domingo, 2 de outubro de 2011

Lino Sapo (Os Nomes das Cidades do Estado da Paraíba em um Conto)


Me adesculpe, minha genti, meu jeito de falar: sou matuto do sertão num sei se apronunciar, o meu nome é PARAÍBA e minha históra vou contá.

Eu nasci lá no CONDADO lá pur trae do MONTE HOREBE, na tá CACHOEIRA DOS INDIOS já nas terra da BARRA DE SANTA ROSA do CONDE o senhor JUAREZ TÁVORA que a nutiça filiz recebe. Minha famía era humilde mai muito bataiadeira. Minha mãe é IGARACY, fia de seu IBIARA lá da tribo JURIPIRANGA pegada com a ITAPORANGA pra cá do canto da ARARA. O meu pai é seu GURJÃO, fio de seu FAGUNDES, um caboco forriado e o mió vaquêro da BARRA DE SÃO MIGUEL, terra de seu CALDA BRANDÃO.

Nasci numa sexta-fêra nu dia de SANTA LUZIA da era que se passô. Dona CONCEIÇÃO foi minha partêra e o meu imbigo ela mermo cortô e vizim do POÇO DANTAS ela bem purlá interrô, era pá SÃO JOSÉ DE ESPINHARAS bom LIVRAMENTO me dá, e pá eu ter BOM SUCESSO em
todo o meu caminhá.

Minha madinha foi DONA INÊS, o padim seu DAMIÃO eles era um casal muito filiz, que morava lá na VÁRZEA por trai da SERRA DA RAIZ. Na vida fui um aprendiz de oiça pu ripitição, amansava burro brabo, matava cascavé cua mão, uma micova de mato na inxada tirava sem reclamação, mai da cartia do ABC nunca tirei uma lição. Inté istudei com os fios do patrão NAZAREZINHO e JUAREZINHO que era o orgúiu du prufessô. O bom veinho seu ASSUNÇÃO um PAULISTA que pressas bandas debandô.

Eu inté mi esfucei mai nun teve jeito não, assuletrar e escrivaniar num era minha vocação. Eu gostava das MONTADAS e era um MONTEIRO danado, um furustento que pegava GADO BRAVO, que na MATURÉIA era um tatu, torava MATO GROSSO nos peito: MASSARANDUBA, MULUNGU. Trazia o bicho piado com JUNCO DO SERIDÓ, butava no CURRAL DE CIMA do lado da capelinha de SÃO MIGUEL DE TAIPÚ.

Na friguisia eu era afamado pru via da dispusição, nuvia braba eu pegava e SAPÉ cava no chão e qualquer PICUÍ eu arresuvia na região. Na fazenda BREJO DO CRUZ tinha um tôro espiritado dava carrêra em gente honesta, gente véia e nos safados. Eu tinha visto bezerrinho o tôro por nome BELÉM que era fio de um tôro de papai, o tôro GURINHEM, mai cumigo num tinha nhêm nhêm junto cum meu parceiro o fio de seu JOCA CLAUDINO, amigo desde minino, o SANTANA DOS GARROTES, também chamado “Santarém”. Peguêmo o barbatão na mata, que parecia um PITIMBU, dava coice e chifrada e urrava como um JACARÁU. adispoi desse dia meu sucesso foi apruvado cuma a luz, tinha sido eu o caba que pegô e trôxe bem trazido BELÉM DO BREJO DO CRUZ. Afinal eu só pudia sê benzido, poi tinha sido batizado por FREI MARTINHO que morava lá nas Europa no castelo de Queluz.

Mai um dia minha dispusição caiu pelo LASTRO num amanhecê quando eu me apaixonei por ZABELÊ. Ela era uma caboca lazarina abunitada de tirar o SOSSEGO de qualquer um que ela cunhecê. Era fia única de seu BAYEUX com dona APARECIDA e moravam lá na BARRA DE SANTANA seguino essa decida, adispois do CURRAL VELHO, mermo de frente da SANTA CRUZ da capelinha de SÃO JOSÉ DO BREJO DO CRUZ morava a minha quirida. Era uma donzela trabaiadeira, arava, prantava, cuía, mai gustava mermu era de PILAR em seus PILÕES. tinha um ciúme amuado dos seus PILÕESZINHOS, nem se astrevesse a no bicho incustar sem seu cuncentimentos, poi levava logo uns belicões. Essa muleca fez uma COXIXOLA no meu curação, era um querê bem tão da mulesta que fez uma ALHANDRA no meu peito da muli INGÁ que dá pra vê a inchação.

Foi num dia anubraiado que tive uma BOA VENTURA numas andança entre as CAJAZEIRAS, foi pur lá que avistie aquele anjo madornando debaixo de um UMBUZEIRO adispoi da brincadêra. A gabaneta chegava a sê a fulô mai bunita e cheirosa das fulores daquela CAMPINA GRANDE. Meus óio se acatitaram pareciam duas PEDRAS DE FOGO im riba duma chapa de frande. Só pode ser uma avisajamento uma belezação dessa. Foi cuma um tiro de budoque que me acertô o curação às pressa. E nu silênço de minha matutagem uma oração prupusera, meu SÃO SEBASTIÃO DO UMBUZEIRO, minha SANTA HELENA de SÃO JOÃO DO TIGRE, me ajude a cunquistar a fera.

Essa foi a muié mai NOVA OLINDA que já avistei. Daquele dia pradante ela passou AGUIAR meu pisá por essas DUAS ESTRADAS que desbravei, a do amô e a do trabaiá do jeitinho que matutei. Tudo mudô adispois dessa PASSAGEM na BORBOREMA da minha vida, quando meus óio essa ITABAIANA visuô istendida. Tirei o meu chapé um bom dia adesejei. Magine que pur todas santa do céu: SANTA RITA, SANTA CECÍLIA e SANTA INÊS, JURU pur SÃO FRANCISCO cuma ela disse olá que quase dismaei. Eu muito acontentei e grato fiquei, o burrim esporei, sai cortando o vento: AROEIRAS, BANANEIRAS, CABACEIRAS, CARRAPATEIRA levei nos peito e nem notei. Saí aLUCENAdo e fui guiado pelo amô e numa NOVA FLORESTA o bicho estancô, despetei, quando oiêi num vi mai as CAJAZEIRINHAS, nem onde meu SERTÃOZINHO ficô.

Medo eu num tive tava gustano da lesêra, ainda tinha a VISTA SERRANA pur trae de uma palmêra, apeiei de MOJEIRO e amarrei numa NOVA PALMEIRA, ficô comendo aquele CAPIM isverdiado que achava debaixo da CATINGUEIRA. Sonhando me adeitei na AREIA DE BARAÚNA à sombra de uma CARAÚBAS, sonhei e sonhei com os óio ainda aboticados embriagado de paxão alembrando daquela UIRAÚNA.

Na MATARACA da sina asto dia nóis se encontrô, num festejo de SÃO JOSÉ DO SABUGI no CAMPO DE SANTANA, nossas vida se achô. Foi lá debaixo do SOBRADO do LOGRADOURO de seu PEDRO RÉGIO, que uma ARARUNA nóis dançô, seu óio espiava eu, os meus espiava ela, só num dancemo um CONGO pruque a GUARABIRA cansô.

Na madurecença da noite ela oiou-me dentro dos óio BONITO DE SANTA FÉ e como uma minina cheia de ESPERANÇA preguntô ITAPOROROCA mente se a ela queria pu muié. A espiei como um CAIÇARA e falei sem medo de errar, se a quero? Eu quero mai que isso, o que sinto pur vós me cê “tacima” de qualquer maginar. PUXINANÃ que coisa mai boa, meus óio se encheu d`água igual o RIACHO DE SANTO ANTÔNIO quando a invernia intôa, inda mai quando ela cuchichou em minhas oiças que SÃO JOSÉ DE PRINCESA era seu prutetor, pruvéra!!! só pudia ser ele mermo, sapequei no mermo istante, e o meu é SÃO JOSÉ DO BONFIM, o meu santo guardador.

Foi um namoro da mulinga com uns apertado danado, uns cheiro, uns cafuné, um andado impariado, um PARARI, um parará, e dois juramento por minuto de pru ano ser casado, parecia o sol e lua quando tão se eclipado. E o disfeixe do casório só depende de SÃO JOSÉ DOS RAMOS essa união ter abençuado.

Seu VIERÓPOLIS e dona MARIZÓPOLIS num tirava o óio do nosso chamêgo, foi quando peguei cum OLIVEDOS uma CUITÉ DE MAMANGUAPE e enchi o meu ALCANTIL pur detrái de um burrego. Enquanto goleava a bebida alisava o vestido da minha SOLÂNEA de ALGODÃO DE JANDAIRA e seu longo CABEDELO sedoso de óleo de coco CATOLÉ DO ROCHA cherano a copaiba.

Prumode minha pubreza maus oiado despertou, um caboco aprobraiado namorano aquela fulô, quando BERNADINO BATISTA viu gritô: SÃO JOSE DE PIRANHAS, num acredito no que vejo, esse CAAPORÃ bufento e fedorento ta cum essa sinhora. O cariri num pode aceita essa infiliz união, a partir de hoje vô fazê a MARCAÇÃO e CUBATI de perto pra vê sua ação. SÃO JOÃO DO CARIRI há de cumigo concordá, SÃO DOMINGO DO CARIRI é de desaprovar e de ajudar no DESTERRO dessa terríve paxão.

Num pude acriditar em tudo que uvia, seu SOUZA baixô a cabeça percebi que se incuía. Minha PRATA oiô pra mim com as buchecha corada da vergonha que sintia, saiu devagarzim e nem percebeu que eu me adispidia.

Aquele CASSERENGUE danado tinha tirado minha amada. Foi embora meu AMPARO e todo mundo viu, nessa PIRPIRITUBA do destino nem disse adeus e partiu.

Seu CATURITÉ me chamô baixim e disse com precupação, “meu fio, vá simbora num espere coisa rim não. Esqueça essa caboca e dê um fora daqui, vá lá pra TEIXEIRA na fazenda CUITEGI, conte a ele o acuntecido, diga que fosse mandado pur mim”. Voltei pra meu casebre, minha singela TAPEROÁ, a lamparina acendi, armei a rede e fiquei a balançá. SUMÉ lembrando dela e minha SOLEDADE a aumentá.

Meu DIAMANTE foi forçada de disgosto a me abadoná, foi morá com os TAVARES, MANAÍRA vei me contá, contou tintim por tintim chega meu curação churamigou. Ternotonte ela si riu cum os prosiado que balbuciei lá no POÇO DE JOSÉ DE MOURA na hora que a cunvidei, os óim de QUIXABA arriba daquela boquinha que beijá sonhei. Cuma posso isquecer daquela santa IMACULADA que deixô a morada do céu, de aparença acabocada que era cagada e cuspida a nossa libertadora PRINCESA ISABEL.

Matutei uma sumana cuma devia pruceder, o peito chiava de querê bem eu tava sem querê vivê. Adispois de muito pensá risuvi ir bataiá a minha fulô de vorta, bebê umas lapada pra essa dô passá. Um banhe resolvi tumá, dei uns tibugo no RIACHO DOS CAVALOS e enveredei pra budega de seu TENÓRIO pra mode se alegrá. Tumei logo um MAMANGUAPE de cana sozinho a se reclamá, nos pé da estátua de SÃO MAMEDE cumecei a me cunfessá, foi quando o budegueiro me alertô que meu rivá quiria me acabá, dizeno:

ITATUBA tá cavada e sete palmo ela mede pra te interrá. Fiquei tremilicando morrendo de PIANCÓ, as perna ficô pesada a garganta deu um nó.

Voltei de imediato trupicano no mêi do camim, aqui aculá uma parada, e no quengo as lembrança dos dizido do butequim. Uma rezada pra SÃO JOSÉ DE CAIANA pra me prutegê de caba rim. Entrei nas MATINHAS fechada pur dênto do ARAÇAGI e caminhei disisperado sem nem pensá no fim. Dispois de umas vinte légua, deitado eu adormeci debaixo de um SERIDÓ, o sol bateno na cara pur causa da pôca sombra que tinha os cipó.

Cum canto de uma curuja acordei no ôtro dia, a boca tava seca e as tripa chega rugia. Precurei um pôco d’água naquela sertania, tava tonto de sede, a boca chega ardia. Dispois de uma boa precura uma LAGOA SECA achei, as pressa cum as mão umas CACIMBAS cavei, um OLHO D’ÁGUA aflorô,foi aflorano, aflorano inté que uns POCINHOS se formô e mermo baldiada eu tumei.

