quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Machado de Assis (Magalhães de Azeredo: Procelárias)

EIS AQUI um livro feito de verdade e poesia, para dar-lhe o título das memórias de Goethe. Não são memórias; a verdade entra aqui pela sinceridade do homem, e a poesia pelos lavores do artista. Nem se diga que tais são as condições, essenciais de um livro de versos. Não contradigo a asserção, peço só que concordem não ser comum nem de todos os dias este balanço igual e cabal de emoção e de arte.

Magalhães de Azeredo não é um nome recente. Há oito para nove anos que trabalha com afinco e apuro. Prosa e verso, descrição e critica, idéias e sensações, a várias formas e assuntos tem dado o seu espírito. Pouco a pouco veio andando, até fazer-se um dos mais brilhantes nomes da geração nova, e ao mesmo tempo um dos seus mais sisudos caracteres. Quem escreve estas linhas sente-se bastante livre para julgá-lo, por mais íntima e direta que seja a afeição que o liga ao poeta das Procelárias. Um dos primeiros confidentes dos seus tentâmens literários. estimou vê-lo caminhar sempre, juntamente modesto e ambicioso, daquela ambição paciente que cogita primeiro da perfeição que do rumor público.

Já nesta mesma Revista, já em folhas quotidianas, deu composições suas, de vária espécie, e não há muito publicou em folheto a ode A Portugal, por ocasião do centenário dos Índias, acompanhada da carta a Eça de Queirós, a primeira das quais foi impressa na Revista Brasileira.

Este livro das Procelárias mostra o valor do artista. Desde muito anunciado entre poucos, só agora aparece, quando o poeta julgou não lhe faltar mais nada, e vem apresentá-lo simplesmente ao público. Desde as primeiras páginas, vêem-se bem juntas a poesia e a verdade: são as duas composições votivas, à mãe e à esposa. A primeira resume bem a influência que a mãe do poeta teve na formação moral do filho. Este verso:
Não me disseste: Vai! disseste: Eu vou contigo!

conta a história daquela valente senhora, que o acompanhou sempre e a toda parte, nos estudos e nos trabalhos, onde quer que ele estivesse, e agora vive a seu lado, ouvindo-lhe esta bela confissão:

Tu é tudo o que bom e nobre em mim existe,

e esta outra, com que termina a estrofe derradeira da composição, a um tempo bela, terna e bem expressa:

Duas vezes teu filho e tua criatura!
Eis por que me confesso, enternecidamente,

Ao pé de tais versos vêm os que o poeta dedicou à noiva: são do mesmo ano de 1895. O poeta convida a noiva ao amor e à luta da existência. Nestes, como naqueles, pede perdão dos erros da vida, fala do presente e do futuro, chega a falar da velhice, e da consolação que acharão em si de se haverem amado.

Ora, o livro todo é a justificação daquelas duas páginas votivas. Uma parte é a dos erros, que não são mais que as primeiras paixões da juventude, ainda assim veladas e castas, e algumas delas apenas pressentidas. O poeta, como todos os moços, conta os seus meses por anos. Em 1890 fala-nos de papéis velhos, amores e poesias, e compõe com isso um dos melhores sonetos da coleção. Já se dá por um daqueles que "riem só porque chorar não sabem". Certo é que há raios de luz e pedaços de céu no meio daquela sombra passageira. A sinceridade de tudo está na sensibilidade particular da pessoa, a quem o mínimo dói e o mínimo delicia. Uma das composições principais dessa parte do livro é a "Ode Triunfal", em que a comoção cresce até esta nota:

Ah! como fora doce
Morrer nesse delírio vago e terno,
Em teu seio morrer, — morrer num trono;
E ter teus beijos, como sonho eterno
Do meu eterno sonho...
E até esta outra, com que a ode termina:
Deixa-me absorto, a sós contigo, a sós!
Lá fora, longe, tumultua o mundo,
Em baldas lutas... Tumultue embora!
Que vale o mundo agora?
O mundo somos nós!

As datas, — e alguma vez a própria falta delas, — poderiam dar-nos a história moral daquele trecho da vida do poeta. Os seus mais íntimos suspiros antigos são de criança, como Musset dizia dos seus primeiros versos; assim temos o citado soneto dos "Papéis Velhos" e outras páginas, e ainda aquela dos "Cabelos Brancos", uns que precocemente encaneceram, cabelos de viúva moça, objeto de uma das mais doces elegias do livro. Há nele também várias sombras que passam como a do Livro Sagrado, como a da menina inglesa (Good Night), que uma tarde lhe deu as boas noites, e com quem o poeta valsara uma vez.

Um dia veio a saber que era morta, e que a última palavra que lhe saiu dos lábios foi o seu nome, e foi também a primeira notícia do estado da alma da moça; a sepultura é que lhe não deu, por mais que a interrogasse, senão esta melancólica resposta:

E eu leio sobre a sua humilde lousa:
Graça, beleza, juventude .... e Nada!

Cito versos soltos, quisera transcrever uma composição inteira, mas hesito entre mais de uma, como o "Carnaval", por exemplo, e tantas outras, ou como aquele soneto "Em Desalento", cuja estrofe final tão energicamente resume o estado moral expresso nas primeiras. Podeis julgá-lo diretamente:

Ando de mágoas tais entristecido.
Por mais que as minhas rebeldias dome ...
Tanta angústia me abate e me consome,
ue do meu próprio senso ora duvido.
Tudo por causa deste amor perdido,
Que a ti só, para sempre, escravizou-me;
Tudo porque aprendi teu caro nome,
Porque o gravei no peito dolorido.
Vês que eu sou, dizes bem, uma criança,
E já de tédio envelhecer me sinto,
E a mesma luz do sol meus olhos cansa;
Pois, como absorve um lenho o mar faminto,
Um corpo a tumba, a morte uma esperança,
Tal teu ser absorveu meu ser extinto.

Belo soneto, sem dúvida, feito de sentimento e de arte. Todo o livro reflete assim as impressões diferentes do poeta, e os versos trazem, com o alento da inspiração, o cuidado da forma. Fogem ao banal, sem cair no rebuscado. As estrofes variam de metro e de rima, e não buscam suprir o cansado pelo insólito. A educação do artista revela-se bem na escolha e na renovação. Magalhães de Azeredo dá expressão nova ao tema antigo, e não confunde o raro com o afetado. Além disso, — é supérfluo dizê-lo, — ama a poesia com a mesma ternura e respeito que nos mostra naquelas duas composições votivas do intróito. Pode ter momentos de desânimo como no "Soneto Negro", e achar que "é triste a decadência antes da glória", mas o espírito normal do poeta está no "Escudo", que
andou pela Terra Santa, e agora ninguém já pode erguer sem cair vencido; tal escudo, no conceito do autor, é o Belo, é a Forma, é a Arte, que o artista busca e não alcança, sem ficar abatido com isso, antes sentindo que, embora caia ignorado do vulgo, é doce havê-los adorado na vida.

Aqui se distinguem as duas fontes da inspiração de Magalhães de Azeredo, ou as duas fases, se parece melhor assim. Quando as sensações, que chamarei de ensaio, ditam os versos, eles trazem a nota de melancolia, de incerteza e de mistério, alguma vez de entusiasmo; mas a contemplação pura e desambiciosa da arte dá-lhe o alento maior, e ainda quando crê que não pode sobraçar o escudo, a idéia de havê-lo despegado da parede é bastante à continuação da obra. Será preciso dizer que esse receio não é mais que modéstia, sempre cabida, posto que a reincidência do esforço traz a esperança da vitória? E será preciso afirmar que a vitória é dos que têm, com a centelha do engenho, a obstinação do trabalho, e conseguintemente é dele também? Assim, ou pelas sensações do moço ou pela robustez do artista, este livro "é a vida que ele viveu" —como o poeta se exprime em uma página que li com emoção. Na composição final é o sentimento da arte que persiste, quando o poeta fala à musa em fortes e fluentes versos alexandrinos, tão apropriados à contemplação longa e mística da idéia.

Não quero tratar aqui do prosador a propósito deste primeiro livro de versos. De resto, os leitores da Revista Brasileira já o conhecem por esse lado, e sabem que Magalhães de Azeredo será em uma e outra forma um dos primeiros espíritos da geração que surge. Neste ponto, a ode A Portugal com a carta a Eça de Queirós, publicada em avulso, dão clara amostra de ambas as línguas do nosso jovem patrício.

Felizes os que entre um e outro século podem dar aos que se vão embora um antegosto do que há de vir, e aos que vêm chegando uma lembrança e exemplo do que foi ou acaba. Tal é o nosso Magalhães de Azeredo por seus dotes nativos, paciente e forte cultura.

Fonte:
Machado de Assis. Crítica Literária. Pará de Minas/ MG: Virtualbooks, 2003.

Clássicos do Cancioneiro Popular (A Nau Caterineta)

Aquarela de Tiago Taron (Portugal)
Colhida em Sergipe
––––––––––––-

Faz vinte e um anos e um dia
Que andamos n’ondas do mar,
Botando solas de molho
Para de noite jantar.

A sola era tão dura,
Que a não pudemos tragar,
Foi-se vendo pela sorte
Quem se havia de matar,
Logo foi cair a sorte
No capitão-general.
"Sobe, sobe, meu gajeiro,
Meu gajeirinho real,
Vê se vês terras de Espanha,
Areias de Portugal.

— Não vejo terras de Espanha,
Areias de Portugal,
Vejo sete espadas nuas
Todas para te matar.
Arriba, arriba, gajeiro,
Aquele tope real,
Olha pra estrela do norte
Para poder dos guiar.

— Alvistas, meu capitão,
Alvistas, meu general,
Avisto terras de Espanha,
Areias de Portugal.

Também avistei três moças
Debaixo dum parreiral,
Duas cosendo cetim,
Outra calçando o dedal.
"Todas três são filhas minhas,
Ai! Quem mas dera abraçar!
A mais bonita de todas
Para contigo casar."

— Eu não quero sua filha
Que lhe custou a criar,
Quero a nau Caterineta
Para nela navegar.

"Tenho meu cavalo branco,
Como não há outro igual;
Dar-te-lo-ei de presente
Para nele passear."

— Eu não quero seu cavalo
Que lhe custou a criar;
Quero a nau Caterineta
Para nela navegar.

"Tenho meu palácio nobre,
Como não há outro assim,
Com suas telhas de prata,
Suas portas de marfim."

— Eu não quero seu palácio
Tão caro de edificar;
Quero a nau Caterineta
Para nela navegar.

