sábado, 3 de dezembro de 2011

Emiliano Perneta (Ilusão) Parte 18


ENTRE ESSA IRRADIAÇÃO

Ao Emílio de Meneses

Entre essa irradiação enorme, que palpita,
É possível que um dia, eu, pálido, a encontrasse,
Como a sonora luz de Vênus Afrodita,
Em meio do caminho, os dois, e face a face...

E que alucinação e que febre esquisita,
Que cegueira de amor e que ilusão falace,
Quando esse girassol, para a luz infinita,
Cá de dentro de mim, então, desabrochasse!

Seriam negros ou dourados os cabelos?
Junto daquela flor, tremeria de zelos?
Não tombaria morto aos pés desse prazer?

Os olhos de que cor? Não sei. Porém suponho
Que seriam assim tão grandes como um sonho...
Mas já passei a vida, e não a pude ver!

UMA CARTA

– Eu te escrevo esta carta, in extremis, Maria,
Deitado aqui por sobre um catre d’hospital,
O corpo exangue, os pés gelados, a mão fria,
E refletindo bem, não sei se faço mal.

Tu te recordas, pois, dessa tarde? Eu me lembro
De tudo. Foi ao pé de uma giesta em flor...
Eu te beijei as mãos, o cabelo... Dezembro
Ardia, enquanto nós mudávamos de cor...

Como sabes, parti noutro dia, bem cedo.
Era preciso ter um nome! Eu me alistei
Entre os que iam talvez morrer nesse degredo,
Em defesa da pátria e em nome de seu rei.

Nunca corri no campo o veado ou a lebre,
E nem mesmo atirei numa simples perdiz,
Mas quando entrei na luta, eu me bati com febre,
Bati-me como um bravo, e saí-me feliz.

No meio da refrega e da fumaça espessa,
Num crepúsculo de betume e vermelhão,
Flutuavas sobre mim, sobre a minha cabeça,
Como se acaso fosse o próprio pavilhão.

Dentro em pouco, também, o meu perfil tamanho
Destaque iluminou, de tal maneira que
Julguei ser um herói, mas um herói d’antanho,
De pluma e capacete e lança e boldriê.

Mas, ontem, ao sair de casa, um camarada
Trouxe-me para ver as linhas de um jornal
Que falava de ti. Olhei. Não disse nada.
Mas para não cair agarrei-me ao portal.

Quando me vi a sós, também, d’aí a pouco,
Tive desejos maus de estrangular alguém,
De te calcar aos pés, de fazer como um louco:
Bater-me contra dez, bater-me contra cem.

Era a hora em que o sol como um ladrão se esconde
Por trás dos serros e para longe de nós:
Tomei a minha espada e caminhei para onde
Eu sabia que estava o inimigo feroz.

Desafiei-os: cinco assaltaram-me, em guarda!
Eu queria morrer nesse combate, sim,
Com a graça, porém, de quem veste uma farda
E tem orgulho de ser um espadachim.

E de fato, que sei? após alguns minutos,
Vibraram-me no peito uma lança, caí
Sob os alfanjes nus desses cossacos brutos...
Mas que importa afinal, se vou morrer por ti! –
Sítio dos Pinhais, Novembro – 1909

SOMBRA

Ao Leôncio Correia

Um dia hei de partir e tu hás de ficar,
Como uma vela que se perdesse no mar,
Por entre o nevoeiro e a cerração escura...
Hás de ficar aqui, ó frágil criatura,
Atirada aos baldões cruéis da sorte má,
Ora de lá p’ra cá, ora de cá p’ra lá...

Tão atroz há de ser, porém, tão esquisito,
Tão despedaçador esse horroroso grito,
Vibrado de través dessas torres de ar,
Que onde quer que eu esteja há de me traspassar,
Há de ferir-me assim com tal desolação,
Com um desespero tal que hei de correr então
De país em país, de cidade em cidade,
Como um doido a tremer de infinita piedade...
E sem que saibas que eu estou presente, enfim,
Eu te possa sorrir, quando penses em mim,
Mas como névoa em torno à palidez da Lua,
E sombra, e nada mais do que uma sombra tua...

A cada passo, então, hei de te acompanhar,
Como uma espécie de gênio familiar.
Eu hei de te seguir, eu que por meus pecados
Só tenho percorrido os caminhos errados
Nessas estradas, mais sutil do que um ladrão,
Como se conduzisse um cego pela mão...
Eu sei o que é um abismo e conheço o perigo,
Onde fores pisar, hei de pisar contigo.
E a dor que te ferir há de ferir-me, pois,
De modo a nos ferir ao mesmo tempo os dois.
Quando soprar a dor, quando rugir o vento
Sobre a tua alma em flor, num descabelamento;
Quando o desgosto assim, num gesto mau, talvez,
Te prostrar como se fosse uma embriaguez;
Quando quiseres te lançar ao fundo d’água
Do desespero ou então aos açudes da mágoa,
Recorda-te de mim e de quanto eu te quis,
Não por seres feliz, mas sim uma infeliz.

