quarta-feira, 7 de abril de 2010

Eliane Potiguara (A Mulher que Despertou nas Asas do Criador )


Todos na comunidade, esperavam a volta de Jurupiranga. Muitos séculos haviam passado, mas na simbologia da volta deste homem viriam à sua trilha, vários outros homens de outros séculos que a mesma dor passaram.

Cunhataí convocou uma Assembléia Geral para definir como recepcionariam os guerreiros e ela, no seu interior de mulher, pensava como receberia Jurupiranga depois de tanto tempo’Quantos séculos! Filhos, netos, tataranetos, todos os ancestrais antes dos tataranetos estariam na grande festa’ Havia as plumagens e tintas mais lindas de toda a eternidade. As estradas pululavam de alegria, enlouquecidas para receberem e serem pisadas pelos guerreiros. As árvores, os frutos, os rios, os mares, os animais silvestres, as chuvas, os raios solares, as flores, as cachoeiras, as lagoas, as noites enluaradas e estreladas cantavam e despejavam húmus, néctar do amor e da prosperidade para endossar e adoçar a chegada de Jurupiranga. As notas musicais saltitavam no ar e as músicas se faziam por si só no espaço. Enfim, os cajueiros explodiam de risadas e soltavam belíssimos cajus amarelos e avermelhados pelo chão afora.

Cunhataí preparou uma grande festa nordestina, convocou todas as crianças da comunidade de todas as idades, convocou as velhas, as tias, as vizinhas e os homens para infra-estruturarem a festança.

Convidou todas as tribos brasileiras e estrangeiras. Os imensos cajus foram transformados, felizes, em uma grande caldeirada de doce. A comida foi preparada com amor para milhares de pessoas.

Mas quando a caldeirada do doce de caju ficou pronta, a calda escura começou a ferver de forma tão estranha, que aquela calda foi se multiplicando, triplicando tão rapidamente que numa fração de segundos inundou, como um rio, a escota onde faziam a comida. A escola estava empregnada dos vícios do neocolonizador. Cunhataí ao ver a escola totalmente coberta com a calda do caju desesperou-se. E agora? O que vamos fazer para que os guerreiros não vejam essa imundície?

Faltava apenas uma hora para a chegada de todos... Cunhataí convocou todas as crianças e jovens da comunidade para secar toda aquela calda. Era impossível secar todo o chão. As crianças alegres com a tarefa e lambendo os dedos, besuntaram-se naquela calda quente, que crescia cada vez mais, escorrendo como um rio e formando um grande lago. Cunhataí observava todo aquele fato e se perguntava porque acontecera aquilo, depois de tanto trabalho que tivera para recrutar as pessoas e estruturar seu povo? Cunhataí, naquele momento estava seca, sua pele enrugara, suas mãos amoleceram, suas carnes desapareceram, seus olhos comoriram-se com uma película azul enevoada. Estava enfraquecida, porque estava em pele e osso. Seus ossos jaziam no fundo do mar. Não havia mais nada a fazer. Estava em estado de choque brutal Totalmente esfacelada, aniquilada. Nunca mais veria seu amado!

No entanto, alguma coisa acontece fora de sua razão e consciência. Pensando que havia voltado à escola minutos depois, depara-se com uma surpresa. Sua mãe Alzael e sua filha Monaí coordenaram juntos com as lideranças e limparam toda aquela lambança da calda de caju. Limparam tudo, a festa foi um sucesso, os amigos, ficaram mais amigos, os inimigos esqueceram suas diferenças.

Cunhataí, pensando que ainda faltavam poucos minutos para o começo da festa se deparou com sua mãe e filha já efetuando outro trabalho de re-organizar as sobras da festa. A mãe lhe disse: Foi bom você não ter vindo, Cunhataí. Você dormiu, mas vieram todos os chefes e guerreiros. Todos foram recebidos pelas esposas e famílias, nós recebemos Jurupiranga. Foi feita uma grande homenagem a ele e ele se emocionou muito e chorou e chorou e chorou. Jurupiranga agora está na casa dos homens confabulando o nosso futuro e cada coisa está no seu devido lugar, não há nenhum problema. A alma foi lavada e as crianças e jovens cantam os cânticos sagrados. As crianças já podem comer a caldeirada de caju, tranqüilas.

Estagnada, perplexa, espantada, iluminada começou a soluçar por não ter assistido à festa que tanto queria e organizara anteriormente.

Era a chegada de seu marido depois de séculos, mas o povo assistiu e o povo trabalhou para isso. Todos os povos indígenas compareceram à festa e muitas horas, minutos, segundos, enfim... dias se passaram e Cunhatai dormira profundamente, o sono do descanso merecido, o sono da mulher. Ela descansara durante toda aquela situação de sujeira da calda do caju e da própria festança para receber os guerreiros.

A mulher, ainda tonta com o sono e com os olhos marejados de lágrimas, pensando que se havia passado alguns minutos, compreendeu que nào era importante estar presente, quando o povo está organizado, consciente.

Por um lado, as lágrimas de Jurupiranga foram derramadas pelo sofrimento e pela emoçào da chegada à sua terra natal e por outro lado as lágrimas de Cunhataí foram derramadas pela consciência de que seu povo realmente estava forte consciente, tranqüilo em suas convicções, povo ético e construtor da paz. Ambas as lágrimas _UNIDAS_ devolveram as carnes, as peles frescas e suaves de Cunhataí. Seus ossos se constituíram de novo e ela pôde realmente sentir suas costas livres, soltas. Havia se libertado de seu casco grosso e pesado, seu fardo.., e pela primeira vez uma grande alegria inundou seu coração e espírito _a felicidade da mulher indígena_ pois todos haviam trabalhado por esse objetivo.

Fonte:
Literatura Indígena: Sol do Pensamento. Organizado pelo Grumin/Rede de Comunicação Indígena e o Nei (Núcleo de Escrtitores Indígenas do INBRAPI)/Instituto Indígena Brasileiro para a Propriedade Intelectual)

Alexandra Dias Ribeiro (Vem dançar)


Comecei uma nova etapa na vida. Resolvi ir além das aparências. Além do que vejo.

Há uma senhora, cabelos curtos, escuros, magra, têm o andar meio manco, meio arrastando as pernas. Trás no rosto marcas do tempo, pele queimada pelo sol. Os dentes que ainda restam, manchados pela nicotina. Olhar triste melancólico, e com aquele brilho típico na pele de quem consome muito álcool. Tem como hábito sentar-se na calçada da avenida e algumas vezes pede a alguém que passa um real. Essa é Maria.

“Este é o meu pré-julgamento. Como estou disposta a ir além”...

Imagino Maria ainda criança, com seus sonhos, desejos; mas ainda muito jovem para entender o significado da palavra “futuro”. Ela cresce e por alguma razão seus sonhos são guardados no baú do esquecimento. Desde então sua vida tornou-se mecânica. Ao se levantar; lava o rosto toma um café, acende o cigarro... Louca por um “gole”. Tudo automaticamente, as rotinas diárias adquiridas através dos anos. O dia termina e ela pensa: “O que foi que fiz durante este dia? Já é noite?”. Antes de dormir faz uma oração. Chora pedindo a Deus uma benção. Triste inconformada adormece.

Um novo dia amanhece e ela acorda esperando um milagre, que aparentemente não veio. Inconscientemente se pergunta: “Cadê a benção que pedi?” Ela não percebe que o novo dia que nasceu, foi uma benção de Deus. Uma oportunidade de mexer no baú há tempos esquecido. Mas está cega para enxergar isso.

Talvez tenha motivos para se sentir deprimida...

Quando criança queria ser professora. Mas para sua decepção o pai não a deixou estudar além da quarta série do primário. Na opinião do pai estudo para mulher eram desculpas para safadeza. Casou-se cedo. Achando que assim se realizaria de alguma forma. Engravidou logo após o casamento, e para seu desespero o marido ficou desempregado, começou a beber e só parou com o vício quando morreu, deixando-a com uma criança de dois anos. Com a filha para criar Maria diplomou-se em lavadeira, “pós-graduação” em faxineira, “mestrado” em cozinheira e por fim “doutorado” em doméstica. Definitivamente aquilo não era o que havia sonhado para si. Contas para pagar, os alimentos do dia-a-dia que quase nunca tinham e remédios... Sempre faltava dinheiro para tudo!

Dinheiro... Como odiava o tal! Sempre que queria fazer alguma coisa, não podia pela falta de dinheiro.

Tudo o que Maria passou foi difícil! Mas não o fim. Existem vários tipos de pobreza. Mas a pior de todas foi a que transformou Maria em miserável: a falta de dignidade.

Imagino que em algum momento da vida, Maria teve a chance de não vivenciar tudo o que passou. Mas estava muito ocupada, olhando embasbacada um copo de cachaça e não percebeu que se trancava também no baú do esquecimento, junto com seus sonhos e esperanças. Deixando de fora apenas o medo.

Dezesseis anos se passaram.

Havia se passado muito tempo? Será que era tudo isso? Parecia impossível! Entretanto, sabia que era verdade. Os dias, os meses, os anos foram passando. E ela foi ficando. Queria gritar...

À noite enquanto se preparava para dormir, o sono não vinha. Mas não era de se surpreender que o sono não viesse, quando fechava os olhos aparecia em sua frente o vazio, o nada. Apenas o passado fazendo cobranças.

Estava tão atormentada pelo inevitável que tudo para parecia sem graça e sem sentido. Não prestava atenção no que acontecia a sua volta, alheia a tudo.

Da mesma maneira que aqueles pensamentos tomaram conta de sua mente, a resposta também veio. Tão clara que ela deveria ter percebido anos atrás. A resposta sempre estivera ali, mas por estar sempre atrás de um copo, fora cega demais, e orgulhosa. Sua filha era a esperança!

Não havia se dado conta que o tempo havia passado e aquela criança que ela dera a luz, estava prestes a trazer outra ao mundo. E ela não queria o mesmo futuro para aquele ser. A simples idéia de uma outra criança vir ao mundo a provocava calafrios. Já tivera uma experiência e não gostaria de ver a mesma história se repetir. Mas as coisas não podiam ser do jeito que ela gostaria que fosse.

Aquilo não podia ser verdade, a agonia era enorme e penetrante tanto quanto uma dor física, talvez até pior. Cobriu os olhos com as mãos em um esforço inútil de afastar a dor que escurecia sua mente. Precisava pensar e assimilar os sentidos das palavras e no que deveria acreditar e aceitar. Fechou os olhos e respirou fundo varias vezes. Para sua surpresa seus olhos estavam repletos de lágrimas -“Bom Deus, por favor, não permita que isso seja verdade.!

Havia tentado convencer a filha de que o futuro seria diferente, que podiam construir uma vida melhor. Porém, havia esperado tempo demais e agora era tarde, muito tarde.

