domingo, 5 de dezembro de 2010

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n.60)


Trova do Dia

Feliz Natal, com certeza,
tu só verás, meu irmão,
se o pão que sobra em tua mesa
chegar às mesas sem pão.
NEWTON VIEIRA/MG

Trova Potiguar

Nesta nova vinda sua,
papai Noel, eu proponho:
para os meninos de rua,
traga um “pedaço” de sonho!
FRANCISCO MACEDO/RN

Uma Trova Premiada


2002 > Garibaldi/RS
Tema > Natal > Menção Honrosa

No meu Natal é rotina
deixar tudo no “capricho”:
no peito faço faxina
e jogo as mágoas no lixo!
ÉLBEA PRISCILA DA SILVA/SP

Uma Trova de Ademar

No Natal, que o Deus menino
possa, por bondade sua,
mudar de vez o destino
dessas crianças de rua.
ADEMAR MACEDO/RN

...E Suas Trovas Ficaram

É Natal! Lá na favela,
no seu barraco sombrio,
ele encontrou na janela
o tamanquinho vazio!
CAROLINA A. DE CASTRO/PE

Estrofe do Dia

Vendo as noites de Natal,
dói na minha alma ferida;
prepara-se mesa farta,
enfeitada, colorida,
para o meu pesar profundo,
convida-se todo mundo
só Jesus, ninguém convida!!!
PROF. GARCIA/RN

Soneto do Dia

– Edmar Japiassú Maia/RJ –
SANTA CEIA.

Chega dezembro, o mês das esperanças,
dos votos de saúde... Paz ... Sucesso ...
O mês em que se faz o retrocesso,
num balanço de fatos e lembranças.

Dos Natais me declaro um réu confesso...
E o destino, o verdugo das cobranças,
manda as faturas das destemperanças,
cuja extensão de seu total não meço.

Embora em vinte e cinco de dezembro,
diferem os Natais de que me lembro,
ao som do “Jingle Bells” na noite insone...

E sirvo a ceia, órfão, mas nem tanto,
porque ELE está comigo, isto eu garanto,
na partilha do vinho e panetone!

Fonte:
Ademar Macedo

Lygia Fagundes Telles (Um Coração Ardente)


O velho voltou-se para a janela aberta, que enquadrava um pedaço do céu estrelado. Tinha uma bela voz:

... Mas eu dizia que na minha primeira juventude fui escritor. Pois é, escritor. Aliás, enveredei por todos os gêneros: poesia, romance, crônica , teatro... Fiz de tudo. E mais gêneros houvesse... Meti-me também na política, cheguei a escrever uma doutrina inteira para o meu partido. Mergulhei ainda na filosofia, ô Kant, ó Bergson!... Achava importantíssimo meu distintivo de filósofo, com uma corujinha encolhida em cima de um livro.

Calou-se. Havia agora no seu olhar uma expressão de afetuosa ironia. Zombava de si próprio, mas sem amargor.

Eu não sabia que não tinha vocação nem para político, nem para filósofo, nem para advogado, não tinha a menor vocação para nenhuma daquelas carreiras que me fascinavam, essa é a verdade. Tinha apenas um coração ardente, isto sim. Apenas um coração ardente, mais nada.

Meu filho Atos herdou o mesmo coração. Devo dizer-lhe que um coração assim é um bem. Não há dúvida que é um bem, mas um bem perigoso, está me compreendendo? Tão perigoso... Principalmente na adolescência, logo no começo da vida, no tão difícil começo. Meu pobre filho que o diga...

Calou-se apertando fortemente os lábios. Eu quis então romper o silêncio porque sabia do que aquele silêncio se carregava, mas não tive forças para dizer coisa alguma. O olhar do velho já denunciava as tristes lembranças que o assaltavam: qualquer tentativa para afastá-las resultaria agora inútil. E seria mesmo cruel.

Ele era inteiro um coração, prosseguiu o velho. E foi por saber tão bem disto que corri como um louco para casa quando me disseram que Leonor tinha morrido. Não, não fui nem pensei sequer em ir ao hospital porque adivinhei que ele não estava mais lá, devia ter ficado com a noiva até o último momento. Em seguida, devia ter voltado para casa.

Saí correndo pela rua afora, acenando para os carros que passavam já ocupados. Chovia, chovia horrivelmente. E eu acenava em vão para os carros, tentei mesmo agarrar-me a um deles, 'depressa, depressa, que meu filho vai se matar!' Corri tanto que quando cheguei, encharcado e exausto, atirei- me quase desfalecido nos degraus da escada. E ali fiquei de bruços, a olhar estupidamente uma formiguinha que se infiltrara numa fenda do degrau de pedra. A casa estava quieta. Quieta demais, pensei, erguendo-me de um salto. E precipitei-me aos gritos pela casa adentro, embora soubesse muito bem que ele não podia mais me ouvir, 'filho, não!'

O velho fez uma pausa. Acendi um cigarro. Que ao menos o ruído do fósforo riscado rompesse o silêncio que se abateu na sala. Fixei o olhar numa rosa do tapete puído. E só quando o velho recomeçou a falar é que tive coragem de encará-lo novamente. A imagem do filho, com o peito varado por uma bala, já passara para um plano remoto.

Atos herdou de mim esse tipo de coração. Gente assim ri mais, chora mais, odeia mais, ama mais... Ama mais, principalmente isto. Ama muito mais. E uma espécie de gente inflamável, que está sempre se queimando e se renovando sem parar. De onde nascem chamas tão altas? Muitas vezes não há nenhuma acha de lenha para alimentar o fogo, de onde vem tamanho impulso? Mistério. As pessoas param, fascinadas, em torno desse calor tão espontâneo e inocente, não? Tão inocente. No entanto, tão perigoso, meu Deus. Tão perigoso.

O velho soprou a brasa mortiça do cigarro de palha. Seu largo rosto bronzeado pareceu-me extraordinariamente rejuvenescido.

Como eu entendia bem aquele filho, eu que lhe transmitira o tal coração flamejante! Como se parecia comigo! Faltava-lhe, apenas, o meu senso de humor, ele matou-se com vinte anos.

Com vinte anos, eu já terminara três romances, duas peças, um livro de novelas e uma enorme epopéia da qual tirei a tal doutrina para o meu partido. Lia Bergson, Nietzsche, Shakespeare... Citava-os enfaticamente, com ou sem cabimento. E cada livro que lia, achava que era a obra máxima, meu guia; meu irmão, meu tudo. Isto até ler outro livro. Então punha de lado o anterior e imediatamente adotava o novo, achei o que queria, achei!... Tão desordenada avalanche de leituras me confundiu a tal ponto, que acabei por me perder e não conseguia mais me encontrar. Os heróis de meus livros me marcavam tanto, que de cada um ficava um pouco em mim: sorria como Fausto, investia como D. Quixote, sonhava como Romeu... Tive crises de angústia, fiquei completamente atordoado, infeliz. Como é que eu era afinal? Senti-me de repente vazio e perplexo, um personagem em absoluta disponibilidade diante do autor. E que autor era esse? Deus? Mas eu acreditava Nele? Não acreditava? A vida me dava náuseas. Mas não era ainda maior do que a náusea o pavor que eu tinha da morte? Que é que eu quero? Que é que eu faço?! - ficava a perguntar a mim mesmo até altas horas, a andar de um lado para outro no meu quarto enquanto meu irmão protestava no quarto vizinho, 'quer ter a bondade de ao menos tirar os sapatos?' As perguntas batiam em mim e voltavam e rebatiam como bolas de pingue-pongue numa partida infernal. Assaltava-me, às vezes, o desejo de poder, prestígio e ao mesmo tempo tudo me parecia de uma inutilidade atroz, 'para quê? por quê?' Meus amigos, tão descabelados quanto eu, vinham somar às minhas suas desesperadas dúvidas. E em debates que não acabavam nunca, varávamos a noite até a madrugada. Deitava-me com a garganta seca, exausto e deprimido, ainda mais perturbado do que antes. Um caos.