A água foi aumentando ALAGOA GRANDE ficô. Quando espiei cum os óio acatitado, as água no juêio de repente chegô. Abri sem demora o BOGUEIRÂO, SÃO JOSÉ DA LAGOA TAPADA, me salve desse trumento, me tire da LAGOA que já tá um RIACHÃO. Essa bexiga tabóca que se transformô do RIACHÃO DO POÇO que da CACIMBA DE DENTRO uma ÁGUA BRANCA afloro, e na CACIMBA DE AREIA uma ALAGOA NOVA ficô. Valei-me meu SÃO SEBASTIÃO DE LAGOA DE ROÇA, minha SANTA TEREZINHA, meu prutetô SÃO DOMINGO DE POMBAL, me tire ligêro dessALAGOINHA. Num posso acriditá que pru mode uma CUITÉ d’água afogado vô batê da passarinha. Prumeto, SÃO BENTINHO, que se dessa eu saí, vô acendê trezentas velas para “São Bento de Pombal”, e nunca mai eu vô robá SALGADINHO e nem SALGADO DE SÃO FÉLIX e cumê no capinzal.
Puramô de Deus, meu SANTO ANDRÉ, num me dêxe esmurecê nesse CAMALAÚ, e sê aterrado nesse lamaçal.

Graças a meu BOM JESUS e a SÃO JOÃO DO RIO DO PEIXE, num pé de BARAÚNA me agarrei. As água tava danada e a árvure arrancô, saindo desembestada inté que no BREJO DOS SANTOS chegô. Tive logo uma BOA VISTA, uma PEDRA LAVRADA avistei, meus pé sentiu AREIA muito contente pisei.

Oiano direitim me orientá tentei, virei três bunda canascas e no AREIAL me espichei, o sol bateu na fuça e numa PEDRA BRANCA me sentei, oiêi pru poente uma SERRA GRANDE parecia, era uma SERRA REDONDA que de longe a SERRA BRANCA se via. A vista tava imbaçada num sei se só uma serra era, ou se era uma SERRARIA.

Graças a SÃO JOSE DOS CORDEIROS, dessa tombém iscapei, na vorta pra minha morada na tribo COREMAS passei, desconfiado, cabreiro, mai cum eles almocei, comi quase metade das EMAS, e meus pobrêma nem contei.

Chegano nu meu rancho, meu JERICÓ selei, minha faca dos dois lado amolei, o meu veioo bacamarte cum chumbo grosso carreguei, a garruncha butei na cinta dispois que desinferrugei. Na LAGOA DE DENTRO tirei sete PATOS que tinha, e cum a pruteção de SÃO BENTO vendi a SANTANA DE MANGUEIRA por uma pipita de OURO VELHO e uma cuia de farinha.

Minha maloca que meus fiinho desejei nascê e junto da minha fulô nóis vê eles crescê. Num foi, vou colocar fogo pra inté as lembrança que me MALTA ta desaparecê. Abri a gaiola do meu POMBAL pra livres elas avuar, e nos cinzeiro dessas QUEIMADAS eu mim a resgatá.

Esporei meu jumento sem oiá nem pá trai, atravessemo o RIO TINTO inté ai tudo im paiz. Na atravessada da BAIA DA TRAIÇÃO encontrei o cumpade JOÃO PESSOA de muita valia: “ cumpade, me faça uma fineza! diga aquele fio da besta ruzia que vô cortá do sertã ao litorá, mai um dia nóis vai se encuntrá. E o rôbo da minha caboca lazarina ele vai me pagá, e nem que a MÃE D’ ÁGUA me peça, aquele caba da peste vô pegá. O meu TRIUNFO de certeza ele pode esperá, se ele se escondê eu pelo rasto vô achá, e na CRUZ DO ESPÍRITO SANTO aquele peste vô pregá, se ele morrê antes, NATUBA dele vô mijá e REMÍGIO dez mil vez pra ele aprendê a respeitá.

Se ele se acha puderoso tombém tenho minha valia, NEGO ser obediente mermo minha vida tano preta e vermêia numa enorme MARI zia, é que sô rio de água rasas, sô ruim e de impraticável travessia. Dizido isso, sentei a espora no jegue que a puêra acompanhô, na passada do RIACHÃO DO BACAMARTE apertei o dedo no gatilho que o pipôco estorô, é o anúnço da liberdade e da partida dum sê trabaiador, humilde, corajoso e peseveradô inchamiado de AMÔ.

(Em homenagem e respeito a todos os municípios que compõem esse magnífico estado que é a PARAÍBA).

Conto poético de LINOSAPO ( Andrelino da silva)

15/09/2011
Cachoeira do Sapo/RN

Fonte:
O Autor

Olavo Bilac (Alma Inquieta: poesias) Parte 5



ESTÂNCIAS

I

Ah! finda o inverno! adeus, noites, breve esquecidas,
Junto ao fogo, com as mãos estreitamente unidas!
Abracemo-nos muito! adeus! um beijo ainda!
Prediz-me o coração que é o nosso amor que finda,
Há de em breve sorrir a primavera. Em breve,
Branca, aos beijos do sol, há de fundir-se a neve.
E, na festa nupcial das almas e das flores
Quando tudo acordar para os novos amores,
Meu amor! haverá dois lugares vazios...
Tu tão longe de mim! e ambos, mudos e frios,
Procurando esquecer os beijos que trocamos,
E maldizendo o tempo em que nos adoramos...

II

Mas, às vezes, sozinha, hás de tremer, o vulto
De um fantasma entrevendo, em tua alcova oculto.
E pelo corpo todo, a ofegar de desejo,
Pálida, sentirás a carícia de um beijo.
Sentirás o calor da minha boca ansiosa,
Na água que te banhar a carne cor-de-rosa,
No linho do lençol que te roçar o peito.
E hás de crer que sou eu que procuro o teu leito,
E hás de crer que sou eu que procuro a tua alma!
E abrirás a janela... E, pela noite calma,
Ouvirás minha voz no barulho dos ramos,
E bendirás o tempo em que nos adoramos...

III

E eu, errante, através das paixões, hei de, um dia,
Volver o olhar atrás, para a estrada sombria.
Talvez uma saudade, um dia, inesperada,
Me punja o coração, como uma punhalada.
E agitarei no vácuo as mãos, e um beijo ardente
Há de subir-me à boca: e o beijo e as mãos somente
Hão de o vácuo encontrar, sem te encontrar, querida!
E, como tu, também me acharei só na vida,
Só! sem o teu amor e a tua formosura:
E chorarei então a minha desventura,
Ouvindo a tua voz no barulho dos ramos,
E bendizendo o tempo em que nos adoramos...

IV

Renascei, revivei, árvores sussurantes!
Todas as asas vão partir, loucas e errantes,
A ruflar, a ruflar... O amor é um passarinho:
Deixemo-lo partir: - desertemos o ninho...
A primavera vem. Vai-se o inverno. Que importa
Que a primavera encontre esta ventura morta?
Que importa que o esplendor do universal noivado
Venha este noivo achar da noiva separado?
Esqueçamos o amor que julgamos eterno...
- Dia que iluminaste os meus dias de inverno!
Esqueçamos o ardor dos beijos que trocamos,
Maldigamos o tempo em que nos adoramos...

PECADOR

Este é o altivo pecador sereno,
Que os soluços afoga na garganta,
E, calmamente, o copo de veneno
Aos lábios frios sem tremer levanta.

Tonto, no escuro pantanal terreno
Rolou. E, ao cabo de torpeza tanta,
Nem assim, miserável e pequeno,
Com tão grandes remorsos se quebranta.

Fecha a vergonha e as lágrimas consigo...
E, o coração mordendo impenitente,
E, o coração rasgando castigado,

Aceita a enormidade do castigo,
Com a mesma face com que antigamente
Aceitava a delícia do pecado.

REI DESTRONADO

O teu lugar vazio!... E esteve cheio,
Cheio de mocidade e de ternura!
Como brilhava a tua formosura!
Que luz divina te dourava o seio!

Quando a camisa tépida despias,
- Sob o reflexo do cabelo louro,
De pé, na alcova, ardias e fulgias
Como um ídolo de ouro.

Que fundo o fogo do primeiro beijo,
Que eu te arrancava ao lábio recendente!
Morria o meu desejo... outro desejo
Nascia mais ardente.

Domada a febre, lânguida, em meus braços
Dormias, sobre os linhos revolvidos,
Inda cheios dos últimos gemidos,
Inda quentes dos últimos abraços...

Tudo quanto eu pedira e ambicionara,
Tudo meus dedos e meus olhos calmos
Gozavam satisfeitos nos seis palmos
De tua carne saborosa e clara:

Reino perdido! glória dissipada
Tão loucamente! A alcova está deserta,
Mas inda com o teu cheiro perfumada,
Do teu fulgor coberta...



Este, que um deus cruel arremessou à vida,
Marcando-o com o sinal da sua maldição,
- Este desabrochou como a erva má, nascida
Apenas para aos pés ser calcada no chão.

De motejo em motejo arrasta a alma ferida...
Sem constância no amor, dentro do coração
Sente, crespa, crescer a selva retorcida
Dos pensamentos maus, filhos da solidão.

Longos dias sem sol! noites de eterno luto!
Alma cega, perdida à toa no caminho!
Roto casco de nau, desprezado no mar!

E, árvore, acabará sem nunca dar um fruto;
E, homem, há de morrer como viveu: sozinho!
Sem ar! sem luz! sem Deus! sem fé! sem pão! sem lar!

A UM VIOLINISTA

Quando do teu violino, as asas entreabrindo
Mansamente no espaço , iam-se as notas quérulas,
Anjos de olhos azuis, às duas mãos partindo
Os seus cofres de pérolas,

- Minhas crenças de amor, esquecidas em calma
No fundo da memória, ouvindo-as recebiam
Novo alento, e outra vez do oceano de minh’alma,
Arquipélago verde, à tona apareciam.

E eu via rutilar o meu amor perdido,
Belo, de nova luz e novo encanto cheio,
E um corpo, que supunha há muito consumido,
Agitar-se de novo e oferecer-me o seio.

Tudo ressuscitava ao teu influxo, artista!
E minh’alma revia, alucinada e louca,
Olhos, cujo fulgor me entontecia a vista,
Lábios, cujo sabor me entontecia a boca.

Oh milagre! E, feliz, ajoelhava-me, em pranto,
Como quem, por acaso, um dia, entrando as portas
De um cemitério, vai achar vivas a um canto
As suas ilusões que acreditava mortas,

E ficava a pensar... como se não partir
Essa fraca madeira ao teu toque violento,
Quando com tanta febre a paixão se estorcia
Dentro do pequenino e frágil instrumento!

Porque, nesse instrumento, unidos num só peito,
Todos os corações da terra palpitavam;
E havia dentro dele, em lágrimas desfeito,
O amor universal de todos os que amavam.

Rio largo de sons, tapetado de flores,
A harmonia do céu jorrava ampla e sonora;
E, boiando e cantando, alegrias e dores
Iam corrente em fora...

A Primavera rindo esfolhava as capelas,
E entornava no chão as ânforas cheirosas:
E a canção acordava as rosas e as estrelas,
E enchia de desejo as estrelas e as rosas.

E a água verde do mar, e a água fresca dos rios,
E as ilhas de esmeralda, e o céu resplandecente,
E a cordilheira, e o vale, e os matagais sombrios,
Crespos, e a rocha bruta exposta ao sol ardente:

- Tudo, ouvindo essa voz, tudo cantava e amava!
O amor, caudal de fogo atropelada e acesa,
Entrava pelo sangue e pela seiva entrava,
E ia de corpo em corpo enchendo a Natureza!

E ei-lo triste, no chão, inanimado e frio,
O teu pobre violino, o teu amor primeiro:
E inda nas cordas há, como um leve arrepio,
A última vibração do arpejo derradeiro...

Como, ígneas e imortais, num redemoinho insano,
Longe, a torvelinhar em céus inacessíveis,
Pairam constelações virgens do olhar humano,
Nebulosas sem fim de mundos invisíveis:

- Assim no teu violino, artista! adormecido
À espera do teu arco, em grupos vaporosos,
Dorme, como num céu que não alcança o ouvido,
Um mundo interior de sons misteriosos...

Suspendam-me ao ar livre esse doce instrumento!
Deixem-no ao sol, em glória, em delirante festa!
E ele se embeberá dos perfumes que o vento
Traz dos frescos desvãos do vale e da floresta.

