quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Nilto Maciel (O Bom Selvagem) 3a. Parte

REGRESSO

Com muito esforço chego aqui. Não foram poucos os momentos em que o desvanecimento me sugeriu deixar de lado essa ideia de escrever sobre mim mesmo. Primeiro porque me reconheço pobre de palavras. Segundo porque meu passado, escrito ou não, não será outro nunca, a menos que eu minta. Terceiro porque não vejo grandes recompensas para mim no fato de contar minha vida.

De outras vezes, porém, tenho sido impelido a dar continuidade à minha obra. Impele-me, por exemplo, a vaidade. Serei um escritor, terei um livro. Além disso, sei da existência de milhares de livros pequenos, ora porque copiam obras maiores, ora porque não traduzem nada de relevante, embora seus autores usem e abusem do vocabulário e não arredem pé da sintaxe. O escritor, não sendo máquina, fatalmente foge aos mecanismos gerais e, errando, realiza aquilo de que só ele é capaz – a invenção. Assim sendo, meu passado ninguém pode modificar, mas eu tenho a plena liberdade de narrá-lo como bem eu entender. Posso ainda imaginá-lo, em vez de resgatá-lo dos labirintos da memória.

Contradigo-me mais uma vez, se disser que poderei ser recompensado, se acaso conseguir fazer do bobo dos salões parisienses-romanos um homem plenamente consciente de si mesmo.

Não me interesso mais por recompensas. Ficarei feliz, no entanto, se meu livro servir para que outros vejam o índio como o portador da cultura vindoura ou, pelo menos, fonte de inspiração para um novo mundo.

E aqui retomo o ímpeto dos primeiros momentos e já não quero relembrar a viagem à Europa. Ainda assim, dentro de meu coração estão todos os lugares onde estive, avenidas de Paris, praças de Roma, o mar, pedaços de minha terra.

Relembro o regresso à Missão. Completava 17 anos de vida e só almejava rever minha formosa Aroia. Voltar ao Boqueirão, rever meus parentes, minha terra, os bichos, o mato.

Fui recebido como herói. Todos me olhavam cheios de curiosidade e me faziam perguntas as mais inocentes. Satisfiz a todos, inclusive com presentes. Um vestido para a irmã, um par de meias para a mãe, isto para fulano, aquilo parra sicrano. E uma carícia sem fim na passada menina Aroia, agora mais bonita, cheia de corpo, feita moça, chamada por todos Lucina.

Aroia mal sabia ler, seus pais e antepassados nunca chegaram a chefes. Nela não havia nada que a distinguisse das outras mocinhas. A mesma cor da pele, os mesmos olhos negros. No entanto, eu a amava desde menino. Atraía-me nela qualquer coisa esquisita – a faceirice do andar, os olhos de mistério, o pecado prometido.

De nada eu podia me queixar e via tudo vivo, belo, colorido. Não havia ainda parado para pensar e nem necessitava disso. Minha vida tinha sido até então um interessante movimento ritmado de alegrias. Como se nunca meu povo tivesse se dividido. Como se jamais um estrangeiro houvesse pisado nossas terras com intenção de tomá-las. Como se fossem apenas um sonho breve – mentirinha de pernas curtas – os acontecimentos que terminaram por fazer de mim a mascote dos europeus.

Como fui egocêntrico! O mundo pegava fogo ao meu redor e eu a me sentir adorado. No entanto, eu próprio me queimava, embora não sentisse na pele o ardor das labaredas, tanto dormia ou parecia morto.

MESTRE-ESCOLA

Nesta terrível noite de insônia relembro o que fiz e podia ter feito na vida.

Há dias nem olho para a História do Brasil e os padres devem estar ansiosos para ver concluído meu trabalho. Talvez me chamem de preguiçoso. Pode pensar todas as hipóteses, padre Tonelli, inclusive que estou reescrevendo o tal livro. Ou mesmo inventando tudo, desde o começo. Na verdade, estou desiludido e decepcionado. E não é de hoje. Por que nossa História deve remontar a antes que o rei Fernando falecesse? Por que nossa História deve ter situados seus primórdios na ocidental praia lusitana? Por que nossa História deve afluir de Leão, Aragão, Navarra e Castela? Na verdade, padre Tonelli, eu queria falar do tempo de Tadugo, Bacororo, Itubori, dos personagens de nossos mitos e nossas lendas. Partir do mato e dos rios do Brasil. Porém, senhores padres, quem escreveu a História do Brasil foram os filhos das Dinastias de Borgonha e Avis, e nós, os primeiros filhos desta terra, nunca escrevemos nada. A História do Brasil engatinhou no estrangeiro. É como se quisessem contar minha vida e começassem assim: “Em 1495 Carlos VIII invadiu a Itália, quando Leonardo da Vinci iniciava a pintura da Última ceia. Quatro anos mais tarde, Miguel Ângelo esculpiu a Pietá. Etc, etc. Aos 15 anos de idade o índio Bokodori visitou Roma e ...”

Não sei dar os motivos dessa “decisão” de relatar minha vida, justamente agora e quando chegava às últimas páginas da tradução que me foi confiada pelos padres. Alguma coisa a motivou, tenho certeza. E por que agora e não antes? Nunca me ocorreu contar minha epopeia, mesmo quando li romances, biografias, diários, memórias. As vidas dos outros sempre me pareceram infinitamente mais maravilhosas do que a minha. Já agora vejo o maravilhoso não mais nas ações heróicas por si mesmas, mas no contexto da narrativa.

Haverá alguma relação entre a decisão de escrever minha história e a tradução que empreendo? Possivelmente sim. Basta constatar que traduzir é também escrever. Copiar, ler são igualmente exercícios intelectuais, de criatividade. Ninguém lê ou copia sem ferir, modificar, recriar o texto lido ou copiado.

Não é essa a relação principal, no entanto. Porque traduzi a Bíblia e não escrevi minha história. A Bíblia é judaica e muito antiga. Já a História do Brasil é portuguesa e brasileira, e eu alcancei a declaração de guerra pelo governo brasileiro aos Impérios Centrais. Eu tinha 19 anos de idade, havia dois com Lucina vivia, e ela se apaixonou por outro.

Esta talvez seja a quarta revolução mais importante na minha vida. Na primeira, quando os padres me descobriram, eu me sentia tão diferente dos meus companheiros que até os via como pequenos animais.

Na segunda, quando conheci a Europa, senti-me diferente e até superior aos europeus. Nada me parecia estranho, como se eu fosse anterior a eles. Aprendi suas línguas e seus costumes, numa rapidez e facilidade fora do comum, como se apenas tivesse vivido alguns anos na selva. Alguns dias.

A terceira revolução em minha vida se deu quando reencontrei Aroia e com ela me casei. Senti-me o único homem capaz de ser dela.

Logo após regressar da Europa, arranjaram-me os padres a função de mestre-escola, na própria colônia. Por isso, a mim chamam professor Daniel. Nos primeiros dias dediquei-me de corpo e alma aos alunos. Ministrava-lhes aulas de aritmética, gramática, geografia, história, religião, tudo, sem deixar de contar episódios de minha viagem e estada nas capitais europeias. O tempo das aulas, porém, parecia-me curto demais. Uma ou duas horas por dia mal davam para ensinar o á-bê-cê. E os meninos não aprendiam nada. Aquilo me chateou e fez perder o gosto pela escola. Preferia caçar ou estar em casa. Sobretudo caçar. Como eu me sentia feliz no mato, feito um bororo! Aquela vidinha parada, sem sentido, me aborrecia. Vigiado o tempo todo pelos padres, tanta reza e besteira, conversa e mais conversa, tudo me mandava de volta ao mato. E, enquanto eu caçava, Aroia me atraiçoava.

O primeiro filho dela não me pertenceu, e ela acabou saindo de casa. Passou a viver com o outro, enquanto eu mais me escondia no mato, já demitido da escola.

Eu não podia viver só, porém. E também deixei nossa casa. Digo nossa porque esta casa não é minha, é dos ventos e da chuva, do sol e da poeira.

No Boqueirão havia muitas mulheres e nunca estive solteiro. Ora, o mato me dava caça a qualquer hora e o mundo andava cheio de mulheres. Para que lamentar o pecado (como diziam os padres) de Lucina? O que quiser a vontade, quanto desejar o corpo, tudo seja feito. Assim tenho passado.

Nessa época já ia bem adiantada a História do Brasil e só se falava em guerra. Mas eu não queria saber de nada disso. Guerra maior eu vivia. Talvez esteja aqui a razão por que deixei a tradução justamente nesse ponto. Que a História do Brasil espere por mim. Eu sou mais importante. Vou contar primeiro a história de Bokodori. Ou do professor Daniel Álvares.

METEOROLOGISTA

Para não perder o fio da meada, tive de reler todo o meu manuscrito. Minha pretensão é escrever sempre em linha reta. Nada de zigzags. Basta de desordem. Também não é só questão de encadeamento. Pois se eu não tivesse o cuidado de passar uma vista nessa gaforina, talvez narrasse agora um capítulo mais adiantado de minha vida ou recontasse a viagem à Europa.

Nesses dias andei muito em pensamentos e recordei seguidas vezes todo o meu caminhar pela terra. Às vezes emaranhava tudo, passando da infância imediatamente para hoje, por associação de ideias. Ou partia de um fato mais recente para um quase esquecido, de tão distante no tempo. Cheguei a enxertar, em fatos vividos, momentos imaginados ou desejados. Se eu escrevesse tal qual pensei, ninguém me entenderia.

Ando tão desatinado que não posso repousar direito. De noite quase não durmo e de dia é essa inquietação.

Eu falava da traição de Aroia e contive as palavras. Naquele dia eu não me sentia disposto a entrar em detalhes. Não queria incriminar minha mulher e muito menos perder-me em lamentações. Pensei mesmo em não tocar no assunto, esquecê-lo, como venho fazendo com outros. Porém, ele é fundamental para mim. Talvez até eu me descubra mais, se conseguir passá-lo a limpo.