Durante dois dias, não conseguiu dormir mais que duas horas por noite e não conseguia comer quase nada. Apenas bebia para acalmar a dor. Sempre que fechava os olhos via a imagem da filha a culpando por tudo. Havia tentado falar, mas ela virou a costa e foi embora levando junto às últimas esperanças. Agora Maria deveria conviver com isso pelo resto da vida e não sabia se conseguiria.

Estava tão exausta que seria capaz de vender a alma por uma única noite de sono, mas de preferência sem o peso da consciência esmagando-a. Consumiu em pouco tempo duas garrafas de cachaça, sem pensar duas vezes. E logo o álcool fez o efeito desejado.

Acredito que Maria não teme a morte. Sabe que para a vida ela já morreu. Está enterrada no baú do esquecimento. Dela, meu e seu. Dela o porquê já sabemos. Meu, pois me digno a ver, pensar e julgar. Seu, porque em algum momento da vida você esbarrou em alguma “Maria” na porta de um bar ou numa sarjeta qualquer e também fez o seu julgamento.

“Além do que vejo”...

Era tarde da noite quando Ângela, a filha voltou para pedir desculpas para a mãe, sabia que havia exagerado. O quarto se encontrava frio e escuro tão escuro que era impossível enxergar alguma coisa. Mesmo sem ver ela soube como sempre soubera sua vida toda que um dia isso iria acabar acontecendo. Sua mãe havia consumido muita bebida, se encontrava no momento em coma alcoólico.

Uma dor profunda lhe comprimiu o peito ela soube naquele exato momento que se algo acontecesse com a mãe, jamais se perdoaria, jamais seria a mesma. Um pedaço de si morreria. Mas não tinha tempo a perder, precisava chamar socorro.

Na vida existem idas e vindas!

Maria ouvia um som muito alto, que lhe causava uma terrível dor de cabeça. Queria falar para pararem com aquele som ensurdecedor; mas nem um som saia de seus lábios. Aos poucos percebeu que o som era a sirene de uma ambulância.

Devagar e dolorosamente juntou forças, lentamente abriu os olhos, percebeu que estava amarrada em uma maca. Erguendo os olhos, viu a filha acariciando sua cabeça.

Evitou encará-la, sentindo-se muito estúpida em sua atitude. Após ser medicada no hospital ainda sentia uma dor aguda e latejante parecendo ser capaz de derreter se cérebro.

Passou-se talvez horas e ambas permaneciam em silêncio.

Ângela não queria ser indelicada com a mãe. Por isso decidiu falar com tato.

Esta se sentia completamente sóbria e pronta para a tempestade... Que não veio.

- Desculpa... - começou Maria, mas foi interrompida pelo gesto da filha, para que se calasse.

- Mãe eu preciso falar... Fui muito egoísta ao falar aquelas coisas horríveis para você. Mas graças a Deus, consegui perceber a tempo de consertar o erro. Em nenhum momento você fracassou comigo. Foi muito corajosa se esforçando para me criar. E você está certa quando disse que não devemos fechar os olhos para a vida. Entendi o que você quis dizer. O Marcos, pai do meu filho, é responsável, tem um bom emprego, acabou com muita dificuldade a faculdade e quer que eu também volte a estudar. Estou pensando seriamente nessa hipótese. E preciso de você comigo. Para isso, exijo que você comece cuidando da sua saúde. Existe tratamento para pessoas que tem dependência alcoólica. Você está viva mamãe, e é isso o que importa! Vamos juntas lutar pelos nossos sonhos. E dar um futuro melhor ao seu neto. Tenho certeza que ele vai sentir orgulho da avó decente que tem. Gostaria que ensinasse a ele os belos mandamentos da vida, não mentir, não roubar, não matar, enfim, ensine que ele veio ao mundo por apenas um motivo: é da vontade do criador que ele busque a felicidade. E eu mamãe, te pergunto: - está preparada para lutar pela sua vida?

A mãe balançava a cabeça em um gesto afirmativo sem conseguir falar. Naquele momento se desmanchava em lágrimas, mas era de felicidade. Havia morrido a Maria infeliz e cheia de mágoa, e, dava lugar para outra Maria, cheia de expectativa diante do futuro e mais feliz.

Ângela, não sabia, mas acabara de ensinar para a mãe um mandamento muito importante da vida. Não desistir, sempre existe a chance de recomeçar.

E a “Vida” para Maria pareceu pela primeira vez mais leve e feliz. Como se sorrindo lhe estendesse a mão e em um doce convite lhe dizia:

- Sua música começou a tocar. Vem dançar!

Fonte:
Colaboração da Autora
Imagem = Red_off_elimination_by_hiliuyun

domingo, 4 de abril de 2010

Aparecido Raimundo de Souza (Recado a uma Menina Triste)

Havia tanto querer, tanto amor
em seu coração que podia bailar
com leveza no ar, voar e ser vagalume
brincando de acender e apagar em
noites brancas…provocando estrelas…
Destas paragens, a dona era
a poesia, versos feitos de luz… de ventos…
Uma flor que pouco durou, culpa da
mentira, nasceu o desamor…
Suas pétalas, as águas salgadas
levaram, o pássaro se calou… acabou…
Silenciou a menina triste…
(Marcia Tosto Torres)

Essas coisas, minha rosa em botão, são assim mesmo: você está imersa na era dos sonhos e é natural que pretenda vivê-los, sedutores que são. E o seu afeto faz com que as suas fantasias sejam generosas. Não se iluda. Não se engane com o que dizem os meus cabelos já querendo ficar brancos. A segurança que insinuam é uma farsa. Às vezes sou um repositório de dúvidas.

Não espere que eu possa indicar trilhas. Por mais que tenha andado, não disponho de trilhas sem surpresas.

Não se assombre minha menina triste, com antigos rostos gastos de anúncios de cigarro. O tempo não ensina tudo, muito menos impermeabiliza as almas, livrando-as de dissabores e incertezas. Não aposte, jamais, neste meu chapéu ensebado, comprado em lojinha de um real e noventa e nove centavos.

Se lhe pareço algum fazendeiro abastado, saiba que monto pessimamente e tremo nessas estradas de lama que se espicham por entre despenhadeiros. Receio lobisomens, sacis e mulas sem cabeça. Os fantasmas são como doenças daninhas. Nascem, vivem e morrem com a gente.

Sinto que a seduz o meu toque de alguma nostalgia antiga. Lamento muitíssimo ter que confessar os meus surtos de felicidade cada vez mais freqüentes, principalmente no verão. O sol tem o poder de dissipar angustias. Minhas pálpebras cansadas não são frutos de serenatas, como lhe parecem, mesmo porque, com essa onda de assaltos e barulho que as ruas fazem, os cancioneiros sumiam literalmente do pedaço.

Posso admitir que minha cara batida pelo tempo até guarde algum leve resquício de poesia contida, porém, as olheiras - estas são resultados de livros e jornais que me chegam - e sou obrigado a ler para me manter informado e lincado no mundo lá fora. Não jogue tudo na solidez de minha mão. Não saberia sustentar, qual de nós dois reclama mais o amparo e guia.

E este crônica simples? Por certo você acha que ela brota do nada... Quem dera! Você nem imagina quantas voltas na pracinha dos devaneios do coração e quantos copos de café com leite e horas em claro ela me custou. Como cansam meus pés, estas quimeras literárias.

Em verdade, vou e volto, volto e vou, mil quilômetros ou mais, para garimpar meia dúzia de pensamentos articulados.

Minhas cicatrizes são totalmente vulgares. Sepulte de uma vez para sempre as suas visões românticas.

Jamais duelei por qualquer moça bonita ou princesa, nem as de minha escola, quando usava calças curtas, suspensórios e estudava. O corte no meu nariz foi uma traquinagem infantil. O talho no joelho não é do cravo do calvário, embora talvez eu merecesse. E nem foi por me ajoelhar em demasia que herdei um problema de artrite nos dois dedões dos pés. A perna eu não quebrei esquiando nos Alpes, mas brincando num vôlei inocente.

Não se impressione com minhas tagarelices. Ela é sazonal. Sou papagaio ou sou coruja. Despedaço em miúdo minha timidez mal disfarçada e a dissolvo no meio dessa conversa tola.

Na roça, os cavalos que viajam a noite, vão farejando as trevas com seus olhos duros, firmes, incandescentes. Quando uma fagulha qualquer de luz pica a face de uma palmeira, e, então, coriscam no ar imagens estranhas e figuras disformes, os quadrúpedes empacam e não andam.

Minhas palmeiras reluzem aparições indescritíveis e eu, burro, emperro meus ímpetos e estanco meu verbo. Apesar de todo esse rosário de insatisfações, sinto que você me julga capaz de empolgar a ONU ou diante de um tribunal de bobocas vestidos a rigor deixar a todos boquiabertos e pasmos. Falar em público me é pesado. Tremendamente desconfortante e amassador. Antigamente, quando enfrentava as salas de audiências, parecia que aqueles juízes com suas togas pretas que sustentavam olhos abertos mirando minhas bochechas trêmulas, davam-me a impressão de que voariam todos a um só tempo rumo ao meu pescoço na captura da minha jugular.

A bem do que digo, dois ou três pares de olhos a menos, porque, por caridade, alguns dormitavam ante minha veemência judicial. Você só tem noticia de meus antigos amores conhecidos. Dalva, Carla, Marlúcia, Penha, Talita, Susete, Estefânia... Ninguém lhe informou dos que me repeliram. Na minha juventude, quando as gírias eram perenes e os ditos bucólicos, o repúdio não tinha a secura do atual “não tô a fim”, todavia, humilhava duplamente. “Sai de mim, abacaxi, que tomei leite”. A gente coalhava de constrangimento. Somente no fluir de ternuras, minha solidão se dissipava e alcançava o tamanho e a grandiosidade da luz dos meus sonhos mais perenes.

Mas, minha menina triste, por tudo o que acabei de dizer, não se afaste de mim somente para me fazer raiva. Não se distancie porque seus pais pediram, não deixe minha criança, de ficar comigo porque sua filhinha chora sua ausência.

Que importam os Mários, os Caleches, os Wellingtons, ou mesmo as Alices e as Isaltinas? Vamos viver esse amor bonito e formoso, esse amor puro e sem barreiras, até que um dia, bem, até que um dia bata a nossa porta, a realidade mortal e se intrometa no meio de nós e articule, ela própria (sem que eu e você estejamos esperando), os desencantos e desencontros outros que não encomendamos.

Fonte:
Colaboração do Autor

Sônia Sobreira (Crônica de um Carnaval Destronado)


Em silêncio, contemplo a multidão agitada. Tento ficar bem perto dos foliões. O brilho das fantasias é deslumbrante! Tudo parece belo e perfeito. Os rodopios dos passistas, a jinga das mulatas lindas, a cadência contagiante do samba, os confetes e serpentinas cortando o espaço e o fascínio dos carros alegóricos.