Os pássaros virão tecer nele os seus ninhos!
As rosas se abrirão em suas cordas rotas!
E ele derramará sobre os verdes caminhos
Da antiga melodia as esquecidas notas!

Hão de as aves cantar, hão de cantar as flores...
Os astros sorrirão de amor na imensa esfera...
E a terra acordará para os novos amores
De nova primavera!

II

Porque, como Terpandro acrescentou à lira,
Para a tornar mais doce, uma corda mais pura,
Que é a corda onde a paixão desprezada suspira,
E, em lágrimas, a arder, suspira a desventura;

Também desse instrumento às quatro cordas de ouro
O Desespero, o Amor, a Cólera, a Piedade,
- Tu, nobre alma, chorando acrescentaste o choro
Eterno e a eterna dor da corda da Saudade.

É saudade o que sinto, e me enche de ais a boca,
E me arrebata o sonho, e os nervos me fustiga,
Quando te ouço tocar: saudade ansiosa e louca
Do primitivo amor e da beleza antiga...

Para trás! para trás! Basta um simples arpejo,
Basta uma nota só... Todo o espaço estremece:
E, dando aos pés do amado o derradeiro beijo
Quase morta de dor, Madalena aparece...

Ao luar de Verona, a amorosa cabeça
De Julieta desmaia entre os braços do amante:
Não tarda que a alvorada em fogo resplandeça,
E na devesa em flor a cotovia cante...
Viúva triste, que à paz do claustro pede alívio,
Para a sua viuvez, para o seu luto imenso,
Branca, sob o livor do escapulário níveo,
Heloísa ergue as mãos, numa nuvem de incenso...

E na suave espiral das melodias puras,
Vão fugindo, fugindo os vultos infelizes,
Mostrando ao meu amor as suas amarguras,
Mostrando ao meu olhar as suas cicatrizes.

Canta! o rio de sons que do seio de brota
E, entre os parcéis da dor, corre, cascateando,
E vai, de vaga em vaga, e vai, de nota em nota,
Ao sabor da corrente os sonhos arrastando;

Que pelo vale espalha a cabeleira inquieta,
Refrescando os rosais, e, em leve burburinho,
Um gracejo segreda a cada borboleta,
E segreda um queixume a cada passarinho;

Que a todo o desconforto e a todo o sofrimento
Abre maternalmente o regaço das águas,
- É o rio perfumado e azul do Esquecimento,
Onde se vão banhar todas as minhas mágoas...

EM UMA TARDE DE OUTONO

Outono. Em frente ao mar. Escancaro as janelas
Sobre o jardim calado, e as águas miro, absorto.
Outono... Rodopiando, as folhas amarelas
Rolam, caem. Viuvez, velhice, desconforto...

Por que, belo navio, ao clarão das estrelas,
Visitaste este mar inabitado e morto,
Se logo, ao vir do vento, abriste ao vento as velas,
Se logo, ao ir da luz, abandonaste o porto?

A água cantou. Rodeava, aos beijos, os teus flancos
A espuma, desmanchada em riso e flocos brancos...
- Mas chegaste com a noite, e fugiste com o sol!
E eu olho o céu deserto, e vejo o oceano triste,
E contemplo o lugar por onde te sumiste,
Banhado no clarão nascente do arrebol..
---

Fonte:
BILAC, Olavo. Antologia : Poesias. São Paulo : Martin Claret, 2002. Alma Inquieta. (Coleção a obra-prima de cada autor). Digitalizado por Anamaria Grunfeld Villaça Koch – São Paulo/SP

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 352)


Uma Trova Nacional

Meu sonho quero viver
antes que o tempo, covarde,
mostre, ao ver-me envelhecer,
que, para mim, ficou tarde!...
–TEREZA COSTA VAL/MG–

Uma Trova Potiguar

Por tua porta fingida
entrou minha alma indefesa
em um beco sem saída,
onde até hoje está presa
–CLARINDO BATISTA/RN–

Uma Trova Premiada

2011 - ATRN-Natal/RN
Tema: VERTENTE - 11º Lugar

Represando a dor da mágoa
que pranteia meu desgosto,
dos olhos, vertentes de água
deslizam pelo meu rosto...
–ANALICE FEITOZA DE LIMA/SP–

Uma Trova de Ademar

Uma fé que não se abala,
dai-me, Senhor, sem medida,
para eu poder semeá-la
pelos roçados da vida.
–ADEMAR MACEDO/RN–

.
..E Suas Trovas Ficaram

Com a saudade a nosso lado,
há um mistério que revolta
- a gente volta ao passado,
mas o passado não volta...
–ALCY RIBEIRO S. MAIOR/RJ–

Simplesmente Poesia

Imutável
–HERMOCLYDES S. FRANCO/RJ–


Caiam pétalas de rosas
brancas, rubras, amarelas,
sobre os teus louros cabelos...

E o orvalho das noites frias
- sereno das madrugadas -
sobre o teu vulto tranquilo...

Caiam as bençãos de Deus
e o cantar dos querubins,
sobre o teu ser temporal...

Caiam meus olhos, inquietos,
e os meus sonhos mais complexos,
em tua alma acolhedora...

A beleza de que és feita,
permanecerá intacta,
perturbadora... Imutável!...

Estrofe do Dia

Viajando pra o sertão um belo dia
vi na beira da estrada uma tapera,
e para o meu entender ela queria
me contar a sua vida como era :
Eu fui feita de barro, sem cimento
e hoje vivo a mercê da chuva e vento
sem porta, sem ferrolho e sem tramela;
e diga a quem passar por essa estrada...
Toda casa de taipa abandonada,
guarda um grito de fome dentro dela!
–ADEMAR MACEDO/RN–

Soneto do Dia

Meu Sonetear
–DEDÉ MONTEIRO/PB–


Não soneteio tão bem como dizes
mas quando o faço, quando soneteio
faço-o ansioso por deixar felizes
almas que sonham sem qualquer receio.

Faço-o seguindo as mesmas diretrizes
de alguém que pisa num plantio alheio
cheio de brotos, cheio de raízes
e um espantalho a vigiar no meio.

Esse plantio são os dois quartetos
que, atravessados, juntam-se aos tercetos,
campo minado não cruzado ainda.

Se cruzo intacto, sem que nada exploda,
minha alegria se esparrama toda
e eu mesmo aplaudo a minha peça finda.

Fonte:
Textos enviados pelo Autor

Pedro Ornellas (O Rei dos Bolinhos) Parte 1


Durante as festividades dos Jogos Florais de Nova Friburgo, certa vez tive como parceiros de quarto, no hotel, a dupla lusitana José Maria Machado de Araújo e Santos Teodósio (o Brumadinho). Foi muito divertido! Brumadinho passava o tempo todo provocando o Zé Maria e criando situações engraçadas. Após a programação de sexta-feira, quase meia noite, saí com Brumadinho em busca de um café e nada de achar. Numa derradeira tentativa, por uma transversal da avenida, demos com um local que foi um verdadeiro achado para ele. A casa típica ostentava o letreiro “O Rei dos Bolinhos”.

A especialidade: bolinho de bacalhau.

Brumadinho logo entrou em conversa animada com o proprietário, Perez, também português, descobrindo afinidades e falando sobre a terrinha. Patrício pra lá, patrício pra cá... Amizade instantânea!

Falou sobre os Jogos Florais, que Perez já conhecia, e como era típico dele, arrumou pra minha cabeça, dizendo: “Este aqui é o Pedro Ornellas, um grande trovador, e pra te provar ele vai fazer na hora uma trova pra tua casa de bolinhos.”

Não tive outra alternativa, o jeito foi pensar rápido. Fiz a trova:

Se um bom bolinho tu queres
regado a excelente vinho,
procure em Friburgo, o Perez,
famoso Rei dos Bolinhos.

Perez gostou tanto que prometeu colocá-la num quadro, no estabelecimento.

Brumadinho dizia com muito entusiasmo:

“Eu não t’disse, rapaz! Trovador não nega fogo... Aqui tem café no bule!”, e pegando a “minha” programação dos Jogos Florais, deu-a ao Perez, convidando-o para estar presente.

Elogiou efusivamente o “patrício” pelo bom gosto, decoração e atendimento que observou ali. Mal sabia eu que toda aquela bajulação fazia parte de um plano astucioso do meu colega luso, uma figuraça!

O saudoso amigo, trovador Armindo Santos Teodósio, ou Brumadinho como era conhecido (por morar nessa cidade mineira) era mesmo uma figura!

Ao elogiar os bolinhos de bacalhau do patrício Perez, Nova Friburgo, sua intenção era saborear alguns na faixa. Os bolinhos eram preparados e fritos na hora pelo próprio Perez, em uma cabine transparente, para que os fregueses pudessem acompanhar o processo e constatar que tudo era feito com a maior higiene. Enquanto fornecia detalhes do negócio, incentivado pelo nosso personagem, Perez ia atendendo os pedidos dos fregueses.

Terreno preparado, Brumadinho atacou:

“Então, patrício, tu podias dar uns bolinhos pra gente provar se são bons mesmo...”

Prontamente o Perez colocou três bolinhos numa cestinha que nos estendeu e voltou à cabine para atender outro pedido. Brumadinho olhou para a cesta e o chamou de volta:

“Perez, venha cá!”, e dramatizando continuou: “Ô rapaz, isso é coisa q’se faça!? Queres apartar dois amigos? Como é que tu dás TRÊS bolinhos para DOIS gajos? Se eu como dois, o Ornellas não vai gostar... Se ele come dois, quem não vai gostar sou eu!”

Perez depressinha acrescentou um bolinho à cesta, e Brumadinho abriu um sorriso:

“Agora sim! Dois pra cada um e não vai ter briga!”

Depois de elogiar os bolinhos que de fato eram muito bons, falou sobre o colega ilustre, Zé Maria, que dividia conosco o quarto de hotel, prometendo voltar no dia seguinte, pois fazia questão de apresentá-lo e que o mesmo, autêntico português, conhecesse aquele lugar maravilhoso.

Ao chegar ao hotel, ele disse ao Zé Maria que já lá estava: “Ó homem, não quiseste nos acompanhar, pois não sabes o que perdeste!” Falou sobre o lugar que descobrimos e dos bolinhos que ganhamos, e prometeu:

“Amanhã, voltamos lá, e vais ver como vou conseguir bolinhos de graça pra nós três!”.

––––––-
continua

Fonte:
Pedro Ornellas in Trova Viva

Valter Martins de Toledo (Lançamento do Livro "Minha Trajetória de Vida")



Fonte:
O Autor

A. A. de Assis (Lançamento da Revista Virtual Trovia n. 142 - outubro de 2011)


Inesquecíveis

És feliz? Não digas nada.
Goza em silêncio o teu bem,
que há muita gente empenhada
em não ver feliz ninguém!...
Alberto Fernando Bastos

Neste mundo atribulado,
onde a virtude não medra,
é sempre o maior culpado
que atira a primeira pedra.
Aparício Fernandes

Perdoa-me a irreverência,
Senhor, e este amargo tom:
por que me deste consciência,
sem forças para ser bom?
Élton Carvalho

Eu te quero às escondidas...
E se esta espera durar,
te esperarei quantas vidas
for necessário esperar...
Eugênia Maria Rodrigues

Estrela do céu que eu fito,
se agora ela me fitar,
fala do amor infinito
que eu lhe mando neste olhar...
Luiz Otávio

Tendo ao seio o meu menino,
tudo em volta é luz e brilho.
Nem sei mesmo onde termino
e onde começa o meu filho.
Magdalena Léa

A maior riqueza no universo da trova é sermos
uma grande e muito querida família.