Escrever isto tem sido uma descoberta de mim mesmo, como se eu fosse um animal enterrado e aos poucos me livrasse do peso do mundo, me limpasse da lama que me cobre. Conhecer-se é limpar-se, aperfeiçoar-se, purificar-se.

Agora meu desejo é outro. Não mais o de culpar Lucina. Porque ainda vivemos juntos e temos nossos filhos. Além disso, não durou muito nossa separação. Porém, o grande arquiteto da volta dela foi padre Pittini.

Quais os motivos desse empenho dele? Talvez por me conhecer desde menino e me considerar seu filho e protegido. Ou queria evitar a propagação de hábitos anárquicos na Missão? Ora, sua religião condena tais práticas.

Para selar mais eficazmente sua diplomacia, padre Pittini não voltou a me falar da escola e me propôs uma outra ocupação – a de cuidar do observatório meteorológico. Noções de meteorologia não me faltavam e eu até gostava de prever o tempo, por minha conta. De qualquer forma, li alguns manuais sobre o assunto e, aos poucos, me familiarizei com os termos técnicos e usuais daquela ciência: névoa, cerração, garoa, chuva, granizo, trovoada, vento calmo, frente fria, etc. E lá me pus a observar o céu e fazer anotações no quadro sinótico. Daniel Álvares, previsor do tempo. Quando chovia no meu sonho, ao meu redor caíam trombas-d'água e eu acordava sobressaltado.

Aquilo cedo me cansou e, às vésperas de bom tempo, debaixo de um céu avermelhado, corri ao padre e entreguei-lhe meu posto. No dia seguinte peguei da enxada e fui cuidar da terra. Mais me valiam os pés no chão do que os olhos no céu. No entanto, assim não pensavam os padres. Viviam a me chamar de volta ao observatório. Nunca haviam encontrado meteorologista tão bom. Porque até sem ajuda dos aparelhos eu sabia da chuva que iria cair. E, se eu servia tanto para prever o tempo, por que me chamaram de preguiçoso, quando fiz a proposta de pagamento?

– Você pede muito dinheiro porque não quer trabalhar – disseram.

Continuei a arar a terra. Porque me servia. Eu me sentia mais bororo, como sou.

ÍNDIO DE NOVO

Estou cansado. Não sei, porém, de que estou cansado. Talvez disso, talvez daquilo. Mas não me importa saber por que estou cansado, pois de qualquer forma estarei cansado. Ou não é cansaço o que sinto? Não será outra coisa?

Hoje padre Tonelli perguntou como ia a tradução. Pedi mais um tempinho. Ele mostrou compreensão. Não vou deixar inconcluso meu trabalho, até porque a minha história não vai muito longe. Já narrei meus vinte primeiros anos, mais da metade do tempo vivido. E não quero misturar uma coisa com outra. Eu poderia começar em Delfim Moreira e terminar em mim, ou partir da gripe espanhola e chegar à minha experiência meteorológica. Talvez até escrevesse um bom romance. Mas, se o fizesse, ou esqueceria Epitácio Pessoa ou meu romance teria um capítulo inteiramente político. Porque nada de relevante ocorreu comigo nesse tempo. Todo ele eu dediquei à vida de lavrador, até conseguir tornar a ser um autêntico bororo.

Chamaram-me de burro porque voltei a ser índio. Pode ser burro um índio que aprendeu línguas cultas, como o francês? Talvez ser inteligente para eles signifique ser burguês. Mas eu fui burguês, convivi no meio da burguesia, habitei os burgos mais exemplares, como Paris e Roma. Poderão dizer ainda terem sido os brancos, os padres e os burgueses que me fizeram inteligente. Não posso negar: aprendi o francês com eles. No entanto, quem aprendeu fui eu. E aceitei aprender. Dispus-me a aprender. Quis aprender. Portanto, sou inteligente, sem deixar de ser índio, miserável e camponês.

Aos poucos, esquecia-me dos hábitos adquiridos junto aos padres e demais brancos. Só de vez em quando visitava padre Pittini, a seu convite. Retirava do cesto calça e camisa, recordava palavras cristãs e rumava para a sede da Missão. Ele me fazia as mesmas perguntas de sempre, se eu não havia esquecido de rezar, se louvara a Deus e a Santa Mãe Igreja, se vivia em paz com Dona Lucina e os filhos, se isso mais aquilo. Oferecia-me café com pão, sentados à mesa, rezávamos de novo e eu voltava para ser Bokodori no meio do mato. E nem sabia de plantio de café, de secas no Nordeste e de uma tal Semana da Arte Moderna.

Talvez eu já não fosse mais índio, apesar de viver no mato. Quem sabe a Europa me havia transformado em português. Ou os padres e seus ensinamentos. E eu passei a frequentar mais assiduamente a casa dos padres, mesmo sem convite. Já quase não tirava a calça e a camisa do corpo. Já dava bom-dia a Aroia e a chamava novamente de Lucina. Sonhava mais uma vez com navios, observatórios e talheres.

Ia eu, assim, passo a passo, ao encontro do esquecido Daniel Álvares, quando a Ordem resolveu substituir o padre Pittini por outro na direção da Missão. A notícia não me agradou. Eu gostava daquele cristão, que sabia me cativar com palavras, gestos, sorrisos. Apesar disso, sentia-me impelido cada vez mais ao convívio com os padres e os brancos de uma maneira geral.

Fiz uma visita ao novo diretor. Achei-o um tanto sério e calado. Talvez se sentisse cansado da viagem. Nos seguintes dias, como de costume, entrei para o refeitório, tomei café, conversei, perambulei. E jamais pude esquecer o que me fez o tal padre. Ofensa grave, meus filhos e meus leitores. Como se eu fosse um selvagem que de repente invadisse sua casa. Um malfeitor, um inimigo dele e de todos os padres. Um desconhecido, um forasteiro de hábitos e língua estranhos. Um cão dos infernos que viesse para atormentá-lo. Maldito padre Grottanelli!

De início, não percebi nada, embora, a seguir, pudesse ver com clareza tudo. À boa fé, não sei como aquilo aconteceu. Eu me aproximava da casa e, de longe, avistei o diretor. Ele também me viu e correu a fechar a porta. Não me lembro de ter maldado nada na ocasião. Talvez entrasse poeira na sala e o bom padre quisesse evitar trabalho. Podia não ter percebido minha aproximação. E, mesmo que tivesse, talvez não quisesse me ofender. Por isso não me ofendi. Com o mesmo espírito, dirigi-me à porta do lado. Possivelmente lá estaria ele, o santo padre, a me esperar de braços abertos e sorriso bondoso. E estava, de fato. Braços abertos, sim, porém para fechar-me também a segunda porta. Para me negar uma xícara de café e sua própria companhia. Café que me ensinaram a beber e cristianismo que me ensinaram a viver.

Cordeiro de Deus que tirais os pecados do mundo, tende piedade de mim e fazei com que a esperança volte a me habitar.

É muito tarde já. Lucina e os meninos dormem. Não sinto sono. Apenas vontade de andar, cansar o corpo, esquecer certas passagens de minha vida.

E nunca ter ódio de ninguém.

Fonte:
Nilto Maciel. Vasto Abismo. Brasília: Ed. Códice, 1998.

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 443)

Uma Trova Nacional 

No seu cortejo de luz,
entre estrelas a brilhar,
a lua cheia reluz
como um farol, sobre o mar.
–SÔNIA SOBREIRA/RJ–

Uma Trova Potiguar


Se eu me for, antes de ti...
Levarei, dos nossos traços,
cada noite que vivi
na cortina... dos teus braços.
–MARA MELINNI/RN–

Uma Trova Premiada


2009 - Ribeirão Preto/SP
Tema: LINHA - M/H


Na linha da nossa vida
nós temos a curva e a reta;
encontramos a guarida
quando à dor a inveja injeta.
–ELISA ALDERANI/SP–

Uma Trova de Ademar


Num resgate de memória,
um país sério procura
mostrar ao povo uma história
de sua própria cultura.
–ADEMAR MACEDO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram


Acalma a fúria incontida,
domina o tédio e o rancor,
que a calma equilibra a vida
e a vida é feita de amor!...
–ALOÍSIO ALVES DA COSTA/CE–

Simplesmente Poesia

A Arte de Viver
–SUELY NOBRE FELIPE/RN–


O homem que tripudia e maldiz o versejador
Desprezando e renegando seus sentimentos
Aflorados em pele nua, em pele sua
É, obviamente, um homem de alma impura
Crua, deve ser sua comida
Indolor e incolor, o seu amor
Insípidas, as suas horas
Um homem sem auroras!
Desafortunado de querer
Desprovido de prazer
Desconhece, pois, a arte de viver.

Estrofe do Dia

Uma prostituta mancha
a moral e o destino,
num restaurante grã-fino
a milionária lancha;
uma gangue se desmancha
num tiroteio em favela,
um bêbado cutuca a goela
pra vomitar na calçada;
são senas que a madrugada
mostra a quem visita ela.
–BIU SALVINO/PB–

Soneto do Dia

Retrato da Vida
–PROF. GARCIA/RN–


Já fui moço, seu moço, e não me esqueço,
De tudo quanto fiz na mocidade.
Deus, que é Pai, me deu tudo que mereço,
E eu agradeço a Deus, tanta bondade.

Este dom de poeta eu ofereço,
Aos amores da eterna flor da idade,
Que fizeram de tudo um recomeço,
Afastando de mim, tanta saudade.

Mas o tempo não para, e a vida passa,
E eu me vendo no espelho, já sem graça,
Conto as rugas que aumentam meu desgosto,

E me pondo a pensar no que já fiz,
Rogo a Deus, que me faça ser feliz,
Abraçando estas rugas do meu rosto!