Observo ainda mais de perto os foliões: Descubro que o olhar deles não combina com o sorriso, mas só quem está bem perto, pode perceber esta realidade: "Um sorriso disfarça uma lágrima."

Carnaval! tradição, folclore, volúpia, império da carne, ou trégua de três dias para suportar a dor, a mágoa, as dívidas e o medo que fatalmente voltarão na quarta-feira de cinzas.

Carnaval, louca ilusão! Quantos sonhos desfeitos, quantos corações partidos e feridos! É belo, muito belo, não se pode negar, mas sua beleza é cruel e enganosa, não poupa aqueles que procuram esquecer os infortúnios, buscando nele, um prazer efêmero e escorregadio. Carnaval! Rei Momo destronado que não cuida dos seus súditos, que rouba a inocência e estufa o seu ventre com as desilusões dos seus escravos. Carnaval! hiena que em gargalhadas, fareja a carne dos que morrem.

Fontes:
Recanto das Letras.
Desenho = http://www.rodrigoloureiro.com.br

Sonia Sobreira (Livro de Trovas)


O encanto do teu olhar,
tão azul, provocador,
faz daquele que o fitar,
escravo do teu amor!


De estrelas toda bordada,
sem telhado a lhe abrigar,
a tapera abandonada,
no chão, abriga o luar.

AH! Saudade do passado,
tão presente e tão intensa,
que chego a ouvir teu chamado
buscando a minha presença!

A pérola é jóia rara,
de inestimável valor,
mas nem assim se compara,
ao preço do nosso amor!

Mesmo que a felicidade
destile prazer na vida,
resta sempre uma saudade,
dentro do peito escondida!

Foi difícil minha escolha,
mas tomei a decisão:
Deixo que o tempo recolha,
as mágoas do coração!

As gotas caem ao léu,
sem ninguém poder detê-las.
Será chuva lá do céu?
ou são lágrimas de estrelas?

Uma idéia, a mais ousada,
que em meu peito se escondeu,
deixou minha alma marcada
e mais um sonho morreu!

Um lenço acena do cais
em gestos leves, tristonhos,
trazendo a dor dos meus ais,
nas lembranças dos meus sonhos!

Um lenço acena do cais
em gestos leves, tristonhos,
trazendo a dor dos meus ais,
nas lembranças dos meus sonhos!

Se eu sorrir do meu fracasso,
nos tropeços da existência,
talvez me faça um palhaço,
mas ganhei mais resistência!

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Sonia Sobreira da Silva

Paraibana. Casada com o poeta Josa Jásper, mãe de duas meninas. Estuda Letras na Universidade Estácio de Sá, no Rio de Janeiro. Participa de concursos literários obtendo algumas vitórias. Ocupa a cadeira nº 3, patronímica de Aluisio Azevedo, no Cenáculo Brasileiro de Letras e Artes, sediado no Rio de Janeiro. Também faz parte do Sindicato dos Escritores do Estado do Rio Janeiro, da União Brasileira de Trovadores /RJ e outras entidades literárias.

Fonte:
Recanto das Letras

Pedro Du Bois (Da Injustiça)


Amaldiçoado em lágrimas
rasgo olhos ao horizonte

poente
inutilizo a noite
na chegada
em refúgio

(os cães ladram)

rememoro a hora
da notícia transmitida
palavra por palavra

revejo minha imagem
cristalizada
no congelamento
da lágrima depositada

(os cães farejam)

as dores se afastam
no distanciamento
necessário ao medo

o corpo estremece
ao se pertencer em dores

no horizonte hostil
da janela aberta
o futuro se depara
com a impertinência
do presente

(os cães comem)

afasto suas mãos das minhas:
o contato é lucidez
inoportuna na desesperança

a oração despercebida
rompe o silêncio
e se perpetua

afago o deslizar da hora
em horas subsequentes

(os cães se defendem)

murmuro o nada acontecido
e desacordo em sonhos

o retorno convive
com o fato
desproporcionado

revivo o outono em folhas
pelo chão

recupero a sanidade
e me faço cristal
de rocha esfacelado

(os cães se diferenciam)

sofro o instante
e gesto
o silêncio

o emudecer transmite
a incerteza da pergunta

na vastidão ampliada
da insensibilidade

(os cães desfazem)

posso perguntar
o que bem entendo:
mas não entendo

posso exprimir
a minha raiva:
mas não pretendo

posso aproximar
os olhos à fotografia:
mas não enxergo

(os cães confundem)

calendários dizem que os anos passam

o exercício diuturno de recuperar
o inconsciente e o aguardar
refulgente: recomposto

o exército lancinante dos ataques
distribui ossos que estalam

(os cães apavoram)

um dia destaco na pedra
o sinal: acordo

um dia acordo e na pedra
destaco o sinal

um sinal na pedra
é destaque quando acordo

(os cães se acovardam)

olho e enxergo
ouço e escuto
pego e sinto
levo à boca
e o sal amarga
o recesso de onde retirado

avaros dias de permanências
permanentes signos
aparentes esboços

o processo desarruma o fato
em procedimentos

(os cães arfam)

ouvidas as testemunhas
os peritos dizem
das especialidades

nada
nada

a improvável condenação
confundida em versos
na reversão da realidade

(os cães obedecem)

choro atravessar o espaço
desconsolado em fatuidades

remoço a fotografia
e me instalo diante
da orfandade

perder significa atos
ao despropósito
de continuar vivo
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Fonte:
Colaboração do Autor
Foto das Cadelas = José Feldman

sábado, 3 de abril de 2010

XVIII Congresso Brasileiro de Poesia convida


Caro Poeta,

Dentre todos os projetos desenvolvidos durante o CONGRESSO BRASILEIRO DE POESIA, o que mais vem repercutindo junto à comunidade escolar de Bento Gonçalves é o POESIA NA ESCOLA, que consiste na publicação das coleções “POESIA DO BRASIL” e “POETA, MOSTRA A TUA CARA”.

No ano de 2009, foram entregues para a Biblioteca Castro Alves distribuir às escolas do município 1.800 exemplares dos volumes 9 e 10 das antologias “POESIA DO BRASIL” e do volume 6 da antologia “POETA, MOSTRA A TUA CARA” e a previsão é de que este ano possamos chegar aos 2.500.

A exemplo do ano passado, as antologias serão publicadas com antecedência, para que cheguem às escolas no máximo no início do mês de agosto, possibilitando assim que os alunos possam conhecer um pouco do trabalho dos poetas que vão estar no evento em outubro.

As antologias serão publicadas no sistema cooperativado e obedecerão às seguintes normas:

POESIA DO BRASIL (VOLUMES 11 e 12)

1 - Custo por participação por volume: R$ 620,00

2 - número de páginas por participantes: 6, sendo 5 com poemas e a restante com biografia e foto do autor;

3 - número de exemplares que cada autor terá direito: 40 além dos 20 que cederá para distribuição por ocasião do lançamento da antologia e para as escolas.

POETA, MOSTRA A TUA CARA (volume 7)

1 - Custo por participação: R$ 240,00

2 - número de páginas por participantes: 3, sendo 2 com poemas e a restante com biografia e foto do autor;

3 - número de exemplares que cada autor terá direito: 30 além dos 20 que cederá para distribuição por ocasião do lançamento da antologia e para as escolas.

IMPORTANTE:

1 – Pagamento através de cheques pré-datados que deverão ser enviados juntamente com as provas revisadas

2 – A remessa dos exemplares será por conta do autor

3 - O lançamento oficial das antologias será nas noites dos dias 5, 6 e 7 de outubro, dentro da programação oficial do XVIII Congresso Brasileiro de Poesia.

Gostaríamos de contar com sua participação

Abraços

Ademir Antonio Bacca
Coordenador XVIII Congresso Brasileiro de Poesia
Proyecto Cultural Sur/Brasil

Aparecido Raimundo de Souza (Vila Velha Poética)


PRIMEIRO ENCONTRO

Noite... Sábado... Dezessete de agosto
de mil novecentos e noventa e três...
foi quando te vi pela primeira vez,
cruzando minha vida como um sol posto!

Na casa de meu peito não há mais desgosto,
Porque fugiram todas as amarguras de uma vez...
E ainda hoje sou feliz, mil vezes feliz, bem vês;
Por ter nosso encontro assim todo exposto...

Que este versinho perdure eternamente
E que o tenhas sempre vivo em tua mente,
Para num porvir o releres para nós...

E, ao fazê-lo, sussurre bem baixinho...
Que me ouvirás dizendo com carinho
Estes versinhos, com a tua voz!...

PERGUNTA VÃ

Que me vale a vida sem amor;
amor sem carinho;
carinho sem ternura;
ternura sem meiguice;
meiguice sem querer;
você em saudade;
saudade sem você?

- Nada!...

PRELÚDIO 3

Quando... No cálice de nossas bocas
(em ânsias loucas),
bebermos até a embriaguez dos nossos sentidos,
o puro vinho do amor
que o desejo oferecerá...

Com nossos corpos abraçados
num só enraizados,
nossa alma tudo esquecerá...

Então falaremos coisas sem tino
e sem nexo,
num sensual desatino
ante a volúpia do sexo...
....................................
E nosso espírito a balouçar,
será um barco sem leme, sem vela,
perdido... Em alto mar...

PRELÚDIO 6

Hoje eu soube apreciar com emoção
O feliz casal que despertou sorrindo...
A MANHÃ e o SOL!
Ambos com um misto de beleza e esplendor
Num canto primaveril de amor infindo...

Senti-me também assim,
Como eles, feliz e esplendoroso
todo cheio e orgulhoso
Com o coração a cantar em mim!...

É porque hoje... Hoje irei vê-la
Com o seu sorriso de criança
Falando-me de carinho e paixão
E de nós dois...

Sem mais receios, ou embaraços...

Hoje, serei o SOL e ela, a MANHÃ,
Feliz e envolta
Bem solta
Em meus braços!...

PRELÚDIO 7

O céu, a terra, o mar,
Tornaram-se me
tão incomuns;
tão pequeninos;
tão sem destinos,
como se tivessem perdido a cor.
Foi depois que vi
e senti,
a luz dos meus olhos
grudada nos olhos
do teu amor!...

À ESPERA...

Aqui me pego, à tua saudade, esperando
que venhas e traga ternura em teus traços...
Porém, passam-se as horas... E já desanimado
Cismo que não chegarás até meus braços

E meus anseios vão se arrastando
em tua ausência c’os meus embaraços...
Tão depressa as horas foram passando,
Que até ouço a saudade e seus passos...

Perto de mim, muita gente segue cruzando
indiferente ao anseio de que desejo ver-te
e que aos poucos estou me definhando...

Esgotou-se o tempo... Esperar-te foi em vão.
Mas a angústia louca de amanhã rever-te,
faz regressar feliz este meu coração!…

ACABOU

Fim de romance... Nossa despedida.
E os teus olhos nada revelaram...
Nem sequer um instante vacilaram,
Na hora triste da cruel partida!

