domingo, 9 de setembro de 2012

Agatha Christie (Estranha Charada)

— E esta — disse Jane Helier, terminando as apresentações — é Miss Marple!

Como toda atriz, conseguiu o seu intento. Aquilo era realmente o clímax, o triunfante final! O tom de sua voz era igualmente respeitoso.

O estranho é que a pessoa tão efusivamente apresentada não passava de uma solteirona afável e bisbilhoteira. No olhar dos dois jovens a quem Jane, tão gentil, a tinha apresentado, havia incredulidade e uma certa decepção. Eram ambos bonitos; a moça, Charmian Stroud, morena e elegante, e o rapaz, Edward Rossiter, louro, alto e amável.

— É um prazer enorme conhecê-la — disse Charmian, um pouco ofegante. Mas lançou um rápido olhar, cheio de dúvidas, para Jane Helier.

— Querida — disse Jane, em resposta a seu olhar —, ela é uma pessoa maravilhosa. Deixe tudo por conta dela. Prometi que a traria e cumpri a promessa. — E voltando-se para Miss Marple: — Você resolverá tudo para eles, tenho certeza. Não será difícil.

Miss Marple volveu os calmos olhos azuis para Edward: — Poderia dizer-me do que se trata?

— Jane é uma grande amiga nossa — disse Charmian, impaciente. — Edward e eu estamos com um problema sério. Então, Jane nos convidou para esta festa, dizendo que nos apresentaria a alguém que poderia... bem, que talvez pudesse...

— Jane nos disse que a senhora é uma excelente detetive, Miss Marple — completou Edward.

Os olhinhos da solteirona piscaram, mas ela protestou, humilde: — Não, Não! De forma alguma. É que quem mora em uma cidadezinha como essa sempre acaba conhecendo um pouco melhor a natureza humana. Mas agora vocês me deixaram curiosa. Qual é o problema?

— Acho que é algo terrivelmente corriqueiro... um tesouro enterrado — informou Edward.

— É mesmo? Isso parece muito interessante!

— Pois é. Como a Ilha do Tesouro. Pena que no nosso caso falte o romantismo de costume. Não há mapas marcados com uma caveira ou um fêmur, nem indicações como "quatro passos à esquerda, a oeste pelo noroeste". É bastante prosaico o lugar onde devemos procurá-lo.

— Vocês já tentaram?

— Nós cavamos cerca de dois acres. O local foi preparado para virar uma horta. Agora estamos decidindo se devemos plantar verduras ou batatas.

— Será que, realmente, devemos falar-lhe a respeito disso? — interrompeu Charmian.

— Mas é claro, minha querida!

— Então, só precisamos encontrar um lugar tranqüilo. Venha, Edward. — Ela saiu da sala apinhada e sufocante de fumaça e dirigiu-se a uma saleta no segundo pavimento.

Sentaram-se, e Charmian disse, de chofre:

— Bom, é o seguinte. Tudo começou com tio Mathew, quer dizer, um tio de nosso avô, meu e de Edward. Ele era muito velhinho, gostava bastante de nós e sempre dizia que, quando morresse, nos deixaria todo o seu dinheiro. Tio Mathew morreu em março e deixou tudo o que tinha para ser dividido igualmente entre Edward e eu. Pode até pensar que é mentira, mas sua morte não me alegrou absolutamente. Gostava dele, de verdade. Mas já estava doente há algum tempo.

— O problema é que tudo o que ele deixou era praticamente nada. Isso, francamente, foi um choque para nós, não foi, Edward?

Edward concordou, dizendo: — Sabe... nós estávamos contando com isso. Quando se espera receber uma bolada, não se faz muito esforço pra ganhá-la... de outra forma. Sou da Marinha e só tenho o meu soldo, e Charmian não possui nada. Trabalha como assistente de diretor num teatro de segunda categoria. É um trabalho interessante que ela gosta de fazer, mas não ganha quase nada. Pretendíamos nos casar e não estávamos preocupados com dinheiro porque sabíamos que, algum dia, ficaríamos bem.

— E como vê, não estamos! — disse Charmian. — E, o que é pior, Ansteys, a propriedade da nossa família, provavelmente terá que ser vendida. Edward e eu a amamos tanto! Acho que não suportaríamos isso! Se não encontrarmos o dinheiro de tio Mathew, é o que teremos de fazer.

— Charmian, ainda não tocamos no X do problema — disse Edward.

— Fale, então.

Edward encarou Miss Marple. — À medida que tio Mathew envelhecia, ia-se tornando cada vez mais desconfiado. Suspeitava de tudo e de todos.

— Muito sensato de sua parte — retrucou Miss Marple. — A ambição dos homens pode chegar a limites inacreditáveis.

— É. Tem razão. Era o que tio Mathew também pensava. Ele tinha um amigo que perdera todo o dinheiro em negociatas bancárias, e outro que fora arruinado por um advogado desonesto e ele próprio já havia perdido o dinheiro que investira em uma companhia fraudulenta. Tio Mathew ficou tão impressionado com esses acontecimentos que decidiu de uma vez por todas, transformar o dinheiro em tesouro, e enterrá-lo.

— Ah — disse Miss Marple. — Começo a compreender.

— Os amigos argumentaram com ele, fazendo-o ver que não obteria nenhum lucro desta forma, mas ele estava irredutível. Dizia que seu dinheiro deveria ser guardado em uma caixa debaixo da cama ou ser enterrado no jardim.

— E, quando morreu, deixou muito pouco em ações, apesar de ser muito rico. Por isso acreditamos que tenha, realmente, feito o que dizia — concluiu Charmian.

Edward continuou a explicação. — Descobrimos que tinha vendido algumas ações e retirado grandes somas em dinheiro, mas ninguém sabe o que fez dele. É provável que tenha agido de acordo com seus princípios, ou seja, comprado ouro e enterrado.

— Ele não disse nada antes de morrer? Não deixou nada escrito? Um documento, uma carta...?

— É isso o que nos deixa loucos. Ele não deixou nada. Ficou inconsciente por alguns dias, mas voltou a si pouco antes de morrer. Olhou-nos e suspirou levemente. Depois disse: — Vocês estarão bem, meus queridos pombinhos. — Então piscou o olho direito e morreu. Pobre Tio Mathew!

— Ele piscou o olho... — repetiu Miss Marple, pensativa. Edward replicou ansioso: — Isso lhe diz alguma coisa? Fez-me lembrar de uma história de Arsène Lupin. Havia alguma coisa escondida no olho de vidro de um homem. Mas tio Mathew não tinha olho de vidro.

Miss Marple abanou a cabeça. — Não... Não me ocorre nada no momento.

Charmian estava desapontada. — Jane jurou que você diria logo onde deveríamos cavar.

Miss Marple sorriu. — Bem, não sou mágica. Não conheci seu tio, não sei que tipo de homem era ele e não conheço nem a casa nem o solo.

— E se o conhecesse? — perguntou Charmian.

— Talvez fosse fácil dizer alguma coisa — respondeu Miss Marple.

— Ótimo — disse Charmian. — Venha conosco a Ansteys para ver o que pode fazer.

Ê possível que Charmian não imaginasse que Miss Marple fosse levar o convite a sério; porém, ela disse logo: — É muita gentileza sua, minha querida. Sempre desejei procurar um tesouro escondido, e — continuou olhando para eles com um jeito romântico e cúmplice — ainda mais havendo amor em jogo!

— Aqui estamos — disse Charmian, gesticulando vivamente. Acabavam de visitar as dependências de Ansteys. Estiveram no jardim (que mais parecia uma trincheira), andaram pelo pequeno bosque, onde, em volta de cada árvore, havia uma escavação, e olharam tristemente para as alamedas outrora limpas e belas. Estiveram também no sótão, onde velhos baús e cômodas foram esvaziados. Entraram em porões onde lajes foram retiradas à força dos suportes. Mediram e deram tapas nas paredes e mostraram a Miss Marple todas as peças do antigo mobiliário que pudessem abrigar uma gaveta falsa.

Uma pilha de papéis jazia sobre uma mesa do escritório — todos os documentos deixados pelo finado Mathew Stroud. Nenhum fora destruído e Charmian e Edward sempre voltavam a relê-los, examinando cuidadosamente cada promissória, convite ou correspondência, na esperança de se deparar com uma pista que, até então, tivesse passado despercebida.

— Será que sobrou ainda algum lugar? — perguntou Charmian, ansiosa.

Miss Marple abanou a cabeça. — Parece que nada foi esquecido, minha querida. Talvez tudo tenha sido vasculhado demais. Sempre achei que se devia ter um plano. É como diz uma amiga minha, a Sra. Eldritch, cuja criada era especialista em polir assoalhos. Um dia ela tanto se esmerou em polir o chão do banheiro que a Sra. Eldritch, ao sair do banho, escorregou, caiu e quebrou a perna. Foi um lamentável acidente porque a porta do banheiro, como era de se esperar, estava fechada e o jardineiro teve que subir numa escada e entrar pela janela, situação muito embaraçosa para a Sra. Eldritch, uma mulher de respeito.

Edward mexia-se na cadeira impacientemente.

Desculpem-me, por favor. Estou sempre me desviando do assunto. E que uma coisa lembra outra, e isso, às vezes, ajuda. O que quis dizer é que se tentássemos imaginar um lugar...

Edward interrompeu. — Pense, Miss Marple. O meu cérebro e o de Charmian não são mais capazes disso!

— É claro, meu querido! É muito cansativo para vocês. Se não se importam, gostaria de examinar tudo isso — e apontou os documentos que estavam sobre a mesa. — Isto é, se não forem confidenciais. Não quero parecer bisbilhoteira.

— Esteja à vontade. Mas acho que não vai encontrar nada. Miss Marple sentou-se e começou a examinar aquele amontoado de papéis. Ã medida que os examinava, ia organizando-os em pequenas pilhas. Quando terminou, ficou olhando para elas por alguns minutos.

Edward perguntou, com um toque de malícia na voz: — Então, Miss Marple?

Ela sobressaltou-se. — Desculpe-me. Estava distraída.

— Encontrou alguma coisa importante?

— Não, não. Mas acho que descobri que tipo de pessoa era seu tio Mathew. Bem parecido com meu tio Henry — amigo de brincadeiras óbvias. Um solteirão, evidentemente, não sei bem por que, talvez uma desilusão na juventude... metódico, não gostava de se sentir preso; poucos solteirões gostam!

Por trás das costas de Miss Marple, Charmian fez um sinal para Edward indicando que Miss Marple estava ficando gagá.

Miss Marple continuou a falar animadamente de seu tio Henry. — Gostava de charadas. Algumas pessoas sentem-se mal com charadas; um simples jogo de palavras pode ser irritante. Era desconfiado também. Estava definitivamente convencido de que os criados o estavam roubando. E, às vezes, eles estavam mesmo, é claro. Isso tomou conta dele de tal maneira — pobre homem! — que, no final, desconfiava de que estivessem envenenando sua comida. Passou a só comer ovos quentes. Costumava dizer que ninguém pode envenenar um ovo quente. Querido tio Henry! Eu o conheci tão alegre... gostava tanto de um cafezinho depois do jantar... Costumava dizer: — Este café está muito frio — o que se podia traduzir por: — Quero mais um.