Fonte:
Textos e imagem enviados pelo Autor

Guerra Junqueiro (Presente por Presente)

Um grande fidalgo que se tinha perdido numa floresta, foi dar de noite à choupana de um pobre carvoeiro. Como este ainda não chegara, foi a mulher que recebeu o ilustre personagem. Acolheu-o da melhor maneira, desculpando-se da triste hospitalidade que ia dar-lhe, pois que unicamente batatas cozidas lhe poderia oferecer. Cama não a tinha, portanto dormiria na palha. Mas o estrangeiro estava morto de fome e de cansaço; as batatas souberam-lhe que nem faisões, e dormiu deitado na palha melhor que num leito de príncipes. Ao outro dia de manhã declarou isto mesmo à pobre mulher, gratificando-a, ao despedir-se, com uma moeda de ouro. O desconhecido, porém, dissera-lhe que a guardasse como lembrança, e a boa camponesa julgou que seria talvez uma medalha, sentindo não lhe ver um buraquito para a trazer ao pescoço. Quando o carvoeiro chegou a casa, contou-lhe logo tudo, mostrando-lhe a moeda preciosa. O carvoeiro examinou os cunhes e o valor da moeda de ouro, e disse para a mulher:

– Este forasteiro era nada mais nada menos do que o nosso príncipe!

E o bom do homem não podia conter-se de alegria, por sua alteza achar as suas batatas ainda melhores do que faisões.

– No mundo inteiro, ponderou ele triunfante, não há terreno igual para batatas. Pois hei-de levar-lhe um cesto delas, já que as achou tão boas.

E foi-se imediatamente para o palácio com um grande saco de batatas escolhidas.

Os lacaios e as sentinelas, ao princípio, não o queriam deixar entrar; mas insistiu energicamente, dizendo que não vinha pedir nada, e que pelo contrário vinha trazer alguma coisa.

Foi, pois, introduzido na saia da audiência.

– Meu senhor, disse ele ao príncipe:

Vossa Alteza dignou-se o outro dia pedir hospitalidade a minha mulher, e dar-lhe uma peça de ouro, em troca de uma enxerga miserável e de um prato de batatas cozidas. Pagastes de mais, ainda que sois uni príncipe rico e poderoso. Por isso venho trazer a Vossa Alteza um cestinho das batatas, que vos souberam melhor do que faisões. Dignai-vos aceitá-las, e se voltardes alguma vez a ser nosso hóspede, lá as encontrareis sempre ao vosso dispor.

A honrada simplicidade do camponês agradou ao príncipe, e, como estava num momento de bom humor, fez-lhe a doação de uma quinta com trinta jeiras (ver nota ao final) de terra.

Ora o carvoeiro tinha um irmão muito rico, mas invejoso e avarento, que, sabendo da fortuna do irmão mais novo, disse consigo: «Porque não me há-de suceder a mim outro tanto? O príncipe gosta do meu cavalo, pelo qual lhe pedi sessenta Libras, que ele me recusou. Vou-lho levar de presente: se deu ao João uma quinta com trinta jeiras de terra, só por um cesto de batatas, a mim com certeza me há-de recompensar ainda mais generosamente».

Tirou o cavalo da estrebaria e conduziu-o para defronte das portas do palácio; recomendou ao criado que o segurasse, e, atravessando com ar altivo as alas dos Lacaios, penetrou na sala da audiência.

– Ouvi dizer que Vossa Alteza gosta do meu cavalo; não tenho querido vendê-lo, mas dignai-vos consentir que eu o ofereça a Vossa Alteza.

O príncipe viu logo aonde o nosso homem queria chegar, e disse consigo: Ora espera, tratante, que vais ter o que mereces!

Depois, dirigindo-se a ele:

– Aceito a dádiva, mas não sei como agradecer-ta condignamente. Oh! boa lembrança: eis aqui um cesto de batatas mais saborosas do que faisões. Custaram-me trinta jeiras de terra; parece-me que é um bom preço por um cavalo, que eu poderia ter comprado por sessenta libras.

E entregando-lhe o cesto, mandou-o embora.
––––––––––––-
Nota
JEIRA =Medida de terreno que varia de 19 a 36 hectares, conforme o país.

Fonte:
Guerra Junqueiro. Contos para a infância.

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) O Irmão de Pinóquio – V – João Faz-de-Conta

Tia Nastácia fechara-se na cozinha para fazer o boneco sossegadamente. Uma hora depois reapareceu com a obra-prima na mão.

— Pronto! Não ficou bonito, mas está muito simpático – disse ela, mostrando o produto do seu engenho e arte.

Houve um “Oh!” geral de decepção, porque realmente não se poderia imaginar coisa mais feia, nem mais desajeitada. Os braços saíam do meio do corpo, quase; os pés não tinham jeito de pés; o nariz era um fósforo cabeçudo espetado no meio da cara; e a cabeça, em forma de castanha de caju, estava pregada nos ombros por meio de um prego torto, cuja ponta aparecia nas costas. Pedrinho chegou a ficar danado.

— Que vergonha, tia Nastácia! Você fez um monstro que não pode ser mostrado a ninguém. Desmoraliza a família!

— E o pau vivente gemeu muito quando você o cortou? – quis saber Narizinho.

— Nada, nada! Não deu o menor sinal de vida. Mesmo que um pau de lenha à-toa.

— É extraordinário! — observou Pedrinho. — Não posso compreender tal fenômeno. O tronco gemeu de cortar o coração da gente, e no entanto este pedaço do tronco não dá sinal de vida. Anda aqui um grande mistério !...

O Visconde, que estava a ler a sua Álgebra, piscou mais de dez vezes ao ouvir aquilo. Depois pediu a palavra e lembrou:

— Deus deu vida ao primeiro homem fazendo um boneco de barro e assoprando. Por que não experimenta o assopro, Pedrinho?...

— Boa idéia! — exclamou Emília, que vinha entrando para reclamar o alfinete. — Também acho que se você assoprar o João Faz-de-conta, bem assoprado, ele vive, bem vivinho.

Todos se voltaram para ela com caras de espanto.

— Que João Faz-de-conta é esse, Emília? Você tem cada uma...

— João Faz-de-conta é o melhor nome que acho para este boneco.

— Por quê?

— João, porque ele tem cara de João. Todo sujeito desajeitado é mais ou menos João. E Faz-de-conta, porque só mesmo fazendo de conta se pode admitir uma feiúra desta. Faz de conta que não é feio. Faz de conta que não tem ponta de prego nas costas. Faz de conta que...

— Chega, Emília. Já está muito bem explicado – disse Narizinho com os olhos postos no boneco. — Você tem razão. Não pode haver nome mais bem posto.

Todos acharam a mesma coisa e classificaram a boneca como a melhor “botadeira de nome” do sítio.

— Nesse caso... — começou ela a dizer.

— Já sei! — interrompeu Narizinho. — Nesse caso você quer aquele alfinete de pombinha carijó de tia Nastácia, não é?

A negra arregalou os olhos.

Narizinho contou então o que se havia passado e de como por um triz Emília escapou de cometer a maior imprudência de sua vida.

Tia Nastácia não queria dar o alfinete, mas tanto a menina insistiu que afinal deu.

— Tome lá, ciganinha! — disse ela tirando o alfinete do peito.

— Não sei por quem você puxou esse espírito interesseiro. Estou vendo o dia em que acaba pedindo os óculos e a dentadura de dona Benta. Credo!...

Emília bateu palmas de alegria e foi correndo mostrar o alfinete ao cavalinho, que era agora o seu grande amigo e confidente. Tinha-lhe posto um lindo rabo de pena de galo e com ele passava horas, brincando de chicote queimado, esconde-esconde e Bento-que-Bento-frade. Mas Emília não tinha sossego de espírito.

Como houvesse enganado Pedrinho, receava que de um momento para outro ele descobrisse o logro e lhe tomasse o querido brinquedo.

O meio de evitar isso era Faz-de-conta viver. Mas o boneco teimava em conservar-se morto como um defunto. Pedrinho, que havia achado certo fundamento e na idéia do Visconde (a idéia do assopro), passara três dias a experimentar o remédio, às escondidas, para que não caçoassem dele. Chegou a ficar com as bochechas doloridas de tanto assopramento. Nada adiantou. Emília também procurou meter o boneco em brios.

Chegou-se a ele, num momento em que não estava ninguém perto, e disse:

— Viva, bobo! Viva, se não Pedrinho bota você fora. Viva, que te dou aquele meu aventalzinho vermelho que tem bolso.

Faz-de-conta, porém, continuou impassível. Nem sacudidelas, nem ameaças, nem assopros, nem promessas da boneca — nada o fazia sair do seu estúpido estado de embezerramento.

Um dia Pedrinho desesperou.

— Basta! Basta! Basta! Já estou ficando bochechudo de tanto te assoprar e “tu não vive” nunca, seu feiúra. Vai-te prós quintos! e, agarrando-o por uma perna, jogou-o para cima do armário da sala de jantar.

Emília assistiu à cena e percebeu que ia haver questão. Pedrinho lhe dera o cavalo em troca da idéia, “se fosse boa”. Quer dizer que se a idéia não se revelasse boa, o negócio poderia ser desmanchado.

Não que Pedrinho fizesse conta daquele cavalo (que nem rabo tinha, na ocasião), mas só de implicância. A boneca pensou assim e pensou muito bem, pois naquele mesmo dia, à tarde, Pedrinho chegou-se a ela e foi dizendo:

— Onde está o cavalo?

Emília sentiu chegada a hora da briga. Empertigou-se toda, pronta para a luta.

— Não é da sua conta! — respondeu em tom de desafio.

— Passe para cá o meu cavalo! — continuou o menino, fechando uma terrível carranca de Barba Azul.