Chaga imensa se abriu em minha vida
Desde o instante em que se afastaram
Nossas almas que sempre caminharam
Juntas, unidas, numa mesma lida.

Apartaram-se. Fim do nosso amor
...Melhor assim...
Sigamos, pois, esse destino enfim,
Sem queixa, lamúria, ou rancor,

Saiba, tudo farei para um dia esquecer...
...Sem sofrer...
Mas... Não! O que estou a dizer?!
Oh! Não te vás! Não me deixe meu amor!...

CHUVA E SAUDADE

Cai a chuva... É triste o dia...
A manhã é cinzenta e baça...
E eu mudo vejo a chuva fria,
A correr de leve na vidraça...

E a chuva cai... Cai e não passa...
Nem sequer a chuva estia...
Para que um pouco se desfaça,
A saudade de quem eu tanto queria!...

Qual essa vidraça, está meu rosto...
E meus olhos não querem desanuviar...
É por demais sofrido o meu desgosto...

Aumenta a chuva e com ela a minha dor...
Soluço qual criança perdida, sem cessar,
Na incerteza de ao menos rever-te amor!...

REGRESSO

Que fazes aqui?!
Mandaram-te embora
E somente agora
vens procurar
o teu ninho antigo
para te abrigar?!...

Pobre coitada!...
Por que fostes assim desprezada?...
...tamanha maldade fizeram contigo...

Mas, se vens para ficar
Com este primeiro
E verdadeiro
amigo,

Podes entrar... Venha, SAUDADE,
Fique comigo!...
=====================================

Aparecido Raimundo de Souza, paranaense de nascimento, reside em Vila Velha, no Espírito Santo, jornalista da Revista Isto é Gente, escritor e poeta. Possui vários livros publicados.

Fonte:
Colaboração do Autor
Imagem = Pintura do Convento, em Vila Velha

Nilton Manoel (Haicais Tiberenses)


1
Corredias choram
as águas do Preto... enfim,
os sonhos de sempre!

2
Sem profundeza
corre o Preto atrás do Pardo...
e as palmeiras,gemem.

3
Palmeiras ao léu;
rápidas águas deslizam
na história do Preto!

4
Um grão de feijão
no úmido algodão, revela
a transformação.

5
Parede de rua...
treme e geme um cobertor
em noite sem lua.

6
Na calçada dorme
um homem... e alguém joga água;
mas o espaço é público!

7
Na forquilha da árvore
uma tanga de papel
motiva conversas!

8
Tarde ensolarada...
feliz,Zé coça o nariz.
É fim de jornada!

9
Medo que amofina;
no chão corre um escorpião...
churrasco na China!

10
Carretel de linha;
venta e a pipa voa lenta...
A tarde definha!

11
Deitado em calçada,
triste o homem resiste
a vida do nada.

12
Canta o garnisé
no terreiro... O fazendeiro,
corre e faz café.

13
Gaiolas... cem pássaros!
o passarinheiro canta
e os pássaros choram...

14
Morada do Sol...
singelo, o girassol sonha,
no belo arrebol.

15
Mirante do bosque;
um João de Barro dispensa
ajuda...trabalha!

16
Famosa morada;
o Sol joga futebol,
na sua jornada!

17
Venta! Leve é o Sol...
um menino solta pipa,
sem usar cerol!

18
Quando uma moto-serra
entra em movimento. O vento
desfolha ao relento.

19
Tristonha a palmeira
arrancada do solo,
cai sobre o guindaste!

20
Calçadas da Vila?
mata-burros,basculantes;
dane-se o pedestre.
________

Fonte:
Colaboração do autor.

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Aparecido Raimundo de Souza (A Semana Santa do meu tempo)


Aos poucos, os atos mais tocantes e piedosos da Semana Santa, vão desaparecendo, consequência dos Concílios Ecumênicos Vaticanos I e II. Lembro-me, menino de calças curtas ainda, na católica Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção, com elevada devoção, assistia, juntamente com outros moleques do meu tempo, a chamada Procissão do Encontro. O velho Fabrício, sineiro da diocese, agarrava-se às cordas que pendiam dos gigantescos sinos de bronze, e, em dobrados graves e solenes, promovia a divulgação da saída do préstito do Senhor Bom Jesus dos Passos, que, no dia anterior, havia “fugido” para a Capela da Santa Casa, como que simbolizando a retirada do Cristo, para a sombria solidão do Horto das Oliveiras.

Em igual tempo, da Igreja do Rosário, partia a imagem de Nossa Senhora das Dores, que minha falecida avó, Martinha Maciel e outras irmãs da irmandade, haviam vestido com um manto de cor violácea. Essa estátua chamava-me deveras a atenção, porque tinha o coração trespassado por um alfanje de prata. Naquela época, eu não entendia bem, o que aquilo tudo significava, por mais que vovó, com toda a paciência deste mundo, me explicasse dizendo tratar-se de "uma espada de dor".

Desta forma, ambos os cortejos, oriundos de lugares opostos, com acompanhamentos, a se perderem de vista, convergiam para o Paço Arquiepiscopal, onde as estampas se encontravam, ficando uma em frente da outra: Mãe e Filho.

O andor do Senhor Bom Jesus dos Passos era enorme e bastante pesado. Vestia uma túnica roxa bordada em ouro, e, na cabeça, prendendo os longos cabelos em cachos, via-se uma coroa cheia de espinhos agudos. A face, exprimindo dores atrozes, estava banhada em sangue. Uma enorme cruz negra contrapesava sobre os seus ombros. Nos quatro cantos da padiola de jacarandá, carregada nada mais, nada menos, por oito homens, sobressaiam enormes ramos de alecrim aromáticos. O percurso desta escultura, durante toda a comitiva pomposa, sempre se dava mais longo que o outro, visto que teria de visitar os "Sete Passos".

O primeiro deles, conhecido como a “Oração no Horto”, por muitos anos aconteceu no "hall" do Hotel Bitú, na Praça Dom Pedro II. Em cada um desses "Passos", o coro do Seminário, constituído por vozes mistas de soprano, contralto, tenor e baixo, detinham-se e entoavam o "Stabat Mater Dolorosa”.

A pregação, seguida da bênção do Santo Lenho, constituía-se no ponto terminal daquela festividade. E recordo-me que o discurso -, por sinal longo e às vezes enfadonho -, acabava pronunciado por um orador sacro de renome, que geralmente vinha de São Paulo ou do Rio de Janeiro. Guardo nitidamente na minha memória, o exórdio de um daqueles vaticínios: "O vos omnes qui transitis per viam, atendite et videti si est dolor sicut dolos meus"...

O cerimonial da Semana Santa iniciava exatamente quarenta dias após a páscoa, às nove horas em ponto, sem nenhum tipo de atraso e, terminava no Domingo de Ramos, quase ao meio dia. Realmente, sete dias inteiros, com um conjunto típico de formalidades bonitas de ser visto, notadamente a chamada Missa Pontifical, celebrada pelo então arcebispo metropolitano, dom Manoel da Silva Gomes. Toda a corporação de sacerdotes, regular e secular, freiras, os irmãos da opa (capas roxas e golas vermelhas, sem mangas, com aberturas por onde se enfiavam os braços) e o povo, em geral, recebiam das mãos daquele Antífice, os ramos bentos ornamentados de flores e papel de seda colorido.

A seguir, vinha a "Quarta-feira de Trevas". Às dezenove horas, a velha Sé, apinhada de gente, acompanhava o Oficio das Trevas, O conjunto vocal do Seminário da Prainha, dirigido pelo jovem padre Joaquim Horta (Lazarista) trauteava, em "cantochão" essencialmente monódico o “De Lamentatione Jeremiae Prophetae”. Em paralelo, um irmão da ordem ia apagando, uma a uma, as treze velas que se encontravam acesas num grande castiçal preto, em forma de triângulo. De repente, todas as luzes da Catedral se extinguiam e, a derradeira, simbolizando o Cristo, se via, então, retirada acesa daquele candelabro e conduzida, em meio à escuridão, para detrás do altar. Durante o "Pater Noster", rezado pelo Arcebispo e igualmente pelos seminaristas, os fieis, ao som do tímpano, provocavam uma série de ruídos ensurdecedores, batendo no soalho, cadeiras e livros evocando os bulícios provocados pela tragédia do Calvário.

Quinta-feira, a benção dos Santos Óleos. A cura da Sé, Monsenhor Luiz Rocha e todos os vigários das mais diversas paróquias de Fortaleza sopravam suavemente sobre os vasos que continham o “óleo” dos catecúmenos, tendo, antes, feito três inclinações respeitosas, pronunciando as seguintes palavras: "Ave Sanctum óleum", aumentando de voz, à medida que iam se aproximando do sólio pontifical.

Eu achava muita graça dos padres velhinhos, vozes trêmulas e vacilantes, quase não conseguiam inclinar-se para pronunciarem aquelas invocações. À tarde, normalmente a Sé se enchia de gente para a cerimônia do lava pés. Muitos se acotovelavam para ficar perto dos doze mendigos e observar se o Celebrante beijava, mesmo, os pés dos pedintes e folgazões que representavam os apóstolos.

Solenes com a Quinta-feira, eram também a Sexta–feira, com a procissão do Senhor Morto, o sábado da Aleluia, com as descobertas dos Santos e o Domingo da Ressurreição com o Pontifical Soleníssimo e, com a entrada majestosa do Senhor Arcebispo, sob os acordes de "Ecce Sacerdos Magnus".

Deixo aqui -, Ad Perpetuam Rei Memoriam -, um pequeno e resumido quadro do muito que acontecia na Semana Santa dos meus idos de garoto e, evidentemente, na Fortaleza querida dos meus eternos sonhos de adolescente.

Fonte:
Colaboração do autor

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Trova 136 - Antonio Augusto de Assis (Maringá/PR)


100 Trovas Populares


A árvore do amor se planta
no centro do coração;
só a pode derrubar
o golpe da ingratidão.

A cantar ganhei dinheiro,
a cantar se me acabou.
O dinheiro mal ganhado
água deu água levou.

A desgraça do pau verde
é ter o seco encostado:
chega o fogo, queima o seco,
fica o verde sapecado ...

A dor por maior que seja
se comprime, se contrai.
Eu nunca vi dor no mundo
que não coubesse num ai.

Alegria dos meus olhos
é ver a quem quero bem:
quando não vejo quem quero
não quero ver mais ninguém.

Alma no corpo não tenho;
minha existência é fingida;
sou como o tronco quebrado,
que dá sombra sem ter vida.

Amar e saber amar
são dois pontos delicados:
os que amam, são sem conta:
os que sabem, são contados.

Amar e não ter ciúmes,
isso não é querer bem;
quem não zela o bem que ama,
muito pouco amor lhe tem,

A menina que eu namoro
e que me quer muito bem,
tem um sorriso que encanta
e vinte contos também.