E hás de ouvir minha voz no meio do caminho:
Não toques nesse pão, não bebas desse vinho;
Foge dessa tristeza, afasta esse pesar,
Não chores, meu amor, que me fazes chorar.
Não creias nesse olhar luminoso e risonho:
Não ames, que o amor não é mais do que um sonho.
Quando essa taça um dia alguém te oferecer:
Toda de ouro a ferver espumas de prazer,
Que nem sequer o teu lábio de leve a oscule.
Faze mais do que fez aquele rei de Thule:
Quebra essa taça em mil pedacinhos, e após
Lança os restos ao mar, de uma maneira atroz.
Eu te amo, meu amor, porém falo-te sério:
Eu não creio no amor, o amor é um mistério.
Debatendo-te aí, toda, de norte a sul,
Nunca, nunca verás esse pássaro azul...

E havemos nós de andar assim, anos e anos,
Por entre enganos mil e outros mil desenganos.
E eu sempre a te iludir, e eu sempre a te embalar
Sobre as ondas do mar, do encapelado mar.
E um dia, quando enfim, caindo de fadiga,
Quiseres descansar, descansa, minha amiga.
São horas de dormir, o sono não faz mal,
E eu hei de te fechar os olhos afinal.
Quando o sono vier, não faças cerimônia,
Que a vida não é mais do que uma longa insônia.
Quando o sono vier descendo por aí,
Eu não te acordarei, não chamarei por ti.
Vendo-te adormecer, as mãos em cruz no peito,
Nesse frio lençol envolta sobre o leito,
Depois de te beijar os cabelos reais,
Sabendo que jamais hei de te ver, jamais;
Depois de te beijar as tranças veludosas,
E por no teu caixão os lírios e as rosas,
Eu volverei de novo, ó minha doce irmã,
Eu sombra e nada mais do que uma sombra vã,
Para esse Orco profundo e região infinita
Onde entre sombras vãs a minha sombra habita.
Dezembro – 1909

Fonte:
Emiliano Perneta. Ilusão e outros poemas. Re-edição Virtual. Revista e atualizada por Ivan Justen Santana. Curitiba: 2011

Reinaldo Pimenta (Origem das Palavras 17)

Justificar
PRIMEIRO-DE-ABRIL
O calendário Julino, de 45a.C., deslocou o início do ano, de 10 de março (dia do equinócio da primavera, quando o Sol passa do hemisfério sul para o hemisfério norte) para 1° de janeiro.
Vários povos submetidos aos romanos seguiram o novo calendário; outros levaram mais tempo em razão da resistência das autoridades eclesiásticas em aceitar o início do ano num mês cujo nome era dedicado a Janus, uma divindade pagã.
Os franceses resistiram muito, até 1564. Nesse ano, o rei Carlos IX decretou que o ano deveria ser contado a partir de 1° de janeiro tal como determinado pelo calendário juliano. Até então, os franceses comemoravam o ano-novo em 25 de março, no Dia da Anunciação, nove meses antes do nascimento de Cristo. As comemorações duravam uma semana, culminando, com festas, jantares e trocas de presentes, em 1 de abril.
Mesmo depois do decreto real, franceses conservadores não deram a menor bola e continuaram com suas festividades, comilanças e lembrancinhas no dia 1 de abril. Chamados "bobos de abril", foram ridicularizados, passando a receber nesse dia presentes idiotas e convites para festas inexistentes.
O costume de pregar mentiras em 1 de abril saiu da França e foi para o mundo. Lá o dia é conhecido como poisson d"Avril, peixe de abril, em referência à saída do Sol do signo zodiacal de peixes.
Como os ingleses não admitem nenhum povo mais conservador, somente em 1751 deixaram de adotar o início do ano em 25 de março e passaram para 1 de janeiro.

PUXAR A BRASA PARA SUA SARDINHA
A expressão, que significa levar vantagem egoisticamente, veio do espanhol arrimar ei ascua a su sardina.
Antigamente trabalhadores que moravam em cortiços ganhavam sardinhas, que eles assavam no fogo que iluminava o ambiente. Mas, quando os homens pegavam as brasas para suas sardinhas, o fogo se apagava e o clima esquentava, com muita briga e bate-boca no escuro. As desavenças chegaram a tal ponto que foi proibido o ingresso de sardinhas nos cortiços.

FAZER O QUILO
A palavra quilo, além da unidade de massa (do grego khílioi, mil), pode significar o líquido esbranquiçado a que se reduzem os alimentos na última fase da digestão. Veio do grego khulós, sumo, suco produzido pela digestão dos alimentos.
A expressão fazer o quilo é uma das seguintes atividades a que você pode dedicar-se depois de uma refeição: (a) repousar ou dormir (depois do almoço); (b) caminhar para facilitar a digestão. Segundo alguns etimólogos, a palavra quilo aí não tem nada a ver com o suco grego: veio do quimbundo (língua falada em Angola) quilo, sono.

REMORSO
A CONSCIÊNCIA TEM DENTES AFIADOS.
Um sinônimo em desuso para remorso é remordimento, que é o ato de remorder. Remorder pode significar tornar a morder ou afligir ("o arrependimento remordia o criminoso"). Remorso veio do latim remorsu, particípio de remordere, morder de novo, atormentar. Quer dizer, remorso é etimologicamente mordido outra vez. Por quem? Pela consciência. A palavra foi usada pela primeira vez, com o sentido de arrependimento, pelo poeta francês Rutebeuf (século XIII), na expressão remors de conscience, remordimento da consciência.