— Não sei do “seu” cavalo; só sei do “meu”.

— Eu disse que dava o cavalo se a idéia fosse boa, mas a idéia saiu como o seu nariz e quero o meu cavalo.

— Pois vá querendo!

Pedrinho perdeu a paciência. Xingou-a de cara de coruja seca (o pior insulto que havia para a boneca) e deu-lhe um beliscão.

Ah, o mundo veio abaixo! Emília berrou como se houvesse sete pulmões dentro dela: “Acudam! Barba Azul está querendo me matar!” e foi tal a gritaria que todos acudiram assustados, certos de que algum grande desastre havia acontecido.

— É este Barba Azulzinho que me chamou de cara de coruja seca e me deu um beliscão — disse Emília soluçando.

Todos tomaram o partido dela, inclusive dona Benta.

— Tamanho homem a brigar com uma pobre bonequinha de pano! Onde já se viu semelhante coisa? Se o senhor continua assim, eu o ponho no Caraça, ouviu?

Pedrinho emburrou, mas calou-se, e Emília vitoriosa, foi ter com o cavalinho, ao qual cochichou uma porção de coisas.

Dali a pouco os dois brigados se encontraram de novo e o menino disse:

— Deixe estar que você me paga, fedor!

— Antropófago!

— Cara de...

— Não diga outra vez que eu grito e dona Benta põe você no Caraça!

O Caraça era um velho colégio de terrível fama.

Vendo que ela gritava mesmo, Pedrinho saiu para o terreiro, muito aborrecido. Lembrou-se de ir pescar ao ribeirão; depois mudou de idéia e, tomando o machadinho, partiu para a floresta. O melhor meio de curar-se em tais ocasiões era ir para a floresta derrubar pés de embaúva. A raiva recolhida saía do corpo e ele voltava para casa perfeitamente bom. Andou por lá ao acaso por meia hora, e por fim foi parar junto ao tronco geme-dor. Lembrou-se de fazer nova experiência. Pregou-lhe um golpe e escutou. O tronco não deu um pio. Outro golpe, outro, e mais de dez. O tronco, quieto, quieto!

— Como pode ser isto? — pensou o menino. — Se o tronco gemeu daquela vez, devia gemer agora. Se não geme agora, como gemeu daquela vez? Aqui há marosca...

Começou a rodear o tronco e a tudo examinar cuidadosamente. Deu logo com o oco onde o Visconde se escondera. Olhou e viu lá dentro uma coisa esquisita, com forma de chapéu duro. Pescou-a com um gancho de pau, e com grande assombro viu que era a cartolinha do Visconde.

— Ué! — exclamou franzindo a testa. — A cartola do Visconde por aqui? Eu bem estava vendo que havia marosca...

Examinando o chão, descobriu novos sinais de que o Visconde andara por lá.

— Não resta dúvida! — murmurou consigo depois de refletir uns momentos. — O Visconde esteve escondido neste oco. Mas para quê? Com que fim? Aqui há marosca... Vão ver que foi ele quem gemeu e não o tronco. Eu bem que achei a voz parecida com a do Visconde. Mas por que havia de fazer isso? Que interesse tinha em me enganar? Hum, já sei! Ele fez isso por instigação da Emília... A diaba estava com medo de que eu lhe tomasse o cavalinho e me armou esta peça, de combinação com o tal sábio de uma figa. É isso mesmo! E eles desta vez me bobearam. Caí como um pato...

Pedrinho estava mais desapontado do que danado. Era o cúmulo dos cúmulos, aquilo! Ser bobeado por uma boneca de pano e um Visconde de sabugo, ele, o menino mais esperto e sabido daquelas redondezas...

— Mas não fica assim! — exclamou em voz alta. — Qualquer dia tiro a forra e quero ver a cara dos dois...
––––––––––––––
Continua… VI – Miragens

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Paraná em Trovas Collection - 36 - Jeanette De Cnop (Maringá/PR)


Fábio Reynol (O Vendedor de Palavras)

Ele ouviu dizer que o Brasil sofria de uma grave falta de palavras. Em um programa de TV, viu uma escritora lamentando que quase não se iam livros nesta terra, por isso as palavras estavam em falta na praça. O mal tinha até nome de batismo, como qualquer doença grave, "indigência lexical".

Comerciante de tino que era, não perdeu tempo em ter uma idéia fantástica: pegou dicionário, mesa e cartolina e saiu ao mercado para cavar espaço entre os camelôs. Entre uma banca de relógios e outra de lingerie instalou a sua: uma mesa, o dicionário e a cartolina na qual se lia:

"Histriônico — apenas R$ 0,50!".

Demorou quase quatro horas para que o primeiro de mais de cinqüenta curiosos parasse e perguntasse:

— O que o senhor está vendendo?

— Palavras, meu senhor. A promoção do dia é histriônico a cinqüenta centavos, como diz a placa.

— O senhor não pode vender palavras. Elas não são suas. Palavras são de todos.

— O senhor sabe o significado de histriônico?

— Não.

— Então o senhor não a tem. Não vendo algo que as pessoas já têm ou coisas de que elas não precisem.

— Mas eu posso pegar essa palavra de graça no dicionário.

— O senhor tem dicionário em casa?

— Não. Mas eu poderia muito bem ir à biblioteca pública e consultar um.

— O senhor estava indo à biblioteca?

— Não. Na verdade, eu estou a caminho do supermercado.

— Então veio ao lugar certo. O senhor está para comprar o feijão e a alface, pode muito bem levar para casa uma palavra

por apenas cinqüenta centavos de real!

— Eu não vou usar essa palavra. Vou pagar para depois esquecê-la?

— Se o senhor não comer a alface ela acaba apodrecendo na geladeira e terá de jogá-la fora e o feijão caruncha.

— O que pretende com isso? Vai ficar rico vendendo palavras?

— O senhor conhece Nélida Piñon?

— Não.

— É uma escritora. Esta manhã, ela disse na televisão que o País sofre com a falta de palavras, pois os livros são muito

pouco lidos por aqui.

— E por que o senhor não vende livros?

— Justamente por isso. As pessoas não compram as palavras no atacado, portanto eu as vendo no varejo.

— E o que as pessoas vão fazer com as palavras? Palavras são palavras, não enchem barriga.

— A escritora também disse que cada palavra corresponde a um pensamento. Se temos poucas palavras, pensamos

pouco. Se eu vender uma palavra por dia, trabalhando duzentos dias por ano, serão duzentos novos pensamentos cem por cento brasileiros. Isso sem contar os que furtam o meu produto. São como trombadinhas que saem correndo com os
relógios do meu colega aqui do lado. Olhe aquela senhora com o carrinho de feira dobrando a esquina. Com aquela carinha de dona-de-casa ela nunca me enganou. Passou por aqui sorrateira. Olhou minha placa e deu um sorrisinho

maroto se mordendo de curiosidade. Mas nem parou para perguntar. Eu tenho certeza de que ela tem um dicionário em casa. Assim que chegar lá, vai abri-lo e me roubar a carga. Suponho que para cada pessoa que se dispõe a comprar uma palavra, pelo menos cinco a roubarão. Então eu provocarei mil pensamentos novos em um ano de trabalho.

— O senhor não acha muita pretensão? Pegar um...

— Jactância.

— Pegar um livro velho...

— Alfarrábio.

— O senhor me interrompe!

— Profaço.

— Está me enrolando, não é?

— Tergiversando.

— Quanta lenga-lenga...

— Ambages.

— Ambages?

— Pode ser também evasivas.

— Eu sou mesmo um banana para dar trela para gente como você!

— Pusilânime.

— O senhor é engraçadinho, não?

— Finalmente chegamos: histriônico!

— Adeus.

— Ei! Vai embora sem pagar?

— Tome seus cinqüenta centavos.

— São três reais e cinqüenta.

— Como é?

— Pelas minhas contas, são oito palavras novas que eu acabei de entregar para o senhor. Só histriônico estava na promoção, mas como o senhor se mostrou interessado, faço todas pelo mesmo preço.

— Mas oito palavras seriam quatro reais, certo?

— É que quem leva ambages ganha uma evasiva, entende?

— Tem troco para cinco?
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Significado das palavras

Jactância.
1.Vaidade, ostentação. ; 2.Arrogância, orgulho.

Alfarrábio.
Livro antigo ou velho; cartapácio.

Profaço.
Estorvar, dificultar, impedir.

Tergiversando.
do verbo tergiversar
1. Procurar rodeios, evasivas. 2. Fugir do assunto principal. Enrolar.

Ambages
lenga-lenga

Pusilânime.
1.Fraco de ânimo, de energia.; 2.Falto de coragem; covarde.

Histriônico
1. Vil comediante, palhaço. 2. Fig. Charlatão. 3. Homem abjeto pelo seu procedimento.

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Fábio Reynol (Campinas/SP, 1973), é jornalista e cronista. Publica parte de sua produção literária em seu blogue, o Diário da Tribo (www.diariodatribo.com.br), e é autor da coletânea O vendedor de palavras — crônicas de um país de tanga na mão e corda no pescoço (São Paulo: Baraúna, 2008). Especialista em Ciência e Tecnologia, trabalha como repórter de revistas científicas e é mestrando em Divulgação Científica e Cultural na Universidade Estadual de Campinas.

Fontes:
Texto enviado por Francisco Pessoa Reis
Biografia obtida em Germinal Literatura
Significado das palavras obtido no Dicionário Aurélio e Dicionário Informal

Lendas e Contos Populares do Paraná (Cidades de Marilândia do Sul/ Paranaguá/ Pontal do Paraná/ Santo Antônio da Platina/ Tibagi)

MARILÂNDIA DO SUL
O fundador Santiago Lopes José


Santiago Lopes José pode ser considerado uma lenda, por ter tido grande influência no modo de vida das pessoas do município. Como um dos fundadores conquistou um grande respeito por parte de todos que aqui viviam, influenciando na vida política, religiosa e social.