Brincantes

Se nós somos descendentes
de um homem feito de barro,
na certa somos parentes
de um pote velho, ou de um jarro!
Ademar Macedo – RN

Não tenha medo de nada,
fique à vontade, meu bem;
quem tem idade avançada
já não avança em ninguém.
Antonio Carlos T. Pinto – DF

A trovadora reclama
o peso do pé engessado;
e repousando na cama,
faz trovas de pé quebrado...
Djalma Mota – RN

Tem mulher que vai ao bar
tomar uma caipirinha...
No fundo ela vai tomar
é conta de uma vizinha!
Elisabeth Souza Cruz – RJ

Causa-me alegria extrema
do bigode a utilidade:
não preciso, indo ao cinema,
comprovar a minha idade...
José Fabiano – MG

Mostra o sábio o que destaca
do burro a paca, e sussurra:
– é que o burro sempre empaca,
e a paca jamais emburra...
Osvaldo Reis – PR

A esposa numa pirraça
diz ao marido “rueiro”:
- Se “de graça” não tem graça,
me passa a grana primeiro.
Wandira F. Queiroz – PR

Depois que se aposentou,
seu pijama é só frangalho,
pois nunca mais o tirou,
para não lhe dar trabalho.
Vanda Alves – PR

Líricas e filosóficas

Vai, riozinho, sem pressa...
lembra ao mar, sem raiva ou mágoa,
que ele é grande, mas começa
num modesto olhinho d'água!
A. A. de Assis – PR

Busco paz, serenidade...
Quando acho que consegui,
percebo que é só saudade
daquilo que eu não vivi.
Adélia Woellner – PR

É muito bom ser querido
com afago comovente,
ao saber que é preferido
como anjo, amigo e parente.
Agostinho Rodrigues – RJ

O que você faz pela trova é tão importante quanto as trovas que você faz.

Este amor que eu acalento,
pelo qual estou perdida,
é meu canto e meu lamento,
minha morte e minha vida.
Amaryllis Schloenbach – SP

À noite vou namorar:
da lua já nem preciso...
Só quero ver teu olhar
fascinando o meu sorriso.
Ari Santos de Campos – SC

Existe tanta união
entre os teus sonhos e os meus,
que só não és meu irmão
por um descuido de Deus!
Arlindo Tadeu Hagen – MG

Por sorte, e por ser poeta,
sei fingir felicidade...
Disfarço a paixão secreta
fingindo ser amizade!
Bruno Pedina Torres – RJ

Ser artista é ter no peito
um canário cantador,
que, livre, canta a seu jeito,
quer na alegria ou na dor.
Carolina Ramos – SP

Não desanime, trabalhe,
combata o mal, queira o bem...
Pois o bem, mesmo que falhe,
é sempre luz para alguém!
Conceição Abritta – MG

Rasguei carta, telegrama,
fotos, bilhetes de amor,
mas ao deitar nesta cama,
rasga-me o peito esta dor!
Conceição de Assis – MG

Doy un beso agradecida
al árbol que está sembrado.
¡Con su vida nos da vida
aun despúés de ser cortado!
Cristina Oliveira Chaves – México

Todo trovador é meu irmão; logo, toda trova
é como se minha sobrinha fosse. (Luiz Otávio)

Lua, que vagas serena
na amplidão do azul celeste,
traz consolo à minha pena,
leva a dor que me trouxeste!
Diamantino Ferreira – RJ

A minha grande alvorada
será eterna... eu suponho!
Se um sonho não der em nada...
Eu troco por outro sonho!
Dilva Maria Moraes – RJ

A mamãe cura o dodói,
afaga, põe atadura,
e o rosto de seu herói
se lambuza de ternura!
Domitilla B. Beltrame – SP

Os meus sonhos vão ao léu,
pelas águas da ilusão,
plantando flores no céu,
colhendo estrelas no chão!
Eduardo A. O. Toledo – MG

Valorando o sem valor,
conjugando o verbo ter,
esqueceu-se quanto amor
num ranchinho pode haver.
Eliana Jimenez – SC


Em silêncio, a noite fria
dorme com a luz do luar...
Comigo dorme a magia
do brilho do teu olhar!
Eva Yanni Garcia – RN

Marcava a tua frequência
um leve aperto de mão;
hoje marca a tua ausência
o pulsar do coração.
Evandro Sarmento – RJ

Um vazio cresce na alma
quando a amizade termina.
É como se a praia calma
explodisse feito mina!
Flávio Stefani – RS

Se teus olhos reluzentes
me falam no coração,
corro a pegar minhas lentes
pois sou cego de paixão!
Francisco Pessoa – CE

Amor é palavra doce
que algum poeta escreveu...
Amor é como se fosse
só a vida, você... e eu!
Gasparini Filho – SP

Não julgue alguém pela imagem,
pois muitos fazem de tudo
para esconder na “embalagem”
a falta de conteúdo.
Gérson César Souza – PR

Nesta vida tão inquieta,
o meu consolo é pescar.
Sou pescadora-poeta,
que pesca versos no mar.
Gislaine Canales – SC

Escrevo trovas singelas,
sem pretensões de valor,
que ao final se tornam belas
pela humildade do autor.
Humberto Del Maestro – ES

Numa estrada colorida,
ou na trilha empoeirada,
se a família segue unida,
é suave a caminhada.
Istela Marina – PR

Não olhes no exterior:
Armani, Chanel ou Boss.
Elegância vem do amor
que nasce dentro de nós!
J.B. Xavier – SP

Sinto uma grande alegria
e o alvo sempre persigo:
conquistar, a cada dia,
um novo e leal amigo.
Jessé Nascimento – RJ

Para quem o bem semeia,
praticando a caridade,
a felicidade alheia
é a própria felicidade.
João Costa – RJ

Amor! És como uma rosa,
cuja corola, ao se abrir,
exibe a mulher formosa
que é o meu mais doce elixir!
José Feldman – PR

Das janelas do meu verso,
dou um giro pelo espaço
e às vezes vejo o universo
dentro da trova que faço.
José Lucas de Barros – RN

É num desabafo mudo
que muita gente se trai,
deixando o olhar dizer tudo
que com palavras não sai!
José Ouverney – SP

Na pouca pressa que tens
de aliviar minha saudade,
enquanto espero e não vens,
transcorre uma eternidade!
Lucília Decarli – PR

Meu pai, sisudo e calado,
não me deu muito conselho.
Porém, seu exemplo, honrado,
segue sendo o meu espelho.
Luiz Hélio Friedrich – PR

Trovador, qual gralha azul,
a espalhar boa semente,
tece o seu ninho no Sul
e abriga os sonhos da gente!
Mª Conceição Fagundes – PR

Ondas vão, mas voltarão...
Na praia fico a cismar
que elas servem de lição
para eu ir, depois voltar.
Maria Ignez Pereira – SP

A vida me faz cobrança
pelas chances que me deu...
Mas meus mitos de criança,
Roubou-me, e não devolveu.
Maria Nascimento – RJ

Em meu caminho, a poesia
não me empresta sonhos vãos.
Vou de bagagem vazia,
mas tenho o mundo nas mãos!
Marina Bruna – SP

Saudade, mágoa sentida,
barco distante do cais;
pedaço da própria vida
que a gente não vive mais...
Marta Paes de Barros – SP

A verdade, quando dita,
por mais dura que pareça,
é um dádiva bendita
que faz com que a gente cresça.
Nei Garcez – PR

Quem como eu faz poesia
sabe que a glória é incompleta.
– Ninguém aposenta o dia
do trabalho de um poeta.
Nilton Manoel – SP

No rosto um leve sorriso
disfarça a dor e a saudade...
Há vezes em que é preciso
fingir a felicidade!
Olga Agulhon – PR

Felicidade, um ranchinho
e, dentro dele, nós dois;
nove meses de carinho
e um molequinho depois.
Olympio Coutinho – MG

Não diga adeus nem brincando,
o adeus é irmão da saudade,
e alguma ausência, escutando,
pode pensar que é verdade...
Otávio Venturelli – RJ

Doce ternura me invade
sem mesmo eu saber por quê...
e me perco na saudade
nas lembranças de você!
Renato Alves – RJ

Ao abrir minha janela,
inundada de luar,
mais forte a lembrança dela
fez a saudade apertar.
Roberto Acruche – RJ

Quando a inspiração vagueia
à procura de um motivo,
o meu passado passeia
em cada verso que eu vivo.
Selma Patti Spinelli – SP

A vida não vale nada
se a gente nada produz.
Tanto a pena, quanto a enxada,
abrem veredas de luz!
Thalma Tavares – SP

Um cumprimento lacônico
e as nossas mãos se entrelaçam.
No amor proibido... platônico...
somente as almas se abraçam.
Therezinha Brisolla – SP

Meu jogo, audaz e exigente,
encara a carta que der,
mas com você, frente a frente...
jogo charme de mulher!
Vânia Ennes – PR

É natural a fragrância
de um jardim cheio de flores,
vem o sol com elegância
aplaudindo com louvores.
Vidal Idony Stockler – PR

Em constante desvario,
vertem do meu coração
as mágoas que formam rio
nos vales da solidão.
Wanda Mourthé – MG

Nas noites de lua cheia,
meu espírito, a vagar,
por entre estrelas passeia
esperando te encontrar...
Yedda Patrício – SP

O poeta precisa ajudar a natureza, complementando
o seu dom com as ferramentas do estudo e do treinamento.


Fonte:
O Autor

Monteiro Lobato (O Presidente Negro) IX – Entre Sá, Pato & Cia. e Miss Jane


CAPITULO IX
Entre Sá, Pato & Cia. e Miss Jane


Pobre moça!... vinha eu pensando comigo ao voltar do enterro do professor Benson. Se é grande a dor de perder um bom pai, que dizer de quem perdia tal pai?...

De fato, quasi que com seu pai perdera Jane a sua razão de ser na vida. Desde menina se consagrara a estudos do porvir, e é natural que quem possui tal faculdade de previdência não se preocupe grande coisa com a atualidade. Para nós, encerrados nas quatro paredes dos cinco sentidos, o presente é tudo; mas quão pouco não será ele para uma criatura colocada no topo da montanha, podendo ver tanto a paisagem do que lá passou como a do que vai passar!

O mágico aparelho do professor Benson deixara de existir, e dele, como dissera o moribundo, só restavam as impressões subsistentes na memória da filha. Tinha miss Jane, portanto, de refazer sua vida, adaptar-se á condição comum dos pobres seres humanos que só vêem um palmo adiante do nariz.

— Está como eu, murmurei em solilóquio. Passou tambem a pedestre...

Mas vi logo o falso da comparação. Eu podia com o tempo voltar á casta dos rodantes, adquirindo novo automóvel. Miss Jane nunca mais alcançaria a onividencia...

O castelo ficava a três quilômetros de Friburgo, pela estrada onde se dera o meu desastre. Ao passar por essa estrada reconheci o ponto e parei á borda do desbarrancado. Estavam ainda patentes os sinais do trambolhão.

— Estranhos caminhos da Inteligência! exclamei comigo mesmo. Para ver a maravilha das maravilhas e conhecer a mulher que me está iluminando a alma e talvez faça de mim um romancista, foi mister que eu passasse por este precipício aos trancos, e lá fosse parar semi-morto ao fundo da barroca...

Logo adiante, dobrada uma curva da estrada, vi erguer-se o vulto misterioso do castelo, com suas torres metálicas. Parei tomado de viva emoção. Olhei para a singular fabrica e perdi-me em pensamentos de saudade e incerteza.

Entre aquelas paredes duas nobres criaturas humanas me haviam abrigado com extremos de carinho; trataram-me do corpo, salvaram-me a vida e não satisfeitas ainda me revelaram o segredo irrevelado. No castelo conheci a mulher divina que jamais sairá do meu coração. Lá estive em minha casa, como no seio da minha verdadeira família...

Mas quão tudo mudara! Eu não podia mais continuar naquela situação de hospede depois de morto o hospedeiro. Tinha que afastar-me dali — afastar-me do lugar que era na verdade o meu verdadeiro lugar na terra...

O coração confrangeu-se-me dolorosamente e foi com o olhar sombrio e a cabeça baixa que transpus de novo os umbrais do castelo.

Chamei um criado. Por coincidência apareceu o surdo-mudo que me acompanhara na primeira saída pelos campos. Esqueci-me dessa circunstância e perguntei-lhe:

— Não será possível falar a miss Jane?

O criado tambem se esqueceu de que era surdo-mudo e tornou:

— Acho inconveniente. Miss Jane recolheu-se em tal estado de abatimento que nenhum de nós se atreve a perturba-la.

Vi que o homem tinha razão. Pedi-lhe papel e, ali mesmo no vestíbulo, tracei o seguinte bilhete:

Com o coração balançado Ayrton despede-se de miss Jane. Volta ao seu fado anterior, cheio, pelo resto da vida, dos sentimentos de gratidão e enlevo que os donos deste castelo encantado lhe despertaram n'alma. Se acha miss Jane que o hospede ocasional lhe merece alguma coisa, permita-lhe que a venha ver de vez em quando .

Entreguei-o ao criado e sai.

Estava outra vez na rua — e nunca avaliei tão bem a sensação do decair. Quando o anjo mau se viu expulso do paraíso a sua impressão devera ter sido igual á minha...