Edward sentiu que se ouvisse mais alguma coisa a respeito do tio Henry iria enlouquecer.

— Gostava dos jovens — continuou Miss Marple —, mas tinha certa tendência a instigá-los. Costumava colocar sacos de balas fora do alcance das crianças.

Deixando a educação de lado, Charmian disse: — Ele me parece horrível!

— Ah, não, querida! Era apenas um velho solteirão não muito ligado a crianças. Até que ele não era de todo ruim. Guardava uma boa quantia em dinheiro em casa, dentro de um cofre seguro, e fazia muito alarde sobre isso. Por causa de todo o seu falatório, uma noite ladrões entraram em sua casa e arrombaram o cofre.

— Bem feito! — disse Edward.

— Ah, mas não havia nada no cofre — disse Miss Marple. — Ele guardava o dinheiro em outro lugar — atrás de algumas obras religiosas na biblioteca. Dizia que ninguém retirava um livro desse tipo da prateleira!

Edward interrompeu. — É uma idéia! Que W olharmos na biblioteca?

Charmian sacudiu a cabeça com desdém.

— Você acha que ainda não tinha pensado nisso? Procurei atrás de todos os livros. Foi terça-feira passada, quando você foi a Portsmouth. Tirei todos os livros das prateleiras. Sacudi-os. Nada!

Edward suspirou. Depois levantou-se e tratou de livrar-se estrategicamente de sua indesejável hóspede. — Foi muito gentil de sua parte ter vindo e tentado nos ajudar. Sentimos muito desapontá-la e tomar seu precioso tempo. Vou tirar o carro e a senhora poderá apanhar o trem das 15 e 30...

- Mas... — disse Miss Marple — precisamos encontrar o dinheiro! Você não pode desistir, Edward. Se não conseguir a princípio, tente, uma, duas, três vezes, mas tente novamente!

— Quer dizer que devemos continuar tentando?

— Exatamente — disse Miss Marple. — Eu ainda nem comecei. "Primeiro cace sua lebre..." como ensina aquele famoso livro de receitas. Um livro maravilhoso, mas caríssimo e a maioria das receitas começa assim: "Tome meio litro de leite e uma dúzia de ovos”.Mas onde é que estava mesmo? Ah, sim. Acho que nós, de alguma forma, caçamos nossa lebre, ou seja, seu tio Mathew, e só nos falta descobrir onde ele escondeu o dinheiro. E isso deve ser bastante simples.

— Simples? — exclamou Charmian.

— Sim, querida. Estou certa de que ele teria feito o óbvio. Uma gaveta secreta, este é meu palpite.

— Ninguém poderia esconder barras de ouro em uma gaveta secreta — disse Edward, secamente.

— Não, não, é claro que não. Mas não há razão para crermos que o dinheiro esteja em ouro.

— Mas ele sempre dizia...

— Meu tio Henry também. Lembra-se do cofre? Eis por que acredito que aquilo fosse uma pista falsa. Diamantes, por exemplo, poderiam estar em uma gaveta secreta.

— Mas nós procuramos em todas as gavetas secretas! Clamamos um carpinteiro para examinar a mobília.

— Verdade? Você é esperta. Eu sugeriria... a gaveta da escrivaninha de seu tio. É aquela ali, perto da parede?

— É. Vou mostrar. — Charmian foi até ela. Retirou a tampa. Dentro dela havia caixilhos e pequenas gavetas. Abriu uma portinhola central e tocou uma mola por dentro da gaveta da esquerda. O fundo da parte central soltou-se. Charmian retirou-o, revelando uma cavidade vazia.

— Isso não é uma coincidência? — exclamou Miss Marple. — Tio Henry tinha uma escrivaninha semelhante a esta; apenas a madeira era diferente.

— De qualquer forma — disse Charmian —, não há nada lá, como se pode ver.

— Acredito — disse Miss Marple — que o carpinteiro fosse muito jovem para conhecer tudo a respeito de sua profissão. Antigamente, os carpinteiros eram mais engenhosos quando fabricavam esses esconderijos. Há segredos dentro de segredos.

Ela apanhou um grampo do coque dos cabelos grisalhos e impecáveis; espetou em um orifício quase imperceptível, que havia num dos lados do segredo. Com um certo esforço, puxou uma gavetinha dentro da qual se via um maço de cartas amareladas e um papel dobrado.

Edward e Charmian debruçaram-se sobre o achado, ao mesmo tempo. Com os dedos trêmulos, Edward desdobrou o papel para logo deixá-lo cair com um grito de decepção.

— Uma receita! Presunto ao forno.

Enquanto isso, Charmian desatava a fita do maço de cartas. Escolheu uma e leu-a rapidamente. — Cartas de amor!

Miss Marple exclamou romanticamente: — Que lindo! Talvez esteja aí a razão por que seu tio nunca se casou.

Charmian lia:

— "Meu querido Mathew: Devo confessar que parece ter passado muito tempo desde que recebi sua última carta. Tento ocupar-me com minhas tarefas e sempre penso que sou mesmo muito feliz por ter a oportunidade de conhecer o mundo e que nunca poderia imaginar que viajaria tanto por essas ilhas, desde que cheguei à América”.

Charmian interrompeu bruscamente a leitura:

— De onde é esta carta? Do Havaí! — E prosseguiu:

Por incrível que pareça, esses nativos são mesmo de um primitivismo incrível. Não se vestem, são selvagens e passam a maior parte do tempo nadando, dançando e adornando-se com guirlandas de flores. O pastor Gray já fez algumas conversões, mas o trabalho é quase sempre inútil, e tanto ele quanto sua esposa estão muito desmotivados. Tenho feito o que posso para encorajá-los, mas também às vezes me sinto triste por um motivo que você conhece, meu querido. A distância é uma prova muito severa para um coração apaixonado. As suas sinceras manifestações de carinho e afeto animaram-me muito. Agora e sempre você é dono de meu devoto e fiel coração, querido Mathew. Seu verdadeiro amor, Betty Martin.

P.S. — Esta está endereçada à nossa amiga Matilda Graves, como sempre. Espero que Deus me perdoe este pequeno subterfúgio.

Edward assoviou. — Uma missionária! Eis o romance de Tio Mathew! Por que será que nunca se casaram?

— Ela parece ter viajado pelo mundo inteiro — disse Charmian, examinando o resto das cartas. — Mauritânia, toda espécie de lugares. Provavelmente morreu de febre amarela ou coisa parecida.

Um leve suspiro chamou-lhes a atenção. Miss Marple estava muito intrigada. — Muito bem — disse ela. — Vejam isto agora.

Ela lia a receita de presunto ao forno. Sentindo seus olhares inquiridores, começou a ler em voz alta: "Presunto ao forno com espinafre. Tome um bom pedaço de presunto defumado, recheie com cravo-da-índia e cubra com açúcar mascavo. Assem em forno morno e sirva com purê de espinafre”.O que acham disso?

— Que estranho — disse Edward.

— Não, talvez fosse até gostoso. Mas o que acham disso tudo? De repente o rosto de Edward iluminou-se. — Acha que isso pode ser um código? — Apanhou o papel. — Olhe, Charmian. É evidente! Por qual outro motivo ele guardaria esta receita numa gaveta secreta?

— Exatamente — disse Miss Marple. — Isto é muito significativo.

— Quem sabe não é o truque da tinta invisível? Vamos aquecer o papel. Acenda o fogo — disse Charmian.

Edward assim o fez mas não havia sinal de tinta invisível.

Miss Marple pigarreou. — Realmente acho que vocês estão tornando tudo muito difícil. A receita deve ser apenas uma pista. As cartas é que devem ser importantes.

— As cartas?

— Sim, especialmente a assinatura.

Mas Edward nem a ouviu. Gritava, animado:

— Charmian, venha cá! Ela está certa! Veja, os envelopes são antigos, sim. mas as cartas foram escritas há pouco tempo.

— Exatamente — disse Miss Marple.

Elas foram envelhecidas. Aposto como foi o próprio tio Mat quem as envelheceu!

— Exatamente — disse Miss Marple.

— Tudo deve ser código. Nunca houve missionária alguma! -Minhas queridas crianças! Não há razão para dificultar as brincadeiras. Realmente um homem muito simples. Quis apenas brincar.

Pela primeira vez os dois jovens deram total atenção a Miss Marple.

— O que quer dizer com isso, Miss Marple? — perguntou Charmian.

— Quero dizer, querida, que você tem o dinheiro em suas mãos neste momento.

Charmian fitou as próprias mãos.

— A assinatura, querida! É a chave de tudo. A receita é apenas uma pista. Cravos-da-índia, açúcar mascavo e tudo o mais, o que significa? Ora, presunto e espinafre. Presunto e espinafre! Significam... nada! Está claro, então, que as cartas, sim, são importantes. Principalmente se levarmos em consideração tudo o que seu tio fez pouco antes de morrer. Ele piscou o olho, não foi o que disse? Muito bem. Eis a pista!

— Quem está louco aqui, nós ou a senhora? — perguntou Charmian.

— Sem dúvida, minha querida, você já deve ter ouvido uma expressão que indica que alguma coisa não é o que parece, ou será que já não é mais usada? numa situação como esta costumava-se dizer: "um piscar de olhos e Betty Martin”.

Edward ficou sem ação. Seus olhos estavam fixos no papel que tinha nas mãos. — Betty Martin...

— É claro, Edward. Como você mesmo disse, não existe ou não existiram tais pessoas. As cartas foram escritas por seu tio e acredito que ele se tenha divertido muito com isso. Os envelopes são bem mais antigos; não poderiam pertencer às cartas porque o selo postal data de 1851.

Ela estacou e repetiu bem devagar. — 1851. Isso explica tudo, não?

— Não para mim — disse Edward.

— Claro! — exclamou Miss Marple. — Também não faria sentido para mim se não fosse meu sobrinho-neto, Lionel. Um menino maravilhoso e um apaixonado filatelista. Sabe tudo sobre selos. Foi ele quem me contou a respeito de um tipo de selo raro e valiosíssimo. Um deles foi achado recentemente e leiloado. Era um selo de dois centavos, datado de 1851. Foi arrebatado por 25.000 libras, se bem me lembro. Imagino que os outros selos também devam ser raros e valiosos. Sem dúvida seu tio os comprou através de intermediários e tomou todo cuidado para não deixar pistas, como se diz nas histórias policiais.

Edward resmungou alguma coisa, sentou-se e escondeu o rosto nas mãos.

— O que houve? — perguntou Charmian.

— Nada. Apenas um mau pensamento. Se não fosse por Miss Marple, nós teríamos queimado essas cartas sem dar-lhes maior atenção.