Amigo, não voltes nunca
aos tens amores passados,
os mortos por mais queridos
devem ficar enterrados.

Amor com amor se paga:
nunca vi coisa tão justa;
paga-me contigo mesmo
saberás quanto te custa.

À noite quando me deito
eu rezo à Virgem Maria,
para sonhar toda a noite
com quem penso todo o dia.

Aqui tens a minha mão
ajunta palma com palma;
domina o meu coração,
toma posse de minha alma.

Aqui tens meu coração
e a chave para o abrir;
não tenho mais que te dar
nem tu o que e pedir!

As rosas é que são belas,
são os espinhos que picam,
mas são as rosas que caem,
são os espinhos que ficam ...

Bateram, abri por dó;
em a desgraça que entrou.
Fêz-lhe pena ver-me só
e nunca, mais me deixou.

Carvalho que dás bogalho,
porque não dás coisa boa?
Cada um dá o que tem,
conforme a sua pessoa,

Chamaste-me tua vida,
eu tua alma quem ser:
a vida acaba com a morte,
a alma não pode morrer.

Com pena pego na pena,
coro pena quero escrever,
caiu-me a pena no chão
com pena de te não ver.

Coração que a dois ama,
e que a dois quer agradar,
não ande enganando os outros,
veja com quem quer ficar.

Das lágrimas faço contas
com que rezo às escuras;
oh! morte que tanto tardas!
oh! vida que tanto duras!

Deixa ficar descontente
contigo lá quem quiser,
três coisas nunca se emprestam:
arma, cavalo e mulher. . .

Deus não criou infelizes...
Os infelizes se fazem...
Mas quem pode interromper
o destino que êles trazem?!

Dizem que o pito alivia
as mágoas do coração;
eu pito, pito e repito
e as mágoas nunca se vão.

É, se o sol ficasse preto,
nunca mais que ninguém via.
Mas teus olhos têm mais força:
eles são preto e alumia ...

Eu amante e tu amante,
qual de nós será mais firme?
Eu como o sol a buscar-te,
tu como a sombra a fugir-me?

Esta noite dormi fora,
na porta do meu amor,
deu o vento na roseira
me cobriu todo de flor.

Eu amava-te, ó menina,
se não fora um só senão:
seres pia de água benta
onde todos põem a mão.

Eu casei-me e cativei-me,
inda não me arrependi;
quanto mais vivo contigo,
menos posso estar sem ti.

Eu quero bem à desgraça
que sempre me acompanhou;
tenho ódio à ventura,
que bem cedo me deixou.

Eu quero bem, mas não digo
a quem é que eu quero bem;
quero que saibam que eu quero,
mas que não saibam a quem!

Estudante, deixe os livros,
e volte-se, para mim;
mais vale um dia de amores
que dez anos de latim.

Foste pedir-me a meu pai,
sem saber o querer meu;
em tudo meu pai governa,
mas nisso governo eu.

Fui no livro do destino
minha sorte procurar,
corri folhas encontrei:
eu nasci para te amar.

Há uma espécie de plantas
que vingam sem ter raízes...
Assim são certos sorrisos
nos lábio, dos infelizes.

Inda que meu pai me mate,
minha mãe me tire a vida,
minha palavra está dada,
minha alma está prometida.

Infeliz me considero
em todos os meus intentos:
quando penso achar venturas
não acho senão tormentos.

Já fui alegre e contente,
hoje não sou mais ninguém.
Já fui consolo dos tristes,
hoje seu triste também.

Já não posso ser contente,
tenho a esperança perdida;
ando perdido entre a gente,
nem morro nem tenho vida.

Lá vai uma ave voando
com as penas que Deus lhe deu,
contando pena por pena,
mais penas padeço eu.

Meu amor, vá pelo mundo:
ir pelo mundo é um bem,
o mundo também é regra
para aquêles que a não têm.

Meu pai julga que me tem
fechadinha na varanda.
Coitadinho de meu pai
que bem enganado anda ...

Minha mãe, case-me cedo,
enquanto sou rapariga,
que o milho sachado tarde
não dá palha, nem espiga.

Menina dos olhos verdes,
dá-me água pra beber;
não é sede, nao é nada,
é vontade de te ver.

Muito vence quem se vence,
muito diz quem não diz tudo
porque ao discreto pertence
a tempo fazer-se mudo.

Não me tentes com fortuna
para contigo casar:
eu prefiro mais quem tenha
coração para me dar...

Naquela noite saudosa
quando de ti me apartei,
cem passos não eram dados
quando sem alma fiquei,

Ninguém deve, neste mundo,
de alheias desgraças rir.
Quando o céu troveja, o raio
não faz ponto onde cair. ...

Ninguém descubra o seu peito
por maior que seja a dor;
quem o seu peito descobre
é de si mesmo traidor...

Ninguém se julgue feliz
por ter tudo em bom estado,
pois vem a tirana sorte,
faz dum feliz desgraçado...

No coração da mulher,
por muito frio que faça,
há sempre calor bastante
para aquecer a desgraça.

No ventre da Virgem Mãe
encarnou divina graça;
entrou e saiu por ela,
como o sol pela vidraça.

Ó alegria do mundo
por onde é que tens andado?
Tenho corrido mil terras,
e não te tenho encontrado ...

O anel que tu me deste
era de vidro e quebrou;
o amor que tu me tinhas
era pouco e acabou.

O coração e os olhos
são dois amantes leais,
quando o coração tem penas
logo os olhos dão sinal.

Ó cipreste verde, triste,
cópia da minha figura,
verde qual minha esperança,
triste qual minha ventura.

Olhos pretos matadores,
cara cheia de alegria,
um beijo na tua boca
me sustenta todo o dia,

O meu amor me disse ontem
que eu andava coradinha;
os anjos do Céu me levem
se esta cor não é minha!

Ó morte, ó tirana morte,
contra ti tenho mil queixas:
quem hás-de levar não levas,
quem deves deixar, não deixas!

O pouco que Deus nos deu
cabe numa mão fechada;
o pouco com Deus é muito,
o muito sem Deus é nada.

Os males que me circundam
são como as ondas do mar:
atrás de uma vêm outras,
sem nunca poder cessar.

Os olhos de meu benzinho
são jóias que não se vendem,
são balas que me feriram,
são correntes que me prendem.

Os teus olhos, pretos, pretos,
são como a noite cerrada.
Mesmo pretos, como são,
sem eles, não vejo nada.

O teu pé decerto cabe
num sapatinho chinês,
mas a vaidade não cabe
em toda a China, talvez!

Passarinhos, meus amigos,
eu também sou vosso irmão:
vós tendes penas nas asas,
eu tenho-as no coração.

Pobre louco apaixonado,
ai de mim! que não mais via,
que seu amor, pouco a pouco,
esfriava dia a dia.

Por te amar perdi a Deus
por teu amor me perdi,
agora vejo-me só,
sem Deus, sem amor, sem ti...

Privar-me de que eu te veja
isso, meu bem, pode ser;
mas privar-me de que te ame,
só Deus tem esse poder.

Quando eu te vi, logo disse:
lindos olho, para amar,
linda boca para os beijos
se a menina os quiser dar.

Quando o sobreiro der baga
e a cortiça for ao fundo,
só então se hão de acabar
as más línguas deste mundo.

Que cigarro tão cheiroso! ...
Me dê uma fumacinha.
Com a desculpa do cigarro
sua mão pega na minha.

Quem disser que a vida acaba,
digo-lhe eu, que nunca amou;
quem deixou ficar saudades
nunca a vida abandonou.

Quem inventou a partida
não sabia o que era amar;
quem parte, parte sem vida,
quem fica, fica a chorar.

Quem me dera ser a hera
pela parede a subir
para chegar à janela
do teu quarto de dormir.

Quem me dera ser as contas
desse teu lindo colar,
para dormir em teu seio
e nunca mais acordar.

Quem me dera ser a seda,
depois da seda o cetim,
para andar de mão em mão,
as moças pegando em mim!

Quem não nasceu prá sofrer
desafiar pode os fados,
que os próprios deuses respeitam
os entes afortunados.

Quem quiser ter vida longa
fuja sempre que puder
do médico, boticário,
melão, pepino e mulher.

Quem roubou o meu amor
deve ser um meu amigo ...
Levou penas, deixou glórias,
levou trabalhos consigo ...

Quem tem amores não dorme,
nem de noite, nem de dia;
dá tantas voltas na cama,
como o peixe na água fria.

Quem tiver filhas no mundo
não fale das malfadadas;
porque as filhas da desgraça
também nasceram honradas.

Quem tiver filhos pequenos
por força há-de cantar:
quantas vezes as mães cantam
com vontade de chorar.

Rouxinol canta de noite,
de manhã a cotovia;
todos cantam, só eu choro
toda a noite e todo o dia!

Venci! Cheguei a subir!
Nada! Ninguém me ajudou!
Mas, comecei a cair,
toda gente me puxou! ...

Vossos cabelos na testa
é o que vos dá tanta graça;
parecem meadas de ouro
onde o sol se embaraça.

Um suspiro de repente,
um certo mudar de cor,
são infalíveis sinais
de quem sofre o mal de amor.

Ter amor é muito bom
quando há correspondência;
mas amar sem ser amado
faz perder a paciência.

Todo homem diz que sim
depois de ter dito "não".
Primeiro fala o orgulho
depois fala o coração.

Triste daquele a quem falta,
na vida, que se evapora,
uma criança que salta,
que canta, que ri e chora!

Triste durmo, triste acordo,
triste torno a amanhecer.
Para mim tudo é tristeza,
serei triste até morrer.

Triste sou, triste me vejo
sem a tua companhia;
tão triste, que nem me lembra
se alegre fui algum dia.

Tudo o que é triste no mundo
tomara que fosse meu,
para ver se tudo junto
era mais triste do que eu.

Tu te queixas, eu me queixo ...
Qual de nós terá razão?
Tu te queixas do meu zêlo;
eu, da tua ingratidão.

São três coisas neste mundo
que um homem de gosto quer;
uma casinha asseiada,
um "pinho" bom e mulher.

Se esta rua fosse minha
eu mandava ladrilhar,
com pedrinhas de brilhante,
para meu bem passeiar.

Se eu pensara quem tu eras,
quem tu havias de ser,
não dava meu coração
para tão cedo sofrer.

Se mil corações tivesse
com eles eu te amaria;
mil vidas que Deus me desse
em ti as empregaria.

Se onde se mata um homem,
pôr uma cruz é preceito,
tu deves trazer, Maria,
um cemitério no peito.

Se tu fosses pé de pau
eu queria ser cipó:
vivia em ti enroscado
no teu corpo dando nó.