Na época era considerado por muitos como um “santo” e “curador”, pois benzia e distribuía água às pessoas, além de orientá-las sobre seus procedimentos morais. Ele não obrigava ninguém a seguir seus costumes, mas aqueles que não seguiam não recebiam a água benta.

Suas regras diziam respeito ao modo de se vestir, com roupas longas; não comer carne nos dias de quarta-feira e sexta-feira; freqüentar a igreja todos os domingos; não trabalhar nos dias de sábado e domingo. Ainda hoje, muitos destes costumes são seguidos por várias pessoas do município.
PARANAGUÁ
A lenda da cabeça do enforcado


Um escravo africano matara o seu amo, lá pelos lados do Im-bocuí, devido aos maus tratos que há muito vinha sofrendo. Levado ao júri, foi o infeliz condenado à morte, sumaria-mente, sendo daí a dias enforcado.

Era uso na época, quanto aos escravos, depois de enforcados, cortar-se a cabeça da vítima e colocá-la num poste, em um lugar bem visível e que fosse freqüentado pelos negros, para servir de exemplo a esses infelizes cativos. O poste com a cabeça do enforcado foi colocado na Fonte da Cambôa, por ser o local de vaivém diário dos negros. Os escravos, que iam à fonte buscar água para os seus amos, quando chegavam na ladeira, baixavam a cabeça, para não olhar aquele crânio pendurado. O pavor lhes invadia a alma cheia de crendices e medos. Eles tinham verdadeiro horror de descer a ladeira ao anoitecer, pois se dizia que a visão do corpo sem cabeça vagava, desde o escurecer até alta madrugada, enlouquecendo as pessoas que por ali passassem.

Para os senhores de escravos, essa lenda era um meio seguro de obrigar os cativos ao trabalho, ameaçando-os, caso vadiassem, mandá-los à fonte durante a noite. Esse costume continuou vivo, desde o século XVII, nos tempos coloniais, até 1888, quando foi proclamada a abolição da escravatura. Com a Independência do nosso país, muitas leis foram revogadas. Assim, o crânio dali desapareceu.

Hoje, depois de 300 anos, nem mais se fala nisso, e poucos, se ainda existem, poderão lembrar. Atualmente, a Fonte da Cambôa é um lugar aprazível, sendo muito visitado pelos turistas.
PARANAGUÁ
A lenda da caveirinha


Um escravo muito tagarela vinha da Fonte Velha, trazendo um pote d’água à cabeça. Ao atravessar o “Campo Grande”, viu, encostado a uma velha figueira, um esqueleto humano.

Meio assustado, porém, por brincadeira e com vontade de falar, arriscou-se a dizer ao esqueleto:

– Caveirinha, quem te matô?
– Foi a “língua”; ouviu o esqueleto responder.

Achando graça, tornou a perguntar:
– Caveirinha, quem te matô?

E a resposta não se fez esperar:
– Foi a “língua”...

Fez o negro a pergunta pela terceira vez; a mesma resposta ouviu:
-Caveirinha, quem te matô?
– Foi a “língua”.

O escravo, então, apressou o passo, não por medo, mas para chegar mais cedo à casa do amo; pois estava doidinho para soltar a língua, como sempre fazia, mentindo descaradamente. Tão logo deixou o pote com água na cozinha, foi, lépido, até a senzala nos fundos do quintal, para contar o caso aos companheiros de cativeiro, que havia falado com uma caveira.

Alguns começaram a rir, gozando o escravo linguarudo. Outros, nem deram atenção; pois já conheciam as manhas e mentiras dele. Mas um deles, muito crédulo, aventurou-se a contar ao amo a façanha do negro marombado, como diziam todos. O patrão, cansado de saber das invencionices do escravo, mandou-o chamar. Ele veio todo lampeiro. O patrão então perguntou.

– Que história é essa do esqueleto falar, seu negro sem vergonha?
– Meu amo, eu juro que oví a caveira falá.
– Você não perde o costume de soltar a língua. Não se emenda mesmo.
– Mas eu vi a caveira e oví ela falá. Eu juro que não tô mentindo. Ela tá lá.
– Você é um descarado. Não sabe que um esqueleto não tem vida? Como então poderia ele falar?
– Falô, sim sinhô, meu amo. Eu tô dizendo a verdade. Mecê pode aquerditá. Desta veis eu não tô mentindo.
– Jura em nome de Deus?
– Juro, por nosso sinhô!
– Pois bem. Nós iremos ao Campo Grande. Queremos ver esse esqueleto, se ainda lá está, e também ouvi-lo falar com você. Mas fique certo do seguinte; se o esqueleto ainda lá estiver e não responder à sua pergunta, eu mandarei amarrá-lo ao tronco da figueira, junto ao esqueleto, para receber 100 chicotadas, a fim de nunca mais mentir. E lá se foram todos, patrão, empregados e escravos; onde, de fato, encontraram um esqueleto encostado a uma figueira, no tal Campo Grande.

– Agora, disse o patrão: fale, negro sem vergonha; fale com ela.

E o negro, já meio amedrontado: – caveirinha, quem te matô?

Nada; o esqueleto não respondia. Tornou a perguntar: caveirinha, meu bem, quem te matô? Nem uma palavra. O negro, temendo já o castigo que ia receber e que por certo não agüentaria, começou a implorar: – Caveirinha, minha boa amiguinha, diga, por favô, quem te matô. Diga, senão eu vô apanhá muito.

O silêncio continuava.
– Pessoal, falou o patrão, amarrem esse marombado ao tronco da figueira e executem as minhas ordens. E foi-se com os demais escravos. O pobre escravo não agüentou o suplício e morreu. Já era noite quando isso aconteceu.

Depois que os empregados foram embora, deixando o negro amarrado ao tronco da árvore. Ouviu-se uma voz, a voz do esqueleto: “Eu não te disse que quem me matou foi a língua? Isso aconteceu no tempo da escravidão. Contavam os negros em suas senzalas, à noite.
PONTAL DO PARANÁ
Figueira do corpo seco

Caro leitor preste atenção
Na história que vou contar
Este fato ocorreu no litoral
Do Estado do Paraná

Há muitos anos passados
Na época da escravidão
Os negros trabalhavam duro
Em troca de um pedaço de pão

Na localidade ribeirinha
Chamada de Guaraguaçu
Havia um patrão temido
Por todos os negros do sul

Os negros não tinham direitos
O patrão era um carrasco cruel
Mandava escravo para o tronco
Depois deixava ao léu

Um dia um escravo fujão
Ao ser capturado pelo capataz
Foi colocado no tronco
Sendo espancado até demais

O local da execução
Foi num mato fechado
Ficando o corpo do escravo
Naquela árvore amarrado

O negro não resistiu
A tamanha agressão
Vindo o pobre a falecer
Sem receber extrema unção

A figueira com os anos
Foi sua casca fechando
Ficando o corpo do negro
Ao tronco preso secando

Hoje quem visitar o Guaraguaçu
Deve aproveitar para conhecer
A figueira do corpo seco
Que lá está para quem quiser ver.

SANTO ANTÔNIO DA PLATINA
O homem das sete orelhas


Por volta de 1880, chegava a Santo Antônio da Platina uma família vinda de Fartura, Estado de São Paulo, para a conquista das terras adquiridas do Governo Imperial. Estabeleceram-se na atual Fazenda Santa Joana. Derrubaram a mata, plantaram e construíram suas casas.

No começo, os índios não incomodavam, mas depois começou a surgirem conflitos. João Francisco, um ex-escravo que morava com a família, era um homem bravo, temido por todos. Quando havia caçada aos índios, a prova da morte era trazer a orelha direita do índio morto. As orelhas eram cortadas e colocadas num canudo de taquara.

Conta-se que a matriarca da família certa vez estava fiando, em seu sítio, quando chegou João Francisco e despejou em seu colo os troféus nefastos. Estava grávida e com o susto que levou, abortou. O “sete orelhas” era pessoa temida pelas crianças e adultos mais inocentes, na época antiga.
TIBAGI
Um lindo diamante


Uma história tão linda, eis que agora vou contar:
um homem alegre e forte num rio foi garimpar.
Passou horas de desafio, cansado, com sono e dor,
enfrentou o calor e o frio, disse enfrentar o que for.

Com o tempo ganhou esperança de, no rio Tibagi,
um bom diamante encontrar.
Daria presentes às crianças e comida ao pobre que precisar,
com isso em mente foi trabalhar.

Cavando em busca do mineral, este homem valente ficou contente,
alegrando muita gente com um lindo diamante,
que um dia conseguiu encontrar.

Com a ajuda de Deus e apoio dos amigos seus,
no rio Tibagi foi cavando sem parar.
Quando peneirava para lá e para cá,
viu um brilho na água clara.

Quase perdeu de vista, mas conseguiu segurá-lo.
Tão raro.

Termino de contar uma história,
que aprecio e guardo na memória!
Fonte:
Renato Augusto Carneiro Jr. (coordenador). Lendas e Contos Populares do Paraná. 21. ed. Curitiba : Secretaria de Estado da Cultura , 2005. (Cadernos Paraná da Gente 3)

J. G. De Araújo Jorge (Quatro Damas) 1a. Parte

" A CARTA QUE AINDA FAREI "

A carta que um dia hei de escrever
quando tu fores minha noiva,
será curta, pequena...

Na verdade, eu já a fiz:

“Meu amor,
que eu não possa nunca te dizer
nem encontre palavras para descrever
o quanto sou feliz !”

" A COMPANHIA "

Do amor não quero mais a aventura,
quero a companhia.

Já não procuro ilusões e surpresas
se todos os caminhos foram percorridos,
se oblíquo sol da tarde alonga a minha sombras
presa ainda a meus pés, a fugir, para onde?