Na curva da estrada volvi um ultimo olhar ao castelo. Lágrimas me vieram aos olhos, e foi com a infinita tristeza de um corvo triste que alcancei a estação de Friburgo. Rodei para o Rio.

Ao apresentar-me no escritório da firma o assombro do senhor Sá foi enorme. Olhou-me com os olhos arregalados, como se visse aparecer um espectro; depois vincou a testa de todas as temíveis rugas com que tanto nos apavorava e disse:

— Muito bem, senhor Ayrton Lobo! Sempre contei com a sua presteza, quando o senhor me andava a pé. Agora, que se deu ao luxo de um automóvel, gasta-me vinte e tantos dias numa simples cobrança e aparece-me com essa cara de cachorrinho que me quebrou a panela!

Me, me, me, me... tudo para aquele homem se relacionava egoisticamente á sua pessoa...

Procurei acalmar-lhe a fúria, contando do desastre e da minha internação numa casa acolhedora. Mas o éter em vibração que era o senhor Sá fora evidentemente interferido por uma rabanada de saia das fúrias de Esquilo. Em vez de aceitar a minha escusa, o homem redobrou de acusações.

— E por que me não preveniu? Um empregado decente, logo que se vê numa situação dessas, a primeira coisa que faz é avisar aos patrões. Pensa então o senhor que isto aqui é brincadeira? Não sabe que somos uma firma séria e temos o direito de ser bem servidos? Está despachado. Não nos servem empregados da sua ordem.

Nesse momento um rumor muito meu conhecido denunciou a presença da outra parte da firma. Era o senhor Pato que chegava. Ao ve-lo surgir á porta, dentro do seu formidável fraque de elasticotine de cem mil réis o metro e todo reluzente de penduricalhos de ouro maciço, confesso que tremi. Olhou-me o homem d'alto a baixo, fulminantemente, e sem dizer palavra foi para um canto confabular com o socio.

Não sei o que disseram. Só sei que ao cabo de dois minutos o senhor Sá voltou-se para mim e indagou:

— E o seu automóvel?

— Perdi-o... respondi com voz sumida.

Sá trocou com o socio um olhar risonho e irônico; em seguida, divertido lá no intimo por uma ideia, humanizou-se.

— Pode ficar na casa, senhor Ayrton, mas compreende o caro amigo que não nos é possível pagar a um moço que anda a pé o mesmo ordenado que pagávamos a um que tinha automóvel próprio...

Pronunciou um "próprio" de boca cheia, trocando com o Patrão um novo olhar de malícia.

Resignei-me, já que precisava viver. E murcho, de cabeça baixa, com o espirito a agarrar-se á lembrança de miss Jane, reassumi na casa as minhas velhas funções.

A semana toda passei-a na rua, a trabalhar como um autômato. Meu pensamento fugia para longe do que eu executava. Impossível fixa-lo nas reles coisas que me mandavam fazer, quando havia um ponto luminoso a atrai-lo como íman. Impossível tomar a sério os negócios de Sá, Pato & Cia. depois do deslumbramento daquelas semanas no castelo. Eu já não era mais o mesmo. Era um ser que se dilatara imensamente — e que esperava...

Executei mal as minhas comissões e sofri do senhor Sá varias reprimendas. Ouvia-as, porém, tão absorto nos meus pensamentos que não poderei reproduzir nada do que ele me disse.

Eu aguardava ansioso a chegada do proximo domingo. Iria novamente rever o castelo e extasiar-me ainda uma vez diante da imagem querida.

O domingo chegou. Fui. Miss Jane recebeu-me no gabinete e fez-me sentar na poltrona onde me achava no momento em que o criado a chamou. Encontrei-a serena e resignada, embora com todos os estigmas da sua grande dor impressos na fisionomia. Seus olhos denunciavam o cansaço das lágrimas.

Permaneci calado por uns instantes, sem ter o que dizer. Quem rompeu o silencio foi ela.

— Obrigada, senhor Ayrton. A sua visita me fará bem, me acalmará os nervos, coisa que nunca supus que tivesse... A minha solidão é hoje extrema. Como castigo de ter tido ás mãos o tudo, vejo-me agora sem nada. Este casarão vazio... os laboratórios já sem função... o porviroscopio, onde passei anos a me deslumbrar com visões inéditas, morto, reduzido a simples matéria inerte, sem alma... A alma de tudo era meu pai...

Alcancei a situação da querida criatura e foi com a alma á boca que lhe disse:

— Compreendo como ninguém o seu caso, miss Jane, e sei que até hoje no mundo pessoa alguma num só dia perdeu tanto. Horas apenas convivi com o professor Benson e apesar disso a sua lembrança viverá em mim como não vive a de meu pai. Imagino, pois, a falta que faz ele á sua filha, á sua companheira de estudos e visões...

Miss Jane sacudiu a cabeça como a espantar ideias importunas. Depois esboçou o sorriso mais triste que inda vi. E com um suspiro murmurou:

— Paciência. Meu pai ensinou-me o estoicismo, mas é bem difícil o estoicismo nos grandes momentos de dor. O estoicismo é uma atitude...

Três horas passei em companhia da desolada jovem, e consegui afinal distrair o seu espirito contando-lhe o meu reaparecimento no escritório. Chegou a sorrir quando lhe desenhei a imagem hipopotamica do senhor Pato, todo a reluzir berloques de ouro maciço.

Que felicidade ser como esse homem, agir como ele, formar de si próprio a ideia que ele forma! comentou miss Jane. Ignora tudo, mas não tem a sensação disso. Meu pai era o contrario. Levava ao extremo oposto o conceito da sua própria pequenez — e o senhor Ayrton sabe que se houve no mundo criatura mais que todas as outras foi meu pai... Imagine se tomba nas mãos desse senhor Pato a maquina de sondar o futuro!

Aplica-la-ia em enriquecer-se como dez Cresos, pendurando no corpo tanta quinquilharia de ouro que quando andasse na rua havia de tilintar. E a pobre humanidade, assombrada, era bem capaz de meter-se de joelhos á sua passagem, certa de que resurgira no mundo o Bezerro de Ouro disfarçado em homem.

Bem razão tinha meu pai em não tornar publica a sua descoberta. Só mesmo um espirito de eleição como o dele poderia resistir ás tentações resultantes, concluiu miss Jane.

Soube nesse domingo muitos detalhes curiosos da vida do professor Benson, e de como chegara á descoberta da onda Z, ponto de partida para o mais.

— Foi o psiquismo que lhe revelou essa onda que resume e reflete a vida universal do momento. O fato de certos indivíduos agirem como polarizadores de uma força desconhecida impresionara profundamente a sua agudissima inteligência. Meteu-se a estudar o fenômeno sob uma luz nova e chegou a apreende-lo de modo
integral. Pobre pai!

Falamos depois do nosso romance sobre o choque das raças na América.

— Sim, disse miss Jane animando-se. Contínuo a pensar que o senhor Ayrton não deve perder a oportunidade. Ouvirá de mim tudo o que sei a respeito e escreverá um livro deveras interessante. Não lhe prometo já, já, fazer essas revelações. Neste meu estado, compreende que me seria penoso. Mas o tempo cicatriza, eu sei, e lá chegaremos. Para mim será até um derivativo á dor da saudade. Dizem que recordar é reviver e eu pressinto que minha vida vai resumir-se nisso: recordar, reviver o que tenho acumulado na memória. Venha todos os domingos e creia que sua presença me será sempre agradável — além de que estamos ligados pelo grande segredo...
---------------
continua… X – Céu e Purgatório

Fonte:
Monteiro Lobato. O Presidente Negro. Editora Brasiliense, 1979.

sábado, 1 de outubro de 2011

Hermoclydes S. Franco (Proposições a um Vocabulário em Trovas) Letra "C"


CAETETU: Porco-do-mato.
CAFAJESTE: Homem canalha.
CAFÉ: Gostoso, de fato.
CAIXÃO: A final mortalha!

CALCANHAR: Parte do pé;
Marca a marcha militar...
CALVÁRIO: Monte da fé,
Que viu Jesus expirar...

CANJERÊ: Feitiçaria.
CANJICA: Milho cozido.
CANOA: Só embarcaria
Para destino sabido.

CARLOS GOMES: Brasileiro
De nome internacional;
Encantou o mundo inteiro
Com seu gênio musical.

CASAMENTO: Matrimônio;
Enlace pela existência;
Invenção de Santo Antônio
Que hoje está em decadência...

CASERNA: Velho quartel,
Onde se tem dura vida;
Atura-se o coronel
Sem se ter boa comida...

CASSINO: Casa de jogo
De azar (para quem tem sorte)
CASTIÇAL: Velas em fogo
Que iluminam nossa morte.

CASTIGO: É uma punição
Que se aplica a delinqüentes.
CASTO: Puro coração.
CASTOR: Bicho bom de dentes...

CATÃO: Virtuoso; Austero.
CATAPLASMA: Papa quente
Para inflamações. (Espero
Que o meu pobre peito agüente.)

CATAPORA: Varicela,
Deixa a gente quase rengue.
Mas, hoje, nem pense nela:
Cuidado, mesmo, é com DENGUE.

CEIA: O Natal é bonito!
CELESTIAL: O que é do céu.
CELEUMA: Briga; Conflito;
Confusão; Muito escarcéu.

CERTIDÃO: Papel passado
Que atrapalha o casamento.
Às vezes, sem “atestado”
É maior o entendimento.

CERTAME: Ás vezes, concurso
Literário, entre amadores.
Nossa UBT, hoje, é curso
De trovas e trovadores...

CERVEJA: Lúpulo e malte
Fermentados com cevada.
No Carnaval, nunca falte!
O ano inteiro: Não se evada....

CHARNECA: Terreno inculto.
CHARQUE: A tal carne-de-sol
(eis, de novo, aqui o vulto
da rima para arrebol...)

CHEFE: De índios é o pajé.
CHEIA: Uma enchente fluvial.
CHEQUE: É dinheiro (ou não é?).
CHIBATA: Vem do juncal.

CHICOTE: Látego; Açoite.
CHIFRE: Corno; Guampa; Ponta.
(Se não te cuidas, à noite,
uma mulher logo apronta...)

CHINÊS: A língua da China;
O homem nascido lá.
Chimpanzé: Mono traquina.
CHISPE: O bom que o porco dá.

CHORO: Lembra Pixinguinha
E, também bebê-chorão...
Homenagens ao Braguinha:
“Carinhoso” – que emoção!

CIÊNCIA: Conhecimento.
Que palavra sonorosa!
Que grande acontecimento,
Seu “concurso” Dona Rosa...

CIMO: O mais alto a escalar.
CINEASTA: O Diretor
(eis que “Eu sei que vou te amar”
faz a glória do Jabor!).

CIÚME: Zelo amoroso;
Às vezes, também, inveja.
CIVIL: Ato respeitoso;
Polícia que não se peja...
---
Fonte:
Trovas enviadas pelo autor
Imagem = montagem por José Feldman

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 351)


Uma Trova Nacional

Pobre mulher do Carvalho
que até hoje ainda reclama,
pois, de tanto "quebrar-galho"
foi multada pelo... Ibama!
–JOÃO PAULO OUVERNEY/SP–

Uma Trova Potiguar

Conhaque, quando é demais,
valei-me, ó Agnus Dei !
Já fez mulher, ser rapaz
e muito macho, ser gay.
–FABIANO WANDERLEY/RN–

Uma Trova Premiada

2000 - Bandeirantes/PR
Tema : CARA - Venc.


Explica a cara quebrada
no hospital, enquanto espera:
- eu só disse ao camarada:
“Se for homem, bate!” E era...
–PEDRO ORNELLAS/SP–

Uma Trova de Ademar

Sou goleiro, mas, nem tanto...
“A bola vinha zunindo”;
bateu lá naquele canto,
foi batendo e eu caindo!
–ADEMAR MACEDO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram

Para que culpar o vento
por levantar tua saia?
Pior é meu pensamento,
pedindo a Deus que ela caia...
–DURVAL MENDONÇA/RJ–

Simplesmente Poesia

O Que Eu Faço Sem Gostar...
–LOURO BRANCO/CE–


Promover um forró sem tocador
e pregar com pastor embriagado,
galopar com jumento encangalhado
e viajar no meu carro sem motor;
trabalhar com patrão enganador
e contratar um ladrão pra me roubar,
pegar filho dos outros pra criar,
mascar fumo e montar em égua tonta,
me juntar com mulher que bota ponta
são as coisas que eu faço sem gostar!