"A nau Caterineta, amigo
É d’El-Rei de Portugal,
Mas não serei mais ninguém,
Ou El-Rei te há de dar.

Desce, desce, meu gajeiro,
Meu gajeirinho real,
Já viste terras de Espanha,
Areias de Portugal…"

Fonte:
Jangada Brasil
Setembro 2010 - Ano XII - nº 140. Edição Especial de Aniversário

Mitos e Lendas (O que os Sapos Dizem)

Quando, pelas noites serenas os sapos coaxam à beira das lagoas, muita gente pensa que eles apenas coaxam, sem razão.

Mas não é assim.

Os sapos velhos dizem:

— Quando eu morrer... Quem vai comigo?

Os sapos novos ficam bem caladinhos. Depois, o sapo velho torna a coaxar:

— Quando eu morrer... quem fica com a minha mulher?

E aí, toda a saparia nova grita:

— Eu, eu.

— Eu, eu.

— Eu, eu.

É isso que os sapos coaxam à beira das lagoas. Todas sabem.

Fonte:
Colhido por Jerônimo B. Monteiro e publicado em sua coluna Lendas, mitos e crendices
Jangada Brasil. Setembro 2010 - Ano XII - nº 140. Edição Especial de Aniversário

João Anzanello Carrascoza (Um Encontro Fantástico)

Todos os anos eles se reuniam na floresta, à beira de um rio, para ver a quantas andava a sua fama. Eram criaturas fantásticas e cada uma vinha de um canto do Brasil. O Saci-Pererê chegou primeiro. Moleque pretinho, de uma perna só, barrete vermelho na cabeça, veio manquitolando, sentou-se numa pedra e acendeu seu cachimbo. Logo apontou no céu a Serpente Emplumada e aterrissou aos seus pés. Do meio das folhagens, saltou o Lobisomem, a cara toda peluda, os dentes afiados, enormes. Não tardou, o tropel de um cavalo anunciou o Negrinho do Pastoreio montado em pêlo no seu baio.

– Só falta o Boto – disse o Saci, impaciente.

– Se tivesse alguma moça aqui, ele já teria chegado para seduzi-la – comentou a Serpente Emplumada.

– Também acho – concordou o Lobisomem. – Só que eu já a teria apavorado.

Ouviram nesse instante um rumor à margem do rio. Era o Boto saindo das águas na forma de um belo rapaz.

– Agora estamos todos – disse o Negrinho do Pastoreio.

– E então? – perguntou o Boto, saudando o grupo. – Como estão as coisas?

– Difíceis – respondeu o Saci e soltou uma baforada. – Não assustei muita gente nessa temporada.

– Eu também não – emendou a Serpente Emplumada. – Parece que as pessoas lá no Nordeste não têm mais tanto medo de mim.

– Lá no Norte se dá o mesmo – disse o Boto. – Em alguns locais, ainda atraio as mulheres, mas em outros elas nem ligam.

– Comigo acontece igual – disse o Negrinho do Pastoreio. – Vivo a achar coisas que as pessoas perdem no Sul. Mas não atendi muitos pedidos esse ano.

– Seu caso é diferente – disse o Lobisomem. – Você não é assustador como eu, o Saci e a Serpente Emplumada. Você é um herói.

– Mas a dificuldade é a mesma – discordou o Negrinho do Pastoreio.

– Acho que é a concorrência – disse o Boto. – Andam aparecendo muitos heróis e vilões novos.

– Pois é – resmungou a Serpente Emplumada. – Até bruxas andam importando. Tem monstros demais por aí...

– São todos produzidos por homens de negócios – disse o Saci. – É moda. Vai passar...

– Espero – disse o Lobisomem. – Bons aqueles tempos em que eu reinava no país inteiro, não só no cerrado.

– A diferença é que somos autênticos – disse o Negrinho do Pastoreio. – Nós nascemos do povo.

– É verdade – disse o Boto. – Mas temos de refrescar a sua memória.

– Se pegarmos no pé de uns escritores, a coisa pode melhorar – disse a Serpente Emplumada.

– Eu conheço um – disse o Saci. – Vamos juntos atrás dele! – E foi o primeiro a se mandar, a mil por hora, em uma perna só.
Fonte:
Revista Nova Escola

J. G. de Araújo Jorge ("Os Mais Belos Sonetos que o Amor Inspirou") Parte 12

Benedita de Melo 
(Vicença/ PE, 1906 – Rio de Janeiro, 1991)

" CONFUSÃO "

Pretendeste deixar-me... Que loucura!
Acaso pode a luz deixar o dia ?. . .
E o ser deixar a forma, poderia? . . .
E pode o fel deixar sua amargura? . . .

Vivemos separados, de mistura,
o meu ser no teu ser em harmonia...
Se tu me abandonasses, criatura,
de ti, em ti, já nada restaria.

Não me deixaste a mim, deixaste a casa.
Temo-nos desenhados na alma em brasa.
Somos um coração íntegro e nu.

Não podias deixar-me... que no mundo,
de tal sorte contigo me confundo,
que nem sei se eu sou eu, ou se eu sou tu.

" MUITO OBRIGADA "

Muito obrigada pelo bem de outrora
que me faz recordar-te no presente,
muito obrigada pelo mal de agora
que me ensinou a amar-te tanto, ausente..

Muito obrigada porque de hora em hora
mentiste um pouco mais, sinceramente;
porque sabes mentir para quem chora,
porque mentindo me fizeste crente.

Muito obrigada pela falsidade
que me veio acordar o instinto inerte
contra os espinhos da infidelidade. . .

Muito obrigada porque posso ver-te
dentro do negro mundo da saudade
que eu não teria nunca, sem perder-te.

" VERGONHA "

- "Menina!" -- disse alguém, no grande instante
em que era dividido em dois um ser. . .
E essa palavra, pelo mundo avante,
foi o meu Santo orgulho de viver...

Ser menina. Ser moça. Ser constante.
Ser caráter. Ser honra. Ser dever.
Por mais tropeços que encontrasse adiante,
nunca me entristeci de ser mulher.

Mas veio o amor. Veio a traição ferina
e todo o orgulho meu de ser menina,
roubou-o a sorte malfadada a crua.

E veio a dor. E veio a mágoa, o tédio...
E a vergonha escaldante e sem remédio
de ter sido mulher para ser tua.
–––––––––––


Benedito Nogueira Tapeti
(Benedito Francisco Nogueira Tapeti)
(Oeiras/PI, 30 dezembro 1890 – Oeiras/PI, 18 janeiro1918)

" CAMONEANO "


Eu sei, Senhora, que vos não mereço
e que, por vossa graça e formosura,
vós podeis cobiçar mais alto preço
do que minha afeição simples e pura.

Mas se eu vivo por vós, e não me esqueço
de toda a vossa angélica doçura,
é porque, no desterro em que padeço,
somente em vos lembrar tenho ventura.

Meu destino, por serdes vós quem sois,
põe tamanha distancia entre nós dois,
que me mata a esperança e a paz de outrora.

Mercê, porém, de vós, de vosso nome,
e gozo a dor que aos poucos me consome;
tanto me apraz sofrer por vós, Senhora.
–––––––––––––––


Benjamim Silva
(Cachoeiro do Itapemirim/ES, 20 julho 1886 – Rio de Janeiro, 10 junho 1954)

" ROMPIMENTO "


Entre nós dois está tudo acabado.
Está tudo acabado entre nós dois:
tu partirás agora para um lado,
para outro lado eu partirei depois.

Que desse nosso amor desventurado
a que um destino mau se contrapôs,
nada fique que o faça relembrado
que tudo, enfim, desapareça, pois!

As nossas camas, da última à primeira;
as flores a os retratos que guardamos;
queimemos tudo numa só fogueira!

Destruídas todas as recordações,
só nos resta - de tudo que trocamos
queimar também os nossos corações!
–––––––––––––––-


Bento Ernesto Junior
(Itapecerica/MG, 25 agosto 1866 – São João Del Rey/MG, 9 janeiro 1943)

" SONETO "


A vida, meu amor, que hoje passamos
só pode ser com lágrimas descrita,
tão grande a dor que o peito nos habita,
tão amargo este fel que hoje provamos.

Tão nublados de lágrimas levamos
os olhos, sob o peso da desdita,
que tudo que ante nos vive a palpita,
tudo inundado em lágrimas julgamos.

E todo esse lutuoso mar de pranto,
que vemos em nossa alma e em tudo vemos,
nasce de havermos nos amado tanto!

Porém, embora, a amar tanto soframos,
cada vez mais, amada, nos queremos,
cada vez mais, querida, nos amamos.
––––––––––––


Bernardo de Oliveira
(Irmão do poeta Alberto de Oliveira)
(Saquarema/RJ, 1861 – 1943)

" ESTRELA MATUTINA "


Negros olhos belíssimos, rasgados,
como os das águias, vivos, penetrantes,
na paz - serenos, meigos, - mas, irados,
podem fundir rochedos e diamantes.

Também negros cabelos ondeantes;
boca pequena, lábios nacarados;
alvos dentes; de mármore talhados
os braços são, e os seios, ofegantes.

E o corpo inteiro; as faces purpurinas.
É uma formosa matutina estrela,
fulgurando entre as névoas matutinas.

E' uma deusa de Rubens sobre a tela,
tem a morte e o amor sob as retinas . . .
E eu tenho a vida nos olhares dela!
––––––––––––––––-


Bonfim Sobrinho
(José da Silva Bonfim Sobrinho)
(Fortaleza/CE, 19 março 1875 – 22 junho 1900).

" NOIVADO FÚNEBRE "


Negra tristeza meu semblante encova
ó noiva amada, lírio meu fanado.
Por que não vamos na mudez da cova
em círios celebrar nosso noivado?

Nos sete palmos desse leito amado,
ao frio bom de uma volúpia nova
há de embalar o nosso amor gelado
o coveiro a cantar magoada trova.

E os nossos corpos gélidos, inermes,
em demorados e famintos beijos
serão depois roídos pelos vermes...

E do leito final que nos encerra
em plantas brotarão nossos desejos
e o nosso amor, em flores, sobre a terra.
Fonte:
– J.G . de Araujo Jorge . "Os Mais Belos Sonetos que o Amor Inspirou". 1a ed. 1963

Bernardo Trancoso (Diário de um Sonetista)

Tem horas que a gente fica com uma vontade louca de escrever e, mesmo sabendo que para escrever é preciso muito mais do que uma simples vontade, abre a gaveta às pressas à procura de lápis e papel. Há quem já arranque a folha do caderno antes que surjam as primeiras palavras. Há quem arrisque rabiscar o que lhe vem à mente, sem preocupação com a coerência, com a gramática, ou com o destino aonde aquilo tudo vai levar. Embora saiba o propósito deste texto, que é o de introduzir no meu sítio um lugar para a minha prosa, na intenção de que isto possa um dia ajudar alguém a começar as suas andanças pela literatura, neste exato instante eu pertenço a esta categoria de escritores compulsivos: não sei sobre o que vou escrever.

