhas da sinhá, também chamadas de Sinhá Moça. Com a abolição da escravatura, a palavra sinhá perdeu seu significado inicial para se tornar um apelido.

SINHÔ. Sinhô é uma corrutela de senhor e tem a mesma origem da palavra sinhá. Os filhos do sinhô eram sinhozinhos.

SIRI. 1. O siri é um crustáceo do mar e dos rios quando se encontram, das marés. Várias são as qualidades de siri: o siri de mangue, o siri mole, o siri capiba que é o maior deles. Siri também é a pessoa que carrega o facho aceso ou o lampião no bumba-meu-boi. Siri-donzelo é como se chama o rapaz tímido, palerma. Um adágio popular diz que "O siri magro carrega água para o gordo". Na culinária do Nordeste o siri é muito solicitado: a fritada, o casquinho e as patas do siri são pratos encontrados nos bares e restaurantes da orla marítima; 2. A expressão brabo-que-nem-siri-na-lata é usada para qualificar a pessoa quando está braba, fazendo barulho, encrenca, fora de si.

SIRIRI. 1. Dança popular em Mato Grosso; 2. Ronda infantil abrangendo todo o Nordeste . O siriri é o menino que fica no meio da roda, feita por meninos e meninas de mãos dadas, cantando e, em seguida, segura uma das meninas que o substitui no meio da roda e no canto.

SÓ-TER-BOCA. Diz-se de quem só é valente na boca, sem ter coragem para brigar.

SOCA. Quando a cana é plantada em terra apropriada, fértil, no fim de dez a doze meses dá o seu primeiro corte, ao qual conhecemos com o nome de planta; dos troncos nascem novos rebentos que, no ano seguinte, fornecem outra safra, que é a soca; no terceiro ano, tem-se a ressoca; e no quarto, a contra-soca. Acontece que da soca, ressoca e contra-soca já não floresce uma cana de boa qualidade.

SOGRA. No mundo todo as sogras, com raras exceções, são odiadas pelos genros. A sogra é motivo de pilhérias, de piadas, de anedotas em todas as línguas. O povo diz que: 1. Sogra não é parente. É castigo; 2. Sogra boa é a que já morreu; 3. Feliz foi Adão, que não teve sogra nem caminhão; 4. Deus fez a mãe e o Diabo fez a sogra; 5. Não mando minha sogra para o inferno porque fico com pena do Diabo; 6. Sogra e arado só prestam debaixo do chão; 7. Duas coisas matam de repente: vento pelas costas e sogra pela frente; 8. Morar com sogra é fazer vestibular para o céu; 9. Depois que minha mulher morreu casei com minha cunhada pra fazer economia de sogra; 10. Sogra, milho e feijão, só debaixo do chão. ANEDOTAS: 1. Dois professores conversavam: - conheço duas línguas que nenhum poliglota é capaz de dominar. – E quais são elas? – A língua da minha sogra e a da minha mulher... 2. Dizia um amigo: - Por que é que você tem tanta raiva dos médicos? – É porque eles salvaram minha sogra três vezes... CULINÁRIA: No que diz respeito à sogra a culinária é bastante rica: a) Beijo-de-sogra; b) Olho de sogra; c) Pudim de sogra. APELIDOS DA SOGRA: a) A cobra choca; b) A mexeriqueira; c) A caninana; d) O pára-raios; e) A besta fera; f) A intrusa; g) A maleitosa; h) A espingarda ruim.

SOLEIRA. Vários povos consideram a soleira da porta de entrada das casas como um lugar de respeito e até mesmo sagrado. A pessoa, ao entrar numa casa, antes de pisar na soleira tinha que tirar o chapéu, em sinal de respeito ao reinado doméstico. Não se deve varrer a soleira, lugar onde são enterrados os umbigos dos recém-nascidos, onde são colocadas as primeiras unhas cortadas do filho e os cabelos das filhas. Um mundo de crendices está, assim, associado à soleira.