SAIR À FRANCESA
É sair de fininho, sem ser notado.
Os francos eram tribos germânicas que apareceram no século III. No século V, invadiram a Gália (país que ficava no atual território da França). Na língua dos francos, o frâncico, a palavra frank significava livre, liberal, isento - os francos não pagavam impostos na Gália por serem seus conquistadores. Frank deu no francês franc e daí foi para o português franco, com sentidos próximos ao do vocábulo frâncico original: sincero, gratuito (entrada franca), livre de impostos (zona franca).
Sair à francesa, então, seria originariamente sair franco, no sentido aduaneiro, ou seja, sair livremente, com isenção, sem demora para conferências de papéis e para cálculo de impostos a cobrar. Revoltados, os franceses, em respeito à sua [messe e em provocação a seus tradicionais adversários, criaram a expressão substitutiva filer à l"anglaise, sair à inglesa.
No português, franco originou franquear, permitir, livrar de impostos, e franquia, isenção, imunidade, licença.
O inglês [ranchise também veio do francês franc.

Fonte:
PIMENTA, Reinaldo. A casa da mãe Joana 2. RJ: Elsevier, 2004

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) Aventura do Príncipe – II – Entram todos

Enquanto tia Nastácia, depois de colocar a tranca na porta, procurava arrastar a mesa para formar uma barricada, o príncipe e sua comitiva iam subindo pela escadinha que o menino trouxera.

Subiram e pularam para dentro da sala. Quem primeiro pulou foi o doutor Caramujo. Tia Nastácia, ainda às voltas com a mesa, ouviu o barulhinho e voltou-se. Deu um berro.

— Acuda, sinhá! Estão pulando pela janela! Olhe quem está atrás de mecê! Um bichinho de óculos, que é um verdadeiro “felómeno...”

Narizinho explicou:

— Não tenha medo, vovó. Este é o doutor Caramujo, o grande médico que fez Emília falar. Tem pílulas para todas as doenças. É até capaz de curar aquele pinto sura que está com estupor.

Dona Benta havia voltado o rosto e visto atrás dela o doutor Caramujo, de óculos, a lhe fazer um cumprimento muito amável. E o seu espanto, que já era grande, cresceu ainda mais ao ver surgir na janela um peixinho vestido de rei.

— Este é o meu esposo, o príncipe Escamado, rei do reino das Águas Claras — explicou Narizinho, fazendo as apresentações. E esta senhora, príncipe, é a minha querida vovó, dona Benta de Oliveira.

Com uma gentil cortesia, o príncipe murmurou, todo amável:

— Tenho muita honra em conhecê-la, minha senhora e peço-lhe permissão para a tratar de vovó também.

A pobre velha por um triz que não desmaiou. Abanou-se muito aflita, uff, uff!... Depois, voltando-se para a negra:

— Ele fala mesmo, Nastácia! Fala tal qual uma gente...

A preta fez o sinal da cruz. Enquanto isso os outros fidalgos da corte foram pulando. Pulou o venerando Bernardo Eremita. Pulou a senhorita Sardinha. Pulou dona Aranha Costureira. Pulou o major Agarra-e-não-larga-mais. Cada um que pulava era um novo berro de tia Nastácia.

— E uma sardinha agora, sinhá! — ia ela exclamando. — E agora uma aranha! E agora um sapo! O mundo está perdido...

Por fim não agüentou mais: disparou para a cozinha. Dona Benta, porém, foi se acostumando, e dali a pouco já não estranhava coisa nenhuma. Começou até a achar uma graça-enorme em tudo aquilo.

— Você tem razão, minha filha — disse ela por fim. – Esse mundo em que você e Pedrinho vivem é muito mais interessante que o nosso.

E ferrou numa prosa comprida com o doutor Caramujo a propósito da doença do pinto sura. Enquanto isso Narizinho ia mostrando ao seu amado príncipe as coisas da sala. Mostrou o relógio da parede, mostrou os pratos do armário, mostrou o pote d’água. O que mais mexeu com o peixinho foi um guarda-chuva que estava a um canto.

— Para que serve isto? — perguntou ele.

— Para a gente não se molhar — respondeu a menina.

— Por que não o levaram, então, na viagem ao fundo do mar?

Tanta graça achou a menina nessa pergunta, que não resistiu à tentação de agarrá-lo e beijá-lo na testa.

— Você é um burrinho, sabe, príncipe? Um amor de burrinho...

Como ignorasse o que queria dizer burrinho, o príncipe não se ofendeu. Depois, notando a ausência do Visconde de Sabugosa e do marquês de Rabicó, pediu -notícias.

— O Visconde levou a breca — respondeu a menina. — Voltou da viagem ao fundo do mar tão encharcado que tive de pendurá-lo no varal de roupa para enxugar. Mas ficou mal pendurado. Deu o vento e caiu e ficou esquecido num canto por muito tempo. Resultado: deu nele uma doença esquisita chamada bolor. Ficou todo verdinho, coberto dum pó que sujava o assoalho. Embrulhei-o, então, num velho fascículo das Aventuras de Sherlock Holmes que andava rodando por aí e o botei não sei onde. Com certeza já morreu...

— Que horrível desgraça! — exclamou o príncipe seriamente compungido. — Logo que voltar ao reino hei de decretar luto oficial por sete dias.

— Não vale a pena, príncipe! O nosso Visconde já andava meio maluco com as suas manias de sábio. Ficou tão científico, que ninguém mais o entendia. Só falava em latim, imagine! Logo chega o tempo da colheita de milho e eu arranjo um Visconde novo.

