quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Santos Dumont (O Que Eu Vi, o Que Nós Veremos) Parte 6, final

Primeiro trataremos do Campo dos Afonsos. Há dois anos o Exército, creio que reconhecendo a pouca praticabilidade desse Campo, o abandonou........ O Aero Club ali instalou o seu Campo de Aviação. Convidado pela diretoria desse clube, há anos, para visitar e dar a minha opinião sobre o dito Campo, disse que o achava mais do que ruim: achava-o péssimo. Aconselhei que procurassem uma grande planície ou, melhor ainda seria, que o Club se ocupasse primeiro da aviação náutica, já que nos deu a natureza um aeródromo náutico único no mundo. O Aero Club não seguiu os meus conselhos.
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É grande a minha tristeza ao ler que o Governo vai de novo tomar posse desse terreno para ali instalar o campo central de aeronáutica!!! Os franceses tiveram a sorte de encontrar bons campos perto de Paris, porém, as vantagens de um campo ótimo são tão grandes que eles foram instalar os seus novos campos quase no extremo da França, em Pau, onde encontraram imensas "landes". Eu estou certo que, ao sul, nós devemos possuir planícies iguais às de Pau, onde se poderá trabalhar sem perigo, nem para o futuro aviador, nem para o aeroplano e onde o ensino será infinitamente mais rápido, graças a poder-se empregar "Pingouins" para o ensino dos principiantes.
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Um principiante, que se familiarize com um desses aparelhos, necessitará de poucas lições para voar. Nos Estados Unidos as escolas de aviação estão muito longe da capital; estão onde se encontram bons campos.

Quanto à Escola naval, eu creio que ela não está mal na Ilha das Enxadas.
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A minha opinião é, pois: para o Exército, a escolha de um vasto campo no sul do Brasil, ou mesmo o de Santa Cruz. Para a Marinha, creio que se deve escolher uma base, para os seus hidroaeroplanos, o mais perto possível da cidade do Rio, que é onde vivem os oficiais e alunos. Aproveito esta ocasião para fazer um apelo aos senhores dirigentes e representantes da Nação para que dêem asas ao Exército e à Marinha Nacional. Hoje, quando a aviação é reconhecida como uma das armas principais da guerra, quando cada nação européia possui dezenas de milhares de aparelhos, quando o Congresso Americano acaba de ordenar a construção de 22.000 destas máquinas e já está elaborando uma lei ordenando a construção de uma nova série, ainda maior; quando a Argentina e o Chile possuem uma esplêndida frota aérea de guerra, nós, aqui, não encaramos ainda esse problema com a tenção que ele merece!

Rio de Janeiro, 16 de novembro de 1917.
Santos-Dumont.

S. Exa. agradeceu-me e disse-me que, no futuro, se tivesse necessidade de meus conselhos, me preveniria.
* *

O parque de meus dirigíveis, que se achava em St. Cloud, media um décimo de quilômetro quadrado. Quando me lancei na aviação procurei um maior, que foi o de Bagatelle; tinha perto de um quilômetro quadrado. Logo após de meu vôo de 250 metros, vi que este campo era demasiado pequeno e fui instalar-me em Issy-les-Moulinaux, — mais de um quilômetro quadrado — porém, cercado de casas; vi os defeitos. Fui então para St. Cyr, campo militar de somente alguns quilômetros quadrados, porém, contíguo a grandes planícies.
* *

Vêem, portanto, que dou imensa importância a um campo de aviação; dele depende o êxito na formação de aviadores: sinto pois, que o Aero Club, do qual tenho a honra de ser Presidente Honorário, não tenha seguido os meus conselhos, de abandonar, há muitos anos, o Campo do Afonsos; sinto que ele não tenha se servido do hangar que construí na praia Vermelha, ao lado do mais lindo dos aeródromos — a Baía de Guanabara.

Sei que o Aero Club, vai, agora, abandonar os Afonsos.
* *

É tempo, talvez, de se instalar uma escola de verdade em um campo adequado. Não é difícil encontra-lo no Brasil. Nós possuímos, para isso, excelentes regiões, planas e extensas, favorecidas por ótimas condições atmosféricas. Antes de tudo, porém, é preciso romper com o nosso preconceito de medir por metros quadrados um campo de aviação e de procura-los nos arrabaldes das grandes cidades.

Em França diz-se que um campo tem tantas dezenas de quilômetros quadrados; em Inglaterra e Estados Unidos, fala-se em milhas quadradas; no Chile e Argentina, fala-se em léguas quadradas; aqui, neste imenso e privilegiado Brasil, fala-se em "metros quadrados". É preciso considerar, antes de tudo, que, mesmo na hipótese de um milhão de metros quadrados isto seria apenas um quilômetro quadrado, apenas 1/36 de uma légua quadrada! Um aeroplano moderno, que faça 200 quilômetros por hora, partindo do centro de um campo de tais dimensões, em menos de 9 segundos estaria fora do perímetro do aeródromo!

Fora do aeródromo, está em zona perigosa, principalmente para os principiantes.

Não falemos nas desvantagens de morarem os alunos longe dos campos. Eles precisam dormir próximo à escola, ainda que para isso seja necessário fazer instalações adequadas, porque a hora própria para lições é, reconhecidamente, ao clarear do dia.
* *

O nosso governo possui, a duas horas do Rio de Janeiro, o esplêndido e vasto campo de Santa Cruz, com perto de duas léguas quadradas, absolutamente planas.

 O terreno onde houver cupim ou outras irregularidades não servirá.

Margeando a linha da Central do Brasil, especialmente nas imediações de Mogi das Cruzes, avistam-se campos que me parecem bons.