Quero a compreensão, a tranqüila ternura,
a presença melhor depois que amada,
a que sabe ser luz clareando a estrada,
ser aragem na fronte ardente a inquieta;

- alta maré para encobrir escolhos,
ser água para a sede que atormenta,
sombra, quando a luz doer nos olhos.

- A que inteira se dá sem pedir nada
só pela humilde alegria de se dar!

A que é pousada para o amor que vinha
já cansado de tudo e que não tinha
onde ficar.

A que tem mãos felinas, mãos que arranham
infladas de amor,
sem a gente sentir,
mãos que enlaçam, depois, cantam ternuras,
e que emberçam as nossas amarguras
e nos fazem dormir...

A que é mulher, - mar alto, porto e abrigo –
a que fica a nossa espera,
à que se pode voltar a qualquer hora...
A que sabe perdoar nossos pecados
nossos marinheiros desejos desgarrados
e não nos mandam embora...

Do amor não quero mais a aventura
quero a companhia:
a que depois do beijo
me dará a mão,
a que será minha - à noite se entregara
sem pejo -
e impoluída e pura,
continuara comigo, com a mesma ternura
no coração...

Quero a doce, a permanente companhia .

A que depois da noite
é o meu dia,
e, com o braço em meu braço
há de acertar seu passo
na mesma direção...

" A CULPADA... "

Não tens culpa se me encontras céptico, e se custo
a acreditar em ti.

Talvez eu já esteja batido demais, ou talvez
me pareças muito criança.

Tanto a Vida me mentiu, que me acovardo à simples idéia
de uma nova esperança.

" A VIAGEM "

Não vamos fazer planos, vamos apenas viajar
neste barco que nos recolheu
e cujo rumo não sabemos...

Não vamos fazer planos, vamos olhar as gaivotas,
os crepúsculos sobre o mar,
as ondas, as nuvens, os portos que amanhecerão,
agradecer ao destino que nos fez passageiros
do mesmo sonho.

Não vamos fazer planos, não vamos matar as nossas alegrias
modificando roteiros, se não sou o comandante do navio,
se ninguém é,
não vamos matar as nossas alegrias
com itinerários antecipados
como se fossemos turistas ricos
apenas gastando o seu tédio...

Não vamos fazer planos, vamos nos deixar levar
ao sabor das correntes,
vamos agradecer essa viagem como se fosse a primeira
como se fosse a última,
como se fosse aquela viagem há tanto tempo esperada,
que inacreditavelmente se tornasse
realidade...
E o porto onde chegarmos, - qualquer que seja o porto
ou o horizonte de mar que sempre se afastará,
serão o porto e o horizonte
da felicidade...

" A VIDA, DE REPENTE... "

De repente
percebemos como era boa aquela vida que levamos
aqueles calmos momentos de impercebida felicidade,
aquelas horas aparentemente vazias e sem prazer
entretanto, cheias de nós, de nossa simples presença,
de uma ternura que enlevava nossos corações
como as velas cheias dos bancos sonolentos
sobre o mar sem ondas...

De repente
gostaríamos que tudo voltasse para que nos apropriássemos
do que foi nosso, e se perdeu,
para que pudéssemos dar valor
a tanto que tivemos, sem saber que era amor...

Agora
que a vida nos atira (sobre que expectativas
sombrias e inevitáveis?)
nos lembramos que já fomos nós, pelo menos no início,
e subitamente nos sentimos numa curva impossível,
à borda de um precipício...

" ABISMO ? "

Sei que ao voltar a mim, como quem chega
do fundo de um abismo,
trazia duas estrelas em meus olhos
e o ouro dos teus cabelos em minhas mãos...

Afinal
que estranho abismo era esse
em que os anjos nos embalavam
e nos sentíamos na mão de Deus ?!

" AFINAL... "

Restou o travo de uma decepção
que foi perdendo lentamente
o amargor...

Fui eu
( que num momento de paixão doentia )
enriqueci com a minha fantasia
um pobre amor...

" AGRADECENDO A VOCÊ "

Você achará tolos talvez
estes versos que te escrevo,
mas eu explico porque:

- seja lá como for
meu amor,
eu quero agradecer Você
... a Você.

"ALGO MAIS..."

Eu queria te dar algo mais que poesia:
este ardor que me abrasa, e me punge, e espezinha,
e se consome em vão numa íntima agonia
porque não te possuí... porque não foste minha!

Não queria deixar que partisses sozinha
sem algo de vivido entre nós dois - queria
que a amarga solidão que em minha alma se aninha
fosse um canto de sol, de desejo e alegria !

Eu queria te dar algo mais que um lamento,
queria tatuar com meu beijo a lembrança
nem que fosse a lembrança feliz de um momento...

Com tão pouco de mim, num derradeiro empenho,
eu queria te dar algo mais... a esperança,
a fé que já perdi... o amor que já não tenho!
-
Fonte:
JG de Araujo Jorge. Quatro Damas . 1. ed., 1964.

Nilto Maciel (O Bom Selvagem) 2a. Parte

COLÉGIO

Carrego sempre comigo meu álbum de fotografias. No entanto, não gosto de mim no passado nem de meu passado. Como fui tolo e enganado! Fizeram-me crer em tantas ilusões!

Talvez me fascine o mistério do retrato. A gente poder perenizar-se, rever-se. Também o espelho me encanta. A gente duplicar-se, multiplicar-se. Copiar-se. A máquina fotográfica, seu mecanismo, sempre me inquietou. Antes eu fazia muitas perguntas a estranhos sobre ela. Hoje não tenho mais a inocência de perguntar. Ora, vão dizer, um homem tão estudado não devia fazer tantas perguntas.

Uma das fotografias que mais me fazem pensar é aquela onde apareço vestido de colegial . A primeira tirada com pose e logo após chegar ao colégio de Cuiabá. Eu tinha 12 anos de idade.

De início, estranhei a nova vida, o clima da cidade, os colegas, o colégio, apesar de ter sido apresentado como aluno exemplar. Pouco a pouco fui me adaptando ao novo ambiente, mesmo sem dispor de muito tempo para conversar e brincar. Os mestres exigiam demais de mim e eu conseguia estar sempre adiante de suas exigências. O latim aprendi com grande facilidade, a ponto de dentro de um ano já ler trechos clássicos, sem nenhuma dificuldade. Gutta cavat lapidem.

Quantas e quantas expressões decoradas e aprendidas! Melior canis virus leoni mortuo.

Não deixei o francês para trás. E como era gostoso ler e falar francês!

“Un loup n'avait que les os et peau,

Tant les chiens faisaient bonee garde.”

As fábulas de La Fontaine. Até inglês já nos ensinavam. E eu aprendia a gostar de sandwich, jazz, girls e dos United States e da England.

Ensinaram-se também números arábicos e romanos, operações, frações, álgebras. E tudo eu aprendia com distinção e louvor. Até as histórias de Sodoma e Gomorra, as vidas de Rebeca, Raquel e Lia, José e seus irmãos.

– Então fez o Senhor chover enxofre e fogo.

– A moça era mui formosa de aparência, virgem, a quem nenhum homem havia possuído. À tarde, vindo Jacó do campo, saiu-lhe ao encontro Lia, e lhe disse: Esta noite me possuirás.

– Teve José um sonho, e o relatou a seus irmãos; por isso o odiaram ainda mais.

Minha cabeça se enchia de palavras. Um, duo, trois, four. Eu todo me compunha de lições. Acordava ainda com os sonhos numerais, históricos, linguísticos, para rezar a Deus e aos santos, e depois ler, copiar e estudar lições que nunca meus pais viveram.

– Senhor, posto que o Capitão-mor desta vossa frota...

Hoje me abraço de novo àquelas palavras, a parte daquelas lições, por ofício, razão daquele mesmo aprendizado ou talvez por ironia do destino. Não mais decoro o texto que me deram. Vou mais adiante: traduzo para minha antiga língua a história do aniquilamento de meus próprios antepassados. História de heróis estrangeiros. Vasco da Gama, D. Manuel, o Venturoso, Pedro Álvares Cabral (e eu não descendo dele, meus filhos!), Gaspar de Lemos, Martim Afonso de Souza, Diogo Álvares Correia, o Caramuru (nem deste herdei nada). Uma fileira de nomes, antes tão estrangeiros. Eu, Bokodori, tradutor, professor.

VIAGEM À EUROPA

Nunca me preocupei com fazer um paralelo entre a História do Brasil e a minha. Não quero me perder em análises, sobretudo porque prefiro contar simplesmente minha vida. Além do mais, não vivi os grandes acontecimentos históricos. Eles não me despertaram sequer a atenção. Nem hoje consigo interessar-me por eles. O passado do Brasil e da Humanidade são para mim apenas textos ou lições escolares. Se aceitei traduzi-los para minha primeira língua, o fiz por qualquer motivo, menos pelo de ser um cidadão ocupado com a História.

Tenho notado o quanto escrever é traiçoeiro. Ora, eu não queria me perder em análise e cá estou perdido.

Escrever é desmentir, é negar hoje a afirmação de ontem. É contradizer-se, brigar consigo mesmo.

Meu primeiro intento hoje é, no entanto, situar a quarta fase mais importante de minha vida no contexto da História do Brasil. Aos 15 anos de idade viajei à Europa. Governava o Brasil o Marechal Hermes. No Ceará um padre comandava uma revolta. Fala-se agora da importância daqueles fatos. Eu, porém, ainda me sabia menino, apesar de toda a sabedoria e da ambição que me empurrava. Ler e falar francês não me custavam nada. E atravessei os mares e fui passear na capital do mundo moderno. Eu me sentia grande, notável, excelente. Um ex-selvagem brasileiro transitando pelas ruas e praças mais cultas da Terra, como um intelectual europeu. Depois eu soube: há mais de quatrocentos anos alguns índios brasileiros desfilaram nus pelas ruas de Ruão, para gáudio do rei Henrique II e sua pomposa corte. Não me senti um animal exótico, digno dos olhares concupiscentes de nobres ou burgueses. Antes, um homem até mais inteligente do que eles, pois não falavam bororo e nunca ouviram falar de Ké-Marugodu, enquanto eu também falava francês e sabia da história de Adão e Eva. Além do mais, eles sempre me pareceram uns macacos, todos fracos, baixos, magros, horríveis.