— E o senhor marquês?

Narizinho teve receio de contar que fora Rabicó o ladrão da coroinha do príncipe. Limitou-se a dizer que como estivesse emagrecendo muito, tia Nastácia o pusera num chiqueiro para engordar.

— Muito simpático o marquês — disse o príncipe por amabilidade. — Também acho muito simpática a senhora marquesa.

— Eu quero tanto bem à Emília — explicou Narizinho – que tenho vontade de desmanchar o seu casamento com o marquês para casá-la com o gato Félix. Emília não está sendo feliz no primeiro casamento.

— Por que, se não é indiscrição?

— Os gênios não se combinam. Além disso, Emília não se casou por amor, como nós. Só por interesse, por causa do título. Emília não é mulher para Rabicó. Merece muito mais. Merece um senhor sacudido e valente como o gato Félix. É verdade que ele está a serviço da corte?

O príncipe mostrou-se surpreso.

— Gato Félix? — disse franzindo a testa. — Não conheço esse freguês...

— Como não, se foi ele quem trouxe a notícia da sua visita, príncipe?

— Não pode ser! Mandei o recado por uma sardinha...

Narizinho ficou a cismar. Lembrou-se de que quando dera o beijo no focinho do gato sentira um cheiro de sardinha. “Querem ver que ele comeu a mensageira do príncipe com o recado e tudo?” — pensou consigo. Nada disse, porém, para não entristecer o seu querido maridinho. E, mudando de assunto, convidou-o a dar uma volta pelo sítio.
––––––––
Continua... Aventura do Príncipe – III – Tia Nastácia e a Sardinha

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Trova Ecológica 56 - Francisco José Pessoa (CE)

Montagem sobre imagem obtida em www.familiaborbapinheiro.com

Carolina Ramos (Asas do Brasil)


Ser pássaro... Voar... ser a lufada
de brisa que circula sem caminhos...
Ser Ícaro sem quedas! Ver nos ninhos
o condor, rei da altura! Ter a alada

sorte de um Pégaso! Na cavalgada,
meio às nuvens de um céu feito de arminhos,
levar Perseu, fugido aos pergaminhos,
aos pés de Andrômeda, infeliz amada!

Santos Dumont contempla o espaço e sonha:
- Nessas nuvens, distantes caravelas,
dormem promessas em macia fronha:

" - O homem voa!" - Aspirando o azul profundo,
arroja-se! ... E asas verdes e amarelas,
põe nas espáduas de um surpreso mundo!

Fontes:
Carolina Ramos. Destino: poesias. São Paulo: EditorAção, 2011.
Imagem = http://www.culturabrasil.pro.br/

Aníbal Machado (João Ternura)


Iniciado na época em que se publicava Macunaíma, o livro João Ternura, assim como sua personagem principal, custou a nascer. Mas afinal, depois de 40 anos, apareceu com as marcas congênitas do Modernismo. A obra foi publicada postumamente em 1965, um ano após a morte do autor. Não se sabe ao certo quando Aníbal Machado começou a trabalhar nele. Mas não há dúvida de que o escreveu e reescreveu durante décadas.

O título é uma referência ao protagonista, espécie de alter-ego do autor. O romance é formalmente fragmentário, pois existe a presença de surrealismo, de álbum de momentos perdidos, memórias de uma infância mineira, é um romance de confissão de um adulto na confusão carioca.

O herói, "lírico e vulgar", como se cognominou durante o largo período de gestação, caminha dispersivamente, do nascimento à morte, sempre "sapeando".

João Ternura mistura realidade e supra-realidade, ficção e memória, prosa e verso.

A obra envolve o inconsciente, a turbulência e o “rumor da alma” (marca do estranho, onírico).

No prefácio, declara Aníbal Machado que, "com acréscimos, supressões e pequenas modificações no já feito, além da elaboração quase total da segunda parte em diante, procurei dar-lhe (ao livro) arranjo adequado à vida de seu morador: esse pobre João Ternura que nas nuvens melhor ficaria, uma vez que sua simplicidade e inocência nem sempre encontravam resposta num mundo em que não conseguiu (e nem suportava) atingir a chamada idade da razão e das conveniências sociais que tão tristemente já alcançamos.

Diluídas em névoa poética as contradições de pequeno-burguês, o herói parou, espantado, a meio caminho de sua libertação, quando começava a ter uma consciência menos confusa da realidade."

Estrutura

Esse romance "episódico-rapsódico-lírico", como o classificou Fausto Cunha, apresenta-se dividido em seis livros.

Personagens

João Ternura: é lírico, lúdico, engraçado, generoso, alegre, inerente, polimorfo. É em boa medida uma encarnação do povo brasileiro, em seus ganhos e perdas no esforço para crescer não apenas materialmente, mas ainda em termos de justiça e liberdade, de democracia e afirmação cultural. Como não busca apenas o crescimento pessoal, Ternura envolve-se em lutas populares e pratica atos heróicos - e perfeitamente inúteis - durante uma das revoluções que sacudiram o país na primeira metade do século XX.

Antônio e Liberata: pais de João Ternura.

Natália e Marina: tias de João Ternura.

Isaac: amigo de travessuras na infância.

Manuel: dono da gráfica.

Luisinha: irmã de Manuel.

Arosca, Silepse, Matias, Pepão, Biba e Josias: amigos da pensão.