O campo de remonta do exército, no Rio Grande do Sul, deve ser ideal.

Sinto-me perfeitamente à vontade para falar com esta franqueza aos meus patrícios, para quem a minha opinião, porém, parece menos valiosa que para os americanos do norte e chilenos. Sinto-me à vontade porque ela é inspirada pelo meu patriotismo, jamais posto em dúvida, e nunca pelo meu interesse. Nunca me seduziu uma posição oficial ou remunerada, pois pretendo levar a vida que até hoje levei, dedicando o meu tempo às minhas invenções.

Há vinte anos que vivo para a aeronáutica, nunca tive privilégios, fiz vôos sempre ao lado do meu atelier para, apenas, verificar uma invenção de que nunca procurei auferir benefícios.
* *

Penso que, sob todos os pontos de vista, é preferível trazer professores da Europa ou dos Estados Unidos, em vez de para lá enviar alunos.

Estou certo que os rapazes brasileiros que fossem ao estrangeiro aprender a arte da aviação, se fariam esplêndidos e corajosos aviadores. Entretanto, não nos esqueçamos de que nem todo aviador é bom professor. Para ensinar uma arte não é bastante conhecer-lhe a técnica, mas é preciso, também, saber ensina-la.

É possível que, dentre 4 ou 6 rapazes que forem estudar na Europa, se encontre um, bom professor; isto, porém não passa de uma probabilidade. Mais acertado e mais seguro, portanto, seria escolher, desde logo, alguns bons professores, entre os muitos que há na Europa e nos Estados Unidos, e contrata-los para ensinar a aviação aqui, em território nosso.
* *

Os aeroplanos devem ser encomendados às melhores casas européias ou americanas, cujos tipos já tenham sido consagrados pelas experiências na guerra.
* *

Resumindo, pois, penso que não teremos aviação de verdade, enquanto não possuirmos um grande campo, de léguas quadradas, ou mesmo um pequeno, de alguns quilômetros, rodeado, porém, de grandes planícies que, não obstante não pertençam à escola, ofereçam bom terreno para a descida do aparelho em caso de necessidade. Precisamos também de professores experimentados na arte de ensinar aviação e que morem, com os alunos, próximo à escola.
* *

Já me fizeram sentir que eu não voava mais e, entretanto, pretendo, ainda, dar conselhos. Não obstante, tenho-os dado com a máxima sinceridade e franqueza, certo de que aqueles que me ouvem se lembram de que eu não fui apenas aviador, mas que me foi necessário estudar, pensar, inventar, construir e só depois voar! Nos Estados Unidos, Wright, Curtiss, etc., foram aviadores precursores, já não voam há 10 anos e agora estão encarregados da organização e construção da aeronáutica. Em França, Bleriot, os Farman, os Morane, etc., foram aviadores precursores, não o são mais há muitos anos e também estão utilizados pelos seus governos para a construção e organização da navegação aérea. Clement, Delauney, Marquis de Dion, Renault, etc., foram todos "chauffeurs", porém, agora, são considerados os inventores do automobilismo e estão encarregados da sua construção e organização.

Estes senhores foram "chauffeurs" ou "aviadores", como eu também o fui. Não mais o sou, como também eles também não o são; mas, o dom de inventores, a aptidão de organizadores e de construtores e este conhecimento das necessidades da arte que eles inventaram e praticaram lhes ficou, e os seus governos os têm sabido aproveitar.
* *

O título de aviador que continuam a dar-me, sem que o mereça, há já dez anos — pois, a última vez que conduzi um aeroplano foi em 1908 — tem ainda, para mim, um outro lado desagradável, e é o de causar desapontamentos a amigos e admiradores nas cidades do interior por onde passo.

No primeiro dia, grande alegria; mas quando são prevenidos que não trouxe aeroplano e que não vou voar, há um grande desapontamento.

Cito um caso que se passou ultimamente. Chego a uma cidadezinha do interior e encontro um amigo e companheiro íntimo de colégio. Havia justos 30 anos que não nos víamos. Grande prazer dos dois por nos encontrarmos. Proponho passeios a pé ou a cavalo, durante os quais discorreríamos sobre os tempos antigos. O meu amigo opõe-se, pois já não está mais em idade de subir montanhas a pé, e mesmo já lhe é desagradável andar a cavalo! Nos nossos passeios, em "charrete", o meu amigo, que é muito espirituoso, fez-me rir contando anedotas da nossa infância; porém, a um momento dado, pára e diz: — Já rimos bastante; agora vamos falar sério: os habitantes da cidade e eu, estamos muito descontentes contigo; pois vens passar aqui alguns dias e não fazes um vôo! Que custa mandares um telegrama e fazer vir o teu "realejo"? Tocarias a manivela e nos mostrarias o que és capaz de fazer!

— Pois bem, caro amigo; você sente-se já cansado para fazer longos passeios a pé ou a cavalo; eu, que tenho a sua idade, com a diferença que levei a vida mais agitada que um homem pode levar, arrisquei-a centenas de vezes e via a morte de perto em várias ocasiões; pois bem, você acha que eu deva ainda praticar esse "sport", o mais difícil de todos e que exige nervos e sangue frio extraordinários?! Não! não é um "realejo", e é por termos nós, os que entramos na luta nos fins do século passado, reconhecido as dificuldades da aviação, a necessidade para o aviador de possuir esplêndidos nervos, desprezo completo e inconsciente pela vida, o que só se encontra na mocidade, e, também, este outro dom dos jovens: a ambição de glória e o entusiasmo, repito, foi por havermos reconhecido tudo isto e não nos encontrarmos mais nestas condições que deixamos de ser aviadores.