Só que minha vontade louca resolve, ao invés de enveredar pelos caminhos complicados da importância de escrever, que é tão ou mais valiosa do que a de ler, percorrer as trilhas seguras e sensatas do prazer que dá ao escritor o texto completo, bem feito. Não estou falando, outra vez, das concordâncias verbais e dos reguladores lingüísticos impostos pela gramática. Em matéria de palavras escritas, sou um pecador como qualquer outro: cometo minhas confusões com verbos, substantivos e vírgulas. Não sei mais distinguir a diferença entre uma oração subordinada causal e outra, concessiva. Agente da passiva, então, nem se fala. O editor de texto que estou usando é o meu corretor básico, o restante é o que lembro das aulas da Dona Edna e dos demais professores que tive... Enfim, perdoe-me pelos erros de português, aquela história... Mas, por favor, me deixe terminar este texto. Ou, como o autor do último livro que li dizia, não me perdoe, os erros são propositais.

Leio muito, eu. Adoro o prazer de um bom livro. Eles me fazem navegar por universos ainda inexplorados e que na maioria das vezes acabam ensinando algo. Recentemente, li um muito interessante sobre um jovem indiano que atravessa o Pacífico com uma hiena, um tigre de bengala e um orangotango... Quem tiver a oportunidade, o livro em português chama-se "A vida de Pi". Não vou falar mais nada dele, pois livro é igual xampu: para a cabeça de uns, serve; para a de outros, não. Se você não gostar, não me culpe. Nem culpe o autor, pois ele não pode, sob nenhuma hipótese, ser retirado do pedestal onde se colocou ao romper a barreira da imortalidade e escrever um livro. Algumas dicas para ler sempre: troque regularmente de autor e de assunto, para não enjoar; se não gostar de um livro e demorar em terminá-lo, tente voltar a ele no máximo três vezes e depois desista (levei um ano para ler um livro do Salman Rushdie... arrependo-me até hoje); com todo respeito aos tradutores, se puder leia um livro no idioma em que foi escrito e, finalmente, não procure grandes livros apenas em grandes autores – é muito bom ser surpreendido por um autor pouco conhecido no meio.

Veja só o leitor como já saí do tema inicial deste texto e enfurnei-me por outros caminhos. É assim com a poesia, é assim com a vida da gente onde nem tudo sai do jeito que esperamos, por que não haveria de ser assim com um artigo de abertura de uma página sobre o prazer de escrever? A magia da escrita está na liberdade que ela proporciona. Quando lemos algo, o fim já está escrito, ainda que não o conheçamos. No ato de escrever, o poder criador passa a ser do autor. Porém, com este poder advém, de certo modo, uma responsabilidade para responder pelas suas palavras. Salman Rushdie – convém citá-lo novamente – que o diga... Por isso é que escrever é arte; ler não é arte. Voltemos, então, ao tema principal.

"Como se escreve menos hoje em dia, como se escreve tanto hoje em dia". Li isso buscando na Internet um artigo sobre isso mesmo, e parei por aí. Escrevemos demais. Na frente de um computador, conversamos no aplicativo de mensagens instantâneas, enviamos e-mail, digitamos o endereço de uma página da Internet... A vida de muitas pessoas – a minha, inclusive, e cada vez mais a sua – gira hoje em torno de um quadrado de quinze polegadas com resolução de 800 por 600. Digito muito o dia inteiro mas, ao final, não escrevi nada. E o que isso representa? Menos livros, menos poesias, mais conteúdo para satisfazer necessidades momentâneas e egoístas e, portanto, inútil em um contexto mais amplo. Há os que alertam sobre o fim das relações entre as pessoas com o advento do Messenger e, mais recentemente, do iPod. Neste artigo, que já está ficando comprido, não entrarei no mérito deste tipo de discussão. Para mim a música é e sempre foi uma representação artística que abre a cabeça, inspirando outras artes. Basta fazer um teste para ver quantas músicas você conhece de memória. Música é poesia. Portanto, sem saber já estamos cheios de poesia dentro de nós. Agora, expressar esta poesia, acrescentando nela o elemento diferenciador de que somos feitos, que é a nossa personalidade, são outros quinhentos. E isso é o que me preocupa. Sinto que, em proporção com o século passado, estamos cada vez mais carecendo de escritores. E não estou falando apenas de dissertações, mas também de poemas e – para caber neste espaço – sonetos. Como eu gostaria de encher o meu sítio de sonetistas novos...

Não posso esquecer dos blogs, ou diários virtuais que muitos mantêm em um sítio na rede mundial de computadores. São geralmente compostos de textos curtos, relatos de acontecimentos esparsos que, sem dúvida, no mínimo ajudam a praticar o português. Afinal, ninguém gosta de entrar em um blog e encontrar a palavra "menas", popularizada não se sabe como nem por quem, mas que é cada vez mais comum na linguagem falada e dói ao ouvido daqueles que são um pouco mais cultos. Por isso, seus donos devem ter cuidado com o que publicam. Sim, os blogs são uma tendência louvável (isso aqui é uma espécie de blog), mas sinto que ainda falta um passo na evolução, ou melhor, na recuperação do prazer da escrita na era digital.

E é aqui que este artigo termina, meu amigo, sem definir solução alguma para o problema da perda de escritores. Espero, com o tempo e com outros textos como este, dar a minha contribuição para o tema. Estou até com um livro na gaveta que pretendo publicar em um futuro não muito distante. Novos sonetos meus, que já fluíram com mais vigor, ajudar-me-ão a manter o apego pelo conjunto lápis e papel. Mas o propósito, mesmo, é repassar o lápis. E quem sabe, um dia, no meio deste amontoado de palavras e de versos, passe por aqui um sujeito tímido e sonhador, com uma mente frenética ocultada por um olhar distante, e quem sabe ele resolva que nasceu para ser escritor, e quem sabe a partir de suas palavras eu encontre inspiração para mais um artigo, que inspire outro escritor num círculo vicioso e não menos romântico... Ah, aí neste momento, já não terá sido em vão... Já estou até ouvindo a minha mãe dizer: "deixa de sonhar, menino!".

São Paulo, 20 de março de 2005.
Bernardo Trancoso

p.s.: Relendo o primeiro parágrafo, no afã de revisar o que foi feito, empolguei-me por conseguir adequar o texto à sua proposta inicial de escrever compulsivamente. Todavia, nos demais parágrafos, senti pesar sobre mim a responsabilidade de deixar algo de inspirador e interessante para os leitores, e o que vi foi mais uma crítica do que um incentivo ao ato de escrever. Fiquei até meio triste com o texto... Será que eu também terei perdido o prazer de escrever e vou me juntar ao grupo dos que passeiam pela vida sem deixar uma mensagem escrita, como um testamento de sua alma, para as gerações vindouras? Ou tudo isso é saudade do estimado autor Fernando Sabino?
Fonte:
http://www.sonetos.com.br/vep1.php

Eça de Queirós (O Mandarim) Parte 3

Foi só na manhã seguinte, ao fazer a barba, que reflecti sobre a origem dos meus milhões. Ela era evidentemente sobrenatural e suspeita.

Mas como o meu racionalismo me impedia de atribuir estes tesouros imprevistos à generosidade caprichosa de Deus ou do Diabo, ficções puramente escolásticas; como os fragmentos de positivismo, que constituem o fundo da minha filosofia, não me permitiam a indagação das causas primárias, das origens essenciais – bem depressa me decidi a aceitar serenamente este fenómeno e a utilizá-lo com largueza. Portanto corri de quinzena ao vento para o London and Brazilian Bank...

Aí, arremessei para cima do balcão um papel sobre o Banco de Inglaterra de mil libras, e soltei esta deliciosa palavra:

– Ouro!

Um caixeiro sugeriu-me com doçura:

– Talvez lhe fosse mais cómodo em notas...

Repeti secamente:

– Ouro!

Atulhei as algibeiras, devagar, aos punhados: e na rua, ajoujado, icei-me para uma caleche. Sentia-me gordo, sentia-me obeso; tinha na boca um sabor de ouro, uma secura de pó de ouro na pele das mãos: as paredes das casas pareciam-me faiscar como longas lâminas de ouro: e dentro do cérebro ia-me um rumor surdo onde retilintavam metais – como o movimento de um oceano que nas vagas rolasse barras de ouro.

Abandonando-me à oscilação das molas, rebolante como um odre mal firme, deixava cair sobre a rua, sobre a gente, o olhar turvo e tedioso do ser repleto. Enfim, atirando o chapéu para a nuca, estirando a perna, empinando o ventre, arrotei formidavelmente de flatulência ricaça...

Muito tempo rolei assim pela cidade, bestializado num gozo de nababo.

Subitamente um brusco apetite de gastar, de dissipar ouro, veio-me enfunar o peito como uma rajada que incha uma vela.

– Pára, animal! – berrei, ao cocheiro.

A parelha estacou. Procurei em redor com a pálpebra meio cerrada alguma coisa cara a comprar – jóia de rainha ou consciência de estadista: nada vi; precipitei-me então para um estanco:

– Charutos: de tostão! de cruzado! Mais caros! de dez tostões!

– Quantos?... – perguntou servilmente o homem.

– Todos! – respondi com brutalidade.

À porta, uma pobre toda de luto, com o filho encolhido ao seio, estendeu-me a mão transparente. Incomodava-me procurar os trocos de cobre por entre os meus punhados de ouro. Repeli-a, impaciente: e, de chapéu sobre o olho, encarei friamente a turba.

Foi então que avistei, adiantando-se, o vulto ponderoso do meu director-geral: imediatamente achei-me com o dorso curvado em arco e o chapéu cumprimentador roçando as lajes. Era o hábito da dependência: os meus milhões não me tinham dado ainda a verticalidade à espinha...

Em casa despejei o ouro sobre o leito, e rolei-me por cima dele, muito tempo, grunhindo num gozo surdo. A torre, ao lado, bateu três horas; e o Sol apressado já descia, levando consigo o meu primeiro dia de opulência... Então, couraçado de libras, corri a saciar-me!