Sonhei contigo esta noite,
mas oh! que sonho atrevido!
Sonhei que estava abraçado
à forma do teu vestido!
==================

Fonte:
Organização de Luiz Otávio e J.G. de Araujo Jorge. 100 Trovas Populares. Coleção “Trovadores Brasileiros”. Editora Vecchi – 1959

Astrid Cabral (Amazonas Poético)


SORVETERIA

Dia de verão qualquer
no labirinto dos shoppings
os homens tomam sorvete.
Alguns engolem vorazes
receosos de que o mormaço
lhes arrebate a porção.
Outros, lentos, não acertam
com o creme fugaz o ritmo
da fome. Morrem na fonte.
Poucos os que se deleitam
fruindo o açúcar e a neve
sem dúvidas sobre a dádiva.
Existe quem torça a cara
às iguarias servidas
imaginando outras raras.
E quem enfeite o bocado
de caldas extras, perfume
de licores, nozes finas.
Todos um dia qualquer
terão suas taças vazias
lábios imóveis, mãos frias

MÃOS

No deserto da insônia
a mão, triste, me acena
nua de anéis e luvas.
Dedos gesto de adeus
anunciam o abandono
da matéria efêmera.
Dos campos do sono
a mesma mão me chama
cintilante de estrelas.
Tento alçar-me da cama
no encalço do convite
mas a carne me amarra.
E enquanto o corpo dura
fico entre a dor da perda
e o desejo do encontro.

POR TODA PARTE O RIO

Por toda a parte o rio
solta serpente a rojar-se
na paisagem da planície
cobra domada à força por
barrancas e algemas de pontes
ou cativo fragmento no pote
na palma côncava do púcaro
no copo translúcido e mínimo
leite a pojar o seio das cuias.
Em águas batismais comungo
e mergulho o arcaico corpo de
remotíssimo passado anfíbio
nós todos tão sáurios tão
irmãos de peixes e quelônios
e espelho o rosto em fuga por
águas igualmente fugitivas
e comigo vai o rio rente rindo
roendo ruindo riando submim
num subsolo de sonhos.

NO COLO DO ANJO

Empoleirado
na torre do meu sonho
um anjo resplandece.
Cílios cintilantes
estrelas nos olhos
ele me acena com plumas
e me abraça com asas.
Juntos vagamos
entre rastros de astros
a cavalgar nuvens
por planícies etéreas
até que me sinto serena.
É como se mudo dissera
não temas véus ou névoas
qualquer neblina passa.
Mas eis que então fala:
Não sejas cega, menina.
O olhar de Deus tudo abarca.
Só os homens têm pálpebras.

ÁGUA DOCE

A água do rio é doce.
Carece de sal, carece de onda.
A água do rio carece
da vândala violência do mar.
A água do rio é mansa
sem a ameaça constante das vagas
sem a baba de espumas brabas.
A água do rio é mansa
mas também se zanga .
Tem banzeiro, enchente
correnteza e repiquete.
Pressa de corredeira
sobressalto de cachoeira
traição de redemoinho.
A água do rio é mansa
corre em leito estreito..
Mas também transborda e inunda
também é vasta, também é funda
também arrasta, também mata.
Afoga quem não sabe nadar.
Enrola quem não sabe remar.
A água do rio é doce
mas também sabe lutar.
A água doce na pororoca
enfrenta e afronta o mar.
Filha de olho d'água e de chuva
neta de neve e de nuvem
a água doce é pura
mas também se mistura.
Tem água cor de café
tem água cor de cajá
tem água cor de garapa
tem água que nem guaraná.
A água doce do rio
não tem baleia nem tubarão
tem jacaré, candirú, piranha
puraquê e não sei mais o quê.
A água doce não é tão doce.
Antes fosse.

LÍRICO E LÚBRICO

Lírico e lúbrico
o amor brota lírios
e trinca a polpa de frutos.
De luz cintila o encontro
em que nos provamos a fundo
curvas de carne e matos de pêlo.

Além, avulso o tempo
rola expulso do céu
que no chão conquistamos.

E nos sentimos pássaros
em que plumas de nuvens
sobre o dorso pousassem.

E nos provamos raízes
investigando a terra
em seu segredo de barro.

E encarceirados somos
entre próximos cristais
de estrelas e rios.

Desastres de Amor

Mulher bule de louça
deixa-se pegar pela alça
e verte suor e sangue
em quantia exata.
Dei com o nariz
na porta do teu coração.
Foi sangria desatada
e a porta do pronto-socorro
também encontrei fechada.

Eu disse a meu coração:
Sossega pois tudo passa.
O nada não é perdição
mas estado de graça.

Desde que o mundo é mundo
a sina:
o amor, centelha
que faz o incêndio
e a cinza.
______________

Fonte:

Jornal de Poesia

Astrid Cabral (1936)



Astrid Cabral Félix De Sousa nasceu a 25/09/36 em Manaus, AM, onde fez os primeiros estudos e integrou o movimento renovador Clube da Madrugada.

Adolescente ainda transferiu-se para o Rio de Janeiro, diplomando-se em Letras Neolatinas na atual UFRJ, e mais tarde como professora de inglês pelo IBEU. Lecionou língua e literatura no ensino médio e na Universidade de Brasília, onde integrou a primeira turma de docentes saindo em 1965 em conseqüência do golpe militar.

Em 1968 ingressou por concurso no Itamaraty, tendo servido como Oficial de Chancelaria em Brasília, Beirute, Rio e Chicago.

Com a anistia, em 1988 foi reintegrada à UnB.

Ao longo de sua vida profissional desempenhou os mais variados trabalhos, fora e dentro da área cultural.

Detentora de importantes prêmios, participa de numerosas antologias no Brasil e no exterior.

Colabora com assiduidade em jornais e revistas especializadas. Viúva do poeta Afonso Félix de Sousa, é mãe de cinco filhos.

Obra poética:
Ponto de cruz. Cátedra, Rio de Janeiro, 1979.
Torna-viagem. Pirata, Recife, 1981.
Lição de Alice. Philobiblion, Rio de Janeiro, 1986.
Visgo da terra. Edição Puxirum, Manaus, 1986.
Rês desgarrada. Thesaurus, Brasília, 1994.
De déu em déu. Sette Letras/Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, 1998.
Intramuros. Secretaria de Cultura do Paraná, Curitiba, 1998
Rasos d’água. Secretaria de Cultura do Amazonas/Valer, Manaus, 2003.

Fonte:
Jornal de Poesia

quarta-feira, 31 de março de 2010

Márcia Maia (1951)



Márcia de Souza Leão Maia nasceu em Recife em 1951. Médica e poeta.

Teve seus poemas primeiramente publicados na Revista Poesia Sempre nº 15, da Fundação Biblioteca Nacional, em novembro de 2001. Apesar de ter começado a publicar recentemente Márcia é uma das poetas recifenses que vem ganhando destaque na cena literária pernambucana e o seu talento vem sendo reconhecido e seus livros premiados em vários concursos de poesia.

Em 2002, Espelhos foi premiado no 3º Concurso Blocos de Poesia; Cotidiana e virtual geometria ganhou o Prêmio Violeta Branca Menescal, concedido pelo Conselho de Cultura de Manaus, em 2007 e em 2008 o livro Onde a Minha Rolleiflex? venceu o Concurso de Poesia Eugênio Coimbra Júnior, promovido pelo Conselho de Cultura da Cidade do Recife.

Ainda nesse ano seu poema quase um réquiem obteve o segundo lugar no Prêmio Off-Flip.

Poeta articulada na intenet edita com regularidade os blogs tábua de marés e mudança de ventos e faz parte do site escritoras suicidas.

Livros:
Espelhos - Livro Rápido/Recife, 2003;
um tolo desejo de azul - Livro Rápido/Recife, 2003;
Olhares/Miradas - coleção Poetas de Orpheu, Livraria e Editora do Maneco, RS, 2004;
em queda livre - Edições Bagaço/Recife, 2005;
cotidiana e virtual geometria - Editora Muiraquitã/ Manaus, 2008.

Participação em coletâneas:
Antologia Poetrix - Editora Scortecci;São Paulo, 2002;
Antologia Escritas - Edição dos autores, 2004;
Poesia do Nascer (organizada por Mário Cordeiro), editada em Lisboa/Portugal, 2005;
Pernambuco, terra da poesia (organizada por Antônio Campos e Cláudia Cordeiro) – IMC/Escrituras, 2005;
Poesia nos Blogs, editada em Portugal - Apenas Livros Ltda, 2006;
Saboreando Palavras - SESC/MG, 2006.
Livro da Tribo - Editora da Tribo, 2004, 2005, 2007, 2008 e 2009.

blogs da poeta
http://tabuademares.blogger.com.br
http://mudancadeventos.blogger.com.br

Fonte:
http://www.interpoetica.com/

terça-feira, 30 de março de 2010

Trova 135 - Pedro Mello (São Paulo)

II Jogos Florais de Caxias do Sul - 2010 (Classificação Final)


UBT SEÇÃO DE CAXIAS DO SUL E ACADEMIA CAXIENSE DE LETRAS

TROVAS PREMIADAS

ÂMBITO NACIONAL = TEMA "TREM"

VENCEDORES


O trem da vida ao destino
chega no horário marcado:
- Por que não desce o menino
que embarcou tão animado?
Olympio Coutinho - Belo Horizonte/ MG

Na ferrovia do ardor...
a paixão dita o preceito:
sou trem que conduz... o amor,
sobre os trilhos do teu leito!G
Ailto Rodrigues - Nova Friburgo/ RJ

MENÇÃO HONROSA

Prevendo a grande viagem
a qual farei qualquer dia,
reservei uma passagem
para o trem da poesia.
Adilson Galvão - Nova Friburgo/ RJ
-

O “te esquecer” me conflita
e a razão manda que eu tente
mas...quando a saudade “apita”,
cresce um “trem” dentro da gente!
José Ouverney - Pindamonhangaba/ SP
-
MENÇÕES ESPECIAIS

Na estação do meu anseio,
nos perdemos de nós dois...
-Não foi o trem que não veio:
fui eu que cheguei depois...!
Pedro Mello - São Paulo/ SP

Lá vai o trem ofegante
montanha acima, e um véu
de fumaça esvoaçante
falseia nimbos no céu!
Francisco José Pessoa - Fortaleza/ CE

ÂMBITO ESTADUAL = TEMA "TRILHO"

VENCEDORES

Penso que assim como os trilhos
levam e trazem o trem,
o pai conduz os seus filhos
pelo caminho do bem.
Clênio Borges/ Porto Alegre -RS

Caminhando pelos trilhos
em noites enluaradas,
as estrelas lançam brilhos,
que salpicam as estradas!
Delcy Canalles/Porto Alegre -RS

MENÇÕES HONROSAS

Quando o percurso é distante
e os trilhos correm sem fim,
é bem nesse exato instante,
que Deus alia-se a mim!
Lisete Johnson/Porto Alegre -RS

Doces lembranças guardadas,
no peito, quem não as tem?
de caminhar de mãos dadas
pó sobre os trilhos do trem.
Neoly de O. Vargas/Sapucaia -RS