— Ah! É isso que esses velhinhos espirituosos nunca imaginam. Meu tio Henry, por exemplo, certo Natal enviou uma nota de cinco libras para sua sobrinha favorita. Colocou a nota dentro de um cartão de Boas Festas, fechou-o e escreveu: "Todo o meu amor e votos de felicidades. Sinto só poder enviar-lhe isso este ano”.

— A moça, desiludida com a mensagem, atirou o cartão na lareira sem ao menos abri-lo. E ele acabou tendo que enviar-lhe outra nota.

A impressão de Edward a respeito de tio Henry sofreu uma completa transformação.

— Miss Marple — disse ele — vou abrir uma garrafa de champanha. Vamos beber à saúde de seu tio Henry.

Fonte:
Christie, Agatha(1891-1976). Os Três ratos cegos e outras histórias (tradução de Regina Saboya de Santa Cruz Abreu). Rio de Janeiro; Nova Fronteira, 1979.

Paulo Mendes Campos (O Canarinho)

Atacado de senso de responsabilidade, num momento de descrença de si mesmo, Rubem Braga liquidou entre amigos, há um ano, a sua passarinhada. Às crianças aqui de casa tocaram um bicudo e um canário. O primeiro não agüentou a crise da puberdade, morrendo logo uns dias depois. O menino se consolou, forjando a teoria da imortalidade dos passarinhos: não morrera, afirmou-nos com um fanatismo que impunha respeito ou piedade, apenas a sua alma voara para Pirapora, de onde viera. O garoto ficou firme com a sua fé. A menina manteve a possessão do canário, desses comuns, chamados chapinha ou da-terra, e que mais cantam por boa vontade que por vocação. Não importa, conseguiu depressa um lugar em nossa afeição, que o tratávamos com alpiste, vitaminas e folhas de alface, procurando ainda arranjar-lhe um recanto mais cálido neste apartamento batido por umas raras réstias de sol, pois é quase de todo virado para o Sul.

Era um canário ordinário, nunca lera Bilac, e parecia feliz em sua gaiola. Nós o amávamos desse amor vagaroso e distraído com que enquadramos um bichinho em nossa órbita afetiva. Creio mesmo que se ama com mais força um animal sem raça, um pássaro comum, um cachorro vira-lata, o gato popular que anda pelos telhados. Com os animais de raça há uma afetação que envenena um pouco o sentimento; com os bichos comuns, pelo contrário, o afeto é de uma gratuidade que nos faz bem.

Aos poucos surpreendi a mim, que nunca fui de bichos, e na infância não os tive, a programá-lo em minhas preocupações. Verificava o seu pequeno cocho de alpiste, renovava-lhe a água fresca, telefonava da rua quando chovia, mesmo encabulado perante mim mesmo com essa sentimentalidade serôdia, mas, que havia de fazer!

Como nas fábulas infantis, um dia chegou o inverno, um inverno carioca, é verdade, perfeitamente suportável. Entretanto, como já disse, a posição do edifício não deixa o sol bater aqui, principalmente nesta época do ano. É a gente ficar algumas horas dentro de casa e sentir logo uma saudade física dos raios solares. Que seria então do canarinho, relegado agora à área onde pelo menos ficava ao abrigo da viração marinha. Às vezes, quando sinto frio, vou à esquina, compro um jornal e o leio ali mesmo, ao sol. Ao mesmo tempo que compreendo o mistério e a inquietação dos escandinavos, mergulhados em friagens e brumas durante uma boa temporada de suas vidas.

E o canarinho, pois? Levá-lo comigo dentro da gaiola, isso não, eu não tinha coragem. Não devo ter reputação de muito sensato, e lá se iria (como diz Mário Quintana) o resto do prestígio que no meu bairro eu ainda possa ter. Assim, vendo o passarinho encorujado a um canto, decidimos doá-lo a um amigo comum, nosso e dos passarinhos, dono de um sítio. A comunicação foi feita às crianças depois do café. Pareciam estar de acordo, mas o menino, sem dar um pio, dirigiu-se até a área e soltou o canarinho. A empregada viu e veio contar-nos.

Mas, cadê o menino? Voando? Foi um susto que demorou alguns minutos, pois não o achávamos em seus esconderijos habituais, enrolado na cortina, debaixo da cama, atrás da porta. Restava um armário muito estreito a ser investigado, e lá estava ele, quieto e encolhido no escuro como no útero materno, com uma cara de expressão tão dividida, que o choro da menina se desfez em uma gargalhada cheia de lágrimas.

O canário também tinha sumido e, embora fosse quase certa a sua impossibilidade de ganhar a vida por conta própria, melhor assim, não voltasse nunca mais.

Mas voltou. Na hora do almoço a empregada veio dizer-nos que ele estava na janela do edifício que se constrói ao lado, muito triste. É verdade. Lá está o canarinho, sem saber de onde veio, sem saber aonde ir, sem saber ao certo se gostamos dele, triste, arrepiado e com fome. Um ponto amarelo no paredão esbranquiçado, lá está o nosso canário-da-terra a doer em nossos olhos.

Vai-te embora, canarinho, que não te quero mais. Mas ele fica, brincando de corvo, dizendo never more. Esse refrão (never more) me deixa meio esquisito. Estou triste. Todo mundo aqui em casa está triste, ridiculamente triste, nesta manhã luminosa de junho.

Ernesto Coutinho Junior / PE (Poemas Avulsos)

VAQUEIRO ERRANTE

A vida de um vaqueiro
tem coisas para se contar
o patrão exige e grita
que ele deve cavalgar.

Surge um berro
chega um boi,
em galopada vibrante,
mensageiro da boiada
que ouviu o seu berrante.

A boiada assim entendendo
passo a passo caminhou,
para fazenda do patrão
que em pouco tempo chegou.

Reunido no curral,
nem um rés faltou,
o povo admirou,
o vaqueiro não chegou.

Cumprida a sua missão,
partiu para encontrar,
o amor que lhe foi roubado,
sem ter tempo de gritar.

Assim o vaqueiro foi
um dia ele há de voltar
pois na vida de um vaqueiro
tem coisas para se contar.

AS PEGADAS DA VIDA

Há momentos na vida
difíceis de se suportar
quando surge uma mão amiga
docilmente a nos acalantar.

O brilho que antes era raro
se faz presente ao acordar
descobrindo novos caminhos
fazendo-nos novamente triunfar.

Hoje a noite se tornou mais bela
o cérebro magnamente a criar
idéias, sonhos e anseios
no desejo nobre de reconquistar.

Permanecendo sempre humilde
deixando o exemplo de sempre servir
a todos com nobreza de alma
escrevendo o nome do verdadeiro amor.

LÁGRIMAS

Lágrimas que rolam de um rosto
Lágrimas que mexem sentimento
Lágrimas que se alegram por momentos
Lágrimas que expressam uma vida
Lágrimas derramadas em noites longas
Lágrimas que por horas se tornam pesadas
Lágriams doadas de um amor puro
Lágrimas sentidas de um homem criança
Lágrimas que falam de um alguém
Lágrimas que amam
Lágrimas que perdoam
Lágrimas que buscam
Mesmo com mágoas
Se alegram ao ver alguém
Quem? Você.
Fonte:
União Brasileira de Escritores

Monteiro Lobato (Fitas da Vida)

Perambulávamos ao sabor da fantasia, noite a dentro, pelas ruas feias do Brás, quando nos empolgou a silhueta escura duma pesada mole tijolácea, com aparência de usina vazia de maquinismo.

- Hospedaria dos imigrantes – informa o meu amigo.

- É aqui então...

Paramos a contemplá-la era ali a porta do Oeste Paulista, essa Canaã em que ouro espirra do solo, era ali a ante sala da Terra Roxa – essa Califórnia do rubídio, oásis dor de sangue coalhado onde cresce a árvore do Brasil de amanhã, uma coisa um pouco diferente do Brasil de ontem, luso e perro; era ali o ninho da nova raça, liga, amálgama, justaposição de elementos étnicos que temperam o neobandeirante industrial, antijeca, antimodorra, vencedor da vida à moda americana.

Onde pairam os nossos Walt Whitmans, que não vêem estes aspectos do país e os não põem em cantos? Que crônica, que poema não daria aquela casa da esperança e do Sonho! Por ela passaram milhares de criaturas humanas, de todos os países e de todas as raças miseráveis, sujas, com o estigma das privações impresso nas faces – mas refloridas de esperança ao calor do grande sonho da América. No fundo, heróis, porque só os heróis esperam e sonham.

Emigrar: não pode existir fortaleza maior. Só os fortes atrevem-se a tanto. A miséria do torrão natal cansa-os e eles se atiram à aventura do desconhecido, fiando na paciência dos músculos a vitória da vida. E vencem.

Ninguém ai vê-los na hospedaria, promíscuo, humildades, quase muçulmanos na surpresa da terra estranha, imagina o potencial da força neles acumulado, à espera de ambiente propício para explosões magníficas.

Cérebro e braço do progresso americano, gritam o Sésamo às nossas riquezas adormecidas. Estados Unidos, Argentina, São Paulo devem dois terços do que são a essa verredura humana, trazida a granel para aterrar os vazios demográficos das regiões novas. Mal cai no solo novo, transforma-se, floresce, dá de si a apojadura farta com que se aleita a civilização.

Aquela hospedaria... Casa do Amanhã, corredor do futuro...

Por ali desfilam, inconscientes, os formadores duma raça nova.

- Dei-me com um antigo diretor desta almanjarra – disse o meu companheiro -, ao qual ouvi muita coisa interessante acontecida cá dentro. Sempre que passo por esta rua, avivam-me na memória vários episódios sugestivos, e entre eles um, romântico, patético, que até parece arranjo para terceiro ato de dramalhão lacrimogêneo. O romantismo, meu caro, existe na natureza, não é invenção dos hugos; e agora que se faz cinema, posso assegurar-te que muitas vezes a vida plagia o cinema escandalosamente.

Foi em 1906, mais ou menos. Chegara do Ceará, então flagelado pela seca, uma leva de retirantes com destino à lavoura de café, na qual havia um cego, velho de mais de sessenta anos. Na sua categoria dolorosa de indesejável, por que cargas d’água dera com os costados aqui? Erro de expedição, evidentemente. Retirantes que emigram não merecem grande cuidado dos propostos ao serviço. Vêm a granel, como carga incômoda que entope o navio e cheira mal. Não são passageiros, mas fardos de couro vivo com carne magra por dentro, a triste carne de trabalho, irmã da carne de canhão.

Interpelado o cego por um funcionário da hospedaria, explicou sua presença por engano de despacho. Destinavam-no ao Asilo dos Inválidos da Pátria, no Rio, mas pregaram-lhe às costas a papeleta de “Para o eito” e lá veio. Não tinha olhar para guiar- se, nem teve olhos alheios que o guiassem. Triste destino o dos cacos de gente...

- Por que para o Asilo dos Inválidos? – perguntou o funcionário. – É voluntário da Pátria?