Ah, que dia! Jantei num gabinete do Hotel Central, solitário e egoísta, com a mesa alastrada de Bordéus, Borgonha, Champagne, Reno, licores de todas as comunidades religiosas – como para matar uma sede de trinta anos! Mas só me fartei de Colares. Depois, cambaleando, arrastei-me para o lupanar! Que noite! A alvorada clareou por trás das persianas; e achei-me estatelado no tapete, exausto e seminu, sentindo o corpo e a alma como esvaírem-se, dissolverem-se naquele ambiente abafado onde errava um cheiro de pó de arroz, de fêmea e de punch...

Quando voltei à Travessa da Conceição, as janelas do meu quarto estavam fechadas, e a vela expirava, com fogachos lívidos, no castiçal de latão. Então, ao chegar junto à cama, vi isto: estirada de través, sobre a coberta, jazia uma figura bojuda de mandarim fulminado, vestida de seda amarela, com um grande rabicho solto; e entre os braços, como morto também, tinha um papagaio de papel!

Abri desesperadamente a janela; tudo desapareceu;– o que estava agora sobre o leito era um velho paletó alvadio.

III

Então começou a minha vida de milionário. Deixei bem depressa a casa de Madame Marques – que, desde que me sabia rico, me tratava todos os dias a arroz-doce, e ela mesma me servia, com o seu vestido de seda dos domingos. Comprei, habitei o palacete amarelo, ao Loreto: as magnificências da minha instalação são bem conhecidas pelas gravuras indiscretas da «Ilustração Francesa». Tornou-se famoso na Europa o meu leito, de um gosto exuberante e bárbaro, com a barra recoberta de lâminas de ouro lavrado, e cortinados de um raro brocado negro onde ondeiam, bordados a pérolas, versos eróticos de Catulo; uma lâmpada, suspensa no interior, derrama ali a claridade láctea e amorosa de um luar de Verão.

Os meus primeiros meses ricos, não o oculto, passei-os a amar – a amar com o sincero bater de coração de um pajem inexperiente. Tinha-a visto, como numa página de novela, regando os seus craveiros à varanda: chamava-se Cândida; era pequenina, era loura; morava a Buenos Aires, numa casinha casta recoberta de trepadeiras; e lembrava-me, pela graça e pelo airoso da cinta, tudo o que a Arte tem criado de mais fino e frágil – Mimi, Virgínia, a Joaninha do Vale de Santarém.

Todas as noites eu caía, em êxtases de místico, aos seus pés cor de jaspe. Todas as manhãs lhe alastrava o regaço de notas de vinte mil reis: ela repelia-as primeiro com um rubor, – depois, ao guardá-las na gaveta, chamava-me o seu anjo Totó.

Um dia que eu me introduzira, a passos subtis, por sobre o espesso tapete sírio, até ao seu boudoir – ela estava escrevendo, muito enlevada, de dedinho no ar: ao ver-me, toda trémula, toda pálida, escondeu o papel que tinha o seu monograma. Eu arranquei-lho, num ciúme insensato. Era a carta, a carta costumada, a carta necessária, a carta que desde a velha Antiguidade a mulher sempre escreve; começava por «Meu idolatrado» – e era para um alferes da vizinhança...

Desarraiguei logo esse sentimento do meu peito como uma planta venenosa. Descri para sempre dos anjos louros, que conservam no olhar azul o reflexo dos céus atravessados; de cima do meu ouro deixei cair sobre a Inocência, o Pudor, e outras idealizações funestas, a ácida gargalhada de Mefistófeles: e organizei friamente uma existência animal, grandiosa e cínica.

Ao bater do meio-dia, entrava na minha tina de mármore cor-de-rosa, onde os perfumes derramados davam à água um tom opaco de leite: depois pajens tenros, de mão macia, friccionavam-me com o cerimonial de quem celebra um culto: e embrulhado num robe-de-chambre de seda da Índia, através da galeria, dando aqui e além um olhar aos meus Fortunys e aos meus Corots, entre alas silenciosas de lacaios, dirigia-me ao bife à inglesa, servido em Sèvres azul e ouro.

O resto da manhã, se havia calor, passava-o sobre coxins de cetim cor de pérola, num boudoir em que a mobília era de porcelana fina de Dresde e as flores faziam um jardim de Armida; aí, saboreava o «Diário de Notícias», enquanto lindas raparigas vestidas à japonesa refrescavam o ar, agitando leques de plumas.

De tarde ia dar uma volta a pé, até ao Pote das Almas: era a hora mais pesada do dia: encostado à bengala, arrastando as pernas moles, abria bocejos de fera saciada – e a turba abjecta parava a contemplar, em êxtases, o nababo enfastiado!

Às vezes vinha-me como uma saudade dos meus tempos ocupados da repartição. Entrava em casa; e encerrado na livraria, onde o Pensamento da Humanidade repousava esquecido e encadernado em marroquim, aparava uma pena de pato, e ficava horas lançando sobre folhas do meu querido «Tojal» de outrora: «Il.mo e Ex.mo Sr. – Tenho a honra de participar a V. Ex.a... Tenho a honra de passar às mãos de V. Ex.a!...»

Ao começo da noite um, criado, para anunciar o jantar, fazia soar pelos corredores na sua tuba de prata, à moda gótica, uma harmonia solene. Eu erguia-me e ia comer, majestoso e solitário. Uma populaça de lacaios, de librés de seda negra, servia, num silêncio de sombras que resvalam, as vitualhas raras, vinhos do preço de jóias: toda a mesa era um esplendor de flores, luzes, cristais, cintilações de ouro: – e enrolando-se pelas pirâmides de frutos, misturando-se ao vapor dos pratos, errava, como uma névoa subtil, um tédio inenarrável...

Depois, apopléctico, atirava-me para o fundo do coupé – e lá ia às Janelas Verdes, onde nutria, num jardim de serralho, entre requintes muçulmanos, um viveiro de fêmeas: revestiam-me de uma túnica de seda fresca e perfumada, – e eu abandonava-me a delírios abomináveis... Traziam-me semimorto para casa, ao primeiro alvor da manhã: fazia maquinalmente o meu sinal-da-cruz, e daí a pouco roncava de ventre ao ar, lívido e com um suor frio, como um Tibério exausto.

Entretanto Lisboa rojava-se aos meus pés. O pátio do palacete estava constantemente invadido por uma turba: olhando-a enfastiado das janelas da galeria, eu via lá branquejar os peitilhos da Aristocracia, negrejar a sotaina do Clero, e luzir o suor da Plebe: todos vinham suplicar, de lábio abjecto, a honra do meu sorriso e uma participação no meu ouro. Às vezes consentia em receber algum velho de título histórico: – ele adiantava-se pela sala, quase roçando o tapete com os cabelos brancos, tartamudeando adulações; e imediatamente, espalmando sobre o peito a mão de fortes veias onde corria um sangue de três séculos, oferecia-me uma filha bem-amada para esposa ou para concubina.

Todos os cidadãos me traziam presentes como a um ídolo sobre o altar – uns odes votivas, outros o meu monograma bordado a cabelo, alguns chinelas ou boquilhas, cada um a sua consciência. Se o meu olhar amortecido fixava, por acaso, na rua, uma mulher – era logo ao outro dia uma carta em que a criatura, esposa ou prostituta, me ofertava a sua nudez, o seu amor, e todas as complacências da lascívia.

Os jornalistas esporeavam a imaginação para achar adjectivos dignos da minha grandeza; fui o sublime sr. Teodoro, cheguei a ser o celeste sr. Teodoro; então, desvairada, a «Gazeta das Locais» chamou-me o extraceleste sr. Teodoro! Diante de mim nenhuma, cabeça ficou jamais coberta – ou usasse a coroa ou o coco. Todos os dias me era oferecida uma presidência de Ministério ou uma direcção de confraria. Recusei sempre, com nojo.

Pouco a pouco o rumor das minhas riquezas foi passando os confins da Monarquia. O «Figaro», cortesão, em cada número falou de mim, preferindo-me a Henrique V; o grotesco imortal que assina «Saint-Genest» dirigiu-me apóstrofes convulsivas, pedindo-me para salvar a França; e foi então que as «Ilustrações» estrangeiras publicaram, a cores, as cenas do meu viver. Recebi de todas as princesas da Europa envelopes, com selos heráldicos, expondo-me, por fotografias, por documentos, a forma dos seus corpos e a antiguidade das suas genealogias. Duas pilhérias que soltei durante esse ano foram telegrafadas ao universo pelos fios da Agência Havas; e fui considerado mais espirituoso que Voltaire, que Rochefort, e que esse fino entendimento que se chama «Todo-o-Mundo». Quando o meu intestino se aliviava com estampido – a humanidade sabia-o pelas gazetas. Fiz empréstimos aos reis, subsidiei guerras civis – e fui caloteado por todas as repúblicas latinas que orlam o golfo do México. E eu, no entanto, vivia triste...

Todas as vezes que entrava em casa estacava, arrepiado, diante da mesma visão: ou estirada no limiar da porta, ou atravessada sobre o leito de ouro – lá jazia a figura bojuda, de rabicho negro e túnica amarela, com o seu papagaio nos braços... Era o mandarim Ti Chin-Fu! Eu precipitava-me, de punho erguido: e tudo se dissipava. Então caía aniquilado, todo em suor, sobre uma poltrona, e murmurava no silêncio do quarto, onde as velas dos candelabros davam tons ensanguentados aos damascos vermelhos:

– Preciso matar este morto!

E, todavia, não era esta impertinência de um velho fantasma pançudo, acomodando-se nos meus móveis, sobre as minhas colchas, que me fazia saber mal a vida.

O horror supremo consistia na ideia, que se me cravara então no espírito como um ferro inarrancável – que eu tinha assassinado um velho!

Não fora com uma corda em torno da garganta, à moda muçulmana; nem com veneno num cálice de vinho de Siracusa, à maneira italiana da Renascença; nem com algum dos métodos clássicos, que na história das monarquias têm recebido consagrações augustas– a punhal como D. João II, à clavina como Carlos IX...

Tinha eliminado a criatura, de longe, com uma campainha. Era absurdo, fantástico, faceto. Mas não diminuía a trágica negrura do facto: eu assassinara um velho!

Pouco a pouco esta certeza ergueu-se, petrificou-se na minha alma, e como uma coluna num descampado dominou toda a minha vida interior: de sorte que, por mais desviado caminho que tomassem, os meus pensamentos viam sempre negrejar no horizonte aquela memória acusadora; por mais alto que se levantasse o voo das minhas imaginações, elas terminavam por ir fatalmente ferir as asas nesse monumento de miséria moral.