E eis que, aos poucos, foi-me dominando um desejo feroz de solidão. Senti-me o próprio lobo da estepe, incompreendido e só num mundo que já não falava a mesma língua que a minha. Abandonei o partido. 'Não é a doutrina que me decepcionou, mas os homens...', justifiquei no meu discurso de despedida, que por sinal achei uma obra-prima. Não acreditava mais nos meus companheiros de partido, naqueles homens que falavam o dia inteiro no bem coletivo, na felicidade do povo, no amor ao próximo. Tão idealistas, tão puros! E na prática, não conseguiam dar o mais miserável grãozinho de alegria à própria esposa, ao filho, ao cachorro... Diziam-se independentes, desapegados das vaidades mundanas. Mas quando eram postos à prova... Não era preciso mais do que um convite para uma festa importante, mais do que um aceno para a glória, não era preciso mais nada para transformá-los em reles bajuladores. E sua servidão era bem do estilo deles: fleumática, orgulhosamente dissimulada e por isso mil vezes pior do que a bajulação desmascarada. Tomei um nojo quase físico do gênero humano. Por que as palavras não coincidiam nunca com os pensamentos? Por que os pensamentos não coincidiam nunca com as ações?

Que farsa, pensei repugnado. Arranquei minhas malas de cima do guarda-roupa. Viajar, ir embora, sumir de qualquer jeito, para qualquer lugar! Não seria esta a solução? Minha mãe trouxe-me um bolo com vinte e uma velinhas, eu fazia vinte e um anos. Apaguei as velas de um sopro. E fui falar com meu pai:

- Vou abandonar os estudos, pai. Vou-me embora e não voltarei tão cedo.

Meu irmão, que era muito parecido com minha mãe, encarou-me friamente:

- Deixe de ser histérico, menino.

Meu pai ordenou-lhe que se calasse. E ouviu-me com a maior gravidade.

- A gente sempre volta, filho. Espere um pouco, não tome por enquanto nenhuma resolução.

Concordei em esperar. E olhei para minhas mãos vazias. Se ao menos pudesse agir! Cansara-me dos planos inúteis, das palavras inúteis, dos gestos inúteis... Fazer alguma coisa de útil, de nobre, alguma coisa que justificasse minha vida e que até aquele instante não tinha para mim o menor sentido. Mas fazer o quê?

'Amar ao próximo como a si mesmo', fiquei repetindo estupidamente, sem a menor convicção. Ah, sim, porque era fácil dizer, por exemplo, que eu não tinha nenhum preconceito de cor, que era completamente liberal nesse assunto, mas na hora de formar a rodinha dos amigos íntimos, daqueles que poderiam vir a se casar com minhas irmãs, nessa hora chamei por acaso algum negro para participar dela? Era fácil ainda encher a boca de piedade para com os assassinos e as prostitutas, mas o fato de não atirar-lhes pedras significava, por acaso, que um dia chegaria a tratá-los como irmãos? Como se fossem eu mesmo? Não passo de um egoísta, concluí. Um refinado hipócrita e egoísta. Sou capaz de me casar com uma priminha que apresenta todas as características de uma rameira mas jamais me casarei com uma rameira que seja uma santa em potencial. Hipócrita e egoísta! Burguesinho egoísta! - berrei dando um soco na vidraça da janela do meu quarto, enquanto minha mãe batia aflita na porta, certa de que eu me pegava ali dentro com alguém.

Sorri silenciosamente. O velho sorriu também. Seus olhinhos azuis pareciam agora maiores e mais brilhantes. Pôs-se a preparar novo cigarro. Era agradável o som da lâmina do canivete alisando a palha.

Tomei-me de tamanha irritação por mim mesmo que deixei de fazer a barba só para não topar mais com minha cara no espelho. Foi quando senti uma necessidade urgente de amar, de dedicar-me inteiramente a alguém, mas a alguém que precisasse de ajuda, de compreensão, de amor. Oferecer-me como bóia de salvação ao primeiro que me acenasse. No caso, não foi primeiro, foi primeira. E a bem da verdade devo dizer que ela não fez nenhum aceno: eu é que fui bater na sua porta para oferecer-lhe socorro. Seria um amor amargo, cheio de sacrifícios e renúncias, mas não era assim o amor que eu procurava? Acho que já disse que meu irmão era muito parecido com minha mãe. Eu saí parecido com meu pai que era um homem dos grandes impulsos, dos grandes gestos, das grandes paixões. Meu infortúnio parecia-me, até aquele momento, demasiado medíocre: ansiava agora por ser grandemente desgraçado, isto é, amar e ainda por cima escolher mal o objeto do meu amor.

Por uma dessas banais ironias, o prostíbulo situava-se no alto da Ladeira da Glória. Ladeira da Glória, doze. Lembro- me bem de que era um casarão pardo e velho, cheio de ratos que corriam sem nenhuma cerimônia pelos corredores e de mulheres que trançavam seminuas, com menor cerimônia ainda.

Encontrei-a fazendo as unhas. Na maioria das vezes em que a visitei encontrei-a lidando com seus petrechos de unhas ou então bordando miçangas em alguma roupa, tinha mania com miçangas. Se pudesse, creio que até nas cobertas da cama pregaria as tais continhas. E tinha mania com as unhas que eram realmente perfeitas. A cabeleira podia estar em desordem, a pintura do rosto, desfeita, mas as unhas ah, essas deviam estar sempre corretíssimas! Tinha a pele muito branca, com ligeiros vestígios de sardas e cabelos ruivos, muito curtos e encaracolados. Parecia uma cenourinha. Não era bonita, mas quando sorria... Havia tamanha ternura no seu sorriso, uma ternura assim tão espontânea, tão inocente, que chegava a me comover, 'como pode ser, meu Deus?! Como pode ser?!...' Ela voltava para mim os olhinhos redondos como bolinhas de vidro verde: 'Como pode ser o quê?' Então era eu quem sorria. 'Nada. Nada.'

Chamava-se Sandra, mas quando eu soube que seu nome verdadeiro era Alexandra, Alexandra Ivanova, emocionei-me. Descendia de russos. Vi nela uma personagem de romance e eu mesmo me vi na pele suave d'o Idiota, tão cheio de pureza e de sabedoria, 'que faz você sob este céu azul, provavelmente azul?' Atendendo o telefone, a dona da pensão não permitiu, no entanto, que eu encaixasse ali minha citação quando informou-me que Sandra não podia vir falar comigo porque estava muito ocupada. Desliguei atirando o fone no gancho:

- E ainda chama a isso de ocupação!...

Meu irmão, que estava ali ao lado, bateu-me tranqüilamente no ombro:

- Você me dá a impressão de estar o dia todo com a espada desembainhada. Não é cansativo?

Saí sem dar resposta. Mais tarde, bem mais tarde acabamos sendo ótimos amigos. Mas naquela época era impossível haver qualquer entendimento entre nós.

Alexandra tinha vinte e cinco anos e era completamente analfabeta. Mas eu queria uma criatura assim primitiva e xucra, atirada numa pensão de última classe. Seria preciso ir buscá-la no fundo, bem lá no fundo e trazê-la aos poucos para a luz, devagarinho, sem nenhuma precipitação. Era um jogo que exigia paciência, sim, e eu não tinha nada de paciente. Mas a experiência era fascinante.

Três vezes por semana eu ia vê-la, sempre no fim da tarde, quando o mulherio e os ratos pareciam mais tranqüilos em suas tocas. Costumava levar-lhe um presentinho, pequeninas coisas de acordo com minha discretíssima mesada: pacotinhos de bombons, lenços, enfeites de toucador... Assim que eu chegava ela olhava ansiosamente para minhas mãos, como criança em dia de aniversário. E recebia, radiante, as insignificâncias. 'Alexandra. A-le-xan-dra...' eu gostava de repetir lentamente, destacando bem as sílabas. Nos instantes mais graves da minha doutrinação, chamava-a dramaticamente pelo nome todo: Alexandra Ivanova. Ela então desatava a rir.

A princípio, tive um certo trabalho para explicar-lhe que nossa amizade tinha que ser uma coisa de irmão para irmã. Ofendeu-se um pouco:

- Quer dizer que você não quer nada comigo?

- Quero, Alexandra. Quero tudo com você. Mas antes, precisamos conversar muito.

Ela sorria. Quando sorria, chegava a ficar bonita.

- Você é complicado.