- Sim – respondeu o cego - , fiz cinco anos de guerra no Paraguai e lá apanhei a doença que me pôs a noite nos olhos. Depois que cheguei caí no desamparo. Para que presta um cego? Um gato sarnento vale mais.

Pausou uns instantes, revirando nas órbitas os olhos esbranquiçados. Depois:

- Só havia no mundo um homem capaz de me socorrer: o meu capitão. Mas, esse, perdi-o de vista. Se o encontrasse – tenho a certeza! - , até os olhos me era ele capaz de reviver. Que homem! Minhas desgraças todas vêm de se ter perdido me capitão...

- Não tem família?

- Tenho uma menina que não conheço. Quando veio ao mundo, já meus olhos eram trevas.

Baixou a cabeça branca, como tomada de súbita amargura.

- Daria o que me resta de vida para vê-la um instantinho só. Se o meu capitão...

Não concluiu. Percebera que o interlocutor já estava longe, atendendo ao serviço, e ali ficou, imerso na tristeza infinita da sua noite sem estrelas.

O incidente, entretanto, impressionara o funcionário, que levou ao conhecimento do diretor. O diretor da imigração era nesse tempo o major Carlos, nobre de paulista dos bons tempos, providência humanizada daquele departamento. Ao saber que o cego fora um soldado de 70, interessou-se e foi procurá-lo.

Encontrou-o imóvel, imerso no seu eterno cismar.

- Então, meu velho, é verdade que fez a campanha do Paraguai?

O cego ergueu a cabeça, tocado pela voz amiga.

- Verdade sim, patrão. Vim no 13, e logo depois de chegar ao império do Lopes entrei em fogo. Tivemos má sorte. Na batalha de tuiuti nosso batalhão foi dizimado como milharal em tempo de chuva de pedra. Salvamo-nos eu e mais um punhado de camaradas. Fomos incorporados ao 33 paulista para preenchimento dos claros, e neles fiz o resto da campanha.

O major Carlos também era veterano do Paraguai, e por coincidência servira no 33.

Interessou-se, pois, vivamente pela história de cego, pondo-se a interrogá-lo a fundo.

- Quem era o seu capitão?

O cego suspirou.

- Meu capitão era um homem que, se eu o encontrasse de novo, até a vista me era capaz de dar! Mas não sei dele, perdi-o – para mal meu...

- Como se chamava?

- Capitão Boucault.

Ao ouvir esse nome o major sentiu eletrizarem-se-lhe as carnes num arrepio intenso; dominou-se, porém, e prosseguiu:

- Conheci esse capitão, foi meu companheiro de regimento. Mau homem, por sinal, duro para com os soldados, grosseiro...

O cego, até ali vergado na atitude humilde do mendigo, ergueu o busto e, com indignação a fremir na voz, disse com firmeza:

- Pare aí! Não blasfeme! O capitão Boucalt era o mais leal dos homens, amigo, pai do soldado. Perto de mim ninguém o insulta. Conheci-o em todos os momentos, acompanhei- o durante anos como sua ordenança e nunca o vi praticar o menor ato de vileza.

O tom firme do cego comoveu estranhamente o major. A miséria não conseguira romper no velho soldado as fibras da lealdade, e não há espetáculo mais arrebatador do que o de uma lealdade assim vivedoura até os limites extremos da desgraça. O major, quase rendido, sobresteve-se por um instante. Depois, firmemente, prosseguiu na experiência.

- Engana-se, meu caro. O capitão Boucalt era um cobarde...

Um assomo de cólera transformou as feições do cego. Seus olhos anuviados pela catarata revolveram-se nas órbitas, num horrível esforço para ver a cara do infame detrator. Seus dedos crisparam-se; todo ele se retesou, como fera prestes a desferir o bote. Depois, sentindo pela primeira vez em toda plenitude a infinita fragilidade dos cegos, recaiu em si, esmagado.

A cólera transfez-se-lhe em dor, e a dor assomou-lhe aos olhos sob forma de lágrimas. E foi lacrimejado que murmurou em voz apagada:
- Não se insulta assim um cego...

Mal pronunciara estas palavras, sentiu-se apertado nos braços do major, também em lágrimas, que dizia:

- Abrace, meu amigo, abrace o seu velho capitão! Sou eu o antigo capitão Boucalt...

Na incerteza, aparvalhado ante o imprevisto desenlace e como receoso de insídia, o cego vacilava.

- Duvida? – exclamou o major. – Duvida de quem o salvou a nado na passagem do Tebiquari?

Àquela palavras mágicas a identificação se fez e, esvanecido de dúvidas, chorando como criança, o cego abraçou-se com os joelhos do major Carlos Boucalt, a exclamar num desvario:

- Achei meu capitão! Achei meu pai! Minhas desgraças se acabaram!...

E acabaram-se de fato.

Metido num hospital sob os auspícios do major, lá sofreu a operação da catarata e readquiriu a vista.

Que impressão a sua, quando lhe tiraram a venda dos olhos! Não se cansava de “ver”, de matar as saudades da retina. Foi a janela e sorriu para a luz que inundava a natureza. Sorriu para as árvores, para o céu, para as flores do jardim. Ressurreição!...

- Eu bem dizia! – exclamava a cada passo - , eu bem dizia que se encontrasse o meu capitão estava findo o meu martírio. Posso agora ver minha filha! Que felicidade, meu Deus!...

E lá voltou para a terra dos verdes mares bravios onde canta a jandaia. Voltou a nado – nadando em felicidade.

A filha, a filha!...

- Eu não dizia? Eu não dizia que se encontrasse o meu capitão até a luz dos olhos me havia de voltar?

Fonte:
Monteiro Lobato. Negrinha.

Fábula (A Lebre e a Tartaruga)

A Lebre andava sempre ligeira, quase a correr como o vento, e fazia-lhe nervoso ver a pachorrenta da Tartaruga a caminhar vagarosamente para onde quer que fosse. Chovesse ou fizesse sol, houvesse perigo ou não, a Sra. Tartaruga não passava do seu passo habitual, pausado e sossegado.

Nos dias de festa, enquanto a bicharada combinava sair junta e todos se punham a andar, era certo e sabido que a velha Tartaruga ficava à cauda do rancho, a fechar a marcha, a andar compassada, tão mole, tão mole, que a Lebre tomava fôlego, andava pelas duas e punha-se à frente de todos, a correr, como lebre que era.

E um belo dia não se conteve e disse para a Tartaruga: — E se eu fosse como a senhora, já tinha morrido de aborrecimentos. Eu podia cá andar nesse passinho de enterro! Eu sempre queria vê-la a correr comigo, a ver se espertava.

Muito bem — respondeu a Tartaruga, pacatamente. — Vamos lá experimentar isso. Fazemos uma corrida de cinco quilómetros, e aposto quem vai ganhá-la sou eu.

Bonita aposta! — respondeu a Lebre — Vamos já sair de dúvidas.

Convidaram a Raposa para juiz e ambas partiram para a corrida. A Lebre, como sempre, largou veloz como um foguete e em pouco tempo se perdeu de vista. A Tartaruga, como era seu costume, deixou-se ficar a andar lentamente, a andar… a andar… pela estrada fora.

Depois de correr um bocado, a Lebre voltou-se para trás e, não avistando a Tartaruga, deu uma gargalhada.

— A esta hora ainda ela está dando as primeiras passadas. Nem me vale a pena andar mais por agora. Até tenho tempo de dormir uma soneca enquanto espero por essa papa-açorda.

E deitou-se na relva fresquinha e apetitosa que havia à beira do caminho, principiando logo a dormir. Dormiu, sonhou, ressonou… e entretanto a Tartaruga, que vinha a andar devagar, muito devagarinho, mas sem perder um momento, passou junto dela, viu como a sua contendora dormia descuidadamente, sorriu-se e continuou o seu caminho.

Quando a Lebre acordou voltou a olhar para trás.

«Ainda não há-de vir a meio caminho — pensou. — Agora em quatro pulos chego ao fim e ganhei a aposta.»

Mas quando olhou para diante viu a Tartaruga, que acabava de chegar naquele instante ao lugar combinado para o fim da corrida. Tinha ganho a aposta!

E a Lebre, abatida no seu orgulho de boa corredora, ficou a pensar:

«Não é por muito madrugar que amanhece mais cedo».
Fonte:
http://www.estudioraposa.com/index.php/category/historias/

sábado, 8 de setembro de 2012

Clevane Pessoa (O Anjo, a Rosa, o Beija-flor)

                       Um dia, a rosa mais olorosa do jardim, sempre cuidada por um pequeno ser de luz- amante de sua beleza inefável, mãos pacientes e cuidadosas, a afofar e regar a Terra, arrancar ervas daninhas e afastar as formigas, mesmo sujando-as ou ferindo os dedinhos leves-recebeu a visita fremente de um beija-flor. Este, tão pequeno quanto o outro, mas dono das asas que ele não possuía e um bico que podia extrair o nectar precioso, encantou a pequena rosa orvalhada...

                      O anjinho luminoso, observando toda a perfeição daquilo, o encantamento do beija-flor batendo as asas centenas de vezes a equilibrar-se no ar, a cumprir um ciclo vital, um equilíbrio necessário na Natureza, resolveu ir embora, para não sofrer mais... Para sempre. Doía-lhe muito porque outro cuidava de sua flor, agora. Mas apenas quem ama verdadeiramente é realmente capaz de renunciar... Afastou-se de vez,-e então, abriu-se nele um par de asas luminosas, por ele desconhecidas, mas presentes desde que nascera para amar- e foi então que, travestido em um colibri de arco-íris nas asinhas vibráteis, ele pôde reaproximar-se da rosa que o reconheceu, no momento exato em que ela fenecia, pois tinha a vida efêmera, arrependida de não ter conseguido reconhecer a tempo toda a dedicação de quem cuidara de si desde que abrira as pétalas pela primeira vez...Agora era muito tarde...O que precisa ser feito em amor, não deve ser adiado, nunca...É preciso ser ousado para viver plenamente o momento amoroso...E então, a flor se foi...

                     O anjinho beija-flor,porém, por representar Eros, tinha o dom da eternidade e foi assim que ele descobriu outras rosas, outras flores e seguiu através dos séculos a cultuar o AMOR...

Fonte:
Clevane Pessoa de Araújo Lopes/Brasil,no e-book "Pequenas Histórias em Atos"-Ensaio Poético da AVBL,organizado por Maria Inês Simões

Carlos Drummond de Andrade (Resíduo)

 De tudo ficou um pouco
 Do meu medo. Do teu asco.
 Dos gritos gagos. Da rosa
 ficou um pouco

 Ficou um pouco de luz
 captada no chapéu.
 Nos olhos do rufião
 de ternura ficou um pouco
 (muito pouco).

 Pouco ficou deste pó
 de que teu branco sapato
 se cobriu. Ficaram poucas
 roupas, poucos véus rotos
 pouco, pouco, muito pouco.