Ah! por mais que se considere Vida e Morte como banais transformações da Substância, é pavoroso o pensamento – que se fez regelar um sangue quente, que se imobilizou um músculo vivo! Quando, depois de jantar, sentindo ao lado o aroma do café, eu me estirava no sofá, enlanguecido, numa sensação de plenitude, elevava-se logo dentro em mim, melancólico como o coro que vem de um ergástulo, todo um sussurro de acusações:

– E todavia tu fizeste que esse bem-estar em que te regalas, nunca mais fosse gozado pelo venerável Ti Chin-Fu!...

Debalde eu replicava à Consciência, lembrando-lhe a decrepitude do Mandarim, a sua gota incurável... Facunda em argumentos, gulosa de controvérsia, ela retorquia logo com furor:

– Mas, ainda na sua actividade mais resumida, a vida é um bem supremo: porque o encanto dela reside no seu princípio mesmo, e não na abundância das suas manifestações!

–––––––––––
Continua…

Fonte:
http://leituradiaria.com

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 773)

Uma Trova de Ademar  

Num triste e cruel enredo
escrito por poderosos,
a Terra treme com medo
das mãos dos gananciosos...
–Ademar Macedo/RN–

Uma Trova Nacional

Que haverá de mais valor
num mundo de corre, corre?
Amigo é o único amor
que na vida nunca morre!...
–Myrthes Mazza Masiero/SP–

Uma Trova Potiguar

Uma família sem teto,
repartia o mesmo pão...
Mas sobrava sempre afeto,
no final da divisão...!
–Mara Melinni/RN–

Uma Trova Premiada

2012 - Cantagalo/RJ
Tema - ESPAÇO - 9º Lugar


Homem...! É afoito seu passo
e um paradoxo o consome:
- Rompe limites no Espaço,
enquanto a Terra.. tem fome!
–Pedro Mello/SP–

...E Suas Trovas Ficaram


Ventura traz alegrias
depois a dor... desenganos ...
- Conosco fica dois dias ...
Deixa a saudade, por anos …
–Nice Nascimento/RJ–

U m a P o e s i a

ANO VELHO E ANO NOVO.


Há, de dois mil e doze, mil lembranças
de momentos bonitos e felizes;
entretanto, ficaram cicatrizes
que não foram curadas pelas mansas
madrugadas de sonhos e esperanças,
porque o tempo mesquinho não deixou!
das promessas negadas, inda vou
mover duro processo cautelar:
O Ano Novo precisa me pagar
os calotes do ano que passou!
–José Lucas de Barros/RN–

Soneto do Dia

NÃO ME PERGUNTES...
–Maria Nascimento/RJ–


Não me perguntes, nunca, onde, nem quando,
ou como este amor louco floresceu,
que até hoje ainda estou me perguntando
e a resposta nem DEUS, que é Deus, me deu.

Sei apenas que a vida vai passando...
Na espera, quanto tempo se perdeu,
enquanto segui, tola, procurando
dividir este amor que era só meu...

Lamento ver que o tempo foi perdido,
e, apesar do que tenho padecido,
não meço o amor que sinto por meu pranto ;

mas se o medisse, então, eu te diria
que o teu amor tem tanta primazia,
que nem a minha vida vale tanto...

Teatro de Ontem e de Hoje (Hysteria)

Obra de estréia do Grupo XIX de Teatro, bem-sucedida no Festival de Teatro de Curitiba de 2002, confere à companhia aceitação crescente do público e interesse imediato da crítica. É um início competente para uma linha de pesquisa séria e criativa sobre a cultura, as relações sociais e a memória do século XIX.

Hysteria se passa em um hospício. Espectadores e espectadoras são acomodados em partes separadas do espaço cênico. Os homens apenas assistem ao espetáculo; as mulheres também interagem com as atrizes. Quatro pacientes mulheres, vigiadas por uma quinta, contam, unicamente para o público feminino, os motivos pelos quais estão internadas. A sutileza dessa comunicação entre elenco e espectadoras surpreende pela maturidade com que se processa.

O espetáculo surge depois de estudos sobre a condição feminina no Brasil, no Centro de Artes Cênicas da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo - CAC/ECA/USP, com Antônio Araújo. Essa ligação com o diretor do Teatro da Vertigem repercute na busca por espaços alternativos de encenação.

O diretor Luiz Fernando Marques e o elenco compõem o retrato do período empregando com eficiência o discurso das personagens. Os desejos reprimidos, a solidão, as frustrações e até mesmo a solidariedade entre elas, tudo é sugerido e apresentado de modo a despertar a empatia do espectador. O cuidadoso trabalho chama a atenção da dramaturga e ensaísta Renata Pallottini: "A direção conseguiu manter a unidade; o tom, que poderia ser continuadamente dramático, patético até, mercê da situação, é permeado por momentos de humor, quase sempre introduzidos pela atriz Sara Antunes (embora seja injusto fazer algum destaque nesse conjunto tão harmônico). E o espetáculo, que teria tudo para ser pesado e agressivo, consegue equilibrar-se entre a denúncia e o deleite, de modo a conferir a esta montagem um certificado de seriedade, qualidade e oportunidade".1

Em 2002, o Grupo XIX de Teatro recebe os prêmios Associação Paulista de Críticos de Artes - APCA e Qualidade Brasil de revelação como grupo teatral.

Notas
1. PALLOTTINI, Renata. A denúncia e o deleite. Bravo!, São Paulo, n. 57, jun 2002. p. 127.


Fonte:
Enciclopédia Itaú Cultural

José de Alencar (Ao Correr da Pena) Rio, 21 de outubro de 1855: Olhando para o fundo do meu tinteiro

(Folhetins do “Diário do Rio” – de 7 de outubro de 1855 a 25 de novembro de 1855)

Estava olhando para o fundo do meu tinteiro sem saber o que havia de escrever, e de repente veio-me à idéia um pensamento que teve Afonso Karr, quase que em idênticas circunstâncias.

Lembrei-me que talvez aquela meia onça de líquido negro contivesse o germe de muita coisa grande e importante. E que cada uma gota daquele pequeno lago tranqüilo e sereno podia produzir uma inundação e um cataclismo.

De fato o que é um tinteiro?

É a primeira vista a coisa mais insignificante do mundo; um traste que custa mais ou menos caro, conforme o gosto e a matéria com que é feito.

Entretanto, pensando bem, é que se compreende a missão importante que tem um tinteiro na história do mundo, e a influência que pode exercer nos futuros destinos da humanidade.

Assim pôr exemplo, aquele meu tinteiro, que ali está encestado a um canto, se pôr voltas deste mundo fosse parar a Europa, podia tornar-se célebre na história do gênero humano.

Lamartine ou Vitor Hugo se quisessem tirariam dali um poema, um drama, um livro cheio de poesia e de sentimento.

Rotschild, ou qualquer banqueiro da Inglaterra, podia com uma simples gota fazer surgir milhões e produzir de repente uma nova chuva de ouro.

Qualquer mulher bonita, com um só átomo daquela tinta, faria a felicidade de muita gente escrevendo na sua letrazinha inglesa três ou quatro palavras.

Meyerbeer ou Rossini num momento de inspiração achariam ali uma ópera divina, uma música sublime, como o Trovador, a Semiramis, ou o Nabuco

Enfim, o papa amaldiçoaria o mundo inteiro, como acaba de fazer com o Piemonte; Napoleão declararia a guerra à Europa; a Inglaterra levaria a destruição pôr todos os mares; e a guerra à Europa; a Inglaterra levaria a destruição pôr todos os mares; e a guerra do Oriente se terminaria de repente.

E tudo isto, todas essas grandes revoluções, todos esses fatos importantes, todas essas coisas grandes, dormiam talvez no fundo do meu tinteiro, e dependiam apenas de um capricho do acaso.

Para mim porém, para mim, obscuro folhetinista da semana, o que podia haver de interessante nas ondas negras da tinta que umedecia os bicos de minha pena?

Um devaneio sobre o teatro lírico, uma poesia sobre algum rostinho encantador, uma crítica mais ou menos espirituosa sobre a quadra atual, tão fértil em episódios interessantes para uma pena que os soubesse descrever e comentar?

A minha pena porém, já não presta para essas coisas; de travessa, de ligeira, e alegre que foi em algum tempo, tornou-se grave e sisuda, e olha pôr cima do ombro para todas essas pequenas futilidades do espírito humano.

A culpa porém não é dela; é a influência diabólica dessa quadra, que merece ser riscada dos anais da crônica elegante.

De fato, como se pode hoje brincar sobre um assunto, escrever uma página de estilo mimoso, falar de flores e de música, se o eco da cidade vos responde de longe: - Pão, - epidemia, - socorros públicos, - socorros públicos, - enfermaria!

Estais no teatro, esquecido deste mundo e de suas misérias, ouvindo a Grua cantar algum belo trecho de música, ou a Charton trinar as suas notas de rouxinol francês; não vos lembrais de coisa alguma, senão de que tendes a alma nos olhos, e os olhos noutros olhos, - quando sentis no ouvido um zumbido pouco harmônico.

É um sujeito que acabou de cear à luta e que vos pergunta como vai a epidemia, ou vos conta dois ou três casos que ele presenciou, e cuja impressão agradável deseja comunicar-vos como vosso amigo.

Se deitais o óculo para algum camarote e começais a contemplar um talhe elegante ou um colo acetinado, é justamente neste momento que um economista de polpa vos agarra para discutir a magna questão da farinha de trigo, e do comércio do pão de rala. Ainda se fosse a questão das carnes, - podia ter sua analogia!

Como é possível pois ter um pouco de poesia, e de espírito numa semelhante época? Conto escrever duas linhas sem falar da epidemia reinante, dos atos de caridade, e das enfermarias?

Se isto continua, daqui a pouco os jornais tornar-se-ão uma espécie de boletim; não há nada que diga respeito à moléstia que não se anuncie.

Abri um jornal qualquer do dia, e vereis pouco mais ou menos o seguinte:

“O Sr. A, partiu para tal parte; o Sr. B, voltou de tal lugar; o Sr. C, vai para tal vila; o Sr. D, tem dado providências; o Sr. E, ofereceu mil cobertores; o Sr.F, adoeceu, mas já ficou bom.

E assim pôr diante; ninguém escapa a esta febre de publicação, que já se estendeu até aos diversos períodos da moléstia.

No meio de tudo isto, as mulheres andam inteiramente absorvidas com a caridade, e não pensam noutra coisa; e a tal ponto, que as moças bonitas já não aparecem, de tão ocupadas que têm estado a fazerem trabalhos para o leilão de hoje.