- Não, Alexandra, não é isso, mas o caso e que há coisas mais importantes na frente, precisamos antes nos entender, nos amar para então... Você precisa se preparar para ser minha. Minha para sempre, ouviu bem?

- Ouvi. Mas você é complicado, sim.

Mais facilmente do que eu esperava ela acomodou-se logo àquele novo tipo de relacionamento. Era de natureza mansa, indolente. Recebia-me com seu sorriso afável, desfazia o pacotinho, interessava-se alguns instantes pela novidade do presente e em seguida punha-se a lidar com suas eternas miçangas. Bordava miçangas verdes numa blusa preta. Antes que eu me fosse, acendia a espiriteira, preparava o chá e me oferecia uma xícara com umas bolachas que tirava de uma lata com uma borboleta de purpurina na tampa.

- Acho que você é padre - disse-me certa vez.

Achei graça e respondi-lhe que estava muito longe de ser isso. Não obstante, ela ainda me olhava com um sorrisinho interior:

- Acho que você é padre, sim.

Mostrei-lhe então o absurdo daquela suspeita mas até hoje desconfio que Alexandra não se convenceu nada com a minha negativa. E se não voltou a tocar no assunto, foi porque sua natural indolência a impedia de pensar mais de dois minutos sobre qualquer problema. Dissimulava ceder logo aos primeiros argumentos por simples preguiça de discutir.

- Você fala tão bem - ela me dizia de vez em quando, para me animar. - Fale mais.

Com a dolorosa impressão de que minhas palavras borboleteavam em redor de sua cabeça e se iam em seguida pela janela afora, redobrava meus esforços, tentando seduzi- la com temas nos quais ela parecia se interessar mais: Deus, amor, morte... Ela fazia pequenos sinais afirmativos com a cabeça enquanto ia bordando seu labirinto de contas. Quando eu me calava, pedia:

- Fale mais.

E daí por diante só abria a boca para cortar nos dentes o fio de linha da agulha.

Às vezes, eu tentava me convencer de que havia naquele silêncio de Alexandra profundidades insondáveis, mistérios, sei lá!... Sempre achara um encanto especialíssimo nas mulheres silenciosas. Agora tinha na minha frente uma que quase não falava. E então? Não era isso que eu queria? Não era mesmo um amor difícil aquele que eu buscara? Há vinte e cinco anos, praticamente há vinte e cinco anos ela estava naquela vida. A bem dizer, nascera ali. Vinte e cinco anos de mentiras, vícios, depravações. Não seria mesmo com meia dúzia de palavras que eu iria remover toda aquela tradição de horror.

Pedia-lhe o fim das suas tardes, nada mais do que o fim das suas tardes, à espera sempre de que espontaneamente ela fosse abrindo mão também de suas noites de comércio infernal. Mas não. Alexandra me ouvia muito atenta, retocava o esmalte de alguma unha, lidava com suas miçangas, oferecia- me chá com bolachas e assim que eu saía, recomeçava com naturalidade sua vida de sempre. Minha exasperação chegou ao máximo quando descobri que ela estava longe de se considerar infeliz.

- Mas Alexandra, será possível que você está contente aqui? - perguntei-lhe certa tarde.

- Estou contente, sim. Por quê?

Emudeci. Eu tinha justamente acabado de lhe falar sobre um pensionato de moças transviadas, para onde pretendia levá- la. Diante do seu desinteresse pelo meu plano, fiz-lhe a pergunta cuja resposta me deixou perplexo.

- Alexandra Ivanova, você está vivendo no inferno! Não vê que você está vivendo no inferno?!

Ela lançou em redor um olhar assustado:

- Mas que inferno?

Olhei também em torno: o usino de feltro azul, sentado no meio das almofadas em cima da cama, a mesa de toalete cheia de potes de creme e de pequeninos bibelôs, o guarda-roupa com malas e caixas cuidadosamente empilhadas no topo, o coelho felpudo em cima da cadeira, a mesinha coberta com uma toalha que devia ter 4 sido a saia de um vestido ramado... Num canto da mesa, duas xícaras, um bule, a lata de bolachas e o açucareiro com rocinhas douradas, presente meu. Todo o quarto tinha o mesmo ar indolente da sua dona.

- Para que um lugar seja o inferno, está claro que não é preciso a presença do fogo - comecei fracamente. Toquei-lhe no ombro. - O inferno pode estar aí.

Ela riu. Em seguida, ajoelhou-se, pôs a cabeça no meu colo e ali ficou como um bichinho humilde e terno. Tomei-a entre os braços. Beijei-a. E descobri de repente que a amava como um louco, 'Alexandra, Alexandra, eu te adoro! Te adoro!...

Naquela tarde, quando a deixei fui como um tonto pela rua afora, a cabeça estalando, os olhos cheios de lágrimas, 'Alexandra, eu te amo...' Crispei desesperadamente as mãos ao me lembrar de que dentro em pouco, de que naquele instante mesmo talvez um outro... 'Vou me casar com ela', resolvi ao entrar em casa. Minha família tinha que aceitar, todos tinham que aceitar aquele amor capaz de mover sol e estrelas, '1'amor che muove il sole e l'altre stelle'... Mas nem Dante nem eu sabíamos que era mais fácil mover a Via- Láctea do que mover minha pequena Alexandra da Ladeira da Glória para o Pensionato Bom Caminho.

Uma tarde, nossa última tarde, encontrei-a arredia, preocupada. Hesitou um pouco, mas acabou me dizendo que a dona da pensão não queria mais saber das minhas visitas.
Perguntei-lhe o motivo.

- Ela acha que você quer me tirar daqui para me explorar noutro lugar.

Fiquei sem poder falar durante alguns minutos, tamanha cólera se apossou de mim.

- Mas Alexandra... - comecei, completamente trêmulo. Dei um murro na mesa. - Chega! Amanhã mesmo você vai para o pensionato, está me entendendo? Já arranjei tudo, você ficará lá durante algum tempo, aprendendo a ler, a rezar, a ter boas maneiras...

Alexandra arrumava sua caixinha de miçangas. Sem levantar a cabeça, interrompeu-me com certa impaciência:

- Mas eu já disse que não quero sair daqui.

- O quê?!

- Eu já disse que não quero sair daqui, logo no começo eu disse isso, lembra? Sair daqui, não.

Respirei profundamente para readquirir a calma, como aprendera num método de respiração iogue.

- Será possível, Alexandra Ivanova, será possível que você também está pensando que... - comecei num fio de voz e nem tive forças para terminar.

- Pois se eu soubesse que você está querendo me agenciar, iria até de muito bom grado, o que não quero é essa história de pensionato. Pensionato, não.

Escancarei a janela que dava para o quintal da casa. Lembro- me de que havia ali uma mulher loura com uma toalha nos ombros, secando os cabelos ao sol. Acendi um cigarro. Minha mão tremia tanto que mal consegui levar o cigarro à boca.

- Alexandra, você precisa ficar algum tempo num lugar direito, decente, antes de... de nos casarmos. Já conversamos tanto sobre tudo isso, ficou assentado que você iria, já conversamos tanto a esse respeito! Será possível?...

Ela pousou em mim os olhos redondos. E falou. Foi a primeira e a última vez que a ouvi falar tanto assim.

- Não conversamos nada. Foi só você que abriu a boca, eu escutava, escutava, mas não disse que queria ir, disse?
Disse por acaso que queria mudar de vida? Pois então. Gosto daqui, pronto. Mania que vocês têm de querer me baldear, foi a mesma coisa com aquelas três velhas da Comissão Pró não- sei-mais-o-quê. Ficaram uma hora inteira falando. Depois escreveram meu nome numa ficha e ficaram de voltar na manhã seguinte. Graças a Deus não apareceram nunca mais. Agora vem você... Por que é que você complica tanto as coisas?
Primeiro, aquela história de ficarmos que nem dois irmãos, agora que tudo ia tão bem, tinha que me inventar essa bobagem do pensionato. Por que é que você complica tudo?

Fiquei aturdido.

- Quer dizer que você não me ama.

- Amo, sim. Amo - repetiu brandamente. - Mas estamos tão bem assim, não estamos? Além do mais, você pode amanhã mudar de idéia, me deixar. E meu futuro está aqui.