 Mas de tudo fica um pouco.
 Da ponte bombardeada,
 de duas folhas de grama,
 do maço
 - vazio - de cigarros, ficou um pouco.

 Pois de tudo fica um pouco.
 Fica um pouco de teu queixo
 no queixo de tua filha.
 De teu áspero silêncio
 um pouco ficou, um pouco
 nos muros zangados,
 nas folhas, mudas, que sobem.

 Ficou um pouco de tudo
 no pires de porcelana,
 dragão partido, flor branca,
 ficou um pouco
 de ruga na vossa testa,
 retrato.

 Se de tudo fica um pouco,
 mas por que não ficaria
 um pouco de mim? no trem
 que leva ao norte, no barco,
 nos anúncios de jornal,
 um pouco de mim em Londres,
 um pouco de mim algures?
 na consoante?
 no poço?

 Um pouco fica oscilando
 na embocadura dos rios
 e os peixes não o evitam,
 um pouco: não está nos livros.

 De tudo fica um pouco.
 Não muito: de uma torneira
 pinga esta gota absurda,
 meio sal e meio álcool,
 salta esta perna de rã,
 este vidro de relógio
 partido em mil esperanças,
 este pescoço de cisne,
 este segredo infantil...
 De tudo ficou um pouco:
 de mim; de ti; de Abelardo.
 Cabelo na minha manga,
 de tudo ficou um pouco;
 vento nas orelhas minhas,
 simplório arroto, gemido
 de víscera inconformada,
 e minúsculos artefatos:
 campânula, alvéolo, cápsula
 de revólver... de aspirina.
 De tudo ficou um pouco.

 E de tudo fica um pouco.
 Oh abre os vidros de loção
 e abafa
 o insuportável mau cheiro da memória.

 Mas de tudo, terrível, fica um pouco,
 e sob as ondas ritmadas
 e sob as nuvens e os ventos
 e sob as pontes e sob os túneis
 e sob as labaredas e sob o sarcasmo
 e sob a gosma e sob o vômito
 e sob o soluço, o cárcere, o esquecido
 e sob os espetáculos e sob a morte escarlate
 e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes
 e sob tu mesmo e sob teus pés já duros
 e sob os gonzos da família e da classe,
 fica sempre um pouco de tudo.
 Às vezes um botão. Às vezes um rato.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. A Rosa do Povo, em Nova Reunião vol.1

Wagner Marques Lopes/MG (As Multifaces da Saudade)

Sol poente, tela de Tarsila do Amaral
A saudade é tão ladina
que se retrata a valer:
em mil imagens me ensina
a recordar o viver.

Seja de andrajos vestida
ou trajada de princesa,
saudade é sempre garrida,
um encanto, uma surpresa!...

A saudade pequenina
tem certo preciosismo:
é casinha na colina –
lá morar o quanto cismo.

A saudade é, em verdade,
ação do mar, por que não?
Rolam seixos de saudade
nas praias do coração.

Moroso... De quando em quando,
ele passa... Mal avança...
Saudade – um trem transportando
todo o peso da lembrança.

Minha família seguia
buscando terras além...
A saudade, hoje em dia,
é viajora de trem.

Contadora de meus casos
dos bons tempos que vivi!...
Saudade não marca prazos
para me ver por aqui.

Saudade é clarão, lampejo
de um paraíso distante –
quem dera eu tivesse o ensejo
de vivê-lo, a todo instante.

Fim de tarde... Um sol mortiço
a cair lá no poente...
Saudade – não mais que isso –
tênue luz dentro da gente.

Trovadores e poetas
são seus admiradores:
a saudade – atriz completa,
em seus papéis vencedores.

Ao escrever estes versos,
uma tristeza me invade:
com retratos tão diversos,
eu começo a ter saudade...

Fonte:
O Autor

Cecília Meireles (Inscrição)

 Sou entre flor e nuvem,
 estrela e mar.
 Por que havemos de ser unicamente humanos,
 limitados em chorar?
 Não encontro caminhos
 fáceis de andar
 Meu rosto vário desorienta as firmes pedras
 que não sabem de água e de ar
 E por isso levito.
 É bom deixar
 um pouco de ternura e encanto indiferente
 de herança,em cada lugar.
 Rastro de flor e estrela,
 nuvem e mar.
 Meu destino é mais longe e meu passo mais rápido:
 a sombra é que vai devagar.

P. Preto (As Lembranças dos Velhos Carnavais)

Carnaval de Rua, em 1954, na Cinelândia
Este espaço despretensioso das quintas-feiras é lido, aqui em Jahu, entre outros, pelo ilustre mestre Sebastião Antonio da Silva Neto, o conhecido Professor Sebá, profundo conhecedor da língua portuguesa. Em São Paulo, pelo Otacílio Gomes, filho do autor da bem elaborada letra do hino “Asas do Jahu”. Também na capital, meus textos são lidos pelo maestro Julio Medaglia, uma autoridade em música clássica, sob cuja batuta estiveram grandes orquestras, inclusive a Sinfônica do Estado de São Paulo.

O carnaval – ou o que resta dele – está aí, batendo em nossas portas, anunciando o seu fim quase melancólico, pelo menos em muitas cidades que não o exploram como atração turística. Aqui ele já foi bem cultivado. Aos poucos – como em outras localidades – foi se apagando. Os bailes rarearam em razão da falta de público, o afastamento progressivo das famílias, custo das bandas e orquestras, que, com os anos, deixaram de existir, além de outros detalhes que influíram nas decisões dos diretores de clubes. Sinal dos tempos e mudanças de costumes trazidos pela modernidade.

Só os mais velhos conseguem lembrar-se dos antigos “corsos”, ou seja, aqueles desfiles de carros pelas ruas centrais, que aconteceram entre as décadas de 40 e 60, com pessoas nas carroçarias de caminhotes, caminhões ou até sentadas nos para lamas, distribuindo confetes, serpentinas, além das trocas de jatos dos lança-perfumes. Claro, tudo isso apenas para os poucos possuidores de veículos. Nós, os moleques do início dos anos 50, moradores da rua Humaitá, pegávamos carona na Chevrolet verde da família Santana Galvão e fazíamos a festa. O povo permanecia em pé, nas calçadas, parecendo divertir-se com tudo aquilo. Não existiam exageros. Tá bem, de vez em quando algum adulto saia da linha. Mas, afinal de contas, era carnaval. E as histórias rapidamente corriam a cidade. Aos poucos, tudo foi acabando. E nem poderia ser diferente. Depois, era só ir confessar com o Padre Serra e receber as cinzas na quarta-feira e tudo voltava à normalidade.

Os quatro bailes noturnos eram assunto desde o início do ano. Esperados por muitos, evidentemente, pelas oportunidades que ofereciam, começando pelas fantasias de havaianas, que possibilitavam visões paradisíacas. Tomemos um exemplo, já em pleno 1968, com os ventos da modernidade varrendo os tradicionalismos para baixo do tapete. O Aeroclube prometia “Uma Noite no Inferno”, com cadência da Orquestra Continental que, dividida em duas, também seria a responsável pela animação no Grêmio Paulista, com a sua “Noite das Brasas”. O Caiçara Clube também abria seus amplos salões, contando com os tradicionais acordes da Orquestra Capelozza. Era uma espécie de canto do cisne do carnaval nos clubes. Eles ainda permaneceriam por quase duas décadas, alegrando os foliões. O que aconteceu? Isso talvez não importe agora. Os jovens de hoje tem outras visões e opiniões. Talvez aqueles repertórios tradicionais de marchinhas e sambas não lhes digam nada.

Em 1974, Momo ainda mantinha seu reinado. O carnaval de rua havia se tornado grandioso, com as disputas entre as escolas de samba Faixa Branca, Ponte Preta e Acadêmicos do Samba, além dos carros alegóricos bolados por um gênio chamado Francisco Canhos. Maria Claudete Tiete, candidata do Grêmio Paulista conquistava o título de rainha, enquanto o clube promovia uma noite especial, com a presença do cantor Djalma Pires, além da cadência do conjunto Original Som, trazido da cidade de São José do Rio Preto. No Aeroclube, o pessoal da Capelozza mantinha um ritmo imbatível, aquele que a tornou inesquecível para várias gerações. A Sociedade Recreativa José do Patrocínio, instalada bem ao lado da Praça Siqueira Campos, onde hoje funciona uma loja, contava com a arte do jauense Nadinho, uma autoridade em música e que, com sua partida, deixou uma eterna saudade.

Em breve Momo reinará. Lá do fundo dos corações virão “as lembranças dos velhos carnavais...”

Fonte:
União Brasileira de Escritores
http://www.ube.org.br/espaco-do-autor-detalhe.asp?ID=1249

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 662)


Uma Trova de Ademar 
A bebida é uma desgraça,
nem mesmo o céu me socorre;
pois quando eu bebo cachaça
meu santo fica de porre.
–Ademar Macedo/RN–

Uma Trova Nacional 


Montei pensão com mobília
e preguei anúncio ao muro:
(Para Moças de Família!)
Quase quebrei; eu te juro!
–Nemésio Prata/CE–

Uma Trova Potiguar 


Bateu na porta da frente
e correu para a de trás.
Desta forma inteligente,
pegou dez “sócios” ou mais!
–Francisco Macedo/RN–

Uma Trova Premiada 


1994  -  Bandeirantes/PR
Tema  -  DOUTOR  -  M/H.


Quando a sogra sente dor,
o genro, bem “solidário”,
nunca lhe traz o doutor,
traz sempre o veterinário!
–Neide Rocha Portugal/PR–

...E Suas Trovas Ficaram 


Casa em março Ester Macedo (É minha Prima...Risossss)
e em julho é mãe... Ora, o alarde!
O filho não veio cedo,
o esposo é que veio tarde...
–Belmiro Braga/MG–

U m a P o e s i a 


Se o pobre bebe cachaça
Cospe no pé do balcão,
Vai atrás de confusão
Malquerença e arruaça;
Bicado mija na praça
Faz aquela choradeira,
Vomita a comida inteira
E a sua mulher protesta:
Quem tem dinheiro faz festa,
Quem não tem, só faz besteira!...
–Hélio Crisanto/RN–

Soneto do Dia 

CEGO DE AMOR.
–Edmar Japiassú Maia/RJ–


Um olho é vesgo e o outro esbugalhado.
O nariz mais parece um pimentão.
Uma verruga solitária, ao lado,
enfeita a grande boca de alçapão!

A gengiva, num tom arroxeado,
exibe, com orgulho um só dentão.
No buraco do ouvido, mal lavado,
em se plantando nasce até feijão!

O volumoso colo bem moreno,
carrega um seio enorme e outro pequeno,
fato que obriga andar meio “empenada”...

Parece ter na pança amolecida,
aquilo de que atrás é desprovida,
mas... como é linda a minha namorada!