É, pois, uma grande homenagem que prestamos aos aviadores do presente.

O meu amigo, um pouco confuso, responde: — "A culpa não é nossa, tinham anunciado que o aviador Santos-Dumont estava na cidade..."
* *

Eu, para quem já passou o tempo de voar, quisera, entretanto, que a aviação fosse para os meus jovens patrícios um verdadeiro sport.

Meu mais intenso desejo é ver verdadeiras escolas de aviação no Brasil. Ver

o aeroplano — hoje poderosa arma de guerra, amanhã meio ótimo de transporte — percorrendo as nossas imensas regiões, povoando o nosso céu, para onde, primeiro, levantou os olhos o Padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão.

SANTOS=DUMONT

FIM

Fonte:
Universidade da Amazônia
NEAD – NÚCLEO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA
Belém – Pará
www.nead.unama.br

Paulo José Guarani Kaiowá Pajo (Convite para Lançamento do 8º Livro da AFL "Páginas Com Estrelas - Efemérides")

Sábado, 23 de fevereiro às 19:30 em Museu Municipal de Formiga

Fonte:

O Autor

Frederico Barbosa (Ciclos de Crítica, na Livraria Martins Fontes/SP)

Jardim Alheio, grupo de crítica literária apresenta:

FREDERICO BARBOSA
nos Ciclos de Crítica a partir do dia 11 de março, às 19h30
Livraria Martins Fontes - Av. Paulista, 509 (metrô Brigadeiro)

Dia 11 de março: Encontro e bate-papo com Frederico Barbosa, quando ele irá contar sobre sua obra, biografia, influências.

Dia 18 de março: Discussão sobre material pesquisado por nós sobre o autor, críticas publicadas sobre seu trabalho, e textos selecionados para serem lidos.

Dia 25 de março: Oficina de crítica, quando iremos discutir os textos de crítica de autoria dos participantes (que deverão ser enviados previamente, por e-mail).

Dia 1 de abril: Novamente teremos a presença do autor, para um diálogo sobre as críticas geradas no grupo, e para tirar dúvidas que possam surgir.

A entrada será franca, sendo necessária somente a inscrição, pelo e-mail:auditorio@martinsfontespaulista.com.br

Fonte:
http://concursos-literarios.blogspot.com
Imagem = http://www.janainabarroso.com.br

Programa Dramaturgias Urgentes (Concurso de Dramaturgia)

O programa Dramaturgias Urgentes segue realizando concurso de dramaturgia, encontros com pensadores e criadores teatrais, leituras dramáticas e mantendo um site que, além de funcionar como portal de inscrição dos textos, provoca debates com artigos exclusivos.

Segue a lista dos textos selecionados no quarto módulo do concurso de dramaturgia:

Ânima Selvagem –
Silvio dos Reis (Guaxupé/ MG)

Dificuldades nos relacionamentos sociais levam profissionais conceituados a formarem uma rede de proteção animal humanística. Como “sensíveis selvagens”, eles retiram córneas de malfeitores e oferecem visão a quem não enxergava. Carne de mortos desperdiçada em cemitérios e crematórios alimenta animais de rua e muda valores religiosos. É a violência do amor.

Mais um Texto sobre Violência às Vésperas do Próximo Filme do Tarantino –
Camila Damasceno (São Paulo/ SP)

Como escrever um texto sobre violência quando estamos vivendo em uma sociedade onde a violência está em todas as suas relações sociais? Quem são os autores? Quem são os personagens? Como nos comportamos nessa teia que nos envolve cotidianamente?

Por que o espanto? (Ou: É proibido atirar nas placas) –
José Carlos Aragão (Belo Horizonte/ MG)

Três excursionistas são levados por um guia para visitar um inusitado monumento em um lugar ermo. Durante o passeio discutem sobre a banalização da violência no nosso dia a dia.

Amargo Doce de Leite –
Rui Werneck de Capistrano (Curitiba/ PR)

Relações familiares inconclusas e estremecidas. Atrito entre menina-moça grávida e enteado que termina em tragédia. Convulsão social. Tragédia suburbana.

Assentado –
Elidia Novaes (São Paulo/ SP)

Ex-agente da ditadura militar muda-se para Cuiabá, fugindo de seu passado – mais afetivo do que político –, e passa a viver isolado. Convidado a aconselhar o MST na construção de uma ponte para um assentamento, demonstra interesse. Porém seu ódio aumenta a cada minuto até que um acontecimento traz tudo à tona.

Rebuliço –
José Augusto (São Paulo/ SP)

Uma inesperada situação dramática surge a partir de um evento do cotidiano urbano brasileiro, envolvendo meninos e homens de farda.

Para obter mais informações sobre o projeto, acesse:
https://www.facebook.com/DramaturgiasUrgentes

Fonte:
http://concursos-literarios.blogspot.com

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Thalma Tavares (Balada do Eterno Jovem)

"Começa a vida aos quarenta!"
- afirmam. Pois, se é verdade
(embora a idade não minta),
digo que são mais de trinta
os anos de minha idade.

Quero, então, ao ficar velho,
ser um velho sorridente
que enfrenta de alma atrevida
os atropelos que a vida
coloca na sua frente.

Que o bom Deus não me permita
ser um velho rabugento.
Mas, se for dura a velhice,
que nenhuma rabugice
me apague o contentamento.

Quero ser aquele idoso
que tudo a Deus agradece,
que passa os dias cantando
e vai a dor espantando
no fervor de sua prece.

Quero servir, como agora,
ao meu Deus e à minha gente.
E ao puxar meu velho arado,
mesmo sedento e cansado,
que eu olhe só para a frente.