Estrofe do Dia

O, meu amigo,
Cerveja bem,
Campari as coisas
E champanhe meu raciocínio:
A vida é Drurys,
Mas dá muitas vodkas;
Eu vinho de longe,
Só com um ponche nos ombros,
Estava kaiser desanimando,
Mas encontrei uma caipirinha
Ao passear no chopp,
E me Amaretto nela.
Seu nome é Natasha, e
Apesar de já ter 51,
Estou vivendo uma paixão aguardente,
Por isso repisco:
cerveja bem,
Nem tudo é rum,
E sempre pinga
Álcool de bom !!!
–AUTOR ANONIMO–

Soneto do Dia

Ao Urubu
–JOSÉ MAURO DE ALENCAR/PE–


Urubu que tem sorte é implacável!
Vai planando a procura da carniça,
quando encontra o jantar é formidável ,
enche o papo, arrota e se espreguiça.

Não havendo o banquete é infatigável
seu agouro ao enfermo em vil cobiça.
põe a mão sobre o ombro, é amigável,
ao convite em passeio que enfeitiça.

Sai daqui desgraçado. Vai-te embora.
só em ver-te obtive uma melhora
e a saúde em punho enrijeceu.

Vai, vai, vai farejar putrefação,
lamber ossos da morte pelo chão
e aceitar o destino que é só teu.
--
Fonte:
Textos enviados pelo Autor

Olavo Bilac (Alma Inquieta: poesias) 4


CAMPO-SANTO

Os anos matam e dizimam tanto
Como as inundações e como as pestes...
A alma de cada velho é um Campo-Santo
Que a velhice cobriu de cruzes e ciprestes
Orvalhados de pranto.

Mas as almas não morrem como as flores,
Como os homens, os pássaros e as feras:
Rotas, despedaçadas pelas dores,
Renascem para o sol de novas primaveras
E de novos amores.

Assim, às vezes, na amplidão silente,
No sono fundo, na terrível calma
Do Campo-Santo, ouve-se um grito ardente:
É a Saudade! é a Saudade!... E o cemitério da alma
Acorda de repente.

Uivam os ventos funerais medonhos...
Brilha o luar... As lápides se agitam...
E, sob a rama dos chorões tristonhos,
Sonhos mortos de amor despertam e palpitam,
Cadáveres de sonhos...

DESTERRO

Já me não amas? Basta! Irei, triste, e exilado
Do meu primeiro amor para outro amor, sozinho...
Adeus, carne cheirosa! Adeus, primeiro ninho
Do meu delírio! Adeus, belo corpo adorado!

Em ti, como num vale, adormeci deitado,
No meu sonho de amor, em meio do caminho...
Beijo-te inda uma vez, num último carinho,
Como quem vai sair da pátria desterrado...

Adeus, corpo gentil, pátria do meu desejo!
Berço em que se emplumou o meu primeiro idílio,
Terra em que floresceu o meu primeiro beijo!

Adeus! Esse outro amor há de amargar-me tanto
Como o pão que se come entre estranhos, no exílio,
Amassado com fel e embebido de pranto...

ROMEU E JULIETA
(Ato III, cena V)

JULIETA:
Por que partir tão cedo? inda vem longe o dia...
Ouves? é o rouxinol. Não é da cotovia
Esta encantada voz. Repara, meu amor:
Quem canta é o rouxinol na romãzeira em flor.
Toda a noite essa voz, que te feriu o ouvido,
Povoa a solidão como um longo gemido.
Abracemo-nos! fica! Inda vem longe o sol!
Não canta a cotovia: é a voz do rouxinol!

ROMEU:
É a voz da cotovia anunciando a aurora!
Vês? há um leve tremor pelo horizonte afora...
Das nuvens do levante abre-se o argênteo véu,
E apagam-se de todo as lâmpadas do céu.
Já sobre o cimo azul das serras nebulosas,
Hesitante, a manhã coroada de rosas
Agita os leves pés, e fica a palpitar
Sobre as asas de luz, como quem quer voar.
Olha! mais um momento, um rápido momento,
E o dia sorrirá por todo o firmamento!
Adeus! devo partir! partir para viver...
Ou ficar a teus pés para a teus pés morrer!

JULIETA:
Não é o dia! O espaço inda se estende, cheio
Da noite caridosa. Exala do ígneo seio
O sol, piedoso e bom, este vivo clarão
Só para te guiar por entre a cerração...
Fica um minuto mais! por que partir tão cedo?

ROMEU:
Mandas? não partirei! esperarei sem medo
Que a morte, com a manhã, venha encontrar-me aqui!
Sucumbirei feliz, sucumbindo por ti!
Mandas? não partirei! queres? direi contigo
Que é mentira o que vejo e mentira o que digo!
Sim! tens razão! não é da cotovia a voz
Este encantado som que erra em torno de nós!
É um reflexo da luz a claridade estranha
Que aponta no horizonte acima da montanha!
Fico para te ver, fico para te ouvir,
Fico para te amar, morro por não partir!
Mandas? não partirei! cumpra-se a minha sorte!
Julieta assim o quis: bem-vinda seja a morte!
Meu amor, meu amor! olha-me assim! assim!

JULIETA:
Não! é o dia! é a manhã! Parte! foge de mim!
Parte! apressa-te! foge! A cotovia canta
E do nascente em fogo o dia se levanta...
Ah! reconheço enfim estas notas fatais!
O dia!... a luz do sol cresce de mais em mais
Sobre a noite nupcial do amor e da loucura!

ROMEU:
Cresce ... E cresce com ela a nossa desventura!
...........................................................................

VINHA DE NABOT

Maldito aquele dia, em que abriste em meu seio,
Cruel, esta paixão, como, ampla e iluminada,
Uma clareira verde, aberta ao sol, no meio
Da espessa escuridão de uma selva cerrada!

Ah! três vezes maldito o amor que me avassala,
E me obriga a viver dentro de um pesadelo,
Louco! por toda a parte ouvindo a tua fala,
Vendo por toda a parte a cor do teu cabelo!

De teu colo no vale embalsamado e puro
Nunca descansarei, como num paraíso,
Sob a tenda aromal desse cabelo escuro,
Olhando o teu olhar, sorrindo ao teu sorriso.

Desvairas-me a razão, tiras-me a calma e o sono!
Nunca te possuirei, bela e invejada vinha,
Ó vinha de Nabot que tanto ambiciono!
Ó alma que procuro e nunca serás minha!

SACRILÉGIO

Como a alma pura, que teu corpo encerra,
Podes, tão bela e sensual, conter?
Pura demais para viver na terra,
Bela demais para no céu viver...

Amo-te assim! – exulta, meu desejo!
É teu grande ideal que te aparece,
Oferecendo loucamente o beijo,
E castamente murmurando a prece!

Amo-te assim, à fronte conservando
A parra e o acanto, sob o alvor do véu,
E para a terra os olhos abaixando,
E levantando os braços para o céu.

Ainda quando, abraçados, nos enleva
O amor em que abraso e em que te abrasas,
Vejo o teu resplandor arder na treva
E ouço a palpitação das tuas asas.

Em vão sorrindo, plácidos, brilhantes,
Os céus se estendem pelo teu olhar,
E, dentro dele, os serafins errantes
Passam nos raios claros do luar:

Em vão! – descerrar úmidos, e cheios
De promessas, os lábios sensuais,
E, à flor do peito, empinam-se-te os seios,
Ameaçadores como dois punhais.

Como é cheirosa a tua carne ardente!
Toco-a, e sinto-a ofegar, ansiosa e louca...
Beijo-a, aspiro-a.. Mas sinto, de repente,
As mãos geladas e gelada a boca:

Parece que uma santa imaculada
Desce do altar pela primeira vez,
E pela vez primeira profanada
Tem por olhos humanos a nudez...

Embora! hei de adorar-te nesta vida,
Já que, fraco demais para perde-la,
Não posso um dia, deusa foragida,
Ir amar-te no seio de uma estrela.

Beija-me! Ficarei purificado
Com o que de puro no teu beijo houver;
Ficarei anjo, tendo-te ao meu lado:
Tu, ao meu lado, ficarás mulher.

Que me fulmine o horror desta impiedade!
Serás minha! Sacrílego e profano,
Hei de manchar a tua castidade
E dar-te aos lábios um gemido humano!

E à sombria mudez do santuário
Preferirás o cálido fulgor
De um cantinho da terra, solitário,
Iluminado pelo meu amor...
-
Fonte:
BILAC, Olavo. Antologia : Poesias. São Paulo : Martin Claret, 2002. Alma Inquieta. (Coleção a obra-prima de cada autor). Digitalizado por Anamaria Grunfeld Villaça Koch – São Paulo/SP

Margarete Edul Prado Lopes (Considerações sobre "A Literatura no Brasil", de Afrânio Coutinho)


A crítica literária brasileira tem passado por nítidas mudanças nos últimos 40 anos. Dentro do âmbito acadêmico, duas figuras marcaram o pensamento crítico brasileiro da segunda metade do século XX: Afrânio Coutinho e Antonio Cândido. Nas décadas de 80 e 90, a tendência da crítica, nas universidades brasileiras, foi de retomada e releitura da historiografia e crítica realizada desde os primeiros românticos com seus bosquejos e florilégios, passando pela geração do realismo-naturalismo de Sílvio Romero, Araripe Jr. e José Veríssimo, até os dias de Antonio Cândido. Sobre o trabalho crítico deste último, foram publicados estudos de relevo como Antonio Cândido: a palavra empenhada, de Célia Pedrosa ou "Antonio Cândido: formação da literatura brasileira", de Benjamin Abdala.

Mesmo Alfredo Bosi vem merecendo várias reflexões do seu trabalho de crítico, como bem o demonstram, por exemplo, os excelentes artigos de Roberto Reis "A redoma e o bumerangue: assédios à cultura brasileira", e o de Roberto Schwarz, "Discutindo com Alfredo Bosi". Mas sobre Afrânio Coutinho encontramos parcos comentários e miúdas menções, sempre em comparação ao trabalho de Antonio Cândido, em estudos que resumem os passos que tem dado a historiografia literária no Brasil. Podemos citar entre outros: "Rodapés, tratados e ensaios: a formação da crítica brasileira moderna", de Flora Sussekind; "Historiografia literária do Brasil", de Benedito Nunes; além do artigo de Luís Roberto Veloso Cairo intitulado "História da Literatura, Literatura Comparada e Crítica Literária: frágeis fronteiras disciplinares."

Diante da carência de trabalhos de peso sobre Afrânio Coutinho, justifica-se a pretensão de fazer algumas considerações, ainda que de forma preliminar, sobre as idéias e pretensões do autor nos prefácios e introdução da monumental obra que organizou, dirigiu e publicou em seis volumes: A literatura no Brasil. Em 1952, Afrânio foi encarregado pelo professor Leonídio Ribeiro, diretor do Instituto Larragoiti, de planejar e dirigir a publicação de uma história literária, A literatura no Brasil, com a colaboração de uma equipe de especialistas. A obra foi publicada, em quatro volumes, de 1955 a 1959, sendo ampliada para seis volumes na edição de 1968 –71, revista e atualizada em 1986.

Afrânio Coutinho nasceu em Salvador, Bahia, a 15 de março de 1911, filho de família tradicional, fez os cursos primário e secundário em sua terra natal, onde também se formou em Medicina em 1931. Não seguiu a carreira de médico, mas exerceu a função de professor do ensino secundário e de bibliotecário até 1942. Após cinco anos nos Estados Unidos, trabalhando como redator-secretário da revista Seleções do Reader’s Digest, foi nomeado professor catedrático de literatura no Colégio D. Pedro II. Em 1948, inaugurou, no Suplemento Literário do Diário de Notícias, a seção "Correntes Cruzadas", que manteve até 1961, debatendo problemas de crítica e teoria literária. Em 1940, publicou seu primeiro livro de crítica: A filosofia de Machado de Assis. Em 1958, fez concurso para livre docente da cadeira de Literatura Brasileira na Faculdade de Filosofia da Universidade do Brasil, hoje UFRJ. Em 1967, consegue criar a Faculdade de Letras e foi seu primeiro diretor, função que exerceu até 1980, quando se aposentou.