O que há de ser este leilão, eu adivinho; há de ser uma linda festa, muito concorrida, onde a caridade brilhará no meio de sorrisos graciosos e de olhares brilhantes; em que o amor, a vaidade, o orgulho, todas essas paixões mundanas servirão de pedestal à bela estátua da virtude celeste.

É aí, que as lindas mulheres vão retribuir à Providência, os tesouros de beleza e de graça, que a natureza lhes deu; é aí que o seu belo olhar, o seu sorriso, o seu gesto elegante, pedindo para os pobres, renderão a Deus um verdadeiro culto.

Hoje pois terá lugar uma larga remissão de pecadilhos, e uma justa penitência da parte das moças bonitas e coquettes, que pôr tanto tempo zombaram impunemente dos protestos e da paciência de seus adoradores.

Deixemos porém estes assuntos já esgotados, e voltemos ao teatro lírico, que é atualmente o ponto de reunião mais interessante desta bela capital.

Ultimamente a nossa cena lírica ia perdendo muito no espírito público; embora possuísse duas artistas de incontestável merecimento, o repertório estava já tão conhecido que não oferecia a menor variedade.

Eu, pelo menos, ia ao teatro como um homem levado pelo hábito e acostumado a ouvir todas as noites, recostado à janela, cantar nas moitas do seu jardim alguma ave melodiosa.

Uma noite, era um rouxinol que gorjeava as suas canções mimosas, - era a Charton. Outra, era a sereia que embriagava com os sons palpitantes de sua voz harmoniosa, - era Emy.

Havia gente, que gastava o seu tempo a discutir o que era mais agradável e mais artístico. Os homens de juízo e de bom gosto faziam como eu; admiravam a estrela do céu, e a flor do campo, sem procurar saber qual era mais bela.

Agora porém parece-nos que o teatro lírico vai tomar outro aspecto; preparam-se novas óperas, e trata-se de criar um novo repertório.

Além da Sapho que se deve representar breve, teremos com a Charton a Fidanzata Corsa cujo ensaio começou ontem, e depois o Nabuco com E. La Grua e o Walter.

Para o dia 2 de dezembro fala-se numa composição francesa, e numa ópera em que cantarão juntas as duas prima-donas rivais.

Com a chegada porém de Tamberlich e de Julienne Dejean, é que a nossa cena se reanimará completamente; e que fará gosto assistir a uma dessas lutas do talento e da arte, lutas cujos troféus são as camélias, as rosas, e os lindos ramos de flores que se abatem aos pés do vencedor.

A vinda do Tamberlich, é sobretudo muito necessária, não só pôr não termos um bom tenor, como pôr consideração para com as nossas patrícias.

Na verdade é uma injustiça imperdoável, que elas não tenham um cantor pôr quem se entusiasmem; entretanto, que nós temos Emy, Arsene, e Anneta; nada menos do que três, isto é; - um número suficiente para revolucionar o mundo.

Começo de novo a olhar para o fundo do meu tinteiro para ver se ainda há alguma coisa.

Esperai! Lá vejo surgir o que quer que seja, - um pequeno ponto, um ponto quase imperceptível e confuso, que vai pouco a pouco se tornando mais distinto, como uma vela que desponta no horizonte entre a vasta amplidão dos mares.

Talvez nos traga coisas interessantes e curiosas; notícias que vos compensem da insipidez destas páginas ingratas.

Oh! O ponto cresce, cresce! Vai tomando a fisionomia de uma espécie de porteiro de secretaria, ou de bedel de academia.

Agora vejo-o distintamente; é um amigo velho!

-Bem-vindo, meu bom amigo, bem-vindo, amigo sincero dos folhetinistas e dos escritores, bem-vindo, ponto final!

Não há remédio, senão ceder-vos o lugar que vos compete; ei-lo,
(.)
Fonte:
José de Alencar. Ao Correr da Pena. SP: Martins Fontes, 2004.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Oriza Martins / SP (Solidão a Dois)



Vasco Mouzinho de Quevedo (Poesia sem Fronteiras)

SONETO I


Ao Duque

A glória do edifício, o louvor alto
Do que a última mão lhe põe, se dobra
Em desgraça daquele, e mágoa da obra,
Que no melhor lhe foi escasso e falto.

Este de letras, com que ao Céu me exalto
E que em mim vossa mão levanta e obra,
Se sua perfeição por vós não cobra,
A todos causa mágoa e sobressalto.

Já que os andames da esperança minha
Não há quem desarmá-los hoje possa,
Fazei com que este meu trabalho monte.

Vós sereis minha glória, eu glória vossa,
Ficando à vista as que eu já n'alma tinha,
Vossas armas reais em minha fronte.

SONETO II

A D. Manuel de Lencastre.

Na tenebrosa noite o caminhante,
Quando o ar se engrossa e o mundo todo atroa,
O tronco busca donde se coroa
Da fugitiva Dafne o brando amante.

Ali não teme o raio fulminante,
Por mais que na vizinha árvore soa,
E seu louvor por onde vai pregoa
Tanto que a cerração c'o sol levante.

Trabalha o Céu em minha fim, trabalha
A terra em minha fim, com fúria imensa
Cada hora espero pela derradeira.

Onde me acolherei que alguém me valha?
A vós, a quem não quer fazer ofensa
O Céu, nem pode a terra, inda que queira.

SONETO III

A D. Fernão Martins Mascarenhas quando o fizeram Bispo.

Espanta crecer tanto o Crocodilo
Só por seu acanhado nascimento,
Que se maior nascera, mais isento
Estivera d'espanto o pátrio Nilo.

Em vão levantará meu baixo estilo
Vosso Pontifical novo ornamento,
Pois no ventre o imortal merecimento
Vo-lo talhou, para despois visti-lo.

Tardou, mas veio, que a quem mais merece
Muito mais tarde vir o prémio é certo,
E sempre tarda, inda que venha cedo.

Os Céus, que do primeiro estão mais perto,
Mais devagar se movem; quem soubesse
Trás d'aquele segredo, este segredo?

SONETO IV

Ao Reitor António de Mendonça.

Neste árduo labirinto onde me guio,
Sem esperança algua de saída,
Mostrai, senhor, o fio à minha vida,
Pois está minha vida já no fio.

Incertos passos, hórrido desvio,
Medonhos ares, confusão crescida
Ma trazem com temor desfalecida,
E dela já de todo desconfio.

A vós só tem minha esperança morta,
Se morta pode ser ua esperança
Que vos tem vivo, e largos anos tenha.

Se espera mal, e ser queimada importa
Por crer mais do que pode e cá se alcança,
O fogo ponde, que eu lhe ajunto a lenha.

SONETO V

Qual Hércules estrela já mudado,
Que quando se quer pôr ao tempo certo,
Cabeça e corpo todo já coberto,
Fica só pelos pés dependurado,

Tal c'ua grave dor, grave cuidado
Que o coração me tem de todo aberto,
Perdida a razão já, de meu fim perto
Me vejo agora em semelhante estado.

Mas ai! paixão penosa, que além passas,
Que este, enfim, não é sempre no Céu visto,
Ainda que dos pés se ponha tarde.

E tu, como meu mal e morte traças,
És qual a mão do filho de Calisto,
Que em todo [o] tempo ao mar cintila e arde.

SONETO VI

Qual naufragante mísero que cai
Da rota barca no soberbo pego,
E, lidando c'os braços sem sossego,
A cada onda receia que desmaie,

Tal, sem ter já lugar onde se espraie
Neste mar de meu mal, cansado e cego
Ando, aqui desfaleço, ali me anego,
E a cada encontro seu [a] alma me sai.

Em meio de mil barcas clamo, e brado:
"Me lancem por piedade um cabo forte!",
Mas a ninguém magoa meu cuidado.

Ah, não queirais que vida tal se corte
Que se vida me dais, ganhais dobrado,
Livrando muitas vidas de ua morte.

SONETO VII

No Rio Eufrate[s], ua erva, ou flor se cria
Que c'o Sol sobre as águas aparece,
E dentro se recolhe e se entristece
Quando no largo mar se esconde o dia.

À vista de meu Sol ledo me via
Fora do rio, que dos olhos crece;
Agora que meu Sol não me amanhece,
Entre lágrimas vivo em noite fria.

Mas desta flor o triste estado é breve,
Trás noite manhã tem; ai de quem chora
Contando noites, sem que um dia conte.

O Sol já por milagre quedo esteve:
Também parou meu Sol, mas parou fora,
Para noite sem fim de meu Horizonte.

SONETO VIII

Da virtude que move os Céus depende
Todo o bem, toda a glória e ser da terra,
E se u'hora faltasse, o vale, a serra,
A flor, o fruito, a fonte, o rio ofende.

Esse braço que amor de longe estende
Para esta alma, meu ser e vida encerra,
E se algu'hora Amor dela o desterra,
Que glória mais que vida ou ser pretende.

Mas nem há-de faltar essa virtude
Se não c'o mundo, nem faltar-me agora;
Vosso Amor até morte me assigura.

Então para que nunca mais se mude,
Se mudará, e mudar-se Amor nessa hora,
Será para outro Amor que sempre dura.
Fonte:
http://www.sonetos.com.br/biografia.php?a=39

Monteiro Lobato (Barba Azul)

Jantávamos no Hotel d’Oest, eu e o Lucas, um amigo que sabe histórias. A tantas, como percebesse certo vulto lá no fundo do salão, o rapaz firmou a vista e murmurou em solilóquio:

– Sabe ele?...

– Ele, quem?

– Estás vendo aquele sujeito gordo, na terceira mesinha à esquerda?

– O de luto?

– Sim... O patife anda sempre de luto...

– Quem é?

– Um celerado que tem muito dinheiro e teve muitas mulheres.

– Até aí nada vejo demais.

– Tem muito dinheiro porque teve muitas mulheres. Está poderoso. Ri-se do e de sua justiça.

Inventou um crime inédito não previsto pelas leis e com isso enriqueceu. Se um de nós o denunciasse, o patife nos processaria e nos meteria na cadeia. Note-lhe bem o tipo; raras vezes terás ocasião de topar um celerado desse tamanho.

– Mas...

– Lá fora contarei tudo. Toca a jantar.

Enquanto jantávamos examinei o sujeito, sem que nada no seu físico me parecesse estranho. Deu-me a impressão dum médico aposentado que vivesse de rendas.

Por que de médico? Não sei. As criaturas dão-me ar disto ou aquilo por força duma aura que pressinto a envolvê-las. Confesso, todavia, que minha adivinhação erra bastante. Sai- me fazendeiro um que eu previa médico, e surge-me corretor de negócios outro que eu jurava engenheiro.