Elias José (Um Pássaro em Pânico)

 Era sempre aquele pânico antes da luz do dia se anunciar. Muita gente falava em solidão noturna, outras a sofriam de madrugada. Uma amiga (no tempo em que ela tinha amigos) até lhe dizia que a dela chegava sempre às sextas-feiras. Antes do dia, intervalo entre a madrugada e a manhãzinha, é que ela ia sentindo sufocar-se, uma vontade imensa de ter alguém para ouvir o ronco ou trocar algumas frases sonolentas. Sozinha no mundo e não adiantava fechar os olhos, não dormiria mais.

Não adiantava contar as tábuas do forro, tentar reconstituir o hábito antigo. Não havia tábuas, só a laje, o lustre e a lâmpada. Inútil inventar cantos de galos ou pássaros, coisas de manhãs distantes. No passado, ela ouviu sempre estórias de medos ou mitos, mas não chegou a sentir-se envolvida em nenhuma das duas coisas. Talvez um medo, muito forte, fosse preferível ao pânico real, tocável, que estava ali em seu corpo, nas carnes, na alma. Nenhum deus a quem pudesse pedir socorro, nenhum mito ou herói em quem acreditar.

Sabia que havia chegado a tal estado de depuração que os sonhos eram analisados e estava podada qualquer possibilidade de se iludir. Não alimentava mistérios, mas não sabia também arrancar aquele peso por dentro. As interrogações se intrometiam sem ela perceber. Havia um telefone e vários números que poderiam servir de socorro. Não discaria nenhum número, enfrentaria o cotidiano peso de amanhecer solitária num leito de casal. Em outros tempos, inventaria fugas, drogas, bebida, fumo.

Agora, conhecia todos os perigos do abismo e não estava mais perdida em nenhum abraço, em sonho nenhum. Era preciso inventar um mundo real, onde só ela coubesse, sem intromissões. Não naufragaria mais, tentando salvar os outros ou salvar-se. As pessoas devem aprender o valor de serem sós. Até acreditavam que havia aprendido, mas naquela hora do dia, só ela sabia da dor, das serpentes picando o corpo, das mãos pedindo abrigo como as aspas suspensas no ar. Do banheiro vinha aquele cheiro forte do desinfetante de eucalipto e era vida que a brisa trazia ao quarto.

Não seria mais interessante abrir todos os sentidos e buscar companhia na vida e não nas pessoas. O cheiro era nítido, provocante, ia além do olfato. A empregada poderia fazer limpeza no banheiro todas as tardes e, assim, teria o cheiro bom todas as manhãs. Era melhor mudar as coisas de seus lugares, encher o quarto de quadros, capas de discos, colagens, coisas que atingissem mais fundo que a visão.

Mas não seriam formas diferentes de cultuar pessoas, mitos, deuses? Na falta da música antiga que os pássaros traziam, num tempo em que havia pássaros e árvores e a casa, poderia ligar o toca-fitas. Não, a música pioraria tudo. A música sempre traz fantasmas, com seus vultos estranhos e pouco nítidos. Música não alivia ninguém, música excita, provoca, mexe por dentro, destrói fingindo que está construindo. Um livro, quem sabe um bom livro de poemas? De poemas, nunca! Os poetas nos destroem mais que a música.

Todos os versos trazem cargas sintéticas e poderosas de amargura e necessidades de integração. Não queria saber de nada que lembrasse integração. Não sabia por que, mas, naquela hora, estava lembrando-se de quando atendeu à porta e era a moça que havia lido o anúncio e procurava o emprego.

A moça mal conseguia articular uma frase, uma grande qualidade, bem dentro das exigências do anúncio: moça que não durma no emprego, alfabetizada, que seja discreta e fale pouco. Com o tempo, começou a querer soltar a língua e houve toda aquela repreensão: nada de conversas, de intimidades, pagava para que não entrassem em sua vida, não queria saber de estórias e problemas, detestava a mania que as domésticas tinham de querer se envolver nas estórias dos patrões e, ao mesmo tempo, fazendo com que eles também se sentissem envolvidos nas vidinhas delas.

Agora, o que doía era o silêncio pleno, o apenas: “bom-dia, posso servir o almoço?, posso servir o jantar?, até amanhã, às ordens, patroa, sempre às ordens, obrigada”.

As horas que passava no apartamento, fora do serviço, eram de paz, apenas quebradas pelo ruído da enceradeira, do liquidificador ou barulho que vinha da rua. Era bom sentir-se assim, ter um lugar onde não precisasse conversar tanto como no trabalho. O bom seria nem trabalhar, para não ter que tolerar aquelas conversas estranhas, que provocam náuseas. Triste não ter o direito de não ouvir coisas supérfluas.

As palavras deveriam custar dinheiro, ser bastante caras, assim não as gastariam com futilidades. Se cada pessoa procurasse ficar mais dentro dela mesma, sem esperar pelos sorrisos do vizinho, a vida seria mais densa. Era preciso selecionar cada frase, economizar os sorrisos, só dizer um elogio ou fazer um carinho quando houvesse uma necessidade interior muito intensa. Não suportava os sorrisos e falas fáceis das colegas de trabalho. Elas conseguiram esgotar a linguagem e vivem dizendo, mostrando, sem conseguir comunicação. E como possuíam rótulos para classificá-la! Era a fera, a orgulhosa, a perfeita, a feita de pedra, a insensível, a fria, a calculista. Por dentro, só ela sabia o peso e o preço de se fazer assim. Seria mais fácil fingir e ser também usada por todos.

Ela sabia, por experiência, como era duro não se pertencer, sorrir para todos, satisfazer os chefes, dar presentinhos nos aniversários de todas as colegas, ser sociável até que chegue a um ponto que nem o estômago perceba mais. Era preferível sentir a náusea, reagir. Afinal, não tinha o menor sentido aquele tempo em que suas mãos, quentes e ávidas, percorriam aqueles corpos todos, procurando neles facilidades econômicas ou posições não merecidas.

E naquele tempo, tudo lhe mostrava a verdade, o lado torpe das transações. As coisas pesavam e não davam nenhum prazer. O único homem que amou, que tentou fazer dele coisa só dela, foi o que mais a humilhou, o que lhe jogou na cara o que não percebia, tão iludida estava. Sem perguntas, sem respostas, fechou-se, certa que só há compensação quando se cria um mundo só da gente, sem fantasia, sem planos, sabendo de cada atitude, dos outros e da gente.

Era interessante aceitar, vez por outra, um galanteio, sair com alguém para um jantar ou boate, sem envolvimentos maiores de pele ou alma. Era bom, pois dava uma certeza de que a beleza ainda existia e, se quisesse, provocaria sede e fome. Não seria água nem comida fácil. Sua carne de fêmea em idade de cios doía, apunhalava fundo. Era preciso usar o corpo sem atingir a essência e aquelas horas de aceitação eram horas de aprendizagem.

Ontem, a aprendizagem foi longa e a entrega quase se deu. Agora, com a manhã se anunciando, a solidão doía muito, provocava um desejo estranho no corpo, uma vontade de gritar, pedir socorro. Agora, não queria apenas alguém deitado ao lado, roncando ou ouvindo palavras sonolentas. Queria amanhecer nos braços de um homem, braços fortes, ombros em que ela pudesse arranhar com a fúria acumulada em tantas manhãs de mentiras e vazios.

Mordeu os próprios braços, sentiu na boca um gosto quente de água e sal. Era apenas um corpo quente e inútil, estátua sem vida, uma serpente sem veneno, carregada de ternura. Não adiantava fantasiar um mundo lógico, seria o mesmo engano, uma fuga com infiltrações invisíveis que acabariam por estourar mais doloridamente. Entre aquelas duras horas de insônia e a noite, haveria muito tempo para estudar uma maneira de conceder ao corpo alguma saída para a satisfação.

Amanheceu por completo. Levantou-se, o café estava pronto e, sem sentir, chamou a moça para sentar-se com ela, fazer companhia. Ela sentiu que não era um pedido, era quase uma ordem e sentou-se.Dois minutos depois, olhava surpresa para a moça e teve vontade de mandá-la para o serviço. Mas os olhos, assustados e inutilmente olhando para a cafeteira, fizeram com que ela retomasse o fio dos acontecimentos. Teve ódio de estar cedendo.

Mas não podia negar que a empregada, mesmo calada, dava-lhe ma: 0"> Mas não podia negar que a empregada, mesmo calada, dava-lhe mais segurança, uma pequena certeza interior de que as coisas não estavam totalmente perdidas. Sem querer, sentiu muita ternura pela moça e, pela primeira vez, tentou examiná-la melhor.

Descobriu um rostinho infantil e sofrido, dois olhos inexplicavelmente medrosos, alguém que estava tomando café, mas que deixava claro que preferia estar muito distante dali, dela. Quis puxar assunto, perguntar a idade, saber alguma coisa daquela criatura que vivia naquela mesma casa há quase um ano. O orgulho foi maior.

Apressou-se, tomou o copo de leite, não tocou no pão, na manteiga, na geléia, apenas mais uma xícara de café e saiu da mesa, fingindo estar atrás de um fósforo.

Mais uma vez, ficou com a empregada a impressão de estar trabalhando com uma biruta. Pela primeira vez saiu com a patroa a imagem da mocinha e a certeza de que estava lidando com gente e era preciso ter o máximo cuidado para não se queimar outra vez.

E o que doía mais é que se via como uma serpente, enquanto a moça parecia um pássaro em pânico, perplexo, assustado.

Fonte:
Elias José. Pássaro em Pânico. Editora Ática.

Manoel Cavalcante / RN (Quem sou Eu)

Nasci. Entre os gladiadores da ignorância, tive uma infância conturbada. Vi minha avó num caixão sem saber porque todos choravam, aprendi a andar de bicicleta e quando soltei as mãos do guidom pela primeira vez, talvez conheci minha primeira lição de liberdade. Conheci a bola, a única coisa que me fazia ter vontade de fugir de casa embora que eu tivesse outros motivos. Aos 6 anos, conheci o Futsal, e este, foi um mestre que me ensinou a perder, a ganhar, a me superar, a lidar com o desânimo e o excesso de confiança, enfim, mostrou-me as primeiras metáforas da vida. Fui crescendo, rabiscava versos por ouvir tantos nas noites enluaradas em que me aventurei com meus pais. Crescia precisando ser mais adulto do que os que me cercavam, vi guerra, vi estupidez, mas via meu pai, um Dalai Lama sem fama, um monge que sempre me ensinou tudo sem precisar dizer nada. Conheci os fluidos da adolescência, os impulsos puberais, conheci o amor, o amor que tanto me deu asas, que tanto me impulsionou, o amor que me fez sonhar. Aos 18 anos, tive que sair de casa com o sonho no bolso, mas não o meu, aquele que foi preciso sonhar, conheci o mundo, a humanidade desumana, a mudança de personalidade, mas aos 19, eu conheci a trova, a forma poética que me fez crescer e que me fez entender melhor a vida, talvez por ser uma síntese, um sumo, uma seiva. Hoje, aos 22, eu acumulo decepções e glórias, mas vejo tudo com se fosse tivesse os dedos de um cego nas retinas, sinto tudo como se eu tivesse sido traído, talvez pela vida, porém eu tenho um Deus interno, eu me chamo: Fé. Eu me chamo palhaço: o que mais tem motivos para chorar, mas o que mais ri.