Marilene e Rita: mulheres com quem se relacionou.

Jeremias: ex-repórter, bêbado.

Enredo

Livro I

O primeiro livro registra evocações, peripécias, sensações do período que vai do nascimento de João Ternura na fazenda até sua entrada para o colégio interno. É onde se registram as primeiras travessuras de João Ternura.

É neste livro que se conta da fuga do sítio, uma busca de lugares desconhecidos.

João Ternura escuta seus pais em relação sexual e o suspiro de tia Marina: Ah, como eu queria sentir aquelas dores de minha irmã!... De minha irmã que estava gemendo!... Tanto eu queria...

As histórias de Dona Iaiá também estão registradas neste livro I:eram as curiosidades sobre o mundo; e é neste livro tambám que Ternura descobre a pedra.

JoãoTernura é levado pelo pai ao internato.

Neste livro o autor realiza estilisticamente, pergunta sobre pergunta, a recuperação do mundo e da linguagem infantis. Nota-se também a fixação do fluxo de consciência de Ternura, também presente em outros passos do livro (chama-se também, a esse processo, monólogo interior).

Livro II

O segundo livro assinala o início da decadência econômica do pai, cujo negócio de barcas se tornara anacrônico com a construção da estrada. Ternura foge do colégio, nove meses depois.

No livro II nota-se a referência que Liberata, mão de Ternura, faz a um passo anterior, que não consta na antologia, onde ela está lavando roupa com as amigas e sonhando com o nascimento de João. Uma das amigas, então, aventa perversamente a possibilidade de João nascer gigante ou anão, polvo ou aranha. Existe ainda nesse livro a inclusão do poema integrando a narrativa.

Livro III

A partir do terceiro livro, já se encontra no Rio de Janeiro.

Conversa com o primo, as dificuldades: timidez, jeito de falar e andar, etc. Conversa com o mar: Mar, o que eu queria te dizer é que pertenço a uma espécie aborrecida que não escolhi. Posso um dia optar pelas tuas águas? Mergulha-se e fica... Ninguém vai notar a ausência...

É neste livro que Ternura conhece Rita: tempestade, aconchego, cuida dele, beija-o e ele desaparece.

Mostra a vida na pensão, a amizade com Manuel, os tipos que lá habitavam.

Dá-se um tratamento irônico à Revolução de 1930 e referência à Macunaíma, do livro de Mário de Andrade.

A lei contra lei do amor: surpreendido com uma menor, Ternura é preso.

Seus novos amigos: Matias, Pepão etc.
Numa carta, a mãe pede para que volte e ele nega.

O livro III fala da morte de Saint-Hilaire (Sentalher), onde logo após João Ternura, vai pra um bordel, desanimado, bebe e delira.

É registrado também sua conversa com Matias e Pepão sobre a Revolução: ele deveria tentar com o ministro uma aposentadoria.

Livro IV

Registro do diálogo com Matias e Manuel.

João Ternura sente saudades da chácara. Com a morte os pais, os parentes se dispersaram.

Matias, Pepão e Ternura saem com quatro mulheres. Nova sedução: Marilene (saudades e carta de amor). João Ternura tem constantes frustrações amorosas.

João trabalha na gráfica de Manuel como e quando quer e desaparece.

Pensa em um mundo ideal : o Reino de Bubuia.

Livro V


No livro V existe a relação irradiação / presença da amada, constante em Aníbal. Veja em Viagem aos Seios de Duília, por exemplo.

Flashback de Ternura: “Sob o céu do oeste, à beira de um rio, a chuva há muito vem saindo sobre os ossos de uma chácara abandonada. Sim, os anos teriam de correr... correram – e ele não percebia. Agora, está vendo nos destroços os sinais da passagem e velocidade dos anos.
Agressão do passado. Por que se revela de uma só vez tudo o que vinha se desmanchando em sigilo e devagar?
Ah, cadáver do mundo, vegetações da ausência!...
E tanto tempo a esperar a coisa, o grande segredo, a razão de ser!”

João reencontra Rita: “Rita enfeitada!... Dormindo ou fingindo que dormia... Mais poderosa dormindo que acordada.(...)

Correu a olhá-la de perto. A mão viajou por curvas e relevos. Com delicadeza para não despertá-la. Ele se deitou sobre ela, gemeu em cima, penetrou-a.
Como não acordar agora à pressão de outro corpo? Ou estria ela repetindo no abraço do momento o abraço permanente e universal de suas noites?”

A morte de Juca do Timbau. Preocupação com chuva no carnaval.

Livro VI

No livro VI há uma referência ao delírio de Ternura.

O fecho do romance decorre durante os três primeiros dias de um carnaval carioca, acontecimento que não serve apenas para desatar as necessidades do corpo, mas também para liberar o espírito crítico dos vários João Ternura que participam da festa.

No carnaval um orador de rua denuncia em linguagem meio joyceana os dilemas do mundo contemporâneo; e enquanto o samba rola, personagens não identificados divulgam um manifesto em favor dos que não têm lugar na sociedade, bem como o texto de um telegrama no qual se defende a liberdade da poesia e a renovação da literatura no Brasil.