Quero sonhar pela estrada
feito um menino, sozinho,
e voltar quando anoiteça
sem que ninguém me aborreça
dizendo: - "É tarde, avozinho!"

Mas se eu chegar aos noventa
sem bengala, sem escolta,
sem que me façam de tolo,
quero uma vela em meu bolo
e muitos velhos em volta.

E dos noventa em diante,
quando se expire o meu prazo,
que minha suprema hora
tenha a alegria da aurora,
nunca a tristeza do ocaso.

Fonte:
Poema enviado por Vicente Liles de Araujo Pereira

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia II)

AQUI ONDE SE ESPERA
 
Aqui onde se espera
- Sossego, só sossego -
Isso que outrora era,

Aqui onde, dormindo,
-Sossego, só sossego-
Se sente a noite vindo,

E nada importaria
-Sossego, só sossego-
Que fosse antes o dia,

Aqui, aqui estarei
-Sossego, só sossego -
Como no exílio um rei,

Gozando da ventura
- Sossego, só sossego -
De não ter a amargura

De reinar, mas guardando
- Sossego, só sossego -
O nome venerando...

Que mais quer quem descansa
- Sossego, só sossego -
Da dor e da esperança,

Que ter a negação
- Sossego, só sossego -
De todo o coração ?

AS HORAS PELA ALAMEDA
As horas pela alameda
Arrastam vestes de seda,

Vestes de seda sonhada
Pela alameda alongada

Sob o azular do luar...
E ouve-se no ar a expirar -

A expirar mas nunca expira -
Uma flauta que delira,

Que é mais a idéia de ouvi-la
Que ouvi-la quase tranqüila

Pelo ar a ondear e a ir...
Silêncio a tremeluzir...

AS MINHAS ANSIEDADES

As minhas ansiedades caem
Por uma escada abaixo.
Os meus desejos balouçam-se
Em meio de um jardim vertical.

Na Múmia a posição é absolutamente exata.

Música longínqua,
Música excessivamente longínqua,
Para que a Vida passe
E colher esqueça aos gestos.

ASSIM, SEM NADA FEITO E O POR FAZER

Assim, sem nada feito e o por fazer
Mal pensado, ou sonhado sem pensar,
Vejo os meus dias nulos decorrer,
E o cansaço de nada me aumentar.

Perdura, sim, como uma mocidade
Que a si mesma se sobrevive, a esperança,
Mas a mesma esperança o tédio invade,
E a mesma falsa mocidade cansa.

Tênue passar das horas sem proveito,
Leve correr dos dias sem ação,
Como a quem com saúde jaz no leito
Ou quem sempre se atrasa sem razão.

Vadio sem andar, meu ser inerte
Contempla-me, que esqueço de querer,
E a tarde exterior seu tédio verte
Sobre quem nada fez e nada quere.

Inútil vida, posta a um canto e ida
Sem que alguém nela fosse, nau sem mar,
Obra solentemente por ser lida,
Ah, deixem-se sonhar sem esperar!

AS TUAS MÃOS TERMINAM EM SEGREDO
As tuas mãos terminam em segredo.
Os teus olhos são negros e macios
Cristo na cruz os teus seios (?) esguios
E o teu perfil princesas no degredo...

Entre buxos e ao pé de bancos frios
Nas entrevistas alamedas, quedo
O vendo põe o seu arrastado medo
Saudoso o longes velas de navios.

Mas quando o mar subir na praia e for
Arrasar os castelos que na areia
As crianças deixaram, meu amor,

Será o haver cais num mar distante...
Pobre do rei pai das princesas feias
No seu castelo à rosa do Levante !

ÀS VEZES ENTRE A TORMENTA
Às vezes entre a tormenta,
quando já umedeceu,
raia uma nesga no céu,
com que a alma se alimenta.

E às vezes entre o torpor
que não é tormenta da alma,
raia uma espécie de calma
que não conhece o langor.

E, quer num quer noutro caso,
como o mal feito está feito,
restam os versos que deito,
vinho no copo do acaso.

Porque verdadeiramente
sentir é tão complicado
que só andando enganado
é que se crê que se sente.

Sofremos? Os versos pecam.
Mentimos? Os versos falham.
E tudo é chuvas que orvalham
folhas caídas que secam.

ATRAVESSA ESTA PAISAGEM O MEU SONHO

Atravessa esta paisagem o meu sonho dum porto infinito
E a cor das flores é transparente de as velas de grandes navios
Que largam do cais arrastando nas águas por sombra
Os vultos ao sol daquelas árvores antigas...

O porto que sonho é sombrio e pálido
E esta paisagem é cheia de sol deste lado...
Mas no meu espírito o sol deste dia é porto sombrio
E os navios que saem do porto são estas árvores ao sol...

Liberto em duplo, abandonei-me da paisagem abaixo...
O vulto do cais é a estrada nítida e calma
Que se levanta e se ergue como um muro,
E os navios passam por dentro dos troncos das árvores
Com uma horizontalidade vertical,
E deixam cair amarras na água pelas folhas uma a uma dentro...

Não sei quem me sonho...
Súbito toda a água do mar do porto é transparente
E vejo no fundo, como uma estampa enorme que lá estivesse
desdobrada,
Esta paisagem toda, renque de árvore, estrada a arder em aquele
porto,
E a sombra duma nau mais antiga que o porto que passa
Entre o meu sonho do porto e o meu ver esta paisagem
E chega ao pé de mim, e entra por mim dentro,
E passa para o outro lado da minha alma...