Creio que a falha do diagnóstico vem dos homens desrespeitarem as vocações, e adotarem na vida atitudes profissionais diversas das que, por injunção natural, deviam eleger. Como no entrudo. As máscaras nunca dizem das caras verdadeiras que escondem.

Terminado o jantar, saímos em direção ao Triângulo, e lá nos abancamos num sórdido café. O meu amigo voltou ao assunto.

– Caso notável, o daquele homem! Caso merecedor de novela ou conto, já que a justiça não tem forças para mantê-lo na cadeia. Conheci-o no Oeste, prático de farmácia em Brotas. Um dia casou-se. Lembro-me disso porque assisti ao casamento a convite dos pais da moça. Era a Pequetita Mendes, filha dum sitiante arranjado.

Pequetita! Bem posto apelido, que não era bem mulher aquela isca de gente. Miudinha, magrinha, sequinha, sem cadeiras, sem ombros, sem seios. Pequetita não passava de um desses restolhos enfermiços que aparecem ao lado das espigas viçosas – sabuguinho débil, um grão aqui, outro ali. Apesar dos seus vinte e cinco anos, representava treze, e ao escolhê-la Pânfilo – chama-se Pânfilo Novais o meu facínora – espantou a todos, a começar pela moça. Como, porém, era ele pobre e ela arranjada, explicou-se financeiramente a união.

Mas nada poderia resultar de bom duma união dessa ordem, que repugnava aos homens e a natureza. Pequetita não viera ao mundo para o matrimônio. O instinto da espécie fizera-a ponto final. “Pararás aí.”

Ninguém pensou nisso, nem ela, nem os pais, nem ele – nem ele, que depois só pensaria nisso...

–?

Ouve. Casaram-se e tudo correu excelentemente até que...

– ... se separaram...

– ... até que os separou a morte. Pequetita não resistiu ao primeiro parto; faleceu após cruel intervenção cirúrgica.

Pânfilo, dizem, chorou amargamente a morte da esposa, embora viessem consolá-lo os trintas contos e um seguro por ela constituído em seu favor.

A meu ver é daqui por diante que surge o criminoso. O desastre do primeiro casamento criou-lhe no cérebro um pensamento sinistro – pensamento que o iria nortear pela vida afora e que o fez, como te disse, rico e poderoso. A morte de Pequetita ensinou-lhe um crime inédito, não previsto pelas leis humanas.

– Espera. Compreenderás tudo dentro em pouco. Decorrido um ano, o nosso homem, já dono da farmácia, apresentou-se novamente enliçado pelo amor.

Aparecera por lá uma família de fora, gente pobre, mãe viúva com quatro filhas casadeiras. Três delas, lindas e viçosas, viram-se logo requestadas por todos os moços desimpedidos do lugar. Já a quarta, restolho maninguera que fazia lembrar Pequetita, só teve um par d’olhos que a cobiçassem, os de Pânfilo.

A mãe opôs-se – que era uma loucura aquilo; que a menina lhe nascera enfezada; que se queria mulher, escolhesse uma das três sadias.

Nada conseguiu. Pânfilo fez pé firme e afinal casou-se.

Foi um assombro. Arranja-dote que já era, coisa nenhuma justificava tal preferência. Ele defendia-se hipocritamente, lamecha e sentimental:

– É o meu gênero. Gosto de bibelôs e esta me lembra a minha amada Pequetita...

Resumindo: dez meses depois o patife enviuvava de novo nas mesmas circunstâncias da primeira vez. Morreu-lhe de parto a mulher.

– Novo seguro?

– E grande. Desta feita a bolada subiu a cem contos. Mudou-se de terra, então. Vendeu a farmácia e perdi-o de vista.

Anos depois fui encontrá-lo no Rio, numa casa de chá. Estava outro, elegantemente vestido, denunciando prosperidade por todos os poros. Viu-me, reconheceu-me e chamou-me para sua mesa. Conversa vai, conversa vem, contou-me que casara pela quarta vez, havia coisa de um ano.

Assombrei-me.

– “Pela quarta?”

– “É verdade. Depois que saí daquela abençoada terrinha onde o destino me enviuvar duas vezes, casei-me em Uberaba com a filha do coronel Tolosa. Mas continuei perseguido pelo destino: faleceu-me essa também...”

– “Gripe?”

– “Parto...”

– “Como a primeira, então? Mas, doutor, perdoe-me a liberdade: o senhor escolhe mal as mulheres! Vai ver que essa terceira era miudinha como as anteriores” – disse eu irrefletidamente.

O homem franziu os sobrolhos e encarou-me dum modo estranho, como se lhe batera a pacuera ante a ironia dum Sherlock disfarçado. Voltou logo ao natural, porém, e prosseguiu com serenidade:

– “Que quer? É meu gênero. Não suporto mulheraças.”

E mudou de assunto.

Ao deixá-lo fiquei apreensivo, com a suspeita a gerarse-me no celebro. Liguei a estranheza dos seus modos ante a minha observação ao olhar perscrutador com que devassara meu íntimo, e deixei escapar em voz alta um –Hum! Que chamou a atenção de dois ou três passantes. E o caso do doutor Pânfilo ficou a verrumar-me os miolos dias e dias.

– Doutor, dizes tu?

– Está claro. O diploma veio logo atrás dos seguros, como conseqüência lógica. Quem nesta terra, com algumas centenas de contos no banco, permaneces enhor?

Por curiosidade, no intuito exclusivo de esclarecer-me, tomei informações relativas à sua quarta esposa. Soube que era de Cachoeira e fisicamente do mesmo naipe das outras.

Fui além. Tratei de indagar nas companhias de seguros que negócios trazia nelas od outor Pânfilo e soube que a vida da quarta mulher estava garantida em mais de duzentos contos. Com os trezentos e cinqüenta já embolsados, arredondaria ele, pela morte desta, um pecúlio de alto bordo para quem começara humildemente como prático de farmácia.

Tudo isso me consolidou em convicção a suspeita de que Pânfilo era de fato um grande criminoso. Segurava as esposas e matava-as...
– Como, se morriam de parto?

– Está aí o maquiavelismo do celerado. O Barba Azul aproveitou singularmente bem a lição do primeiro matrimônio. Viu que perdera a Pequitita no primeiro parto em virtude de sua má conformação, da sua inaptidão procriativa. Franzina em excesso, muito estreita de bacia...

– Hum!

– Foi um hum! assim que deixei escapar em plena rua do Ouvidor...

O miserável, que tinha olho médico, só se casou daí por diante com mulheres de vício orgânico semelhante ao da primeira. Cuidadosamente escolhia as esposas entre as predestinadas. E foi amontoando a sua fortuna.

Imagina tu agora a vida desse miserável, sempre alternando a fase de tocaia da viuvez com um ano de casamento criminoso. Escolhia a vítima, representava a comédia do amor, sagrava a união e... seguro de vida!

Depois, imagina o sadismo dessa alma ao ver desenvolver-se no ventre da vítima, não o filho que ela docemente esperava, mas a bolada gorda que viria acrescentar aos seus cabedais! Afez-se a tal caçada e nela aperfeiçoou-se de maneira a nunca errar o bote.

A quarta, soube logo depois, fora pelo mesmo caminho das outras em seguida a uma nova intervenção cirúrgica. E entraram duzentos contos. Vês tu que monstro?...

No outro dia lá estava na mesma mesa o doutor Pânfilo. Entraram na sala várias moças, e pela força do hábito o seu olhar mortiço mediu num relance as ancas de cada uma. Bem- feitas de corpo que eram, nenhuma o interessou – e seu olhar desceu calmamente para o jornal que lia.

– Está viúvo – pensei comigo. – Anda evidentemente tocaiando a quinta malconformada…
Fonte:

Manoel Santos Neto (Universo Poético da Cidade de São Luís do Maranhão V)

Canção de Exílio

Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá;
As aves, que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.

Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores.

Em cismar, sozinho, à noite,
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
Minha terra tem primores,
Que tais não encontro eu cá;
Em cismar – sozinho, à noite –
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Não permita Deus que eu morra,
Sem que eu volte para lá;
Sem que desfrute os primores
Que não encontro por cá;
Sem qu’inda aviste as palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
(Coimbra, julho de 1843)
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|| LARGO DOS AMORES ||

A memória do amor e da humilhação do poeta maior

Antigo Largo dos Amores, depois Largo dos Remédios, a Praça Gonçalves Dias já foi o cenário de uma das festas religiosas mais importantes do Maranhão: a Festa dos Remédios, que é descrita no enredo de O Mulato, de Aluísio Azevedo (1857-1913), e na prosa de diversos cronistas, mas nenhum o fez de modo tão evocador e pitoresco como João Lisboa, observa Domingos Vieira Filho, no livro Breve História das Ruas de São Luís.

Nove anos após a morte de Gonçalves Dias, foi inaugurada a estátua do poeta, em 7 de setembro de 1873. Posteriormente, a Câmara Municipal de São Luís aprovou, em 1900, a Resolução nº 13, passando a denominar a parte norte do Largo dos Amores, de Praça Gonçalves Dias, e a parte oeste, de Praça dos Remédios.

Com a estátua de Gonçalves Dias (1823-1864) voltada para o mar, lá se tem uma das mais belas vistas de São Luís: por cima dos telhados e dos mirantes, o campanário inconfundível das velhas igrejas, sobressaindo as duas torres da Sé. Em redor, circundando a ilha, o mar. À esquerda, a ponte que liga a cidade velha à cidade nova, na Ponta de São Francisco. As ruínas do Forte da Ponta d’Areia. O encontro dos dois rios que banham São Luís. E sob o céu estriado de azul e rosa, o recorte triangular dos barcos e das igarités de pesca.

Há, no Largo dos Remédios, as palmeiras que ali foram plantadas em homenagem ao poeta que as celebrou na Canção do exílio e que, na hora do cair da tarde, agitam os leques verdes com a viração que sopra da Baía de São Marcos. Ao centro, a estátua de Gonçalves Dias, voltada para os baixios em que o poeta foi tragado pelas ondas em 1864, no naufrágio do Ville de Boulogne, que o trazia de volta da França.

A História do Maranhão conta que Gonçalves Dias, por ser mestiço e bastardo, foi vítima de um preconceito brutal. O poeta, amigo íntimo de Teófilo Leal, apaixonou-se por uma cunhada deste, Ana Amélia Ferreira Vale, e a pediu em casamento à dona Lourença Vale, mãe da moça. Já àquela época, Gonçalves Dias não era um homem qualquer; era o maior poeta do Brasil e amigo pessoal do Imperador. O Maranhão não tinha glória mais alta, mas nada disso teve o menor significado para dona Lourença, diante deste fato, de que Gonçalves Dias não tinha culpa: ser ele mestiço e filho bastardo. E respondeu ao poeta, numa carta seca, com um não redondo. Não dava a filha a um mestiço.