MENÇÕES ESPECIAIS

Belos gestos de inocência,
bênçãos de amor despertaram,
e, nos trilhos da existência,
só saudade carregaram...
Olga Maria Dias Ferreira/ Pelotas-RS

Quando um filho perde a trilha
perseguindo falsos brilhos,
toda a vida da família,
geralmente, sai dos trilhos.
Milton Sousa/Porto Alegre-RS

ÂMBITO MUNICIPAL = TEMA "COLHEITA"

VENCEDORES

Enquanto a vida se enfeita
com sorrisos e amizades,
vou preparando a colheita
das lembranças e saudades.
Alice Brandão

Cada semente lançada,
com amor e com cuidado,
traz a colheita sagrada
do sonho mais esperado.
Amália Marie Gerda Bornheim

MENÇÃO HONROSA

No momento da partida
queira Deus, Nosso Senhor,
que a colheita desta vida
seja só frutos do amor.
Lucí Barbijan

A nossa farta colheita
árduo trabalho revela:
uma estrada tão estreita
tornou-se fértil e bela!
Jussára C. Godinho

MENÇÃO ESPECIAL

A colheita da estação,
junto aos vastos parreirais,
traz a marca e o coração
dos mais nobres ancestrais...
Amália Marie Gerda Bornheim

Desde o plantio à colheita
quanto trabalho e beleza!
A família satisfeita
alegra de uva a mesa!
Jussara C. Godinho
---------
Fonte:
Colaboração de Giuseppe Stromboli Barbosa

segunda-feira, 29 de março de 2010

Tatiana Belinky (O Diabo e o Granjeiro)


Um pobre lavrador precisava construir a casa de sua pequena granja, mas não conseguia realizar esse sonho, pois o que ganhava mal dava para alimentá-lo, junto com sua mulher. Por mais economia que fizesse, não conseguia juntar o necessário para começar a construção.

Um dia, estando a caminhar pelo seu pedaço de chão, mergulhado em tristes pensamentos, deu com um velho esquisito que lhe disse com voz desagradável:

— Pára de preocupar-te, homem. Eu posso resolver o teu problema antes do primeiro canto do galo, amanhã cedo.

— Como assim? — espantou-se o lavrador.

— Tu precisas construir a casa da granja, certo? Pois eu me encarrego de construir e entregar-te essa obra, antes do canto do galo, em troca de uma pequena promessa tua.

— Que promessa? Não tenho nada para te oferecer em troca de tal serviço.

— Não importa: o que quero que me prometas é um bem que tu tens mas ainda não sabes. É topar ou largar.

O pobre granjeiro pensou com seus botões “o que é que eu tenho a perder?” e, sem hesitar
mais, respondeu ao velho que aceitava o trato e fez a promessa.

— Só que quero ver a casa da granja construída, amanhã, antes do canto do galo — observou
ele, ainda meio incrédulo.

E voltou correndo para casa, para comunicar à esposa o bom negócio que acabara de fechar.

A pobre mulher ficou horrorizada:

— Tu és um louco, marido! Acabas de prometer àquele velho, que só pode ser o próprio diabo, o nosso primeiro filho, que vai nascer daqui a alguns meses!

O homem, que não sabia da gravidez, pôs as mãos na cabeça, mas não havia mais nada a fazer: o pacto estava selado.

A mulher, porém, que não estava disposta a aceitá-lo, ficou pensando num jeito de frustrar o plano do diabo.

E naquela noite, sem conseguir dormir, ficou o tempo todo escutando apavorada o barulho que o demônio e seus auxiliares infernais faziam, ao construírem a tal obra, com espantosa rapidez. A noite ia passando, aproximava-se a madrugada.

Mas, pouco antes de o céu clarear, quando faltavam só umas poucas telhas para a conclusão da obra, a atenta mulher do granjeiro pulou da cama e, rápida e ágil, correu até o galinheiro, onde o galo ainda não despertara.

Tomando fôlego, imitou o canto do galo, com tal perfeição que todos os galos da vizinhança, junto com o seu próprio, lhe responderam com um coro sonoro de cocoricós matinais, momentos antes do romper da aurora.

Como um trato com o diabo tem de ser estritamente observado, tanto pela vítima como por ele mesmo, a obra em final de construção teve de ser parada naquele mesmo instante, por quebra de contrato “antes do primeiro canto do galo”.

E o diabo, espumando de raiva por se ver assim ludibriado e espoliado, se mandou de volta para o inferno, junto com seus acólitos, para nunca mais voltar àquele lugar.

Mas a casa da granja permaneceu construída, para alegria do granjeiro, faltando apenas umas poucas telhas que jamais puderam ser colocadas.

Fonte:
O diabo e o granjeiro. In: Revista Nova Escola, BELINKY, Tatiana. São Paulo, n. 84, mar. 1995.

Tatiana Belinky toma posse na Academia Paulista de Letras


Dia 15 de abril de 2010, às 19,00 horas, no Colégio Dante Alighieri, haverá a solenidade de posse de TATIANA BELINKY, a grande dama da Literatura e da TV e tradutora das obras russas no Brasil, na ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, com saudação do acadêmico FRANCISCO MARINS.

Tatiana Belinky é uma das escritoras de livros infantis mais conhecidas no Brasil. Curiosamente, ela nasceu na Rússia, em 1919, e veio pequena ao Brasil, com apenas dez anos de idade. Além dos livros infantis, Tatiana ficou famosa por ter sido responsável pela primeira adaptação do "O Sítio do Pica-Pau Amarelo", de Monteiro Lobato, para a televisão. Já recebeu muitos prêmios pelas suas histórias e trabalhos realizados na televisão e no teatro. Nesta entrevista concedida ao CRE, a escritora reafirma a importância do hábito da leitura para as crianças.

"Capitu que me desculpe, mas a Emília é a maior heroína literária brasileira". Esta declaração já virou marca registrada de Tatiana Belinky, que acaba de completar 91 anos e também de entrar para a Academia Paulista de Letras. "Nunca imaginei que fossem me indicar, fiquei até um pouco assustada. Mas fui eleita e agora vou à festa da posse. Estou pensando em quem convidar", diverte-se a escritora com o entusiasmo infantil que nutre desde menina, quando queria ser bruxa para praticar travessuras sem receio. Ruth Rocha, sua amiga e membro da Academia, participou do convite, o que a deixou ainda mais lisonjeada.

Ainda hoje, Tatiana é apaixonada por Monteiro Lobato e o coloca acima de todos os outros escritores que se dedicaram ao universo da criança, inclusive estrangeiros. O amor surgiu logo no primeiro contato, quando se mudou de São Petersburgo, à época parte da União Soviética, para São Paulo com sua família. Ela vinha munida de toda a cultura cultivada em casa - a mãe cantava, o pai escrevia poesia - e de três idiomas na ponta da língua (russo, alemão e letão). Logo aprenderia muito bem o português, e o adotou como a língua oficial de sua escrita.

Outra novidade de Tatiana são seus contos, entre eles "A coruja e a onça", republicados na coleção Ciranda Cirandinha, da Editora Paulus, que reúne grandes autores da literatura infanto-juvenil. Os volumes vêm engrossar a lista já impressionante de mais de 100 livros publicados, sem contar com as muitas traduções de obras-primas assinadas por ela, como dos contos de Hans Christian Andersen e dos Irmãos Grimm. Tatiana foi responsável, ainda, pela primeira adaptação de "O Sítio do Picapau Amarelo" para a TV, veiculada na década de 1950 pela Tupi. Seu marido, Júlio Gouveia, dirigia os episódios. Ganhou, mais tarde, o Prêmio Jabuti de Personalidade Literária do Ano em 1989. Além disso, ao longo de sua carreira, traduziu muitos compatriotas, entre os quais Gogol, Tchekhov e Tolstoi, mas a criança sempre foi seu público favorito. "Tomei conta do meu irmãozinho, que me ensinou metade de tudo que sei sobre crianças. Desde então, minha preferência é falar com os pequenos, e sei falar com eles", declara.

Tatiana Belinky em Xeque


Entrevista concedida a Carlos Moraes, para a Revista da Cultura.

Tem mulher mais brasileira que aquela cujo primeiro texto literário que leu em português foi uma história de Monteiro Lobato no verso de um folheto do Biotônico Fontoura? E cujo primeiro êxtase foi ver um cacho de bananas? Escritora, tradutora, educadora, roteirista pioneira de programas de TV para crianças – e russa. Cada vez que se fala de Tatiana Belinky a toada é sempre a mesma. Mais de 70 anos de Brasil, vários prêmios, mais de cem livros escritos em bom português (entre os mais recentes estão O Cão Fantasma e Histórias de Bulka), jeito brasileiro, maroto, de viver e falar, mas russa, todo mundo acrescenta. Então não tem jeito mesmo, é pela Rússia que vamos começar.

CM: A Rússia é grande. Onde mesmo a senhora nasceu?
Em São Petersburgo, que já foi Petrogrado, virou Leningrado e hoje é São Petersburgo outra vez. Uma cidade que surgiu do nada, como Brasília, com Pedro, o Grande trazendo arquitetos e artistas da Itália, da França. Meu pai estava lá completando seus estudos.

CM: Como foi sua infância?
Minha infância foi em Riga, na Letônia. A cidade é banhada pelo Rio Dángava, por onde os navios não paravam de passar a caminho do Mar Báltico. Da janela do nosso apartamento a gente via três grandes pontes, a dos carros, a dos trens e uma que os alemães construíram durante a guerra. No inverno o rio ficava congelado e pelo seu leito passavam pessoas, trenós puxados a cavalo... Na primavera, grandes blocos de gelo começavam a estourar, a explodir. Um barulho infernal, parecia um bombardeio. Um dia vi uma vaca desesperada em cima de um grande bloco de gelo a caminho do mar. As quatro estações eram dramaticamente bem definidas. Os crepúsculos eram lentos. Fui rever São Petersburgo quando fiz 9 anos. E sabe qual foi meu presente de aniversário? Uma visita ao Museu Hermitage. Nunca vou esquecer. As obras famosas, os grandes corredores, e eu ali, deslumbrada com tanta beleza.

CM: Os livros já faziam parte da sua vida?
Se faziam! Eu tinha uma estante bem provida. Nunca me lembro de mim sem livros. Meu pai lia ou me contava histórias. Aos 4 anos eu já sabia ler, primeiro em russo, depois em alemão. Em Riga, as placas das ruas eram em três línguas. Russo, alemão e letão, a língua da terra. Eu morava na Rua dos Navios.

CM: Por que a decisão de emigrar?
Por vários problemas sociais e políticos. A Letônia sempre foi um ponto de passagem. Volta e meia alguém pisava lá e tomava conta. Chegamos como imigrantes, em 1929. Sem nada. Minha mãe já era dentista formada havia dez anos, veio com seus instrumentos. Eu cheguei com uma correntinha no pescoço e um livro na mão. A correntinha tinha medalha do Moisés, o da Bíblia, que eu achava muito parecido com meu avô. O livro era do Turguêniev, de contos. Que tenho até hoje. Está ali, se desmanchando. Precioso, cheiroso. É o próprio cheiro do passado.