(?) AZUL OU VERDE OU ROXO

Azul, ou verde, ou roxo quando o sol
O doura falsamente de vermelho,
O mar é áspero (?), casual (?) ou mol(e),
É uma vez abismo e outra espelho.
Evoco porque sinto velho
O que em mim quereria mais que o mar
Já que nada ali há por desvendar.

Os grandes capitães e os marinheiros
Com que fizeram a navegação,
Jazem longínquos, lúgubres parceiros
Do nosso esquecimento e ingratidão.
Só o mar às vezes, quando são
Grandes as ondas e é deveras mar
Parece incertamente recordar.

Mas sonho... O mar é água, é água nua,
Serva do obscuro ímpeto distante
Que, como a poesia, vem da lua
Que uma vez o abate outra o levanta.
Mas, por mais que descante
Sobre a ignorância natural do mar,
Pressinto-o, vasante, a murmurar.

Quem sabe o que é a alma ? Quem conhece
Que alma há nas coisas que parecem mortas.
Quanto em terra ou em nada nunca esquece.
Quem sabe se no espaço vácuo há portas?
O sonho que me exortas
A meditar assim a voz do mar,
Ensina-me a saber-te meditar.

Capitães, contramestres - todos nautas
Da descoberta infiel de cada dia
Acaso vos chamou de igonotas flautas
A vaga e impossível melodia.
Acaso o vosso ouvido ouvia
Qualquer coisa do mar sem ser o mar
Sereias só de ouvir e não de achar?

Quem atrás de intérminos oceanos
Vos chamou à distância ou quem
Sabe que há nos corações humanos
Não só uma ânsia natural de bem
Mas, mais vaga, mais sutil também
Uma coisa que quer o som do mar
E o estar longe de tudo e não parar.

Se assim é e se vós e o mar imenso
Sois qualquer coisa, vós por o sentir
E o mar por o ser, disto que penso;
Se no fundo ignorado do existir
Há mais alma que a que pode vir
À tona vã de nós, como à do mar
Fazei-me livre, enfim , de o ignorar.

Dai-me uma alma transposta de argonauta,
Fazei que eu tenha, como o capitão
Ou o contramestre, ouvidos para a flauta
Que chama ao longe o nosso coração,
Fazei-me ouvir , como a um perdão,
Numa reminiscência de ensinar,
O antigo português que fala o mar!

BALADAS DE UMA OUTRA TERRA

Baladas de uma outra terra, aliadas
Às saudades das fadas, amadas por gnomos idos,
Retinem lívidas ainda aos ouvidos
Dos luares das altas noites aladas...
Pelos canais barcas erradas
Segredam-se rumos descridos...

E tresloucadas ou casadas com o som das baladas,
As fadas são belas e as estrelas
São delas... Ei-las alheadas...

E são fumos os rumos das barcas sonhadas,
Nos canais fatais iguais de erradas,
As barcas parcas das fadas,
Das fadas aladas e hiemais
E caladas...

Toadas afastadas, irreais, de baladas...
Ais...

BATE A LUZ NO CIMO...

Bate a luz no cimo
Da montanha, vê...
Sem querer eu cismo
Mas não sei em quê....

Não sei que perdi
Ou que não achei...
Vida que vivi,
Que mal eu a amei !...

Hoje quero tanto
Que o não posso ter,
De manhã há o pranto
E ao anoitecer...

Tomara eu ter jeito
Para ser feliz...
Como o mundo é estreito,
E o pouco que eu quis !

Vai morrendo a luz
No alto da montanha...
Como um rio a flux
A minha alma banha,

Mas não me acarinha,
Não me acalma nada...
Pobre criancinha
Perdida na estrada !...

BRILHA UMA VOZ NA NOUTE...
Brilha uma voz na noute
De dentro de Fora ouvi-a...
Ó Universo, eu sou-te...
Oh, o horror da alegria
Deste pavor, do archote
Se apagar, que me guia!

Cinzas de idéia e de nome
Em mim, e a voz:Ó mundo,
Sermente em ti eu sou-me...
Mero eco demim, me inundo
De ondas de negro lume
Em que pra Deus me afundo.

CANÇÃO

Silfos ou gnomos tocam?...
Roçam nos pinheirais
Sombras e bafos leves
De ritmos musicais.

Ondulam como em voltas
De estradas não sei onde
Ou como alguém que entre árvores
Ora se mostra ou esconde.

Forma longínqua e incerta
Do que eu nunca terei...
Mal oiço e quase choro.
Por que choro não sei.

Tão tênue melodia
Que mal sei se ela existe
Ou se é só o crepúsculo,
Os pinhais e eu estar triste.

Mas cessa, como uma brisa
Esquece a forma aos seus ais;
E agora não há mais música
Do que a dos pinheirais.

Fonte:
Fernando Pessoa. Cancioneiro.
Imagem formatada com sobreposição de figuras modificadas com imagens obtidas na internet, sem identificação do autor.

Marquesa de Alorna (Poesias Avulsas)

SONETO

Esperanças de um bem tão contigente,
Com que fim me andais sempre atormentando?
Se inútil é que eu viva suspirando,
Porque me não deixas viver contente?

Ora fingis distante, ora presente
O motivo do mal que estou chorando;
fingi-me, se podeis, ao menos quando
Hei-de viver feliz, sendo indiferente.

Se tanto vos aflige o meu sôssego
Que o pertubais por tão tirano,
Matai-me, que a morrer eu não me nego.

Mas se viva, o destino desumano
Me quere, fugi; que eu triste já me entrego
ao descarnado e duro desengano.

REDONDILHAS

Sózinha no bosque
Com meus pensamentos,
Calei as saudades,
Fiz trégua a tormentos.