O infortúnio do poeta aparece numa das cenas capitais do romance Os tambores de São Luís, de Josué Montello, que sustenta a tese de que Gonçalves Dias, se quisesse, podia vir a São Luís, e levar Ana Amélia, que estava disposta a fugir com ele.

Mas não foi isso que ele fez. Humilhado, guardou a mágoa. E, ao chegar ao Rio, casou numa das mais importantes famílias da Corte. Ana Amélia, coitada, não perdoou a família. E quando Domingos Porto, que é também bastardo e mestiço, lhe arrastou a asa, não hesitou em casar com ele, amparada pela Justiça. O casamento dela, em São Luís, foi um deus-nos-acuda. Parecia que o mundo estava vindo abaixo. As amigas de dona Lourença passaram a andar de preto, solidárias com o luto fechado da família Vale. O pai da Ana Amélia, instigado por dona Lourença, foi ao cartório do Raimundo Belo e deserdou a filha, sob a alegação de que a moça tinha casado com o neto da negra Eméria, antiga escrava do coronel Antônio Furtado de Mendonça. Domingos Vale deserdou a filha, por escritura pública, apenas porque o genro, vice-presidente da Província e comandante da Guarda Nacional, é neto de uma escrava.

A família Vale não se deu por satisfeita. Fez mais. Decidiu levar Domingos Porto à ruína, na sua casa de comércio. De um dia para o outro, Domingos Porto se viu com todos os seus créditos cortados. Ninguém quis mais negociar com ele. O resultado foi a falência, tendo sido obrigado a sair do Maranhão às pressas, para não cair nas unhas de seus perseguidores. Nem o presidente da Província pôde fazer nada para ampará-lo. Só encontrou negativas. Era a cidade inteira contra um homem. E tudo isso porque Domingos Porto, que era um homem de primeira ordem, culto, educado, finíssimo, teve a desgraça de ser neto de uma escrava.

Por ocasião do I Centenário da morte de Gonçalves Dias, no ano de 1964, o escritor Mário Meireles (1915-2003) publicou o livro Gonçalves Dias e Ana Amélia, com o propósito de esclarecer controvérsias relacionadas ao grande amor do poeta maior. Nesta obra, o professor Mário Meireles chega à conclusão de que o casamento de Ana Amélia com o comerciante Domingos Porto foi uma deliberada represália ao matrimônio de Gonçalves Dias, a quem quis dar, então, uma vez que já era impossível insistir em qualquer esperança, a certeza cruel de que era muito capaz do que lhe propusera e tanto que o fazia com outro, a quem não amava, e como ele mestiço e bastardo! Ao mesmo tempo, desforrava-se da família, que a este outro também se opôs, e com muito mais fereza porque no caso nem laços de amizade existiam. Neste livro Mário Meireles sustenta a tese de que Ana Amélia casou-se com Domingos Porto por “capricho ofendido”. E é o romancista Josué Montello, com Os tambores de São Luís, quem retrata esse drama de forma magistral, traduzido pelo próprio poeta Gonçalves Dias, num de seus mais célebres poemas:

–––––––––-
Continua…

Fonte:
Suplemento Cultural e Literário JP Guesa Errante
Edição 119. 20 de janeiro de 2006

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 772)


Uma Trova de Ademar

Retratando sua história,
o pobre cigano cria
uma verdade ilusória
que ele mesmo fantasia!

–Ademar Macedo/RN–

Uma Trova Nacional


Lua, que vagas serena
na amplidão do azul celeste,
traz consolo à minha pena,
leva a dor que me trouxeste!

–Diamantino Ferreira/RJ–

Uma Trova Potiguar


A poesia que eu faço
é sua e de mais ninguém.
No todo eu sou o pedaço
que somente você tem.

–Heliodoro Morais/RN–

Uma Trova Premiada

2011 - CTS-Caicó/RN
Tema - PEGADA - 2º Lugar


Quando a chuva se derrama
na rua, guris sem nome,
mergulhando os pés na lama
deixam pegadas de fome.

–Adilson Maia/RJ–

...E Suas Trovas Ficaram


Dentro do próprio conceito,
sejam quais as consequências,
a justiça, por direito,
não permite reticências...

–Carolina A. de Castro/PE–

U m a P o e s i a


Eu vou subindo e descendo
sem rumo e sem direção
como cigano perdido
no meio da multidão,
limpando o suor do rosto
nos panos do matulão.

–Severino Feitosa/PE–

Soneto do Dia

EMOÇÃO.
–Antônio Roberto Fernandes/RJ–


Quando não há mais nada a ser falado,
quando os olhares não se cruzam mais,
é hora de se ver que há algo errado
nos relacionamentos conjugais.

Já não importa aí quem é culpado,
nada resolvem cenas passionais
nem simpatias contra o mau-olhado
ou conselheiros matrimoniais.

É o fim. Pronto. Acabou. Não tem mais jeito.
Se, de emoção, um dia ardeu o peito
que dela reste uma lembrança boa.

Não se deve é fechar-se numa esfera,
sem ver que pode estar à nossa espera
outra emoção no olhar de outra pessoa.

Euclides Riquetti (Entrevista e Poema: O Voo da Garça)

O professor Euclides Riquetti recebeu, no auditório do Praia de Palmas Beach Resort, em Governador Celso Ramos, na região da Grande Florianópolis, a Medalha do Mérito de Literatura professor Lauro Junckes e uma placa em sua homenagem pela conquista do 10º lugar no concurso nacional de poesias Prêmio Mário Carabajal.

O Tempo - Como foi isso?

Riquetti - Bem, Eu compus um poema denominado O Voo da Garça, em 1997, que já foi publicado em O Tempo – e ainda na capa do jornal O Balainho, da Unoesc, de Joaçaba. Quando tomei conhecimento do concurso, mesmo sabendo que ia concorrer com escritores habilidosos, apostei neste poema, pois acreditava que ele iria ficar entre os 100 primeiros colocados, que poderiam ser selecionados. Mas, sinceramente, sentia que ele tinha condições de ficar entre os dez melhores, e isso acabou acontecendo. É um poema que foge da linha convencional, em suma, é um poema diferente. Se eu fosse cantor, diria que seria minha "música de trabalho". Mas é apenas um poema, mas que tem seu valor, lá isso tem.

O Tempo - Há quanto tempo compõe?

Riquetti - Componho poemas desde minha adolescência. Lia muito e admirava Olavo Bilac, Álvares de Azevedo, Casimiro de Abreu e muitos outros, principalmente os românticos. Isso levou-me a optar pelo curso de Letras/Inglês. Estudei muito as Literaturas Portuguesa, Brasileira, Inglesa e Norteamericana. Na juventude, época de faculdade, lia pelo menos um romance em português e dois ou três em inglês por semana. Eu era fanático por literatura. Houve semana em que cheguei a ler cinco romances, de mais de 100 páginas cada um, em inglês. Admirava Júlio Verne, Charles Dickens, Camilo Castelo Branco, Shakespeare, Alexandre Herculano, Eça de Queiroz e outros grandes. Mas também li muitos brasileiros, de Machado de Assis a José de Alencar. Bem, isso significa que para compor é preciso conhecer. E, para conhecer, é preciso ler, mergulhar no maravilhoso mundo dos livros.

O Tempo - Tem poemas publicados?

Riquetti - Nunca fui muito dado publicar, embora contribuí com dois poemas no livro Primas, volume IV, da Coleção Vale do Iguaçu, em União da Vitória, Paraná, ainda em 1976. No ano passado emplaquei cinco poemas na coletânea "Santa Catarina Meu Amor". Há outras publicações em jornais, inclusive em O Tempo.

O Tempo - Pretende publicar livros?

Riquetti - Tenho poemas prontos para editar dois ou três livros. Mas, com o passar do tempo, vou ficando mais exigente comigo mesmo. Tenho algumas crônicas e tenho, praticamente, a História do Município de Ouro. Tenho, também, uma visão das questões dos limites à época do Contestado. Mas, História, é compromisso, você não pode sair aí escrevendo aquilo de que não tem comprovação, só porque alguém falou... Mas pretendo escrever uma história meio leve, não com cunho épico, nem demagógico...

O Tempo - Como foi receber uma homenagem lá em outra cidade?

Riquetti - Bem, recebi a medalha, das mãos do presidente da Academia de Letras de Santa Catarina, professor Miguel Simão, juntamente com outros cerca de 50 escritores presentes. Mas minha emoção maior foi ter recebido do Doutor Mário Carabajal a placa pela conquista do décimo lugar no concurso em homenagem a ele. Foi um concurso em que os dez primeiros colocados são das cidades de Itararé (SP), São Vicente (SP), Divinópolis (MG), Florianópolis (SC), Petrópolis (RJ), Rio de Janeiro (RJ), Belo Horizonte (MG), Pirapetinga (MG), Congonhal (MG) e Ouro (SC), no meu caso.

O Tempo - O que tem a dizer para outras pessoas que escrevem?

Riquetti - Vejo que há, em nossas cidades, muitas pessoas que escrevem anonimamente, e que não costumam, por alguma razão, expor o que escrevem. Mas temos pessoas, de todas as idades, que escrevem muito bem. Mas, também, há muitos publicando em jornal. A Internet é um meio barato de propagar a literatura. Tenho poesias, comentários e crônicas em meu blog na internet: www.blogdoriquetti.blogspot.com . Quem acessar, clica nos números que estão à sua direita e vai encontrar minhas postagens. E até podem postar comentários.
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O VOO DA GARÇA 

A garça voa o voo leve da alma
Voa a garça
Voa como a branca pluma, com graça
Voa a garça.

E no voo breve, voa lenta, calma
Voa com toda a graça a garça.

Voa o infinito, voa por instinto
Voa sobre o monte a garça...
E pousa na torre da igreja
Ou na árvore da praça
Voa pousa a garça.

E seu voo atrai o disperso
O menino, o esperto
O velhinho, o passante
E voa de novo a garça.

Vai, seguindo os trilhos dos raios de sol
Cortando o azul, a garça.

E pousa suavemente sobre a nuvem
Uma nuvem feita branco lençol...
E descansa outra vez a garça!

(A garça povoa os meus sonhos, orienta minha vida.
A garça é meu ser, é você, sou eu...
A garça é meu norte seguro, é minha inspiração...
É minha emoção transmitida no papel...
Euclides Riquetti)

Fonte
Jornal O Tempo