SOPA. 1. Prato comum no mundo todo, feito com caldo de carne, arroz ou macarrão, verdura, tempero verde, a gosto; 2. Também é o nome que se dava aos pequenos ônibus antigamente. Na Bahia, a sopa tinha o nome de marinete; 3. Sopa também é tudo que é fácil, bom. Fazem-se sopas de peixe, de milho verde, de macaxeira, de jerimum, de inhame, de cabeça de peixe, etc.

SOPA-DE-CAVALO-CANSADO. Em Portugal, é muito comum. A sopa é feita de vinho tinto com açúcar, canela e pão torrado.

SORORGO. Os escravos trouxeram para o Brasil esta dança africana.

SOVACO-DE-COBRA. Nos restaurantes populares está tendo muita aceitação o sovaco-de-cobra, um prato feito com charque desfiada e assada, para ser comida com macaxeira. É parecido com roupa-velha, prato feito com carne de boi desfiada e assada.

SUJO-QUE-SÓ-PAU-DE-GALINHEIRO. Diz de tudo que é demasiadamente sujo, pessoas, animais ou coisas, e também das más pessoas sem caráter, sem moral.

SUMÉ. Sumé é um homem branco que, antes do descobrimento do Brasil, aparecia aso indígenas, ensinando-lhes o cultivo da terra e regras morais. Acredita-se que o sumé seja o mesmo São Tomé, também chamado de Zomé.

SUOR. As roupas íntimas são muito usadas na feitiçaria, principalmente quando estão molhadas de suor. Coar café, chá, chocolate numa camisa suada de uma mulher e depois de bebidos faz com que a pessoa que bebeu mereça ao amor da dona da camisa. Quando as crianças estão sob a ação do quebranto, o pai ou o parente homem mais próximo faz com que passem entre suas perna abertas, estando suados.

SUPERSTIÇÃO. É um sentimento religioso baseado na ignorância ou no medo e que leva as pessoas à pratica de coisas criadas pela fantasia das crendices. A superstição é universal. Para que as pessoas se defendam das superstições devem usar amuletos. Não é bom passar por baixo de uma escada. O número 13 é azarento. Ver gato preto dá azar. Dormir com os pés na direção da porta do quarto é chamar a morte. A pessoa deve dar o primeiro passo com o pé direito. O americano quando pisou o solo lunar colocou primeiro o pé direito e, depois, o esquerdo.

SURRÃO. Pequeno saco de couro cru no qual os vaqueiros e agricultores levam a comida preparada em casa, o bode, composto de farinha, carne seca e um pedaço de rapadura.

SURUBIM. 1. Peixe de bom tamanho encontrado nos grandes rios brasileiros, considerados o bacalhau nacional; 2. Também é o nome de um boi muito famoso, cantado em verso pelos poetas populares nordestinos.

SURUCUCU. É uma cobra muito venenosa, encontrada na região amazônica. Sua carne assada é usada pelos indígenas na cura do reumatismo; e se faltar a carne, o remédio é feito com seus ossos pulverizados em infusão de cachaça ou café.

SURURU. 1. É um molusco típico da culinária alagoana. Fritadas, empadas, refogados de sururu são uma delícia. O sururu é encontrado na lama dos brejos, das lagoas; 2. Sururu também significa, na linguagem popular, confusão, brigas, barulho entre pessoas.

SUSPIRO. De origem oriental, o suspiro é um doce feito de clara de ovos batidos, com açúcar branco e limão, assado em forno brando, em forma de flores, frutos, etc.

SUSTENTAR-A-PÃO-DE-LÓ. Tratar bem as pessoas, sem que nada lhes falte.
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O Dicionário completo pode ser obtido em http://sites.google.com/site/pavilhaoliterario/dicionario-de-folclore
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Fontes:
LÓSSIO, Rúbia. Dicionário de Folclore para Estudantes. Ed. Fundação Joaquim Nabuco
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