Olhei para a lua,
Que as sombras rasgava,
Nas trémulas águas
Seus raios soltava.

Naquela torrente
Que vai despedida
Encontro assustada
A imagem da vida.

Do peito, em que as dores
Já iam cessar,
revoa a tristeza,
E torno a penar.

SONHO

Sonhos meus, suaves sonhos,
Sois melhores que a verdade;
quando sonho, sou ditosa,
Sem o ser na realidade.

Amor, tu vens nos meus sonhos
Acalmar-me o coração;
Mas, cruel! Quanto prometes
Não passa de uma ilusão!

Sonhei, tirano, esta noite,
Sonhei que tu me chamavas,
E que sobre a relva branda
Tu mesmo me acalentavas.

Disseste-me: "Dorme, Alcipe,
Depôe todos teus cuidados;
Amor sobre ti vigia,
Mal podes temer os fados."

Dormi: neste dobre sono
Me achei num palácio de ouro;
Entregaram-me uma chave
Para que abrisse um tesouro.

- "Chave mágica, sublime,
Que me vais tu descobrir?
Se é menos do que desejo,
será melhor não abrir. . ."

- "Abre, Alcipe - qual trovão
Brada o Deus que me vigia.
Acordei sobressaltada,
E abriu-se, mas foi o dia.

Fonte:
http://cantoepalavras.blogspot.com.br/2009/06/070-os-eternos-momentos-de-poetas-e.html
Imagem obtida no facebook do Espaço Das

Marquesa de Alorna (1750 – 1839)

D. Leonor de Almeida de Portugal Lorena e Lancastre "Alcipe"( filha do deus Ares, mitologia grega).

Batizada com este apelido, por Francisco Manuel do Nascimento, poeta. E "Mulher Extaordinária", por Alexandre Herculano.

Nasceu em 31 de outubro de 1750, em Lisboa, Portugal.

Quarta Marquesa de Alorna. O pai Marquês de Alorna, foi preso no forte de Junqueira, por imposição do Marquês de Pombal. A Marquesa de Alorna, tinha na época oito anos, e foi internada, com sua mãe, e a irmã, no Convento de São Felix, Chelas.

Falava o Francês, Inglês, Alemão . . .

Faleceu, em 11 de outubro de 1839.

Estilo Pré- Romantismo. . .

Arcádia Lusitana

Obras Poéticas de D. Leonor de Almeida: "Alcipe", 1844, (seis volumes), pós-morte.

Fonte:
http://cantoepalavras.blogspot.com.br/2009/06/070-os-eternos-momentos-de-poetas-e.html

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) 5. Todo o Mal Está Em Se Falar Demais)

O que vale deveras, deveras, nos indivíduos, não são as idéias, que mudam, que ondulam, que o menor sopro de interesse ou paixão modifica, é o fundo indefinível de bondade que neles exista. E esse fundo mesmo, e preciso que não se pretenda apurar com fúrias de análise! Não é senão um pouco menos mudável e incerto, neste perpétuo devenir em que tudo o que vive se resume num equilíbrio momentâneo e precário de elementos errantes e fluidos. Devemos crer nesse fundo, sem o examinar com insistente rigor. A nossa boa vontade o faz crescer. Acreditar que ele existe é corroborar-lhe a existência. A nossa fé transfunde-se no íntimo dos outros como uma levedura vivaz. E assim cada um de nós é um pouco criador; criador das mais doces coisas do mundo.

Os homens de bem são geralmente melhores do que a sua própria lógica faria supor. Há indivíduos excelentes que falam como cínicos ou malvados.

A palavra não foi dada a todos os homens para encobrir os seus pensamentos: foi dada à maior parte para encobrir a falta de pensamento. Felizes os que ainda têm pensamentos que encobrir! A maioria pensa à medida que fala. A necessidade de falar é que a obriga a pensar um pouco. E há pior: a necessidade de falar a obriga por vezes a dizer coisas que nunca teria pensado.

Era preciso falar muito menos. O silêncio seria a nossa melhor cura. E seria freqüentemente a melhor das satisfações que pudéssemos dar de nós, em nossa irremediável enfermidade.

No silêncio germinam as forças heróicas. No silêncio condensam-se as forças invencíveis. O silêncio é a túnica invisível e pesada das almas inquebrantáveis, sumidas na profundidade triste da sua clarividência e da sua piedade.

Silence and Secrecy! -palavra de Carlyle que devia ser a divisa das almas religiosas, isto é, das almas humanas.

Os amigos deviam estar juntos apenas para se sentirem viver um ao outro, mantendo entre si esses largos silêncios falantes que são o que há de mais expressivo na linguagem do amor. A linguagem do amor é uma brosladura vã de palavras sobre um fundo uniforme de sentimento. Para que sobrecarregar a brosladura? Para que arriscar desenhos supérfluos que podem comprometer irremediavelmente o tecido? A linguagem apropriada seria musical, a meia voz, lenta como um cantus planus envolvido pela melancolia suave que banha as felicidades efêmeras.

O mundo com todas as suas complicações miseráveis e a nossa personalidade mundana e aparente, com todas as suas pretensões, e imbecilidades, mistificações e parlapatices, deveriam desaparecer, como fumo varrido por um vento puro e purificador, diante do milagre de duas almas que de verdade se querem, - milagre! coisa incompreensível e estupefaciente, nesta raça de macacos famélicos e obscenos. E seria como se cada uma dissesse para a outra, sem dizer nada: "Eis-me aqui. Tal como sou, eis-me aqui: um pouco de lodo com duas asas. Amemo-nos, pelas nossas asas. Mas em silêncio, chut! em si-lên-ci-o... Basta o sopro de uma palavra vã para que essas asas se rompam como teias de aranha!