CM: E a chegada ao Brasil, como foi?
O navio aportou no Rio e foi um assombro atrás do outro. Minha primeira estranheza no Brasil foi ver o sol se apagar de repente, como uma lâmpada. As pessoas todas de branco e chapéu de palha. Mas sabe qual foi o meu maior susto? Quando vi lá no porto um cacho de bananas. Em Riga a gente só via banana uma a uma, e uma vez por ano. Meu pai trazia de longe. Ela era repartida entre os três irmãos. E, de repente, lá embaixo, aquele cacho enorme. A gente não sabia nada do Brasil, o máximo que imaginava da América eram os arranha-céus de Nova York. Mas aquele cacho de banana ali solto, imenso, de vários andares... Eu disse: “mãe, acho que estamos em Cocanha, aquele país imaginário onde é tudo fácil e a comida chega do céu...” Mais tarde aprendi que o nome científico da banana é Musa Paradisíaca. Por isso acho que, no Paraíso, não foi maçã coisa nenhuma, foi banana...

CM: Como foi sua transição do russo para o português?
Natural. Criança aprende as coisas naturalmente. Mas não perdi o contato com as minhas outras línguas. Logo que nos estabelecemos na Rua Jaguaribe (SP), onde minha mãe abriu seu consultório, nós nos inscrevemos e passamos a alugar livros em duas bibliotecas circulantes, uma russa e outra alemã. Dona Eva Herz, mãe dos fundadores da Cultura, era dona de uma dessas imprescindíveis bibliotecas.

CM: E sua descoberta de Monteiro Lobato?
O primeiro texto que me caiu nas mãos foi um folheto do Biotônico Fontoura com uma história dele no verso. Era uma história do Jeca Tatuzinho. Eu tinha pouco mais de 10 anos e gostei muito, já lia em português com fluência. Mais tarde, tive um sério problema na biblioteca do Colégio Mackenzie, onde estudava. É que não me deixavam pegar os livros que queria. Só podia ler livros para – meninas! Eu tinha uns 12 anos e fiquei escandalizada. Como uma escola pode ter livros para meninas e livros impróprios? Nem sabia direito o que era impróprio, mas já não gostei. Fui me queixar para meu pai. Minha mãe era feminista e comunista, mas, nesses casos, não intervinha. O poeta e contador de histórias era meu pai. Ele foi, sentou na escrivaninha e, em bom português, escreveu dois bilhetes, um para a diretora e outro para a bibliotecária, nos seguintes termos: “Minha filha Tatiana tem a minha autorização para retirar da biblioteca os livros que ela quiser ler”. Foi um escândalo. Então uma fedelha dessas pode ler qualquer coisa? Mas como o pai era a última instância, passei a ler o que quisesse.

CM: Dizem que até no seu casamento com o psiquiatra e escritor Júlio Gouveia os livros foram importantes.
Nosso casamento foi também um encontro de nossas estantes. Tem uma história engraçada. Éramos namorados, durante o dia ele estudava e eu trabalhava, de forma que a gente se encontrava à noite. Eu morava na Rua Itacolomi e depois do jantar íamos passear ali perto, na Praça Buenos Aires. Uma noite, lá estávamos nós conversando num banco quando de repente chega um guarda e pergunta: “mas vocês são namorados mesmo?” Respondi, irritada: “somos sim, e daí? Não pode?” E ele: “não, tudo bem, é que nunca vi namorado falando tanto, vocês só falam”. E a verdade é que tínhamos sempre muito assunto. Júlio era poeta, lia livros diferentes dos meus e tínhamos muitas convergências, mas também muitas divergências. É claro que a gente não só falava, mas aquela noite calhou de ter muito assunto e as discussões foram ficando muito acesas, para o espanto do guarda.

CM: Como começou, por volta de 1952, o trabalho de vocês no teatro?
Na festa de aniversário de uma menina de 4 anos, filha de amigos. Júlio gostava muito de teatro. Ele chegou e disse: “por que, em vez de uma boneca, a gente não dá de presente um teatrinho para essa menina?”. Ele foi e adaptou um trecho do Peter Pan, reunimos os irmãos, os amigos e, na festa, apresentamos o espetáculo. Foi um sucesso. Um funcionário da Secretaria de Cultura sugeriu que a peça fosse aumentada e apresentada no Teatro Municipal, em benefício de uma escola. Outro sucesso. Naquela época, não existia um teatro para crianças. Durante quase três anos fizemos isso. Foi assim que começou o nosso Teatro Escola de São Paulo, num aniversário de criança.

CM: E a televisão?
Nosso grupo foi ficando conhecido e a TV Tupi nos convidou para apresentar algumas peças. Era um teatro meio cinema. Com três câmeras se aproximando, se afastando... O público adorou e o telefone da emissora não parava de tocar: eram pais pedindo mais programas para criança na TV. Começamos com Fábulas de Esopo, fábulas alemãs, peças curtinhas, de uns dez minutos. O nome era Fábulas Animadas. Depois de algumas semanas, a Tupi nos pediu algo brasileiro. Foi então que entrou a adaptação do Sítio do Picapau Amarelo. O primeiro foi o Júlio quem escreveu. Ele tinha experiência, era diretor do teatro amador do Sesc. No segundo espetáculo ele disse: “agora é com você”. E foi assim que virei roteirista.

CM: O espetáculo, claro, era ao vivo. Como faziam em caso de falhas?
O grupo ensaiava muito, horas e horas, às vezes até tarde da noite. Eu já tinha sacado bem o funcionamento das três câmeras, mais o som, a iluminação. Às vezes a câmara passava de um cenário para o outro. Algum problema, o que era raro, a gente simplesmente trocava de cenário. Foi tudo muito heróico e maluco durante... doze anos! E tudo sem contrato. Não queríamos que ninguém interferisse. Comerciais, só antes e depois do espetáculo. O livro, donde saía a história, era mostrado para o telespectador.

CM: A senhora conheceu Monteiro Lobato?
Uma vez, bem antes da TV e mesmo do teatro, ele nos procurou. Eu já estava casada, tinha dois filhos. Uma noite o telefone toca e uma voz meio áspera lá do outro lado pergunta: “Aí é a casa do Júlio Gouveia?” “É, quem quer falar com ele?” “Aqui é o Monteiro Lobato”. A minha reação: “Ah é? Pois então eu sou o rei Jorge da Inglaterra?” Ele riu, me explicou que era ele mesmo, que havia lido um texto do Júlio sobre sua obra e perguntou se podia nos visitar. Às nove horas tocou a campainha. Júlio abriu a porta e ele foi logo dizendo: “Na sua idade, eu tinha a sua cara”. Engraçado que o meu pai disse a mesma coisa quando conheceu o Júlio. Todos queriam ser bonitos como ele!

CM: Como foi a visita?
Conversamos por umas duas horas. Na hora de fazer o café, telefonei para meu irmão Benjamin, pedi que viesse correndo conhecer Monteiro Lobato em pessoa. Tínhamos todos os seus livros, ele era objeto da nossa suprema admiração. Tanto que Benjamin me respondeu: “Isso é hora de trote?” Depois veio correndo e ficou meio paralisado diante da figura do Lobato. Quando apertou sua mão, como que se esqueceu de retirar. Depois me cochichou: “Nunca mais lavo esta mão”.

CM: Cinema, televisão e, agora, Internet. Que será do livro?
Nada jamais vai substituir o livro. O livro é algo seu, você leva aonde quer, lê, relê, é um amigo mesmo. Nada como ele para estimular a cabeça, a imaginação. Um mesmo livro é quantos leitores ele tiver. Porque cada um deles vai entender do seu jeito. Outro milagre: em cada releitura o livro é diferente para a mesma pessoa. O livro que alguém relê aos 40 anos vai dizer coisas diferentes daquelas da primeira leitura, aos 20... Um bom livro não tem começo nem fim, é infinito.

CM: Como os pais podem estimular a leitura?

Lendo, tendo livros em casa. Criança é curiosa, graças a Deus. Se vê um livro ali, fechado, ela vai abrir. Mas tem de ter o livro. O Ziraldo diz que ler é mais importante que estudar. Porque para a criança o importante não é estudar, é aprender. E ela aprende o tempo todo. Profissão de criança é aprender, mesmo quando está brincando. Especialmente quando lê, está aprendendo.

CM: O que é um livro bom para as crianças?
Minha neta disse uma vez: “Sabe, Tati, livro que não dá pra rir, que não dá pra chorar e não dá pra ter medo não tem graça”. É isso aí.

CM: O que um escritor de livros infantis deve levar em conta?
Senso de humor é importante. E não se preocupar muito com a moral da história. Com esse negócio de isso pode, isso não pode, isso é bonito, isso é feio, isso é de menino, isso é de menina... Desde pequena gosto de fábulas, mas sempre achei que a tal moral da história é um desaforo. A boa história é a que se explica por si mesma. E se a criança quiser entender de uma forma diferente? Mais original, mais bonita, mais dela? A criança sabe tirar suas conclusões. Ética é bom, mas não deve ser imposta. Criança tem muito senso de justiça.

CM: Dentre seus muitos livros, Coral de Bichos, O Grande Rabanete, tem um que se chama Limerique das Coisas Boas. O que vem a ser um limerique?
O limerique é um estilo de verso inspirado numa cidade da Irlanda, Limerick, e desenvolvido pelo poeta Edward Lear. São cinco linhas, três versos rimando, o primeiro, o segundo e o quinto; o terceiro e o quarto, mais curtos, rimam entre si. Isso dá ritmo, é ótimo para fazer algumas brincadeiras. Aprendi na Playboy americana. Claro que o autor lá se valia do limerique de uma forma maliciosa. Mas aí eu pensei: posso brincar com isso de outra maneira. A idéia é ressaltar uma coisa que é o contrário do que penso, e a criança, que não é nada boba, vai entender direitinho. Olha este exemplo aqui:
“Quem pensa que eu sou uma ogra
No seu pensamento malogra.
Língua bifurcada?
Só quando enfezada.
Porque eu sou mesmo é sogra.”

CM: A senhora é escritora de sucesso, foi pioneira na televisão e uma guerreira do livro. Qual é, na sua visão, a grande figura feminina da literatura brasileira?
Capitu e Machado de Assis que me perdoem, mas é a Emília, do Monteiro Lobato, por sua impertinência e sua independência. Ele conta que, quando estava ali, formatando seus textos, a Emília ficava ao seu lado, dando palpites, cobrando. Um dia ele perguntou: “Quem é você, afinal?” Ela respondeu: “Eu sou a independência ou morte

Fonte:
Revista da Cultura – edição 3 – outubro de 2007.