Aproximei-me dela. Comecei por arrancar-lhe das mãos os pacotinhos de miçangas e atirei-os longe. Em seguida, agarrei-a pelos cabelos e esmurrei-a tanto, mas tanto, que quase quebrei minha mão. Ela pôs-se a gritar e só se calou no instante em que a joguei com um safanão sobre a cama.
Disse-lhe então as coisas mais duras, mais cruéis. Ela enrolou-se nas cobertas, como um bichinho apavorado, escondendo o rosto que sangrava. E não me respondeu.

Um arrependimento brutal apertou meu coração. Tive vontade de me golpear na cara. E suplicar-lhe, de joelhos, que me perdoasse. Mas continuei inflexível:

- Devia era te matar.

Ela ergueu a cabeça. E como percebesse que eu não cogitava mais de agredi-la e muito menos de matá-la, levantou-se, lavou o rosto na bacia e choramingando, choramingando, pôs- se a catar as miçangas que eu espalhara pelo chão. Parecia mais preocupada com as miçangas do que com o próprio rosto que já começava a inchar. Em nenhum momento me insultou, como seria natural que fizesse. No fundo, tinha por mim um extraordinário respeito, o que me leva até hoje a crer que jamais ela tirou da cabeça aquela suspeita de ser eu um padre disfarçado.

Apanhei a capa e o Código Civil que caíra do meu bolso Tinha vontade de morrer.

- Você vem amanhã? perguntou-me ainda de cócoras, as mãos cheias de continhas vermelhas.

Confesso que até hoje não sei bem que resposta ela queria ouvir. Desci a escada. E só então compreendi o motivo pelo qual ninguém ouvira os gritos de Alexandra: o rebuliço na casa era total. O mulherio gesticulava, falava, chorava, trançando de um lado para outro como um punhado de baratas em chapa quente de fogão. Vi que o tumulto se irradiava de um quarto no fundo do corredor. As portas do quarto estavam escancaradas.

Entrei. Estendida na cama, coberta com um lençol, estava uma moça morta. Na mesinha ao lado, uma garrafa de guaraná e a lata aberta de formicida. No chão, os cacos de um copo.

Desviei da morta o olhar indiferente. Suicídio. E daí? Podia haver fecho mais digno para aquela vida enxovalhada?
Sentada na cama, uma mulher chorava sentidamente, assoando- se na toalha que tinha nos ombros: era a mesma mulher que eu vira no quintal, secando os cabelos. Três outras mulheres revolviam estabanadamente as gavetas da cômoda.

Fiquei a olhar a cena com a maior indiferença. Era essa mesma a vida e a morte que ela escolhera, não era? E então? Por que a surpresa? O escândalo?...

Acendi um cigarro e encostei-me ao batente da porta. Tamanho desinteresse acabou por irritar a mulher da toalha nos ombros e que parecia a mais ligada à morta. Voltou-se para mim:

E você aí, com essa cara... Está se divertindo, está? Vocês, homens, são todos uns cachorros, uns grandessíssimos cachorros, isso é o que vocês são! Por causa de vocês é que a pobrezinha se matou. Só dezoito anos, uma criança ainda!

- Criança que gostava deste brinquedo, hem? - perguntei lançando um olhar em redor. E tive que me abaixar em seguida para fugir do sapato que ela me atirou.

- Seu sujo! Ainda fala assim, o sujo! Saiba que Dedê era muito direitinha, uma menina muito direitinha. Todos os dias vinha se queixar para mim, que não agüentava mais, que tinha horror disto, que não via a hora de ir embora, 'quero minha mãe, quero minha mãe!' ela me pediu chorando tanto que não agüentei e chorei junto com ela também. - A mulher fez uma pausa para assoar-se furiosamente na toalha. - Quantas vezes ela me disse que queria viver uma vida igual à de qualquer moça por aí, com sua casa, seu marido, seus filhos... Caiu aqui, mas ficou esperando que algum dia viesse um homem bom que a levasse... Mas vocês são todos uns bandidos. Quem pensou em dar a mão para ela? Quem?

Pela primeira vez olhei realmente a morta. Tinha no rosto fino uma beleza frágil. Deixei cair o cigarro.

- Ela esperou então que alguém viesse?

- Esperou, esperou. Mas de repente perdeu as forças, foi isso... Bem que ela me disse ainda ontem que não ia agüentar mais, bem que ela disse! Mas a gente diz tanta coisa, eu não acreditei...

Afastei-me para deixar passar os homens da policia. Inclinaram-se sobre a suicida. Agora eu só podia ver o delicado contorno dos seus pés sob o lençol.

Fui saindo do quarto. Mas então? Então... Toquei na maçaneta negra da porta: era ali que eu devia ter batido, era ali, tudo não passara de um pequeno equívoco. Um simples equívoco de porta. Alguns metros menos e...

A tarde estava luminosa e calma. Cruzei os braços. Mas não era mesmo incrível? Coisa mais desconcertante, mais estúpida...

Sentei-me na calçada, com os pés na sarjeta. E de repente comecei a rir. E ri tanto, mas tanto, que um homem que passava, ao me ver rindo tão gostosamente, nu-se também. Ah vida louca, completamente louca, mas de uma loucura lúcida, cheia de nexo nos seus encontros e desencontros, nos seus acasos e imprevistos! Falsa demente, tão ingenuazinha e tão astuta na sua falta de lógica, cheia de misterioso sentido na sua confusão tão calculada, tão traiçoeiramente calculada. Uma beleza a vida!

Baixei o olhar para a sarjeta: entre duas pedras tortuosas, uma pequenina flor apontava sua cabecinha vermelha. Parecia- se com Alexandra. Toquei-lhe na corola tenra. E senti os olhos úmidos. - Minha florzinha tonta - disse-lhe num sussurro - você é tão mais importante do que todos os livros, tão mais importante... Você está viva, minha querida. E que extraordinária experiência é viver!

Ergui-me de cara voltada para o sol. Aproximei-me de uma árvore. Abracei-a. E quando encostei a face no seu tronco rugoso, foi com se tivesse encostado a face na face de Deus.

Fontes:
www.ufpel.edu.br
Imagem = http://poesiasdasu.blogspot.com/2008/04/corao-ardente.html

sábado, 4 de dezembro de 2010

Carolina Ramos (Livro de Trovas)


O mar da vida parece
que às vezes quer me afogar,
mas, Deus, que nunca me esquece,
atira a bóia no mar!

No amor o tempo se gasta
com medidas desiguais:
se estás longe, ele se arrasta;
se perto, corre demais!

Nosso amor, quadras desfeitas,
de um poema sem achados...
Rimas tristes, imperfeitas,
fechando versos quebrados!...

Que o presente se reparta
com o passado, sem queixa...
- A memória não descarta
o que a saudade não deixa!

Há contraste em nossas vidas
mas, perfeito é o desempenho:
luz e sombra, quando unidas,
dão força e vida ao desenho…

Saltando apenas num pé,
negrinho, maroto e arteiro,
o saci, nada mais é,
que o capeta brasileiro...

É possível que aconteça:
Seja folclore ou novela,
tanta gente sem cabeça...
por que não mula... sem ela?

Teu amor... tal força tinha,
que a saudade me conduz
e esta penumbra só minha
ainda é cheia de luz!

A lua beija a favela...
A estrela no céu reluz...
- Meu bem, apaga essa vela,
o amor não quer tanta luz!...

A sós, na penumbra doce...
Neste agora sem depois,
é como se o mundo fosse
um mundo só de nós dois!...

Lembrando a ternura antiga,
minha saudade se exalta...
- Bendigo a penumbra amiga
que me esconde a tua falta!

Esta penumbra... Este frio,
este agora sem porquê...
Este silêncio vazio
é o meu mundo sem você!

Quando a penumbra descia,
a nossa emoção vibrava,
sonhando o que não dizia,
dizendo o que nem sonhava!...

A penumbra da saudade
torna os meus dias tristonhos
e eu bendigo a claridade
das estrelas dos meus sonhos!

No claro-escuro da vida,
fusão de alegria e dor,
a penumbra é colorida
se for penumbra de amor!

Se a ternura nos aquece
e um grande amor nos ampara,
é quando a penumbra desce
que a vida fica mais clara!

A verdadeira alforria
é aquela que estende as mãos,
unindo em plena harmonia
branco e negro, como irmãos.