Fonte:
http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/analises_completas/j/joao_ternura

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 413)


Uma Trova Nacional

Dizemos que o tempo voa,
e enquanto filosofamos,
ele vive aí... à toa,
e somos nós que voamos!
–DOROTHY JANSSON MORETTI/SP–

Uma Trova Potiguar

A despedida, a mais leve,
fere mais do que punhais:
- Se me dizes: "Até breve",
eu cuido ouvir: "Nunca mais"...
LUIZ RABELO/RN–

Uma Trova Premiada

2009 - Ribeirão Preto/SP
Tema: LINHA - M/E

A linha do trem recorda
o dia em que tu partiste,
e o meu coração acorda...
pulsa a dor que produziste.
–ELISA ALDERANI/SP–

Uma Trova de Ademar

A Lua tão linda e terna,
no meu sertão, por ciúme...
Acende a sua lanterna
e apaga a do vaga-lume.
–ADEMAR MACEDO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram


Não tenho calma!... Não posso
esquecer tão de repente,
o grande amor que foi nosso
e hoje em dia é meu somente...
–NYDIA IAGGI MARTINS/RJ

Simplesmente Poesia

Eu Sou Aprendiz.
–FLAUZINEIDE MACHADO/RN–

Entre versos e rimas,
Eu escrevo poesias
Histórias contadas
Para serem sentidas.

Entre versos e rimas,
Eu escrevo emoções
Para serem vividas
Entre corações.

Entre versos e rimas,
Saio a caminhar
Para aprender,
Para ensinar.

Entre versos e rimas,
Canto feliz
A reviver.

Estrofe do Dia

A poesia é uma fonte
que não se esgota jamais;
está nas flores, nos frutos,
no canto dos sabiás,
até na gota de orvalho
que pinga de cada galho
há versos sentimentais!
–PROF. GARCIA/RN–

Soneto do Dia

Carta.
–DÉCIO DUARTE ENNES/PR–

Escrevo-te, querida, a última carta,
e nela envio o meu saudoso adeus
com o qual seguirão os dias meus,
que de viver minha alma já esta farta!

Tudo de mim agora já se aparta,
e o próprio Amor – este menino-deus –
já me renega e põe-me entre os ateus,
a mim, cuja existência quis eu dar-ta!

Poucas palavras restam-me, bem poucas,
(talvez, até as julgues tu bem loucas...):
Ofereci-te o amor – e o recusaste!

Ofereci-te a vida – e a não quiseste!
Agora eu te devolvo o que me deste:
- Os versos de um poeta que inspiraste!

Fonte:
Textos e imagem enviados pelo Autor

José Carlos Dutra do Carmo (Manual de Técnicas de Redação) Parte IV


COLISÃO.

É a seqüência desagradável de consoantes ou sílabas idênticas.

ORAÇÃO COM COLISÃO
Jorge já jantou.
REDAÇÃO MELHOR
Jorge acabou de jantar.

ORAÇÃO COM COLISÃO
O rato roeu a roupa da rainha.
REDAÇÃO MELHOR
O rato roeu os nobres tecidos que compunham os trajes da rainha.

COLOQUIALISMO.

Uso da língua na forma como é escrita, ou seja, é uma armadilha para o aluno o emprego de termos coloquiais, gíria e jargão. Expressões coloquiais só são aceitas na reprodução de diálogos. Isso não significa que o texto tenha de ser empolado, de difícil entendimento.

Evite usar as expressões: só que, que nem, é o seguinte, etc.

COLORIDA.

Procure dar, às suas personagens, uma linguagem não só adequada, mas, também, colorida por imagens pertinentes, ligadas a elas e ao assunto.

A senhora soltou um pequeno grito, e o rapaz, de vermelho que estava, fez-se cor de cera; mas Botelho procurou tranqüilizá-los.

O primeiro raio do sol encontrou Tapirapé moreno, pele molhada, com cabelo e olho bem cor de noite sem lua, sentado na folha redonda do mururu.

COMEÇO.

Uma redação não é nenhum bicho de sete cabeças. Respire fundo. Três vezes. Devagarinho. Deixe o ar chegar lá embaixo, no fundão da barriga. Visualize o umbigo. Sorria para ele. Por dentro e por fora. Escolha uma frase bem atraente. Pode ser uma declaração, uma citação, uma pergunta, um verso, a letra de uma música. Depois desenvolva o seu tema. Cada idéia num parágrafo. Por fim, conclua. Com fecho de ouro.

COMPARAÇÃO.

É a aproximação de dois termos entre os quais existe alguma relação de semelhança, como na metáfora.

Quando usar comparações, escolha a conjunção que as introduz em função do tipo de linguagem que está empregada.

Use a comparação, hipotética ou não, quando perceber que estabeleceu entre o ser que você descreve e outro uma semelhança interessante e que ela vai enriquecer seu texto.

A liberdade das almas, frágil, frágil como o vidro.

A chuva caía como lágrimas de um céu entristecido.

As chamas, como língua de monstro, saíam pelas janelas.

COMUNICAÇÃO.

Em situações de comunicação descontraída e, sobretudo, oral, você pode, conforme o caso, substituir o futuro do presente pelo imperativo.

Não saia (sairás) até que tenhamos concluído esta conversa.

Eu não sabia que ele era o meu pai. Veja (verás) que não minto, basta que me dê a oportunidade de provar.

CONCISÃO.

Elimine palavras ou expressões desnecessárias.

Escreva com clareza e, na medida do possível, diga muito com poucas palavras.