Conheci também Roma, vi o papa e todas as fantasias da Igreja Católica.

Paris e Roma me encantaram. A história e a arquitetura. Notre-Dame, Versalhes, Via Appia, Arco de Tito, Catedral de Reims, Place Royale, Coliseu, Basílica de São Pedro.

Foram dois anos de intensa vida social. Conheci Louises e Luigis, Françoises e Francescas, frequentei as mais luxuosas e burguesas casas, sempre bem tratado e acompanhado. Recitavam-me versos dos mais distintos poetas franceses, antigos e modernos, numa incessante chuva de belas palavras. Presentearam-me livros e mais livros e alguns poemas até consegui decorar. Hoje restam-me apenas fragmentos deles, perdidos nos cantinhos da memória:

Dictes-moy où, n'en quel pays,
est Flora, la belle Romaine?”


Nunca pude esquecer um soneto que todas as noites uma bela parisiense me dizia:

“Quand vous serez bien vieille, au soir à la chandelle,
Assisse aupres du feu, deuidant & filant,
Direz chantant mes verses...”


Em Paris aprendi a ser romântico e, quando me via só, rabiscava versos para a moça com quem me casaria. Chamava-se Aroia. Depois, os padres arranjaram-lhe um nome português: Lucina. Disto, porém, falarei adiante. Quero, agora, recordar versos que escrevi para ela. Alguns deles consegui reter na memória, como estes:

Ah! quantas vezes, quantas! junto dela
Não senti tremer sua mão na minha.
Até um soneto cheguei a compor:
Em seu leito de flores bem deitada,
Palidamente bela e escurecida,
Ela dormia, a minha doce amada,
E sonhava, de tudo esquecida.

Pela maré das águas embalada,
Era a virgem do mar adormecida.
Em maravilhosos sonhos banhada,
Mais parecia um anjo de outra vida.

Como eram aqueles seios belos!
Ah! seus negros olhos me fascinavam.
Ah! suas formas nuas me enlouqueciam.

Não te rias de mim, de meus anelos.
Por ti – vivi noites que me matavam,
E morrerei como os loucos morriam.


Já se foram vinte anos. Meus livros de poetas franceses perderam-se, rasgaram-se, queimaram-se, levaram-nos os ventos fortes de todas as desilusões. Para que conhecer Gérard de Nerval ou Leconte de Lisle, Victor Hugo ou Ronsard, se até os padres que me ensinaram francês me enxotavam? Para que guardar versos, ainda mais cheios de nymphes, amours, spectres, se só me restavam homens duros, ódios e a vida nua e crua? Meu desejo é esquecer o que aprendi e pôr para fora minhas verdadeiras emoções, ser eu mesmo, Bokodori e não Daniel Álvares.

Não me fazem falta François Villon ou Baudelaire, Mallarmé ou Apollinaire. Não sinto saudades da mademoiselle do soneto de todas as noites. Nem sequer lhe recordo o nome. Talvez seja Caroline, Marguerite ou mesmo Jeane D'arc. Se estiver viva, será uma quarentona gorda, cheia de filhos e varizes, e certamente nem se lembrará mais de um selvagem chamado Daniel Álvares, que em 1913 conheceu Paris. Provavelmente também esqueceu os versos do poeta e, à luz da vela, sentada ao pé do fogo, aflita e decadente, contará apenas sua solidão.

Onde andará certo Henri Barrès que também escrevia poesia e me chamava de “bon sauvage”? Apaixonado de Jean-Jacques Rousseau, tudo lhe servia de pretexto para citar seu mestre. Sonhava com viajar ao Brasil e conviver com os índios. Terá se casado com mademoiselle Caroline? Ou vive no Amazonas, com uma silvícola? Talvez seja deputado pelo Parti Socialiste, não faça mais versos e nem se lembre mais do “bon sauvage Bokodori”.

E por que estou eu, neste relato breve e simples, a recordar-me dele, de seu entusiasmo estudantil, e da bela senhorita que declamava sonetos? Por que relembro Paris, poetas franceses, meus 15 anos, ora bolas? Hoje sou de novo apenas um selvagem brasileiro, já quase velho, cão sem dono, professor de inutilidades para meus pobres descendentes, historiador de segunda mão, que um dia acreditou em tudo, inclusive na Beleza da palavra. Je suis. Coitado de mim! Sou apenas um fantasma que se refugia na solidão da natureza. Contra a solidão, porém, nada se pode fazer.

Fonte:
Nilto Maciel. Vasto Abismo. Brasília: Ed. Códice, 1998.

Lygia Fagundes Telles (A Noite Escura e Mais Eu)

“Ela ficou mas a gota de sangue que pingou na minha luva, a gota de sangue veio comigo” - assim começa a coletânea de nove contos, A Noite Escura e Mais Eu, de Lygia Fagundes Telles, na primeira frase de "Dolly". E termina, na última frase de "Anão de Jardim", história que encerra o livro: “Seja feita a Vossa vontade e (...) então aceito também ser a estrela menor da grande cauda levantada no infinito no infinito deste céu de outubro”. Como dentro de um parêntese, todo o universo de Lygia concentra-se entre essas duas frases, o sangue inevitável das dores da condição humana e a talvez redentora aceitação não só do Divino, mas também da insignificância e humildade que essa condição impõe. A repetição da palavra “infinito” acentua a idéia de eterno retorno, e a referência ao “céu de outubro” remete à primavera e ao renascimento de tudo. Ou seja: o sangue pode ser transmutado, alquimicamente, em luz. Ou pelo menos em ótima literatura.

A Noite Escura e Mais Eu, entre todos os livros de contos de Lygia, talvez seja a sua obra-prima. Pela unidade, pela densidade, pela extraordinária dignidade que confere à língua portuguesa, mesmo quando trata de temas ou situações sórdidas, perversas, violentas.

Lygia volta a temas recorrentes de sua obra, como a morte, a solidão, o amor, a velhice, envolvendo-nos em um mundo riquíssimo em experiências humanas, povoado por anjos e demônios, angústias e alegrias, medos, ilusões e desilusões. A autora está de volta ao seu leque de perplexidades, e suas personagens, aqui, são garotinhas, cachorros, anões, que espiam os homens e suas extravagâncias.

Esse universo misterioso das histórias de Lygia pode ser observado e sentido logo no primeiro conto, "Dolly", ambientado nos anos 20. A personagem é uma moça na faixa dos vinte anos que queria ser artista de cinema mudo. O conto é narrado por Adelaide, da mesma idade, mas de personalidade ingênua e conservadora, com quem Dolly quer dividir a moradia enquanto não alcançava as luzes da ribalta. Adelaide encontra o cadáver de Dolly violentada depois de uma noite de farra e suja suas luvas de sangue ficando, aparentemente, apavorada.

Personagens em crise diante da velhice são apresentados no conto "Boa noite, Maria", que enfoca o amor de uma mulher de sessenta e cinco anos por um homem de cinqüenta. É um conto sobre um possível direito à eutanásia, sobre o horror da decomposição e a fuga da morte como aviltamento. A solidão é o pano de fundo dessa história, a mesma solidão que permeia quase todas as personagens deste livro que, a exemplo dos anteriores da autora, traz enredos ambíguos que às vezes se aproximam do realismo fantástico.

Em "Anões de jardim", um dos melhores da coletânea, o narrador é um ser de pedra que tem alma e quer sobreviver à demolição da casa cujo jardim habita. Fala de uma perseguição à imortalidade, de uma continuação da vida em qualquer forma, mesmo a mais vil. Neste conto, Lygia Fagundes Telles rompe com a linearidade do tempo, calça a sua escritura com “botas de nuvens” e revela a vida como um pesadelo envolvido pela crueldade do homem de todos os tempos a contrastar (fantástico paradoxo!) com a ‘humanidade’ de uma estátua de pedra que pensa e sofre, como testemunha muda e memória dos dramas vividos em uma casa.

Nos outros contos, a autora desliza em verdadeiros instantâneos das relações humanas, como o da mãe à beira do túmulo da filha tentando compreender como ela foi capaz de ter como amante uma outra mulher. Ou a história de Kori, mulher rica e infeliz no casamento, que vai para a cama com o homem que ela sabe que é apaixonado pelo seu marido.

Lygia aposta no absurdo, mantém seu estilo intimista em suas reflexões sobre as fraquezas humanas nesses nove contos de mistério e paixão de A noite escura e mais eu, cujo título nasceu de um poema de Cecília Meirelles: "Ninguém abra a sua porta / pra ver o que aconteceu: / saímos de braço dado / a noite escura e mais eu."

As histórias não se esgotam no enredo. Terminadas de ler pela primeira vez, deixam a vontade de reler uma segunda ou terceira, por suas inúmeras camadas de significados e pela carga de mistério sempre deixada no ar. Às vezes, todo um conflito revela-se numa frase aparentemente perdida no meio do texto, num detalhe. Assim é, por exemplo, em "Dolly"; na perfeição de "Você não Acha que Esfriou?" ou na ousadia do tema lésbico de "Uma Branca Sombra Pálida".