Fonte:
Texto do autor obtido no Facebook

José Lucas de Barros (Vaqueiro)

Há registros em prosa e poesia,
Aqui pelo Nordeste brasileiro,
Mas ninguém descreveu, como devia,
A grandeza da saga do vaqueiro.

Quando um touro se torna barbatão,
Escondido na mata de espinheiro,
Não há nada que o enfrente no sertão,
A não ser a coragem do vaqueiro.

Cavaleiro de tanta valentia,
Esquecido por esses pés de serra,
Nosso herói nordestino merecia
Uma estátua de bronze em sua terra!

Fonte:
O Autor   

Fábula (A Gralha e a Ovelha)

Certo dia em que a Ovelha andava a pastar sossegadamente, pousou-lhe nas costas uma Gralha. Imediatamente a Gralha começou a pairar e a fazer barulho de tal maneira, que em pouco tempo a pobre Ovelha nem sabia onde tinha a cabeça.

 - Ó menina Gralha – pediu ela delicadamente – se pudesse calar-se ou fazer um bocadinho menos de barulho… Está a incomodar-me tanto…

 Em resposta, a Gralha pôs-se a tagarelar ainda mais alto e foi-se entretendo a debicar na lã da Ovelha, até lhe chegar à carne, que picou sem compaixão.

 - Menina Gralha – queixou-se a Ovelha – está a fazer-me doer!

 - Bem me rala isso…

 - Ah! se eu fosse um cão – lastimou-se a Ovelha – já não se atrevia a incomodar-me, porque eu podia tirar-lhe a vida.

 - Bem sei o que faço. Se fosses um cão não me divertia contigo. Mas és uma ovelha fraca e velha, que não faz mal a uma mosca…

 E continuou a gralhar às costas da Ovelha, e a brincar-lhe com a lã e com a carne, toda destemida, como certas pessoas, que são valentes com os fracos e humildes com os fortes.

Fonte:
http://www.estudioraposa.com/index.php/category/historias/

Antonio Manoel Abreu Sardenberg (Poesia & Trova)

Engano
Antonio Manoel Abreu Sardenberg
São Fidélis "Cidade Poema"


O tempo foi, já passou.
O Jogo foi encerrado,
O que nem foi, terminou,
Diluiu, perdeu a cor,
Foi paixão sem ser amor,
Um presente sem passado.
Foi verão sem maresia,
Um mar frio sem maré,
Foi canção sem melodia,
Foi carnaval sem folia,
Foi uma crença sem fé.
Foi monarquia sem rei,
Foi promessa sem verdade,
Foi um tribunal sem lei
Foi um brado que ecoou
Num peito sem liberdade.

Se um dia...
Diamantino Ferreira/RJ


- Se um dia me disseres... se o disseres!
“Amo-te! Apesar dos teus defeitos!”
Serás a maior, mais falsa das mulheres,
dentre outras tantas. Sem quaisquer conceitos!
Dirás apenas que ... ”Por que me queres,
pois nenhuma de nós pensa em “direitos”?
Eis que somos apenas teus talheres,
das tuas refeições e teus confeitos!
Tenho o direito de dizer: Sou tua!
Enquanto vives tu, vives na rua,
e te queres achar seres meu dono!
Que mãe eu tive – se algum dia a tive?
Não a conheço e se tampouco vive.
...A quem pertenço – enfim - neste abandono?

Trova

Ademar Macedo/RN


Com insônia... Apaixonado,
sinto-me feliz porque:
Passando a noite acordado
eu penso mais em você!...

Trova

Prof. Francisco Macedo

Sempre sozinha, aos farrapos,
mas de rosário na mão...
A fé, tecida entre os trapos,
remendava a solidão!

Trova

Hermoclydes S. Franco/RJ


Sem preconceito ou pudor,
mas de emoções verdadeiras,
grandes momentos de amor
não delimitam fronteiras!…

Fonte:
Antonio M.A. Sardenberg

Mia Couto (Gaiola de Moscas)

Zuzé Bisgate. Logo na entrada do mercado, bem por baixo da grande pahama se erguia sua banca. Quando a manhã já estava em cima, Zuzé Bisgate assentava os negócios. O que ele fazia? Alugava bisga, vendia o cuspo dele. A saliva de Zuzé tinha propriedades de lustrar sapatos.

-  É melhor que graxa, enquanto graxa nem há- .

Além disso, o preço dele era mais favorável. Cada cuspidela saía a trezentos, incluindo o lustro. Maneira como ele procedia era seguinte: o cliente tirava o sapato e colocava o pé empeugado do cliente sobre uma fogueirita. O pé ficava ali apanhando uns fumos para purificar dos insectos infecciosos. Zuzé Bisgate pegava no sapato e cuspia umas tantas vezes sobre ele. Cada cuspidela contava na conta. Passava o lustro com um pano amarrado no próprio cotovelo. Raz+o do pano, motivo de esfregar com o cotovelo:

-  Dessa maneira a minha saliva me volta no corpo. É que este não é um cuspe qualquer, um produto industrioso desses. Não, isto é uma saliva bastantíssima especial, foi-me emprestada por Deus, digamos foi um pequeno projecto de apoio ao sector informal. É que  Deus conhece-me bem, pá. Eu sou um gajo com bons contactos lá em cima- .

Os clientes não se faziam enrugados. Às vezes até abichavam frente à banca dele. Fosse da saliva, fosse da conversa que ele lustrava. Verdade era que o negócio de Zuzé corria em bom caudal.

Quem não se dava bem com os cuspes era sua mulher Armantinha. - _Não se pode beijar aquela boca engraxadora dele- , se lamentava. - _Prefiro beijar uma bota velha- , concluía.
- _Ou lamber uma caixa de graxa- .

Armantinha sonhava para saltar frustração. Um dia, qualquer dia, haveria de beijar e ser beijada. Sonhava e resonhava. Lhe apetecia um beijo, água fazendo crescer outra água na boca. Lhe apetecia como um cacto sonha a nuvem. Como a ostra ela morria em segredo, como a pérola seu sonho se fabricava nos recônditos.

Avisaram o marido. Armantinha estava sonhando longe de mais. O homem respondeu em variações. - _Beijo é coisa de branco, quem se importa. E depois, minha boca cheira a coisa falecida. Quem se aflije com matéria morta? Só os da cidade. Nós, daqui, sabemos bem: é do podre que a terra se alimenta- .

Acontece que Zuzé Bisgate se foi metendo nos copos, garrafas, garrafões. Tudo servia de líquido, Zuzé destilava até pedra. De toda a substância se pode espremer um alcoolzinho, dizia. Mais e mais ele desleixava a caixa de cuspos e lustros. Até que os clientes reclamaram: a saliva de Zuzé está ganhando ácidos, aquilo é bom é para de entupir as pias. E temendo pelos sapatos os demais se evitavam de frequentar a tenda banhada pela grande pahama.

Até Chico Médio, homem sempre calado, reclamou que a saliva dele lhe fez murchar os atacadores, pareciam agora cobras sem esqueleto vertebral. Pouco a pouco Zuzé perdeu toda a clientela e o negócio das salivas fechou.

Se decidiu então a mudar de ramo. Recordou, de seu pai, a máxima: a alma é o segredo de um negócio.  Alma, era isso que se necessitava. E assim ele imaginou um outro negócio. E agora quem o vê, nos actuais dias, constata a banca com sua nova aparência. E Zuzé mais seu novo posto. Seu labor é um quase nada, coisa para inglês não ver.

Ali, na fachada, arregaça as calças, com cuidado para não as desvincar. Sempre com desvelo de burocrata, desembrulha um volume retirado das entranhas de sua banca: uma gaiola forrada a rede fina. Dentro voam moscas. Pois é o que ele vende: moscardos. Matéria viva e mais que viva -- vital para o mortal cidadão. Pois, diz o Bisgate, cada um deve tratar as moscas que, depois de mortos, nos visitarão o túmulo.

- São os nossos últimos acompanhantes ...

A pessoa passa por ali, se debruça sobre o vendedor e escolhem as voadoras bastas, as mais coloridas que engalanarão o funeral:

-  Esta há-de ficar mesmo bem na sua cerimónia.

Ele convida o hesitante cliente a ir à banca ao lado, a banca da Dona Cantarinha. Para lavar as moscas, explica.

-  Lavar as moscas?

- Sim, é lavagem a seco.

Armantinha cada vez mais se distancia daquela loucura. O marido se apronta é para grandes descansaços.

-  Ai nosso Senhor Jesus Cristo! Você, homem, você vende alguma coisa?

-  Faça as contas, mulher.

-  Que contas? Que contas se pode fazer sem números?

-- Ainda hoje vendi uma manada de moscas a esse tipo novo que chegou à aldeia.

-  Qual que chegou?

-  Esse gajo que montou banca lá nas traseiras do bazar. Uma banca que até mete as graças, chama-se "Pinta-_Boca".

-  O homem se chama Pinta-_Boca?

-  Qual o homem! A banca se chama- .

Armantinha se inflama logo de sonho. Já a boca dela se liquidesfaz. Sua boca pedia pintura como a cabeça lhe requeria sonho. E, logo nessa manhã, ela ronda a nova tenda, se apresenta ao novo vendedor. Ele se declina:

-  Sou Julbernardo, venho de lá, da cidade- .

Banca Pinta-_Boca. O nome faz jus. Na prateleira ele tem uma meia dúzia de bâtons com outras tantas cores. As mulheres se chegam e estendem os lábios. Julbernardo pede que escolham a coloração. Moda as brancas, vermelhudas das beiças. Uma pintadela 250 meticais.

Armantinha, já devidamente apresentada, ganha coragem e encomenda uma coloradela.

-  Aqui, se paga em adiantado- .

Ela retirou as notas encarquilhadas do soutien. Vasculhou as largas mamas à procura dos papéis. Tinha seios tão grandes que nem conseguia cruzar os braços.

-  Está aqui seu dinheiro.

-  Não chega nem basta. Essa tabuleta do preço era na semana passada. Agora é 250 um lábio.

-  Um lábio?

-  Se for o de cima, o de baixo custa mais caro. Por causa que é maior.

-  Estou fracassada com você, Julbernardo. Vá, pinte o de cima, amanhã venho pintar o de baixo.

-  Está certo, eu vou pintar- .

Julbernardo pegou no bâton com habilidade de artista. Aquilo era obra para ser vista. Metade do povoado vinha assistir às pinturas. A gente seguia caladinha, aquilo era cena à prova de fala. Julbernardo metia um avental, ordenava à cliente que sentasse no tronco cortado do canhoeiro.