Etre méconnu memê par ceux qu'on aime, é est la coupe d'amertume et la croíx de la vie... escreveu Amiel com o seu sangue.

Dentro do silêncio, a compreensão mútua, despindo os incômodos véus da palavra exterior e dos conceitos ordinários, e mesmo da palavra interior, poderia assumir a forma serena de uma iluminação. De uma claridade difusa e divina. Para além da lógica tardígrada das magras aparências, das reflexões esterilizantes. - Poderia. Mas!...

Fonte:
Domínio Público

J. G. de Araújo Jorge ("Os Mais Belos Sonetos que o Amor Inspirou") Parte 21

Edgard Rezende
Sem indicações biográficas.

" ÊXTASE "


Se eu pudesse falar, eu te diria
entre outras coisas, que te adoro tanto,
que são teus olhos todo o meu encanto,
a beleza, o clarão do próprio dia;

que és no meu céu a nuvem de alegria
a força animadora do meu canto,
a luz que as minhas noites alumia,
o lenço que me enxuga o eterno pranto !

Se eu pudesse falar (vencido o medo
e, certo, nos teus olhos de veludo
lendo que para tal não era cedo)

muito mais te diria, talvez tudo:
- se não me transformasse num rochedo,
- se te fitando eu não ficasse mudo...
===========

Edison Moreira
(Édison Crisóstomo Moreira)
(São Francisco da Glória/MG, 1919)

" SONETO I "


Chega-me, às vezes, o pressentimento
de que em função de algum encontro existo,
e é para mim o encontro já previsto,
mais que um encontro: um reconhecimento.

Do promontório de mim mesmo assisto
na madrugada de outro nascimento,
aproximar-se alguém que reconquisto
pelo infinito mar do esquecimento

Eu venho pressentindo de era em era
que esse alguém que me busca e em cuja espera
a vida de meu ser se concentrou,

será na doce condição de esposa,
o retorno feliz de alguma cousa
que há milênios de mim se separou.

" SONETO II "

Bem sei que existes - rosa prometida
que na existência me completará.
Não prolongues a espera aborrecida,
se um dia tens de vir, que venhas já.

Na poesia, no luar, na luz, na vida;
no azul do céu, n'água do mar - sei lá! -  
aonde mais te busquei, desconhecida,
que a noite densa me iluminará..

Por que não vens? Meu coração te espera,
tenho sede de amor e de carinho  
e já partiu de novo a primavera.

Entra bem de mansinho à minha porta,
antes que meu amor pelo caminho
tombe esquecido como folha morta.

" SONETO IX "

O amor, quando tocado de amargura,
pela ausência do clima que o comporte,
desce ao fundo do ser e lá perdura
adormecido - mas intenso e forte.

Fecha em si tal reserva de ternura,
tal poder de renúncia, de tal sorte
que ao se evadir da vida que o enclausura
se expande, às vezes, para além da morte.

Malgrado a sua própria contingência
e a areia movediça da alma humana,
nos escuros subsolos da consciência

- como um veio sonoro e transparente,
ele - através do tempo - corre, mana
tranqüilo e oculto - mas eternamente…
================

Edson Pinheiro
Sem Dados Biográficos

" SONETO "
(composto com versos de 14 sonetos de Olavo Bilac)


Tinhas o coração ermo e fechado:
a teus pés como pássaro ferido,
passo a passo a seguir teu vulto amado,
assim por largo tempo andei perdido.

Hermann que cisma, pálido, embebido,
buscando a extinta chama do passado,
hoje quero em teus braços acolhido,
ter nos braços teu corpo delicado.

Inda hoje, o livro do passado abrindo,
aqui demore o olhar, vendo e medindo
o ermo de um bosque tenebroso e frio;

piedoso céu, que a minha dor sentiste!
Meu coração que palpitava triste
possa dormir sereno como o rio…
===============

Eduardo Nazareno
(Eduardo Pedro Nazareno de Souza)
(Niterói/RJ, 1880 )

" ASPIRAÇÃO "


Possa um dia cantar o teu passado,
como cantei, outrora, o teu futuro;
ver-te sempre através daquele puro
prisma por que te via no noivado.

Se pela vida incerta eu me aventuro
com ar assim tranqüilo e confiado,
é que por este excelso amor levado,
sinto o caminho agora mais seguro.

Esperanças me impelem para a frente,
ambições me conduzem na torrente,
por mim desfilam mágicas visões.

Mas tu ficas em todas as mudanças:
és a maior das minhas esperanças
é a mais pura das minhas ambições.
================

Elmo Elton
(Vitória/ES, 15 fevereiro 1925 – 24 janeiro 1988)

" VOSSAS MÃOS "


   Vossas mãos de alabastro, ágeis e puras,
são para mim objetos de respeito:
- delas, em prece, todo bem que aceito
concede á minha vida mais venturas.

Vossas mãos, - delicadas esculturas,
em nada mostram o menor defeito,
e, unidas, lembram um jasmim perfeito
sempre cheio de aromas e canduras...

Vendo-as assim, tão leves como um sonho,
temo beijá-las, pois até suponho
ser um crime cruel, - e sem perdão

macular, com a volúpia de meu beijo,
umas sagradas mãos que apenas vejo
voltadas para Deus, em oração...
==================

Elóra Possolo
(Rio de Janeiro,1905)

" PARASSE O TEMPO "


Parasse o tempo, as horas! Não andasse
o sol! E não houvesse oriente, poente.
E não morresse a flor que feliz nasce
e abre a corola ao dia, alegremente.