Concisão, clareza, coesão e elegância: palavras-chaves que definem um texto competente num exame vestibular.

Seja claro, preciso, direto, objetivo e conciso. Use frases curtas e evite intercalações excessivas ou ordens inversas desnecessárias.

O aluno deve expressar o pensamento com o menor número de palavras possível. Aquilo que é desnecessário deve ser eliminado. A concisão dá ênfase ao estilo. O prolixo prejudica e enfraquece o texto, além de tirar o brilho de suas idéias.

EM VEZ DE…......……………………..…………..EMPREGUE
...neste momento nós acreditamos. ………...acreditamos.
Travar uma discussão…………………………..Discutir.

CONCLUSÃO.

Não conclua sua redação, jamais, com as seguintes terminologias: concluindo, em resumo, nada mais havendo, poderia ter feito melhor, como o tempo foi curto, etc.

Termine-a, sim, com conclusões consistentes (e não com evasivas).

CONCORDÂNCIA.

Cuidado para não cometer erros gramaticais, como de concordância.

Lembre-se de que o verbo sempre concordará com o sujeito e os nomes devem estar concordando entre si.

ERRADO
Falta cinco alunos.
CERTO
Faltam cinco alunos.

ERRADO
Fazem dez dias que não chove.
CERTO
Faz dez dias que não chove.

ERRADO
Minhas férias começou.
CERTO
Minhas férias começaram. (plural, com plural, isto é, férias concordando com começaram).

ERRADO
Os meninos saltavam descalço sobre as poças d´água da rua.
CERTO
Os meninos saltavam descalços sobre as poças d´água da rua.

Fonte:
http://www.sitenotadez.net

Paraná em Trovas Collection - 18 - Marivete Souza de Moura (Ponta Grossa/PR)

Emiliano Perneta (Ilusão) Parte 17


PUNIÇÃO DO HEREGE

Ao Leite Junior

Foi no ano de mil setecentos e treze,
No meio do esplendor de vasta diocese.
Perante o tribunal da inquisição feroz,
Ninguém ousava erguer os olhos nem a voz.
Era tal o terror, então, que só de vê-lo,
O sangue dos heróis se transformava em gelo.
Tempos nefandos de catástrofe moral,
Dos holocaustos e do veneno e punhal.
A vileza, a traição, a vergonha e o crime,
Tudo para servir a igreja era sublime.
Para a louvar, enfim, para a satisfazer,
Toda abominação era um grande prazer,
Um prazer ideal, um prazer infinito,
Insaciável, mau, diabólico, esquisito...

Ora, morava ali, quase à beira do mar,
Um moço, um fazedor de castelos no ar...
Tinha uma velha mãe e uma jovem esposa,
Que era como se fosse o aroma de uma rosa.
E viviam os três numa tal união
Como três almas a bater num coração!
Elas, metidas em lucubrações tamanhas,
Dia e noite a tecer como duas aranhas,
Teciam com amor, com singeleza e com
Arte, o linho ideal, o linho puro e bom.
Ele, sempre febril, mas de aspecto risonho,
No mármore do verso ia gravando o sonho...
Mas com tal limpidez e com uma graça tal
Como um raio de sol que ferisse um cristal.
E por isso também lhe corriam as horas,
Por esse vasto azul, magníficas, sonoras,
Bem como um colar de pérolas a cair,
Pérolas do Ceilão e pérolas d’Ofir...

O tribunal, porém, da inquisição não via
Com bons olhos crescer essa águia que subia...
Causava-lhe temor, assombrações até,
Que ele tivesse gênio e não tivesse fé.
Mas a imaginação dos filhos de Loyola,
Arrastando o bordão, de burel e sacola,
Para fazer o mal terrível e sutil,
É mais fértil talvez e maior que o Brasil.
E pois, quando passava em certo dia pela
Rua a jovem mulher formosíssima, ao vê-la,
Um abade a chamou pelo nome. Ela, assim
Interpelada, olhou: “Que desejais de mim?”
O abade era um senhor poderoso, que tinha
A ventura de ser o amante da rainha.
Tinha de Don Juan a maneira cortês,
O olhar, o gesto, a voz, o manto e a languidez.
Com o pulso de Sansão e a garganta de Baco,
Era gordo e taful, insolente e velhaco.
Tinha essas frases vãs, que sempre uma mulher
Acolhe com desdém, mas ouve com prazer.
Quando o sangrava o amor, um ferrão que aguilhoa,
Era o abade Manuel a luxúria em pessoa.
Mas, sem medo de errar, também direi, que então
Era o esteio da igreja e da religião.
“Que desejais de mim, senhor abade?” – “Filha,
O nosso encontro aqui foi uma maravilha.
Eras a ovelha ruim, que ia se desgarrar,
E eu fui, por bem dizer, teu anjo tutelar.
Pude agarrar-te, por um fio de cabelo,
Que por sinal é de um louro acendrado e belo...
Intervenção talvez daquele que nos céus
Tudo vê, minha flor. Foi o dedo de Deus.
Hoje, pela manhã, relendo teu marido,
Eu comigo pensei: eis um homem perdido!
Simbólico, através do símbolo, porém,
Ele diz o que quer, e à cabeça lhe vem.
É o inimigo, pois, mais duro e mais violento
Que investe contra nós, porque ele tem talento.
Mas é um doido também, um pobre doido, que
Não sabe contra quem está lutando, crê...
Tenho pena de ti, mas uma enorme pena,
Tu não deves seguir esse maluco, Helena.
Fui eu quem te benzeu na pia batismal,
E os santos óleos pôs e a pedrinha de sal...
Contra aquele que o mundo e as coisas todas rege
Esse doido te quer arrastar. É um herege.
Vamos, foge do mal, foge da tentação,
Entra naquela igreja e faze a tua oração. –”
A moça, erguendo o olhar, límpido como a estrela,
Feriu o abade assim, nervosamente bela:
“Se meu marido é herege eu não o sei, porém
Posso afirmar, senhor, que ele é um homem de bem;
Que é incapaz de fazer o que fazeis agora,
Encontrando na rua uma pobre senhora...
Nunca me proibiu de ir à igreja, bem sei,
Mas onde ele não for, eu também não irei.”
E inclinando de leve a formosa cabeça,
No seu passinho curto ela seguiu depressa.
Findava a luz do sol, como uma guerra em paz,
Toda vestida assim de um roxo de lilás.
Quando Helena chegou à casa, disse tudo.
O marido cingiu a blusa de veludo,
A espada; a mãe, porém, interveio: que não,
Que não fizesse tal, não havia razão,
Quem o dissera foi aquele doce guia:
Não havia razão... É porque não havia!
Ele, cuja cerviz ninguém ousou curvar,
De sua mãe bastava o mais simples olhar...
No outro dia, porém, quase ao romper da aurora,
Vieram-no chamar: que fosse sem demora...
Sem saberem por que, despedindo-se os três,
Choraram, como se fosse a última vez.