Alforria... e a voz dos bravos
se erga, potente, entre as massas,
negando criar escravos
de um ódio cruel entre raças.

Esse que vive algemado
às paixões, odiando a esmo,
mesmo sendo alforriado,
segue escravo de si mesmo!

Preso ao tronco, em ais tristonhos,
geme o negro, sem alarde...
- para quem não tem mais sonhos,
a alforria chegou tarde...

Alforriada, ela passa
gingsando frente ao feitor
e o dengo de sua raça
faz dele escravo do amor!

A pele negra retrata
a dor de uma triste saga,
pois o estigma d chibata
nem mesmo a alforria apaga!

Sorrindo ao branco menino,
que o negro seio mordia,
mãe preta cumpre o destino,
alheia à própria alforria.

Choram as mães... Alforria!
e os negrinhos, assustados,
não sabem que uma alegria
também faz olhos molhados!

Alforria... ela desperta
tendo ao rosto um novo brilho,
não lhe importa estar liberta,
mas, ver liberto o seu filho!

Alforria... que mentira!
pensa o negro velho a rir...
- seu braço tanto servira,
que apenas crê no servir...
–––-

Carolina Ramos (1929)


Nasceu em Santos, em 1929. Estudou no Colégio São José, onde, além do curso primário e ginasial, fez, também, Secretariado e a Escola Normal. Completou seus estudos formando-se em música e enfermagem.

Trovadora, contista, poeta, santista ilustre, foi Presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Santos por oito anos (2001 a 2007) e é a atual Presidente da União Brasileria de Trovadores – Seção de Santos.

Carolina pertence a diversas entidades culturais, como

  • Academia Santista de Letras,
  • Academia Feminina de Letras
  • Centro de Expansão Cultural.

    Foi agraciada com diversas medalhas de mérito cultural, entre as quais a de "Magnífica Trovadora", em 1973, em Nova Friburgo-RJ, e em Santos, com a Medalha do Sesquicentenário e a Medalha dos Andradas.

    Também recebeu diversos títulos, homenagens e prêmios em Portugal e Angola.

    Um dos mais importantes foi o Prêmio Rui Ribeiro Couto, da União Brasileira de Escritores de São Paulo.

Bibliografia:

"Sempre" (poesias, 1968);

"Cantigas feitas de sonhos" (trovas, 1969);

"Espanha" (poema épico, 1970);

"Rui Ribeiro Couto - Vida e Obra" (bibliografia, 1989);

"Trovas que cantam por mim" (trovas, 1989);

"Espanha" e outros poemas (1992);

"Interlúdio" (contos, 1993);

"Paulo Setúbal - Uma vida/Uma obra" (1994, em co-autoria com Cláudio de Cápua),

Evocação (História da Associação das Ex-Alunas do Colégio São José) em co-autoria com Maria Edith Prata Real;

Feliz Natal (Contos natalinos);

Principe da Trova (biografia);

Saga de uma vida (biografia) e

Um amigo Especial (Conto-ficção), 2003.


Obras inéditas:

"Rosas de sangue" (sonetos);

"Trovas de amor e ternura";

"Canta Sabiá" (poesias sobre o Brasil, lendas e temas do folclore);

"Júlia Lopes de Almeida" (biografia);

"Contos";

"Contos Infantis" e

"Trovas".

Fontes:
http://www.novomilenio.inf.br/cultura/cult016.htm
Instituto Histórico e Geográfico de Santos. http://www.ihgs.com.br/

Miguel Russowsky (Antologia Poética)


ATO SEM FÉ

Ó Deus!,,, Eu vim falar contigo. Espero
que atendas este humilde servo teu.
Não quero muita coisa, apenas quero
voltar a crer. A minha fé morreu.

Dizem que és sábio e bom. Dizem ( não eu
que em religiões estou na estaca zero)
que castigas o mal com punho fero.
Dizem que és luz eterna no apogeu...

No entanto, permite que eu duvide:
Se deixas a injustiça sem revide
e a fome prosperar como se vê...

Se deixas o demônio estar no mundo...
Se podes destruí-lo num segundo...
Me deste o raciocino para quê?

AOS 77 ANOS...

Descansar?... Não cogito. Tenho brio
em revestir com rimas meu cansaço.
E acendo tantas luzes no que faço
que até pareço um fósforo bravio.

Se galopo na insônia?...Sim. E laço
sendo do amor, o tema mais sadio.
Não destes que exaltem muito o cio...
Vulgaridades em mim não têm espaço.

E tudo às claras... que sou fã da aurora...
Sou fã do riso e da canção sonora...
Velhice... Qual? Não ouço o seu recado

Eu sinto a vida cada vez mais bela...
E a morte?... Amigos, nem me falem nela!
Morrer não posso. Estou muito ocupado,

A INTRUSA

Teimava em me seguir, eu bem que percebia...
Tinha modos gentis. Simpática ( não bela) .
Não queria assustar-me, andava com cautela,
diferente do andar da grande maioria.a

Eu sempre recusei lhe fazer companhia,
embora esta mulher me fosse sentinela
em horas de descanso. Eu não gostava dela
pela insistência atroz com que me perseguia.

Seu nome? Não sabia. Apelidei-a a Intrusa.
Eu lhe fechava a porta, exibindo a recusa
de comigo a reter na partilha do lar.

No espelho, certo dia, atás de mim postou-se...
Quis irritar-me? Sim. Mas disse com voz doce:
- Eu me chamo Velhice e vim para ficar.

JÓIA MAIOR!...

Começo por supor, nos ares, o desenho
De um verso magistral procurando agasalho.
Cabe a mim (sou poeta) encontrar um atalho
Para vê-lo nascer nos recursos que tenho.

Com as rimas gentis nas estrofes, me empenho
Em ser original, (Poucas vezes eu falho),
Já nem ouso explicar se é prazer ou trabalho
Exibir ao leitor as farturas do engenho.

O esmeril dá-lhe o brilho e lhe poda as arestas...
Assim é que se faz um soneto bonito,
Para ser declamado em saraus ou em festas.

Ninguém pode dizer o valor de uma jóia,
Se polida não foi pela mão do perito.
É na lapidação que a beleza se apóia.

PROMESSAS

Estava eu só Passou... Sorriu... Olhei-a...
Estremeceu. Estremeci. Sucede
que o imprevisível manda e a gente cede.
No céu azul brilhava a lua cheia.

Depois... as conseqüências... — Quem as mede
se a razão, sem razão, já titubeia?
E o mar acariciando o ardil, na areia:
"O vinho é bom sorver antes que azede!"

Vai-se o verão. Agora é frio e neva.
Palavras sem valor, o vento as leva.
As juras antecedem as desditas.

Um instante de amor — eternidade!
Dois instantes de amor — fidelidade
... Nem todas as mentiras foram ditas.

NOTURNO Nº 2

Anseios de verão... Noite clara, sem bruma.
A lua argêntea adorna uma paisagem maga.
A flor perfuma... A lua brilha... O vento vaga
como doce carícia angelical de pluma.

As nuvens pelo céu — enfermeiras de espuma —
se prpõe a curar qualquer dorida chaga.
No silêncio dormita um repouso de saga.
A lua brilha... O vento vaga... A flor perfuma...

Uma fada de azul — fugitiva de lenda —
escreve em cada rosa uma nova armadilha.
Cupido ergue na sombra o seu punhal de renda.

Com preguiça o relógio esquece e compartilha...
Diana vai marcando um nome em cada agenda:
A flor perfuma... O vento vaga... A lua brilha...

SONETO CLASSE MÉDIA, BAIXA

Quando eu me aposentar... Irei morar em Vênus!...
(O I.P.T.U. de lá, é menor que o da lua.
Há descontos de lei sem qualquer falcatrua
e sem taxas de lixo embutida em terrenos).

Aposentadoria é crime?...(Mais ou menos...
se for por doença não é, mas a verdade crua,
é que os espertalhões desfilam pela rua
cheios de "ME APOSENTEI") — Que salários obscenos!

Quando eu me aposentar...(Se eu puder, o pijama,
o radinho de pilha, o travesseiro, a cama,
nenhum deles terá um minuto de folga).