Títulos como "Você não Acha que Esfriou?" e "Papoulas em Feltro Negro" têm um adensamento do ceticismo das mulheres maduras e de sua capacidade de reação. Em "Papoulas em Feltro Negro", por exemplo, uma professora de piano coloca em dúvida o passado de criança perseguida que construíra para si ao reencontrar uma mestra megera, ainda destrutiva, que acusa a ex-aluna de mentirosa e gaga, as falhas da comunicação tornando ambígua a própria memória, roubando-lhe as certezas, ocultando-as sob trevas espessas. Na cama fria do amante improvisado, uma mãe de 45 anos ergue-se para a vingança verbal que derrubará a pose do amigo do marido. Neste conto admiração e respeito à sensibilidade do outro são confundidos com ódio e desprezo. No final, a velha professora Elzira evita de todas as maneiras o olhar da ex-aluna.

Fonte:
Passeiweb

Lima Barreto (A Mulher de Anacleto)

Este caso se passou com um antigo colega meu de repartição.

Ele, em começo, era um excelente amanuense, pontual, com magnífica letra e todos os seus atributos do ofício faziam-no muito estimado dos chefes.

Casou-se bastante moço e tudo fazia crer que o seu casamento fosse dos mais felizes. Entretanto, assim não foi.

No fim de dois ou três anos de matrimônio, Anacleto começou a desandar furiosamente. Além de se entregar à bebida. deu-se também ao jogo.

A mulher muito naturalmente começou a censurá-lo.

A princípio, ele ouvia as observações da cara metade com resignação; mas, em breve, enfureceu-se com elas e deu em maltratar fisicamente a pobre rapariga.

Ela estava no seu papel, ele, porém, é que não estava no dele.

Motivos secretos e muito íntimos, talvez explicassem a sua transformação; a mulher, porém, é que não queria entrar em indagações psicológicas e reclamava. As respostas a estas acabaram por pancadaria grossa. Suportou-a durante algum tempo. Um dia, porém, não esteve mais pelos autos e abandonou o lar precário. Foi para a casa de um parente e de uma amiga, mas, não suportando a posição inferior de agregada, deixou-se cair na mais relaxada vagabundagem de mulher que se pode imaginar.

Era uma verdadeira "catraia" que perambulava suja e rota pelas praças mais reles deste Rio de Janeiro.

Quando se falava a Anacleto sobre a sorte da mulher, ele se enfurecia doidamente : — Deixe essa vagabunda morrer por aí! Qual minha mulher, qual nada ! E dizia coisas piores e injuriosas que não se podem pôr aqui.

Veio a mulher a morrer, na praça pública; e eu que suspeitei, pelas notícias dos jornais, fosse ela, apressei-me em recomendar a Anacleto que fosse reconhecer o cadáver. Ele gritou comigo: — Seja ou não seja! Que morra ou viva, para mim vale pouco ! Não insisti, mas tudo me dizia que era a mulher do Anacleto que estava como um cadáver desconhecido no necrotério.

Passam-se anos, o meu amigo Anacleto perde o emprego, devido à desordem de sua vida. Ao fim de algum tempo, graças à interferência de velhas amizades, arranja um outro, num Estado do Norte.

Ao fim de um ano ou dois, recebo uma carta dele, pedindo-me arranjar na polícia certidão de que sua mulher havia morrido na via pública e fora enterrada pelas autoridades públicas, visto ter ele casamento contratado com uma viúva que tinha " alguma coisa", e precisar também provar o seu estado de viuvez.

Dei todos os passos para tal, mas era completamente impossível. Ele não quisera reconhecer o cadáver de sua desgraçada mulher e para todos os efeitos continuava a ser casado.

E foi assim que a esposa do Anacleto vingou-se postumamente. Não se casou rico, como não se casará nunca mais.

Fonte:
Lima Barreto. Contos Completos. Companhia das Letras.

Carlos Leite Ribeiro (Vinte Anos Depois ...)

Vinte anos na vida de uma pessoa é muito tempo. 

Recordou-se dos momentos difíceis que passou quando a morte de seus pais. Primeiro morreu-lhe a mãe e, um mês depois, foi a vez do pai deixar este mundo. A situação financeira tornou-se então insustentável. A vida assim era impossível.
Foi então que resolveu escrever a um velho tio, que há muitos anos vivia na Venezuela.

Contou-lhe tudo e, na resposta, o bondoso homem mandou-a ir ter com ele. O tio era dono de um moderno e bem frequentado restaurante dos arredores de Caracas.
A Rosa, a Rosita, como carinhosamente era tratada por todos, conseguiu que o casal Gomes, que tinha uma pequena mercearia, lhe emprestasse o dinheiro necessário para a viagem e, assim, num belo dia meteu-se a caminho e só parou em Caracas.
Conforme lhe ia sendo possível, ia mandando dinheiro para pagar a sua dívida, que em menos de dois anos, estava completamente saldada.

Já há muito tempo que não devia nada a ninguém, além da gratidão àqueles que a tinham ajudado, numa hora tão crítica.

Vinte anos, tanto tempo!

No avião, em viagem Caracas / Lisboa, não parava de pensar nesta frase.

Horas depois o avião aterrou em Lisboa. Depois das formalidades alfandegárias, apanhou um táxi para a Estação Ferroviária do Rossio, e apanhou um comboio para sua terra natal, onde contava passar o Fim-de - Ano e só regressar a Caracas depois do Carnaval.

O comboio já entrara na curva que antecede a gare de desembarque, e o ruído dos freios cada vez eram mais intensos. Por fim a carruagem imobilizou-se. Lentamente levantou-se, agarrou a sua bagagem, e já com alguma ansiedade, saiu daquele comboio que a tinha trazido da capital.

- Precisa de um táxi?... Virou-se lentamente e encarou o homem que a interpelava, e, que novamente repetiu:

- Precisa de um táxi?

Rosa, como saísse de um sonho, respondeu-lhe:

- Sim, preciso de um táxi.

O motorista pegou então na bagagem e enquanto a arrumava, Rosa foi sentar-se dentro do táxi. Parecia um sonho estra na sua terra. Vinte anos depois, regressava.

- É para São Pedro que a senhora deseja ir? - Perguntou-lhe o taxista.

- Não, leve-me ao centro da cidade a uma pastelaria, pois ainda não tomei o pequeno-almoço.

Como a cidade tinha mudado, como estava diferente, como estava bonita!
Ainda absorta nos seus pensamentos, chegou quase sem dar por isso ao centro da urbe.

- Há pouco, disse-me que queria tomar o pequeno-almoço? - Lembrou-lhe o motorista.

- Pois disse. É aqui a pastelaria?

- É sim.

- Pode-me levar a bagagem para o hotel, que fica ali naquelas esquina? Já tenho aposento reservado.

- É um prazer, minha senhora. Desculpe a minha curiosidade, mas a senhora é natural daqui desta terra? Desculpe-me...

- Sou. Nasci nesta terra há 36 anos mas, já há vinte anos que não vivo cá.

- Desculpe-me. Vou já pôr a sua bagagem no hotel.

Rosa, antes de entrar na pastelaria, hesitou, mas por fim resolveu entrar.
Era um estabelecimento moderno, agradável, onde outrora existia um belo quintal de uma casa que, entretanto, fora demolida.

Pediu o pequeno-almoço enquanto acendia um cigarro.

Vinte anos... Quantas recordações lhe vinham à mente. Parecia um filme que lentamente se desenrolava na sua cabeça, em que ela, a Rosa, era ao mesmo tempo a argumentista, a realizadora e a intérprete.

Lembrou-se do simpático casal Gomes, que confiara nela e lhe proporcionaram a sua ida para a Venezuela.

O que teria sido feito deles?

Com a pressa de vir passar férias a Portugal. Até se tinha esquecido de lhes trazer uma prenda.

Mas que esquecimento o seu!

Entretanto, começou a ouvir a sirene dos Bombeiros, e, tal como outrora, os nervos começaram a encrespar-se.

Não tardou a começar a ouvir o barulho dos Soldados da Paz que fazem a apagar um fogo. E também ouviu um popular exclamar:

- A mercearia dos Gomes está a arder!

Ficou atônita com o que ouvira.

Levantou-se e correu até chegar à loja daqueles amigos que um dia a tinham ajudado. A loja, nessa altura já era um mar de chamas. Nada se podia aproveitar de seu recheio.

No passeio em frente, rodeados por muitos populares, estavam os velhotes que, com ar apavorado olhavam para o que tinha sido a sua loja, o seu ganha-pão.
Para eles, mais parecia um pesadelo do que a realidade.

- Com o negócio tão mau como tem estado, e ainda por cima nos acontece uma desgraça destas... Sem termos seguro, estamos desgraçados! - lamentavam-se os velhotes.

Foi então que a Rosa se abeirou deles, que não a conheceram, e a moça aproveitou para lhes dizer:

- Senhor Gomes, acabo de chegar da Venezuela e, uma amiga minha incumbiu-me de vos entregar este cheque, já visado para a Caixa Geral de Depósitos.

O velhote, maquinalmente agarrou o cheque e apenas balbuciou:

- Da Venezuela? Será da Rosa, da Rosita? Há, mas eu não posso aceitar este dinheiro todo…

- Aceite - retorquiu-lhe a jovem - pois, senão a Rosita ficava muito zangada comigo, e isso eu não quero. E agora, desculpem-me, mas tenho que me ir embora. Apesar do que vos aconteceu, eu desejo-vos muita saúde e muitas felicidades. Até à próxima amigos!

E a Rosa afastou-se rapidamente, sem esperar que os velhotes lhes respondessem.

Naquele cheque tinha entregado ao casal Gomes o dinheiro que tinha posto de parte para passar férias em Portugal. E o mais engraçado é que, por essa entrega, tinha terminado as suas férias mesmo antes de as ter começado.

Já no avião a caminho novamente da Venezuela, sorriu e pensou alto:

- Meu Deus, como a vida é tão dura...

Fonte:
Carlos Leite Ribeiro - Marinha Grande - Portugal