Ele foi posto, sem piedade nem mágoa,
Dentro de calabouço escuro, a pão e água.
O cabelo cortado à escovinha e os pés
Algemados, assim como os pobres galés...

Mas, um dia, através daquela estreita grade,
O perfil lobrigou asqueroso do abade,
Que lhe disse: “Tu és de uma injustiça atroz,
De uma injustiça vil para com todos nós.
Embora penses tu e a mocidade clame
Que sou mau e traidor e rancoroso e infame,
No fundo sou cristão e sou filho de Deus:
Sei perdoar, não sou como vocês, ateus!
Todo perdão, porém, somente frutifica
Quando há luz e calor e a natureza é rica.
Assim, ó meu irmão, sobretudo é mister
Que haja arrependimento em ti e tua mulher...
Que ambos saiam do mal criminoso e tamanho
Como as ovelhas que tornam ao seu rebanho.
Foi pela pena que te perdeste, pois é
Com a pena que farás a profissão de fé...
Para traçá-los já com brilho esses poemas,
Depressa mandarei arrancar-te as algemas...
Mas teu crime maior, tua condenação
Sobretudo provém dessa irreligião,
Que tu levaste ao lar, ao coração da esposa,
Que não tem mais amor nem fé religiosa...
Trêmulo de remorso ante o teu Criador,
Confessa o teu orgulho e abate o teu furor.
E antes que desça, pois, como um fogo que arde,
A ira do Senhor, que desce cedo ou tarde,
Possas remediar esse pecado vil,
Insidioso, mau, cativante e sutil,
Fazendo que essa flor, cuja doçura alveja,
Torne como um cordeiro ao seio bom da igreja:
Que chorando de dor, de vergonha e pesar,
Venha hoje mesmo aqui para se confessar.
Quero vê-la tremer, quero ter esse gozo,
Aos pés daquele que é pai todo poderoso!”
E calou-se, entreolhando o prisioneiro... Em vão...
Este a rugir de dor só respondeu-lhe: cão!

Mas dessa hora em diante, ó céu piedoso e justo,
Transformou-se a masmorra em leito de Procusto,
Em dilacerações bárbaras de punhais,
Carnificina atroz, ugolina e secreta,
Mais aguda do que se fosse uma lanceta...
Para lhe mitigar a sede mais cruel,
Faziam-no sorver taças cheias de fel.
Entre sussurros e místicos padrenossos,
Trituravam-lhe a carne e quebravam-lhe os ossos...
De tal modo que em breve esse pobre infeliz
Não foi menos nem mais do que uma cicatriz,
E nem menos nem mais do que um triste esqueleto,
De longas mãos febris e de olhar inquieto...

Vendo o verdugo, enfim, numa dessas manhãs,
Que as torturas brutais não tinham sido vãs;
Vendo que finalmente a luz dessa candeia,
Sob o vento feral da morte bruxuleia,
Como um requinte mau, jesuítico, feroz,
Alçando o olhar, erguendo as mãos, erguendo a voz,
Ele fala do céu, triunfalmente belo,
Lembra que a vida é um sonho, e a morte, um pesadelo;
E antes que de uma vez se apagasse essa luz,
Deu-lhe para beijar o corpo de Jesus.

O moribundo olhou o pálido Rabino,
Esquelético, nu, macerado e divino:
“Sei que foste, Jesus, uma espada em favor
Da justiça, do bem, da luz e do amor;
Hoje, porém, estás do lado do carrasco,
Dos que me fazem mal, dos que me causam asco:
Não te posso querer, sincero como sou!”
E virando-lhe a face, em verdade expirou.
Fevereiro – 1909

Fonte:
Emiliano Perneta. Ilusão e outros poemas. Re-edição Virtual. Revista e atualizada por Ivan Justen Santana. Curitiba: 2011