Quando eu me aposentar... Urras e Vivas! Bingo!
Os dias de semana, o sábado... o domingo...
serão todos iguais. É isto que me empolga!

NOITE SEM AURORA

A noite de um adeus não tem aurora
mas tem silêncios longos por recheio;
tem farpas arranhando, bem no meio...;
tem desesperos mil vagando fora...

A noite de um adeus, eu sei que chora
ao ver a sepultura de um anseio.
Não a censuro e até a manuseio
com estes versos que componho agora.

A noite de um adeus ensina a gente
ter dias sem relógio...e alguém já disse
que nunca cicatriza totalmente.

A noite de um adeus...só bem depois
expõe a solidão, numa velhice,
em que murchamos tristes nós, os dois.

ARREPENDIMENTO

Um por um, os meus sonhos, nesta vida,
Despi no andar do tempo modorrento
Qual árvore esfolhada pelo vento
Numa tarde outonal, entristecida.

Quebrei-me um pouco, assim, a cada ida
À procura não sei de qual intento.
Deixei amor, amigos e, ao relento,
Destroços de minha alma enrijecida.

E hoje, velho, ao voltar da caminhada,
Tropeço em meus pedaços pela estrada
Com saudosa visão aqui e ali.

Não mais me iludo, e essa descrença atesta
Que passarei o tempo que me resta
Recolhendo os pedaços que perdi.

TARDE NEVOENTA... EM JULHO

Domingo sem ninguém...A casa está vazia.
O silêncio no horror persistente blasfema.
Quer se fazer ouvir. Ó tolo estratagema!...
Eu posso ouvi-lo bem, mas qual a serventia?

A solidão nem quer me servir como tema...
...e a tarde se espezinha imensamente fria...
Ó Tristeza, vem cá! Se queres companhia
ajuda-me a cerzir pedaços de um poema

Talvez assombrações que possuam prestígio
se queiram embutir em tercetos, com zelo,
para dar-lhe feições de soneto-prodígio.

Alguém se desmanchou em brumas do passado
e quer ressuscitar de cor, num atropelo.
Se lembrar é viver, eu devo estar errado.

RECEITA DE SAÚDE E FELICIDADE

Não antecipe nunca o sofrimento!...
Diga “Bom Dia!” ao sol que lhe saúda.
Seja qual um discípulo de Buda:
- É mister se gozar cada momento.

No “que será...será” que não se muda,
se abrigam primaveras...(mais de um cento!)
os “depois” nem podem ser tormento
se os “agoras” lhe derem boa ajuda.

“Cara feia” - sinal de enfermidade -
com certeza, costuma sobrepor
mais pesos aos obstáculos da idade.

"Alegre-se e sorria, por favor!
Um sorrisinho dá felicidade,
pois contagia e ativa o bom humor"

DOMINGO...(DE LICOR E AÇÚCAR CÂNDI)

Manhã de sol...A luz passeia a toa...
Explode a primavera em frenesi.
Meu bairro, todo chique, não destoa,
parece um ogro alegre que se ri.

Mignon, gentil, arisco, sobrevoa,
a namorar a rosa, um colibri...
...e perfumes no ar...-Que coisa boa!
O céu está pertinho...É logo ali!

Meu domingo é grande (- Muito grande!)
Cheinho de licor e açúcar cândi.
Estou de bem com toda a humanidade.

Minha amada virá...(telefonou-me)
e ela não quer que lhe revele o nome,
que tem dez letras...(é ?... -FELICIDADE!)
---------------

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n.59)


Trova do Dia

Papai Noel, pobremente,
cometeu um desacato:
em vez de deixar presente,
carregou o meu sapato.
OLYMPIO COUTINHO/MG

Trova Potiguar

Natal de festa e de luz,
desejo a todos os lares...
Que em dobro te dê Jesus!
Tudo o que me desejares.
FRANCISCO MACEDO/RN

Uma Trova Premiada

1999 > Fuzeta/Portugal
Tema > Natal > Venc.

É Natal... Tempo de prece,
de amor, de fraternidade!
Do céu, um Menino desce
e mostra, ao mundo, a Verdade!
MARINA BRUNA/SP

Uma Trova de Ademar

Para essa festa de luz,
peru e vinho à vontade,
nem convidaram Jesus
pra sua festividade...
ADEMAR MACEDO/RN

...E Suas Trovas Ficaram:

É Natal! Lá na favela,
no seu barraco sombrio,
ele encontrou na janela
o tamanquinho vazio!...
CAROLINA A. DE CASTRO/PE

Estrofe do Dia

Enquanto a fome, no mundo,
grassar com velocidade,
teremos que compensar
com gestos de caridade,
para que este nascimento
de Cristo, neste momento,
seja um Natal de verdade.
MARCOS MEDEIROS/RN

Soneto do Dia

– Olga Maria Dias Ferreira/RS –
PRESENTE DE NATAL

Tuas mãos quero sentir nestes meus cabelos,
tão ternos olhos a perderem-se nos meus,
vendo acolhidos nos mais vibrantes apelos,
a usufruir inteiros, pensamentos teus.

Eu sonho ver-te, a zelar meu sono, em tais desvelos,
na mais perfeita fusão, bem próxima a Deus,
a revelar ao mundo os mais leais modelos
de sentimentos nobres, sob os Mantos Seus...

Estes, meus sonhos, meus desejos, meus pedidos,
mantenho ocultos, no meu peito, protegidos,
a defender da inveja, do ódio e do mal...

Estes, profundos anseios tão coloridos,
a ornamentar todos os tempos já vividos
que, hoje, formulo, num PRESENTE DE NATAL!...

Fonte:
Ademar Macedo

Roberto Pinheiro Acruche (Trovas e Poemas nº 22 – Dezembro de 2010)


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-

Sem notar que a vida passa,
esta emoção me extasia:
Meus netos correm na praça
onde, em criança, eu corria!
Carolina Ramos – Santos-SP

Cai a chuva fria e mansa,
mas não esfria a saudade
de uma tórrida lembrança
que o meu coração invade.
Dinair Leite-PR

As lições de mais valia
pra dizer “missão cumprida!”
não vi nos livros que lia,
mas sim na escola da vida!
Renato Alves - RJ

Parque da minha cidade
de ladrilhos branco e preto...
ainda ecoa a saudade
do som daquele coreto.
Francisco José Pessoa-CE

Agora, desiludida,
reconheço o quanto errei:
eu quis viver minha vida
na vida de quem amei...
Tereza Costa Val – MG

Quem como eu faz poesia
sabe que a glória é completa.
Ninguém aposenta o dia
de trabalho de um poeta!
Nilton Manoel-SP

São teus beijos, a magia,
que me acalma e alimenta,
trazem luz, muita alegria
se uma nuvem atormenta
Marilene Bueno– RS
--------------
Narcélio Lima (Caucaia - CE)
ESTRELINHA DE NATAL

Caia do céu estrelinha
Caia aqui no meu quintal
Seja minha companhia
Nesta noite de Natal

Caia logo estrelinha
Estrelinha aí do céu
Nos convide com magia
Para ver Papai Noel

E depois, minha estrelinha,
Ilumine os olhos meus
Traga toda alegria
Pra noite do menino Deus.

Fonte:
R. P. Acruche

Monteiro Lobato (Emília no País da Gramática) Capítulo XIII: A Casa da Gritaria

— Que barulhada! — exclamou Emília, ao aproximar-se da Casa das INTERJEIÇÕES. — Será algum viveiro de papagaios?

— São elas. Aquilo lá dentro parece um hospício, porque as Interjeições não passam de gritinhos.

— Gritos de quê?

— De tudo. Gritos de Dor, de Alegria, de Aplauso. . .

A Casa das Interjeições parecia mesmo um viveiro de papagaios. Assim que entrou, Emília viu passarem correndo dois gemidinhos de DOR, as Interjeições Ai! e Ui! Logo em seguida viu, a dar pulos, três gritinhos de ALEGRIA: — Ah! Oh! Eh! Depois viu três de nariz comprido, as Interjeições de DESEJO: — Tomara! Oh! Oxalá! E viu três num entusiasmo doido — as Interjeições de ANIMAÇÃO: — Eia! Sus! Coragem! E viu quatro de APLAUSO, batendo palmas: — Viva! Bravo! Bem!