Em seu artigo "Rodapés, tratados e ensaios...", acima citado, Flora Sussekind traça em linhas gerais, as transformações por que tem passado a crítica literária brasileira nas últimas quatro décadas. Ela descreve três modelos de crítico na história da crítica no Brasil: o crítico de rodapé, o crítico universitário e o crítico teórico. O primeiro, muito popular nos anos 40 e 50, era o homem de letras, o bacharel, tinha como veículo privilegiado o jornal, era cultivador da eloqüência, adaptado às exigências e ao ritmo industrial da imprensa, acostumado a ter uma publicidade muito grande e um diálogo estreito com o mercado e com o movimento editorial. O crítico universitário, que apareceu nos meados dos anos 40, era o tipo ligado à especialização acadêmica, o homem formado e pós-graduado em Letras, cujas formas de expressão dominantes seriam o livro e a cátedra; e, por fim, o crítico teórico, "um desdobramento do personagem anterior e tendo como marca distintiva a auto-reflexão", porque, nas décadas de 60 e 70, dificultado o acesso à imprensa, a crítica universitária se vê restrita à população acadêmica mesmo.

Afrânio Coutinho se encaixava entre os críticos do segundo modelo, tendo feito parte de "uma geração de críticos, e críticos-escolares, que passa a olhar com desconfiança crescente para o modelo tradicional do ‘homem de letras’ e para o tratamento anedótico-biográfico em geral concedido à literatura na imprensa." O organizador de A literatura no Brasil defendia ardorosamente a habilitação específica para o crítico literário: "Formação tão ampla e complicada só pode ser adquirida no lugar adequado que são as universidades e faculdades de letras." (Jornal de letras, agosto de 1957). Em razão dessa postura, Afrânio protagonizou um combate, que durou quase uma década, à critica de rodapé, nos anos 50, tomando Álvaro Lins como alvo predileto.

Uma vez delineado o perfil do crítico, Flora Sussekind tece considerações sobre a obra A literatura no Brasil. A autora afirma que Afrânio defendia a autonomia plena do literário, fazendo uma supressão parcial da história em seus estudos literários. Ele reclamava que a crítica até então tinha sido dominada pelos fatores extrínsecos ou externos condicionantes da gênese do fenômeno literário. Afrânio delineia para a história literária um desenvolvimento imanente, interno, não condicionado por influências extraliterárias. Isto porque, para ele, o processo social se apresenta como fator eminentemente externo, ‘moldura’ para o que se desenrola no campo de produção cultural. Enfim, Afrânio propunha o privilégio de uma crítica estética.

De fato, Afrânio alega no prefácio à segunda edição de A literatura no Brasil que a obra é "uma história da literatura e não da cultura brasileira. O conceito dominante no livro é literário, isto é, encara a literatura como literatura, reduzindo-se por isso aos gêneros propriamente literários". Além de defender a supremacia da literatura sobre a história: "Se examinarmos as nossas obras, no particular, veremos que as domina o espírito histórico e não o espírito literário. São obras de história e não de literatura (...) Nossos historiadores conservando uma ilustre tradição, sempre se mostram com veleidades de fazer história literária, à maneira histórica, e não literária, é claro." (ALB, p. 61).

Deixando a história num lugar secundário, Afrânio declarava fazer uma história da literatura baseada na crítica estética e definia: "O estético é aquilo a que aspiram atualmente os estudiosos do problema em todo o mundo. A concepção estética da crítica impõe o reconhecimento do primado do texto. Parte do pressuposto de que o estético reside na obra, e não no autor ou no meio, o que leva a colocar em segundo plano os métodos extrínsecos de abordagem da literatura, como os históricos, sociológicos, biográficos, eruditos, válidos somente na medida em que proporcionam esclarecimentos sobre a obra." (ALB, p. 63)

Contudo, a história não parece ter ocupado um lugar assim tão secundário no projeto de Afrânio. Sobre o assunto, assegura Benedito Nunes que "dois critérios distintos presidem a historiografia de Afrânio Coutinho: um propriamente histórico, que leva à investigação dos traços nativistas; outro, estilístico, enquadrando, esteticamente, a periodologia literária."

Quanto à periodização, João Alexandre Barbosa a considera um dos pontos altos do trabalho de Afrânio Coutinho. Ele comenta em "Ensaio de historiografia literária brasileira" que "o maior valor da obra organizada e dirigida por Afrânio Coutinho reside na tentativa de elucidar modernamente alguns dos problemas fundamentais da Historiografia Literária, sobressaindo o da periodização que, na obra, obedeceu a critérios estilístico-sociológicos." João Alexandre observa que Afrânio procurou uniformidade na denominação de épocas, segundo uma determinante espiritual, inspiradora do estilo artístico, em lugar das tradicionais demarcações políticas de período colonial e nacional. Além disso, com a periodização estilística foi possível a Afrânio resgatar o Barroco brasileiro.

Realmente, Afrânio declara que "o princípio periodológico, tanto quanto o próprio princípio da história literária, deve decorrer de um conceito geral de literatura" (ALB, p. 14). Ele organizou sua história da literatura reagindo aos métodos historicistas dos historiadores anteriores, principalmente Sílvio Romero, porque a crença dominante até então era de que "a literatura é uma simples divisão da história geral" (ALB, p. 13). Enquanto a crítica estética adotada por Afrânio "considera a literatura com natureza e finalidades específicas, com valor próprio e exigindo escala de padrões própria para ser devidamente julgada" (ALB, p. 11).

Para Afrânio, na literatura brasileira, como na portuguesa, as divisões tradicionais dos períodos literários referem-se, com ligeiras diferenças, a critérios políticos e históricos, com subdivisões arbitrárias, por séculos, decênios ou escolas literárias. Também sempre houve uma mistura na utilização dos termos indicadores do tempo; era, fase época, período, idade e, como conseqüência, a falta de critério científico no estabelecimento dos períodos acarreta o ceticismo de muitos (ALB, p. 14). Afrânio, então, descreve as soluções brasileiras para o problema da história da literatura e para a periodologia encontradas pelos críticos anteriores: a utilização da fórmula cronológica e da conceituação sociológica e historicista (ALB, p. 20). Afrânio faz um relato resumido do que tem sido a prática da historiografia literária no Brasil desde os românticos, com ênfase no em Sílvio Romero, duramente criticado por ter concebido a literatura apenas como resultante de forças exteriores determinantes (meio, raça e momento). Afirma que o maior problema para os historiadores anteriores foi a periodologia; em seguida, descreve com detalhes, as divisões periódicas feitas por Wolf, o cônego Fernandes Pinheiro, Sílvio Romero (novamente criticado com dureza, por ter apresentado uma primeira divisão como definitiva e em edições posteriores de sua história da literatura apareceu com mais três), José Veríssimo, Ronald de Carvalho, Artur Mota e Afrânio Peixoto. Todos igualmente pecaram por incidirem no critério político, misturando-o com a pura cronologia (ALB, p. 23).

Para Afrânio, de Wolf a Sílvio Romero, e de José Veríssimo a Ronald de Carvalho, o problema da periodização vincula-se ao conteúdo nacional da literatura. Sem condenar o nacionalismo, Afrânio declara que a verdadeira solução está na historiografia literária que seja a descrição do processo evolutivo como integração dos estilos artísticos. Assim, as divisões de A literatura no Brasil correspondem aos grandes estilos artísticos que tiveram representação no Brasil. Para Afrânio, a evolução das formas estéticas no Brasil corporificou-se nos seguintes estilos: barroquismo, neoclassicismo, arcadismo, romantismo, realismo, naturalismo, parnasianismo, simbolismo, impressionismo, modernismo (ALB, p. 23-24). E foi dessa forma que fez a divisão em sua obra, utilizando o termo ‘era’, temos no volume dois as eras barroca e neoclássica, o volume três trata da era romântica, as eras realistas e de transição estão nos volume quatro, a era modernista preenche todo o volume cinco, sendo o volume seis todo dedicado para o contemporâneo na literatura, contendo a evolução do conto, da literatura dramática e da lírica e um capítulo para a literatura infantil, entre outros.

Flora Sussekind considera que a periodização de Afrânio apresenta alguns problemas exatamente porque, quando ele fala da sucessão de estilos estéticos que compõem a sua obra, refere-se a uma escalada evolutiva linear cujo cume estaria na solidificação da ‘consciência nacional’. A autora observa que ‘evolução’ e ‘nacionalidade’ parecem ser as noções chaves para Afrânio, parecendo por sua vez insinuar que Afrânio continua, como seus antecessores, preso à história e à cronologia, repetindo na sua história da literatura o que havia condenado nos outros. Mas Afrânio explica nas páginas iniciais de seu primeiro prefácio que "a crítica estética não implica o afastamento ou isolamento de outros conhecimentos necessários à situação da obra literária e à compreensão de suas relações no tempo e no espaço. São conhecimentos secundários, subsidiários, auxiliares, mas que não se podem omitir" (ALB, p. 12). Afrânio nunca pretendeu expulsar os elementos histórico e temporal de sua obra, somente tentou lhes dar um papel apenas secundário.

Não se pode tirar o crédito de Afrânio Coutinho ter percebido que a periodização era um dos problemas nevrálgicos da historiografia literária brasileira e ele feriu todos os pontos fundamentais do assunto:
a) que os critérios político e cronológico não ofereciam qualquer orientação para a caracterização literária do período;
b) que tais critérios implicavam o reconhecimento da dependência e determinação da literatura pelos acontecimentos políticos ou sociais;
c) a ausência de limites precisos e absolutos entre os períodos;
d) que os períodos são unidades vitais, dotados de realidade, não existindo entre eles fronteiras nítidas, nem marcos iniciais e términos fixos;
e) que dificilmente uma obra se poderia definir como totalmente pertencente a um estilo.

Afrânio buscava uma atualização metodológica constante, mas sobretudo queria tornar a literatura independente da história, da política e outros elementos que a pudessem manter atrelada. Ele desejava a autonomia da literatura, ele acreditava que ela poderia ser autônoma. Afrânio percebeu que a crítica só funcionava quando estudava a literatura atrelada a elementos extrínsecos: o método histórico, o biografismo, língua, raça, meio geográfico e social, momento. Afrânio alega que "os conhecimentos da história econômica, social, política, da história das idéias, história das outras artes, etnologia, antropologia, filosofia são colaterais ou auxiliares. A literatura está para os outros fenômenos da vida em posição de relação, não de dependência ou submissão (...) tendo o mesmo valor que as demais expressões da atividade humana" (ALB, p. 12). Situação parecida vive a crítica contemporânea, quando os críticos universitários que adotam a literatura comparada como campo de estudos realizam sua pesquisa atrelando a literatura aos estudos culturais.

Os três prefácios e a introdução de Afrânio Coutinho para a obra A literatura no Brasil contém um material riquíssimo para análise e reflexão. Os dois primeiros prefácios são bem extensos e detalhados, com cerca de 50 páginas cada um, sendo que o prefácio para a 3ª edição só contém três parágrafos. O prefácio à primeira edição está dividido em 6 partes: a questão da história da literatura, a periodização, as soluções brasileiras, definição e caracteres da literatura brasileira, as influências estrangeiras e, finalmente, o conceito e plano da obra. Cada parte é cuidadosamente trabalhada para mostrar ao leitor a importância e conveniência da crítica estética. Nesse mesmo prefácio, Afrânio se utiliza muito da história para apontar os fatos marcantes da historiografia literária brasileira desde seus inícios e para elucidar os problemas fundamentais da mesma. Se no prefácio não foi possível abrir mão do elemento histórico, muito menos no desenvolvimento total da obra e Afrânio era consciente disso. Como já foram apontados, os pontos altos da obra são a renovação da periodologia, o resgate do Barroco, percepção aguçada dos principais problemas que afligiam o fazer da historiografia literária e o trabalho em equipe. É importante ressaltar que Afrânio não convocou a colaboração de críticos apenas do eixo Rio-São Paulo, mas também de outros estados do Brasil, como o baiano Herom de Alencar, valorizando e resgatando os estudos críticos em âmbito nacional.

Também vale a pena destacar o fato de que Afrânio não ignorou a questão da formação da literatura brasileira. Flora Sussekind é da opinião de que o interesse de Antonio Cândido ao escrever a Formação da literatura brasileira foi detectar o momento em que a literatura brasileira passou a constituir um sistema por aqui, e que para Afrânio "a constituição de um sistema literário não é propriamente uma questão, trata-se, na verdade, de registrar as diferentes manifestações literárias que se sucederam no Brasil". Ele estaria interessado apenas na literatura que circula no país. Mas Afrânio descreve ou tenta descrever o que ele chama de drama da formação da literatura brasileira.