Armantinha obedecia ao ritual. Sentada, ergueu o rosto. Fechou os olhos, compenentrada em si. O pintador limpou as mãos no avental. Se debruçou sobre a tela viva e fez rodar o bâton no ar antes de riscar a carne da cliente. Sentada no improvisado banco Armantinha  deu largas ao sonho. O bâton acariciava o lábio e tornava seu corpo misteriosamente leve, como se naquele toque se anulasse todo o peso dela.

Sonhava Armantinha e o sonho dela se apoderava. Nesse devaneio o bâton se convertia em corpo e já Julbernardo se inclinava todo sobre ela e os lábios dele pousavam sobre a boca dela, trocando húmidas ternuras. Mundo e sonho se misturavam, os gritos da multidão ecoavam na gruta que era sua boca e, de repente, a voz raivosa de Zuzé também lhe esvoaça na cabeça.

E eis que Armantinha abre os olhos e ali, bem à sua frente, o seu marido se engalfinhava com Julbernardo. E murro e grito, com a gentalha rodopiando em volta. De repente, já um deles se apresenta de desbotar vermelhos. Os dois se misturam e uma faca rebrilha na mão de Zuzé. Depois, num sacão, se separam os dois corpos. Estão ambos ensanguentados. Julbernardo com o avental ensopado de vermelho dá dois passos e cai redondo. Num instante, uma multidão de moscas se avizinha. Zuzé, vitorioso, aponta a mulher:

-  Vê? Vê as moscas que vendi a esse cabrão?-

Mas as moscas, em lugar de escolherem o tombado Julbernardo, circundam a cabeça de Zuzé. Alarmado, ele enxota-as. Em vão: já a moscardaria lhe pousa, vira e revira. Então, Zuzé Bisgate desce dos seus próprios joelhos e se derrama em pleno chão. O sangue se vê brotar de seu peito. Julbernardo desperta e se ergue, ante o espanto geral. Com mão corrige a mancha vermelha com que o bâton esmagado enchera o seu branco avental.

Fonte:
Mia Couto. Contos do Nascer da Terra. Vol.1. Porto: CPAC, 1998.

Trovadorismo (Parte 3)

GÊNERO SATÍRICO

As cantigas satíricas (cantigas de escárnio e cantigas de maldizer) apresentam interesse sobretudo histórico, reunindo cantigas autóctones maliciosa da época. São verdadeiros documentos dos costumes e da vida social e política, principalmente da corte, trazendo até nós os mexericos e os vícios ocultos da fidalguia medieval portuguesa, sem a idealização da cantiga de amor.

Seu objetivo é a crítica social, com intuito humorístico, ridicularizando pessoas de forma sutil ou grosseira, denunciando os falsos valores morais vigentes e atingindo todas as classes sociais: senhores feudais, clérigos, povo e até eles próprios.

Seus principais temas são: a covardia dos cavaleiros, traições, as chacotas e deboches, escândalos das amas e tecedeiras, pederastia (homossexualismo) e pedofilia (relações sexuais com crianças), adultério e amores interesseiros e ilícitos, disputas políticas, mulheres feias.

Tanto nas cantigas de escárnio quanto nas de maldizer, pode ocorrer diálogo. Quando isso acontece, a cantiga é denominada tensão (ou tenção). Pode mostrar a conversa entre a mãe a moça, uma moça e uma amiga, a moça e a natureza, ou ainda, a discussão entre um trovador e um jogral, ambos tentando provar que são mais competentes em sua arte.

É verdade que seu valor poético é pequeno, mas seu aspecto documental torna imprescindível seu estudo. Ademais, são importantes uma vez que apresentam um considerável vocabulário, observando-se, muitas vezes o uso de trocadilhos; e fogem às normas rígidas das cantigas de amor oferecendo novos recursos poéticos.

 A diferenças entre as cantigas de escárnio e de maldizer é sutil.

CANTIGAS DE ESCÁRNIO

 Sátira social ou individual. Crítica indireta, sarcástica, zombeteira e de linguagem ambígua. Presença de menosprezo, desprezo e desdém. Não se nomeia a pessoa criticada, mas esta é facilmente reconhecível pelos demais elementos da sociedade.Uso da ironia, do equívoco e da sutileza, com intuito humorístico.

Veja exemplos de Cantigas de Escárnio

Rui Queimado morreu con amor
 en seus cantares par Sancta Maria
 por ua dona que gran bem queria
 e por se meter por mais trovador
 porque Ih'ela non quis [o] benfazer
 fez-s'el en seus cantares morrer
 mas ressurgiu depois ao tercer dia!

Esto fez-el por ua sa senhor
 que quer gran bem e mais vos en diria;
 porque cuida que faz i maestria
 enos cantares que fêz a sabor
 de morrer i e desi d'ar viver;
 esto faz el que x'o pode fazer
 amar outr'omem per ren non [n] o faria

E non há já de sa morte pavor
 senon sa morte mais la temeria
 mas sabede ben per sa sabedoria
 que vivera dês quando morto fôr
 e faz-[s'] cantar morte prender,
 desi ar viver: vêde que poder
 que Ihi Deus deu, mas que non cuidaria

E se mi Deus a mim desse poder
 qual oi'el há pois morrer
 jamais morte nunca temeria.
(Pero Garcia Burgalés)

 De vós, senhor, quer'eu dizer verdade
 e nom ja sobr'[o] amor que vos ei:
 senhor, bem [moor] é vossa torpicidade
 de quantas outras eno mundo sei;
 assi de fea come de maldade
 nom vos vence oje senom filha dum rei
 [Eu] nom vos amo nem me perderei,
 u vos nom vir, por vós de soidade[...]
(Pero Larouco)

 Ai, dona fea, fostes-vos queixar
 que vos nunca louv[o] em meu cantar;
 mais ora quero fazer um cantar
 em que vos loarei toda via;
 e vedes como vos quero loar:
 dona fea, velha e sandia!

Dona fea, se Deus mi pardom,
 pois avedes [a]tam gram coraçom
 que vos eu loe, em esta razom
 vos quero ja loar toda via;
 e vedes qual sera a loaçom:
 dona fea, velha e sandia!

Dona fea, nunca vos eu loei
 em meu trobar, pero muito trobei;
 mais ora ja um bom cantrar farei,
 em que vos loarei toda via;
 e direi-vos como vos loarei:
 dona fea, velha e sandia!
(João Garcia de Ghilhade)

CANTIGAS DE MALDIZER

Sátira direta, maledicente, com linguagem objetiva e inequívoca. Neste tipo de cantiga é feita uma crítica pesada, com intenção de ofender e difamar, citando-se o nome da pessoa ridicularizada. Presença de agressividade e uso de termos vulgares, grosseiros e obscenos, inclusive palavrões. Há uma abordagem mais desabusada dos vícios sexuais atribuídos aos satirizados.

Veja exemplos de Cantigas de Maldizer

Rui Queimado morreu con amor
 en seus cantares par Sancta Maria
 por ua dona que gran bem queria
 e por se meter por mais trovador
 porque Ih'ela non quis [o] benfazer
 fez-s'el en seus cantares morrer
 mas ressurgiu depois ao tercer dia!

Esto fez-el por ua sa senhor
 que quer gran bem e mais vos en diria;
 porque cuida que faz i maestria
 enos cantares que fêz a sabor
 de morrer i e desi d'ar viver;
 esto faz el que x'o pode fazer
 amar outr'omem per ren non [n] o faria

E non há já de sa morte pavor
 senon sa morte mais la temeria
 mas sabede ben per sa sabedoria
 que vivera dês quando morto fôr
 e faz-[s'] cantar morte prender,
 desi ar viver: vêde que poder
 que Ihi Deus deu, mas que non cuidaria

E se mi Deus a mim desse poder
 qual oi'el há pois morrer
 jamais morte nunca temeria.
(Pero Garcia Burgalés)

A PROSA TROVADORESCA

A prosa medieval tem caráter documental, retratando com mais detalhes o ambiente histórico-social desta época.

Há quatro gêneros em prosa do período medieval:

1)    Hagiografias:
relatos bibliográficos dos santos da Igreja, escritos em latim.

2)    Cronicões:
relatam, de forma romanceada, acontecimentos históricos/sociais do século XIV, através de anotações em seqüência cronológica.

3)    Livros de Linhagem ou Nobiliários:
árvores genealógicas das famílias nobres, elaboradas com o intuito de resolver problemas de heranças e de evitar "casamentos em pecado".

4)    Novelas de Cavalaria
 As novelas de cavalaria são narrativas ficcionais de acontecimentos históricos, originárias da prosificação de poemas épicos e das canções de gesta (guerra) francesas e inglesas. Refletiam, de modo geral, os ideais da nobreza feudal: o espírito cavalheiresco, a fidelidade, a coragem, o amor servil. Geralmente não apresentavam autoria e sua temática estava ligada às aventuras dos cavaleiros medievais, na luta entre o "bem" e o "mal" das Cruzadas, em defesa da Europa Ocidental contra sarracenos, eslavos, magiares e dinamarqueses, inimigos da cristandade. Os cavaleiros são castos, fiéis e dedicados, segundo os padrões da Igreja Católica, dispostos a qualquer sacrifício para defender a honra cristã, em contraposição ao cavaleiro da corte, geralmente sedutor e envolvido em amores ilícitos.

 As novelas eram tidas em alto apreço e foi muito grande a sua influência sobre os hábitos e os costumes da população da época.

 As novelas de cavalaria dividem-se em três ciclos e se classificam pelo tipo de herói que apresentam:

ciclo clássico: heróis "emprestados" da antigüidade greco-romana e da literatura clássica (Ulisses, Enéias ...); novelas que narram a guerra de Tróia, as aventuras de Alexandre, o grande.

ciclo carolíngio: versando sobre as aventuras de Carlos Magno e os Doze Pares de França.
Algumas dessas novelas foram trazidas para o Brasil no período da colonização, e seus heróis alimentam ainda hoje a literatura de cordel nordestina.

ciclo bretão ou arturiano: o mais fecundo de todos, com as histórias sobre o Reino de Camelot, o Rei Artur e os Cavaleiros da Távola Redonda. Três são as novelas remanescentes desse ciclo: José de Arimatéia, História de Merlim e A Demanda do Santo Graal.

 A Demanda do Santo Graal é a novela mais importante para a literatura portuguesa, reunindo dois elementos fundamentais da Idade Média quando coloca a Cavalaria a serviço da Religiosidade. Ela retrata as aventuras dos cavaleiros do Rei Artur em busca do cálice sagrado (Santo Graal), que conteria o sangue recolhido por José de Arimatéia, quando Cristo estava crucificado.

Com o advento do Humanismo, esses ciclos de novelas deram lugar a um novo ciclo - o dos Amadises - desvinculado dos ideais religiosos cristãos e com erotização das relações amorosas.

 A última novela de cavalaria data do século XVI, e, embora visasse à crítica do gênero e de seu conteúdo, que já se acreditavam esgotados, terminou por constituir-se na melhor e mais famosa de todas: D. Quixote de la Mancha, de Miguel de Cervantes.

Fonte:
http://www.gargantadaserpente.com/historia/trovadorismo/index.shtml