Apoiado! E viu mais quatro com caras de horror e nojo, que eram as Interjeições de AVERSÃO: — Ih, Xi! Irra! Apre! E viu algumas de APELO, chamando desesperadamente alguém:

— Olá! Psiu! Alô! E viu duas de SILÊNCIO, encolhidinhas, de dedo na boca: — Psiu! Caluda! E viu uma bem velhinha, de ADMIRAÇÃO — Cáspite!

— Que baitaquinhas! — comentou Emília, tapando os I ouvidos. — Já estou tonta, tonta. . .

— E há ainda aqui — disse o Verbo Ser — esta pequena caixa com as ONOMATOPÉIAS, OU Interjeições IMITATIVAS de certos sons.

Emília viu nessa caixinha as Onomatopéias Chape!, que imita o som do animal patinhando n'água. E viu Zás-Trás!, que imita movimento rápido. E viu também o célebre Nhoque!, muito usado por Pedrinho para imitar bote de cachorro bravo, E viu Tchibum! — que imita barulho duma coisa que cai n'água. E viu Trrrlin!, que imita som de esporas no assoalho, E viu Tique-Taque, som de relógio. E Toque-Toque, som de batida em porta. E viu Coin, Coin, Coin, som de Rabicó quando leva pelotadas do bodoque de Pedrinho.

— Sim, senhor! — disse Emília, retirando-se. — São muito galantinhas, mas deixam uma pessoa atordoada. Lá no sítio usamos muito algumas destas interjeições, e ainda várias outras inventadas por nós. Tia Nastácia é uma danada para inventar Interjeições. Danada para tudo, aquela negra. . .

E, mudando de tom:

— Por que Vossa Serência não aparece por lá, um dia, para uma visita a Dona Benta? Por ser muito velho? Ora, deixe-se disso!. . . Estamos lá acostumados com a velhice. Dona Benta é velha e Tia Nastácia também. Cachorro bravo? . . . Oh, é bicho que nunca houve no sítio. Só temos Rabicó, que é um marquês que não morde, e a Vaca Mocha, que não tem chifre — e agora este Quindim, que é a pérola dos gramáticos.

— E há ainda mais coisas por lá — continuou Emília, depois duma pausa. — Há os famosos bolinhos de Tia Nastácia, feitos de polvilho, leite, uma colherzinha de sal, etc. Depois ela frita. Quando Rabicó sente de longe o cheiro desses bolinhos, vem na volada. Mas não pilha um só. É comida de gente e não de. . . marquês.

E finalizou, com uma piscadinha marota:

— Dona Benta é viúva. Vá, que até pode sair casamento. . .

O Verbo Ser olhava para Emília com os olhos arregalados. Ele não sabia a história da célebre torneirinha de asneiras. . .
______________________
Continua ... Capítulo XIV: A Senhora Etimologia
____________________________
Fonte:
LOBATO, Monteiro. Emília no País da Gramática. SP: Círculo do Livro. Digitalizado por http://groups.google.com/group/digitalsource

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Ademar Macedo (Livro de Trovas II)


Após causar desencantos
e nos fazer peregrinos,
a seca faz chover prantos
nos olhos dos nordestinos!

Aquela mão estendida
é Nau que ainda trafega
no mar revolto da vida
que a própria vida renega...

Com muita preponderância
mergulhei nesta verdade:
- Quem inventou a distância
não conhecia a SAUDADE...

Como quem faz sua escolha,
disfarçando o desatino,
arranquei folha por folha
do livro do meu destino!

Da Bebida fiquei farto,
bebendo, perdi quem amo;
hoje bebo no meu quarto
as lágrimas que eu derramo.

Envolto numa utopia,
num devaneio sem fim,
vivo hoje uma fantasia
que eu mesmo inventei pra mim.

Essas gotas maculadas,
itinerantes no rosto,
são as lágrimas magoadas
que dão vida ao meu desgosto.

Fiz minha casa de barro
ao lado de uma favela.
Lá fora, eu sei, não tem carro,
mas tem amor dentro dela!...

Lágrimas, fuga das águas
por um riacho inclemente
que numa enchente de mágoas
inunda o rosto da gente!

Mesmo em momentos tristonhos,
carregada de lamentos,
navega cheia de sonhos
a Nau dos meus pensamentos!...

Na transposição mais nobre,
podemos, sem qualquer risco,
matar a sede do pobre
com as águas do São Francisco!...

Nossa cultura se entende
nas lições que eu mesmo tive:
o saber a gente aprende,
a cultura a gente vive.

Num devaneio qualquer,
feito de sonho e de imagem,
no seu corpo de mulher
fiz a mais linda viagem.

Num triste e cruel enredo,
escrito por poderosos,
a Terra treme com medo
das mãos dos gananciosos...

O Deus que fez lago e monte,
que fez céu, mar, noite e dia,
fez do poeta uma fonte
por onde jorra poesia...

O grande desmatamento,
por ganância ou esperteza,
põe rugas de sofrimento
no rosto da natureza...

Passam sempre em meu portão,
trazendo um fardo de dor,
crianças que não têm pão,
pedindo “um pão por favor”!...

Quando a inspiração lhe acena,
o bom Trovador se expande.
Numa Trova tão pequena,
faz um poema tão grande!

Quando de um amor me aparto,
em tristezas me esparramo:
bebo sozinho em meu quarto
as lágrimas que eu derramo!

Quando o amor se consolida,
mesmo que vire rotina;
termina tudo na vida...
Mas esse amor não termina!...

Quem se entrega a solidão
e dela se faz refém,
anda em meio à multidão
mas não enxerga ninguém!

Sem ter escolha, a criança,
pobre inquilina da rua,
na sua desesperança,
dorme sob a luz da lua!

Se o livre-arbítrio é uma escolha,
eu, não vendo outra saída,
alterei folha por folha
do livro da minha vida.

Tal qual um pequeno horto,
sem plantação, sem jardim,
sou Nau e procuro um porto
que ainda espera por mim.

Fonte:
Recanto das Letras.

David Mourão Ferreira (Antologia Poética)


BALADA

Depois do sangue misturado,
depois dos dentes, dos lamentos,
estamos deitados, lado a lado,
e desfolhamos sofrimentos.
Temos trint'anos, mais trezentos
de sofredora exaltação.
É este o cabo dos tormentos?
Ai, não e não! Ainda não.
Saboreamos o passado
por entre os beijos mais violentos
e mais sutis que temos dado.
E o monumento dos momentos
oscila, desde os fundamentos,
a tão febril consagração.
Mas estacamos, sonolentos.
Agora, não. Ainda não ...
Tudo se torna esbranquiçado:
eram azuis, são já cinzentos
os horizontes do pecado ...
Há nos teus ombros turbulentos
cintilações, pressentimentos ...
Os nossos corpos descerão
para que abismos lamacentos?
Ah! não, e não! Ainda não!
Eis-vos, de novo, movimentos
que apunhalais a inquietação!
E assim unidos gritaremos
que não e não! que ainda não!

CASA

Tentei fugir da mancha mais escura
que existe no teu corpo, e desisti.
Era pior que a morte o que antevi:
era a dor de ficar sem sepultura.

Bebi entre os teus flancos a loucura
de não poder viver longe de ti:
és a sombra da casa onde nasci,
és a noite que à noite me procura.

Só por dentro de ti há corredores
e em quartos interiores o cheiro a fruta
que veste de frescura a escuridão ...

Só por dentro de ti rebentam flores.
Só por dentro de ti a noite escuta
o que sem voz me sai do coração.