O assunto para o qual Antonio Cândido dedicou todo um livro, ocupa umas quinze páginas do prefácio à primeira edição, mas é bastante curioso observar as considerações feitas por Afrânio Coutinho sobre as características que marcam a evolução da literatura brasileira (ALB, p. 25-39): predomínio do lirismo, exaltação da natureza, ausência de tradição, alienação do escritor, divórcio com o povo, ausência de consciência técnica, culto da improvisação, literatura e política, imitação e originalidade, metrópole e província (grifo nosso). São dez ao todo. Quatro se destacam porque já antecipavam as insatisfações da atualidade com as exclusões e elitismo do cânone literário nacional. Afrânio descreve o escritores como alienados porque vivem divorciados de uma tradição, separados dos predecessores, da sociedade que o desconhece, ignorante de seus pares aos quais não presta atenção. Esses elementos resultam em marginalidade, isolamento, esquecimento após a morte, sendo que atualmente sabemos que tais condições atingiram principalmente as escritoras.

Outro ponto relevante destacado por Afrânio é o da ausência de tradição. A luta entre a tradição importada e uma possível tradição nova se constituiu no grande drama de nossa evolução intelectual, não permitindo que vingasse uma tradição por aqui, que se constituísse num ‘passado útil’ para a inspiração dos escritores. Cada escritor, cada geração sente-se obrigada a partir do começo (ALB, p.36). Além disso, permanece hoje o divórcio com o povo, Afrânio foi atualíssimo em afirmar que a literatura no Brasil sempre foi destinada a um público reduzido, de elite. O conteúdo de A literatura no Brasil mostra isso: o cânone apresentado no livro está ampliado, resgatando a literatura de várias regiões do Brasil, nunca antes estudadas ou catalogadas por nenhum estudioso, mas ainda de caráter elitista, privilegiando a literatura erudita, mas não a literatura popular ou a de massa. Entramos o século XXI e o povo continua sem poder aquisitivo para comprar livros, como disse Afrânio: "povo distante, deserdado e analfabeto".

No prefácio à segunda edição, publicada uns dez anos depois da primeira, encontramos um Afrânio Coutinho bem mais cauteloso. Esse prefácio se inicia com Afrânio apresentando suas credenciais de professor catedrático e habilitado a organizar tal obra de historiografia por convite de Leonídio Ribeiro, pessoa de autoridade e respeito na época. Receber um convite dessa natureza já demonstravam o prestígio e a qualificação de Afrânio para a realização da empreitada de uma publicação de uma história da literatura brasileira. O prefácio é tão ou mais longo que o primeiro, contendo 28 partes de poucos parágrafos cada uma. De antemão, Afrânio avisa aos leitores que vai discutir os pontos de doutrina da obra e responder às críticas emitidas quando da sua primeira publicação. Em seguida discorre cuidadosamente sobre a nova critica, o conceito de estética, a periodização, as relações entre literatura e história, entre história e crítica, a autonomia da literatura, espírito profissional, concepção estilística, literatura e vida, o demônio da cronologia e o barroco, entre outros assuntos. Ou seja, tudo o que já havia mencionado na primeira edição, acrescido de outros elementos considerados relevantes para legitimar seu ponto de vista de que o melhor método a ser adotado era o da crítica estética.

O prefácio à terceira edição ocupa meia página, com três curtíssimos parágrafos, apenas para informar que o modernismo tinha chegado ao seu término por volta de 1960 e os novos rumos abriam um período já cognominado de pós-modernismo; que a Literatura Brasileira atingira o estágio de total identidade e autonomia nacional na década de 80 e que as edições anteriores há muito esgotadas justificam a republicação de A literatura no Brasil. Parece bem patente que nesse momento, sendo a terceira edição de 1986, Afrânio, já aposentado, considere que já disse o que tinha para dizer e sabendo que a crítica estética já está ultrapassada, não sente necessidade de acrescentar mais nada aos leitores em termos de prefácio.

Finalmente, importa observar que Afrânio bem registrou que "a vida brasileira exerce-se como num balanço em que as duas pontas são a metrópole e as províncias (...) o regionalismo é uma constante em nossa literatura das camadas periféricas, surgindo sempre movimentos de renovação literária. Os diversos focos regionais de cultura e civilização têm também personalidade estética". Afrânio constatava na década de 50 um problema que permanece vivo no Brasil: o desequilíbrio em todos os aspectos entre os centros culturais e as regiões mais longínquas do país. Tem sido efervescente nos últimos anos, dentro das universidades brasileiras, a quantidade de estudos e pesquisas de resgate da literatura de negros, de autoria feminina, de homossexuais, de regiões distantes e esquecidas do Brasil, como Acre, Roraima e Rondônia, por exemplo.

É bem verdade que A literatura no Brasil não contempla e nem registra a literatura desses estados, mas é o primeiro manual de literatura brasileira a fazer um estudo mais apurado de autores do Amazonas, Pará desde os tempos mais remotos. Também é a obra que reúne, senão ainda todas, mas o maior número de escritoras brasileiras, até da região norte e nordeste. Tudo isso já constituía grande inovação do Cânone para a época, com ampliações nas segunda e terceira edições, valendo dizer que A literatura no Brasil mesmo que ainda bastante inserida na visão homocêntrica, etnocêntrica e elitista tradicionais, o é em escala bem menor que as historiografias anteriores e mesmo posteriores como as obras de Massaud Moisés, José Aderaldo Castello, Luciana Stegagno Picchio e Luiz Roncari.

Fonte:
Coladaweb

Florbela Espanca (Mensageira das Violetas) V


NOSTALGIA

Nesse país de lenda, que me encanta,
Ficaram meus brocados, que despi,
E as jóias que p´las aias reparti
Como outras rosas de Rainha Santa!

Tanta opala que eu tinha! Tanta, tanta!
Foi por lá que as semeei e que as perdi...
Mostrem-me esse País onde eu nasci!
Mostrem-me o reino de que eu sou infanta!

Ó meu país de sonho e de ansiedade,
Não sei se esta quimera que me assombra,
É feita de mentira ou de verdade!

Quero voltar! Não sei por onde vim... Ah!
Não ser mais que a sombra duma sombra
Por entre tanta sombra igual a mim!

CRUCIFICADA

Amiga... noiva... irmã... o que quiseres!
Por ti, todos os céus terão estrelas,
Por teu amor, mendiga, hei de merecê-las,
Ao beijar a esmola que me deres.

Podes amar até outras mulheres!
- Hei de compor, sonhar palavras belas,
Lindos versos de dor só para elas,
Para em lânguidas noites lhes dizeres!

Crucificada em mim, sobre os meus braços,
Hei de pousar a boca nos teus passos
Pra não serem pisados por ninguém.

E depois... Ah, depois de dores tamanhas,
Nascerás outra vez de outras entranhas,
Nascerás outra vez de uma outra mãe!

ESPERA...

Não me digas adeus, ó sombra amiga,
Abranda mais o ritmo dos teus passos;
Sente o perfume da paixão antiga,
Dos nossos bons e cândidos abraços!

Sou dona de místicos cansaços,
A fantástica e estranha rapariga
Que um dia ficou presa nos teus braços...
Não vás ainda embora, ó sombra amiga!

Teu amor fez de mim um lago triste:
Quantas ondas a rir que não lhe ouviste,
Quanta canção de ondinas lá no fundo!

Espera...espera...ó minha sombra amada...
Vê que pra além de mim já não há nada
E nunca mais me encontrarás neste mundo!

INTERROGAÇÃO

Neste tormento inútil, neste empenho
De tornar em silêncio o que em mim canta,
Sobem-me roucos brados à garganta
Num clamor de loucura que contenho.

Ó alma da charneca sacrossanta,
Irmã da alma rútila que eu tenho,
Dize para onde eu vou, donde é que venho
Nesta dor que me exalta e me alevanta!

Visões de mundos novos, de infinitos,
Cadências de soluços e de gritos,
Fogueira a esbrasear que me consome!

Dize que mão é esta que me arrasta?
Nódoa de sangue que palpita e alastra...
Dize de que é que eu tenho sede e fome?!

VOLÚPIA

No divino impudor da mocidade,
Nesse êxtase pagão que vence a sorte,
Num frêmito vibrante de ansiedade,
Dou-te meu corpo prometido à morte!

A sombra entre a mentira e a verdade...
A nuvem que arrastou o vento norte...
- Meu corpo! Trago nele um vinho forte:
Meus beijos de volúpia e de maldade!

Trago dálias vermelhas no regaço...
São os dedos do sol quando te abraço,
Cravados no teu peito como lanças!

E do meu corpo os leves arabescos
Vão-te envolvendo em círculos dantescos
Felinamente, em voluptuosas danças...

A VOZ DA TÍLIA

Diz-me a tília a cantar: "Eu sou sincera,
Eu sou isto que vês: o sonho, a graça,
Deu ao meu corpo, o vento, quando passa,
Este ar escultural de bayadera...

E de manhã o sol é uma cratera,
Uma serpente de ouro que me enlaça...
Trago nas mãos as mãos da primavera...
E é para mim que em noites de desgraça

Toca o vento Mozart, triste e solene,
E à minha alma vibrante, posta a nu,
Diz a chuva sonetos de Verlaine..."

E, ao ver-me triste, a tília murmurou:
"Já fui um dia poeta como tu...
Ainda hás de ser tília como eu sou..."

NÃO SER

Quem me dera voltar à inocência
Das coisas brutas, sãs, inanimadas,
Despir o vão orgulho, a incoerência:
- Mantos rotos de estátuas mutiladas!

Ah! Arrancar às carnes laceradas
Seu mísero segredo de consciência! Ah!
Poder ser apenas florescência
De astros em puras noites deslumbradas!

Ser nostálgico choupo ao entardecer,
De ramos graves, plácidos, absortos
Na mágica tarefa de viver!

Ser haste, seiva, ramaria inquieta,
Erguer ao sol o coração dos mortos
Na urna de ouro de uma flor aberta!...

?

Quem fez ao sapo o leito carmesim
De rosas desfolhadas à noitinha?
E quem vestiu de monja a andorinha,
E perfumou as sombras do jardim?

Quem cinzelou estrelas no jasmim?
Quem deu esses cabelos de rainha
Ao girassol? Quem fez o mar? E a minha
Alma a sangrar? Quem me criou a mim?

Quem fez os homens e deu vida aos lobos?
Santa Tereza em místicos arroubos?
Os monstros? E os profetas? E o luar?

Quem nos deu asas para andar de rastros?
Quem nos deu olhos para ver os astros?
- Sem nos dar braços para os alcançar?

IN MEMORIAM

Ao meu morto querido

Na cidade de Assis, il Poverello
Santo, três vezes santo, andou pregando
Que o Sol, a Terra, a flor, o rocio brando,
Da pobreza o tristíssimo flagelo,

Tudo quanto há de vil, quanto há de belo,
Tudo era nosso irmão! - E assim sonhando,
Pelas estradas da Umbria foi forjando
Da cadeia do amor o maior elo!

Olha o nosso irmão Sol, nossa irmã Água...
Ah! Poverello! Em mim, essa lição
Perdeu-se como vela em mar de mágoa

Batida por furiosos vendavais!
-Eu fui na vida a irmã de um só Irmão,
E já não sou a irmã de ninguém mais!

ÁRVORES DO ALENTEJO

Horas mortas... Curvada aos pés do monte
A planície é um brasido... e, torturadas,
As árvores sangrentas, revoltadas,
Gritam a Deus a bênção duma fonte!

E quando, manhã alta, o sol posponte
A ouro a giesta, a arder, pelas estradas,
Esfíngicas, recortam desgrenhadas
Os trágicos perfis no horizonte!

Árvores! Corações, almas que choram,
Almas iguais à minha, almas que imploram
Em vão remédio para tanta mágoa!

Árvores! Não choreis! Olhai e vede:
- Também ando a gritar, morta de sede,
Pedindo a Deus a minha gota d´água!

QUEM SABE?...

Ao Ângelo

Queria tanto saber porque sou eu!
Quem me enjeitou neste caminho escuro?
Queria tanto saber porque seguro
Nas minhas mãos o bem que não é meu!

Quem me dirá se, lá no alto, o céu
Também é para o mau, para o perjuro?
Para onde vai a alma, que morreu?
Queria encontrar Deus! Tanto o procuro!

A estrada de Damasco, o meu caminho,
O meu bordão de estrelas de ceguinho,
Água da fonte de que estou sedenta!

Quem sabe se este anseio de eternidade,
A tropeçar na sombra, é a verdade,
É já a mão de Deus que me acalenta?
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Fonte:
ESPANCA, Florbela. A mensageira das violetas: antologia. Seleção e edição de Sergio Faraco. Porto Alegre: L&PM, 1999. (Pocket).