LADAINHA HORIZONTAL

Como se fossem jangadas
desmanteladas,
vogam no mar da memória
as camas da minha vida ...
Tanta cama! Tanta história!
Tanta cama numa vida!
Grabatos, leitos, divãs,
a tarimba do quartel;
e no frio das manhãs
lívidas camas de hotel ..
Ei-Ias vogando as jangadas
desmanteladas,
todas cobertas de escamas
e do sal do mar da vida ...
Tanta cama! Tantas camas!
Tanta cama numa vida!
Já os lençóis amarrados
tocam no centro da Terra
(que o reino dos desesperados
fica no centro da Terra!)
e os cobertores empilhados
são monte que não se alcança!
Só as tábuas das jangadas
desmanteladas
boiam no mar da lembrança
e no remorso da vida ...
Homem sou. Já fui criança.
Tanta cama numa vida!
Nem vão ao fundo as de ferro,
nem ao céu as de dossel. ..
Lembro-vos, camas de ferro
de internato e de bordel,
gaiolas da adolescência,
ginásios do amor venal!
Barras fixas. Imprudência.
Sem rede, o salto mortal
pra fora da adolescência ...
E confundem-se as jangadas
desmanteladas
no mar da reminiscência ...
Onde estás, ó minha vida?
Sono. Volúpia. Doença.
Tanta cama numa vida!
E recordo-vos, tão vagas,
vós que viestes depois,
ó camas transfiguradas
das furtivas ligações!
Camas dos fins-de-semana,
beliches da beira-mar ...
Oh! que arrojadas gincanas
sobre os altos espaldares!
E as camas das noites brancas,
tão brancas!, tão tumulares!
Cigarros. Beijos. Uísque.
Ó fragílimas jangadas,
desmanteladas ... !
E nelas há quem se arrisque
sobre os pélagos da vida!
Cigarros. Beijos. Uísque.
Tanta cama numa vida!
E o amor? Tálamo, templo,
conjugação conjugal ..
O amor: tálamo, templo
- ilha num mar tropical.
Mas ao redor, insistentes,
bramam as ondas do mar,
do mar da memória ardente,
eternamente a bramar ...
Já no frio dos lençóis
há prelúdios da mortalha;
e, nas camas, sugestões
fúnebres, turvas, pesadas ...

- Sede, por fim, ó jangadas
desmanteladas,
a ponte do esquecimento
prà outra margem da Vida!
Sede flecha, monumento,
ponte aérea sobre o Tempo,
redentora madrugada!
Se o não fordes, sereis nada,
jangadas
desmanteladas,
todas roídas de escamas
da margem de cá da Vida ...
Pobres camas! Tristes camas!
Tanta cama numa vida!

PRESÍDIO

Nem todo o corpo é carne ... Não, nem todo.
Que dizer do pescoço, às vezes mármore,
às vezes linho, lago, tronco de árvore,
nuvem, ou ave, ao tato sempre pouco ... ?

E o ventre, inconsistente como o lodo? ...
E o morno gradeamento dos teus braços?
Não, meu amor ... Nem todo o corpo é carne:
é também água, terra, vento, fogo ...

É sobretudo sombra à despedida;
onda de pedra em cada reencontro;
no parque da memória o fugidio

vulto da Primavera em pleno Outono ...
Nem só de carne é feito este presídio,
pois no teu corpo existe o mundo todo!

TERNURA

Desvio dos teus ombros o lençol,
que é feito de ternura amarrotada,
da frescura que vem depois do sol,
quando depois do sol não vem mais nada ...

Olho a roupa no chão: que tempestade!
Há restos de ternura pelo meio,
como vultos perdidos na cidade
onde uma tempestade sobreveio ...

Começas a vestir-te, lentamente,
e é ternura também que vou vestindo,
para enfrentar lá fora aquela gente

que da nossa ternura anda sorrindo ...
Mas ninguém sonha a pressa com que nós
a despimos assim que estamos sós!

NATAL, E NÃO DEZEMBRO

Entremos, apressados, friorentos,
Numa gruta, no bojo de um navio,
Num presépio, num prédio, num presídio,
No prédio que amanhã for demolido...

Entremos, inseguros, mas entremos.
Entremos, e depressa, em qualquer sítio,
Porque esta noite chama se Dezembro,
Porque sofremos, porque temos frio.

Entremos, dois a dois: somos duzentos,
Duzentos mil, doze milhões de nada.
Procuremos o rastro de uma casa,
A cave, a gruta, o sulco de uma nave...

Entremos, despojados, mas entremos.
De mãos dadas talvez o fogo nasça,
Talvez seja Natal e não Dezembro,
Talvez universal a consoada.

“LITANIA PARA O NATAL DE 1967”

Vai nascer esta noite à meia noite em ponto
num sótão num porão numa cave inundada
Vai nascer esta noite à meia noite em ponto
dentro de um foguetão reduzido a sucata
Vai nascer esta noite à meia noite em ponto
numa casa de Hanói ontem bombardeada

Vai nascer esta noite à meia noite em ponto
num presépio de lama e de sangue e de cisco
Vai nascer esta noite à meia noite em ponto
para ter amanhã a suspeita que existe
Vai nascer esta noite à meia noite em ponto
tem no ano dois mil a idade de Cristo

Vai nascer esta noite à meia noite em ponto
vê lo emos depois de chicote no templo
Vai nascer esta noite à meia noite em ponto
e anda já um terror no látego do vento
Vai nascer esta noite à meia noite em ponto
para nos pedir contas do nosso tempo

AVISO DE MOBILIZAÇÃO

Passaram pelo meu nome e eu era um número
Menos que a folha seca de um erbário
Colheram no com mãos de zelo e gelo
Escreveram me sem mágoa um postal.
Convite a que morresse... mas porquê?
Convite a que matasse... mas por quem?
Oh! vago amanuence...
Oh! apressado e súbito verdugo...
Que te ocultas numa rubrica rápida e legível...
Que dirás tu do meu e doutros nomes
Que dirás tu de mim e doutros mais
No Dia do Juízo já tão próximo?
Que dirás tu de nós se nem treme
Na rápida rubrica a tua mão?
Bem sei que a tua mão só executa
Mas além do ombro a ti pertences.
Porém, pudera chorar, ter hesitado
A mancha de uma lágrima bastara
Para dar um sentido a esta morte
A que a tua indiferença nos convoca.

SECRETA VIAGEM

No barco sem ninguém, anônimo e vazio,
ficámos nós os dois, parados, de mão dada...
Como podem só dois governar um navio?
Melhor desistir e não fazermos nada!

Sem um gesto sequer, de súbito esculpidos,
tornamo-nos reais, e de madeira, à proa...
Que figuras de lenda! Olhos vagos, perdidos...
Por entre nossas mãos, o verde mar se escoa...

Aparentes senhores de um barco abandonado,
nós olhamos, sem ver, a longínqua miragem...
Aonde iremos ter? Com frutos e pecado,
se justifica, enflora, a secreta viagem!

Agora sei que és tu quem me fora indicada.
O resto passa, passa... alheio aos meus sentidos.
Desfeitos num rochedo ou salvos na enseada,
a eternidade é nossa, em madeira esculpidos!

GRITO

Cedros, abetos,
pinheiros novos.
O que há no teto
do céu deserto,
além do grito?
Tudo que é nosso.

São os teus olhos
desmesurados,
lagos enormes,
mas concentrados
nos meus sentidos.
Tudo o que é nosso
é excessivo.

E a minha boca,
de tão rasgada,
corre te o corpo
de pólo a pólo,
desfaz te o colo
de espádua a espádua,
são os teus olhos,
depois o grito.

Cedros, abetos,
pinheiros novos.
É o regresso.
É no silêncio
de outro extremo
desta cidade
a tua casa.
É no teu quarto
de novo o grito.

E mais noturna
do que nunca
a envergadura
das nossas asas.
Punhal de vento,
rosa de espuma:
morre o desejo,
nasce a ternura.
Mas que silêncio
na tua casa.

NATAL À BEIRA RIO

É o braço do abeto a bater na vidraça?
E o ponteiro pequeno a caminho da meta!
Cala te, vento velho! É o Natal que passa,
A trazer-me da água a infância ressurreta.
Da casa onde nasci via se perto o rio.
Tão novos os meus Pais, tão novos no passado!
E o Menino nascia a bordo de um navio
Que ficava, no cais, à noite iluminado...
Ó noite de Natal, que travo a maresia!
Depois fui não sei quem que se perdeu na terra.
E quanto mais na terra a terra me envolvia
E quanto mais na terra fazia o norte de quem erra.
Vem tu, Poesia, vem, agora conduzir me
À beira desse cais onde Jesus nascia...
Serei dos que afinal, errando em terra firme,
Precisam de Jesus, de Mar, ou de Poesia?

Fonte:
Luis Gaspar (Seleção) http://www.truca.pt/ouro/obras/david_mourao_ferreira.html