Não seguisse o seu curso, estacionasse
o rio. Fosse tudo permanente.
Parasse a terra! E sempre a mesma face
oferecesse ao sol, eternamente.

Parasse a vida, mas parasse agora
neste momento, em que - divina aurora –
o teu viril desejo impera e quer,

e em que eu, pequena coisa tremulante,
a este teu beijo sôfrego de amante
meu frágil corpo, entrego, de mulher!
=====================

Emilio Kemp
(Niterói/RJ, 9 outubro 1874 – Porto Alegre, 9 outubro 1955)

" ROMPIMENTO "


Já que é preciso haver um rompimento
acabe o nosso amor, acabe tudo...
E eu, perturbado, inconsolável, mudo,
retorne à solidão e ao sofrimento.

De mim não ouvirás nem um lamento
pois de sofrer, meu peito ficou mudo.
Nem um gemido, nem um ai! Contudo
te seguirá meu triste pensamento...

Que desgraçado que me vejo agora!
Quem me ampara? Quem esta mágoa sabe
acalmar? Quem me cura esta ferida?

Para teu próprio alívio, - ó alma, chora!
E assim, por entre lágrimas, acabe
o romance melhor da minha vida!
================

Enedina Chiesa Beltrame
(Santa Maria/RS, 19 maio 1922)

" CONFISSÃO "


Amo-te! Que bem que esta sinceridade me faz!
Poder dizer-te assim, que te amo!
Com que ternura penso sempre em ti,
com quanto amor o teu amor reclamo!

Vejo-te sempre! Estás no meu café, nos discos
que ouço, estás em toda parte onde estou
- tudo me fala de ti, tudo ao redor
de mim me faz lembrar-te!

O sol queima-me as faces - são teus beijos
que eu sinto, são teus braços, são teus olhos,
- me envolvem transbordantes de desejos!

Amo-te! Com violência e embriaguez,
com carinho, com ciúme, com volúpia,
amo-te, como se ama uma só vez!

" FEITIÇO "

O que me prende a ti é um sortilégio
um feitiço cruel que me atormenta,
é fragor de tambores que me excita,
é canção de ninar que me acalenta.

É uma força inaudita e poderosa
que me arrasta sem tréguas aos teus braço,
e transforma teu ser no paraíso
para onde convergem os meus passos.

Nem que eu queira esquecer-te, nem que eu queira
deixar de te querer, são para ti
as ilusões da minha vida inteira . . .

Hei de te amar, até quedar exangue,
de tal maneira estás na minha carne,
de tal maneira vives no meu sangue!

Fonte:
– J.G . de  Araujo Jorge . "Os Mais Belos Sonetos que o Amor Inspirou". 1a ed. 1963

Teatro de Ontem e de Hoje (Na Solidão nos Campos de Algodão)

Estréia, no Brasil, da peça de Bernard-Marie Koltès, encenada por Gilberto Gawronski, que encontra na economia de meios e na secura expressiva uma via de valorização do texto e da tensão dramática.

Em Na Solidão dos Campos de Algodão, o autor francês, como em outras obras, tematiza a solidão. Não há uma ação evidenciada - o texto é construído a partir de extensos monólogos e o conflito se estabelece até o final pela contraposição desses discursos que subentendem dois lados complementares de uma situação. São dois homens sem nome e sem referências passadas explícitas, que expõem, por meio da palavra, um jogo feito apenas de sugestões ao longo de cada monólogo. Tráfico de droga ou de sexo, o texto não explicita as motivações nem o local onde se dá o encontro.

As qualidades poéticas do texto são ressaltadas pela tradução de Jacqueline Laurence. Na montagem de Gilberto Gawronski, o cenário trata apenas de circunscrever o espaço e neutralizá-lo, enquanto que a iluminação cria áreas de sombra e favorece o clima ermo. Não há divisão entre palco e platéia. O espetáculo é encenado para poucos espectadores que se sentam sobre caixas espalhadas pela pequena sala, onde os dois personagens se encontram. O diretor consegue imprimir ação ao texto por meio da sugestão, estabelecendo este jogo de gato e rato, de compra e venda, trabalhado apenas na voz e na atitude, com quase nenhum deslocamento e economia de gestos. Segundo o crítico Macksen Luiz, a montagem "pulsa com a virulência de um enfrentamento, ao mesmo tempo que leva o espectador a um universo provocantemente poético" e "procura ser aliciante, quando a força dramática da peça não está naquilo que sugere ação, mas naquilo que encobre a falta de ação".1

Os dois atores trabalham em vias quase opostas. Ricardo Blat busca a interiorização e um tempo dramático emocional enquanto Gilberto Gawronski compõe uma figura socialmente nítida, com um humor ácido e uma tonicidade que sustentam o clima de tensão do espetáculo.

Notas
1. LUIZ, Macksen. A solidão pulsante. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 30  nov. 1996.

Fonte:
Enciclopédia Itaú Cultural

Danglei de Castro Pereira (Sousândrade: tradição e modernidade) Parte I

Resumo: O presente estudo procura contribuir para uma melhor compreensão do papel de Sousândrade dentro dos limites do Romantismo brasileiro. O artigo aponta para o fato de que sua poética não só perpetua o espírito libertário e revolucionário desse movimento, como também pode ser incluída em um Romantismo titânico. A partir desse romantismo racional, a poética de Sousândrade pode ser compreendida como precursora da modernidade.

1 Introdução

O propósito deste trabalho é estudar a presença de um olhar crítico em relação à tradição romântica na obra de Joaquim de Sousa Andrade ou como o próprio poeta se auto- intitulava, Sousândrade.

Selecionamos como corpus representativo da obra sousandradina fragmentos do poema O Guesa, em sua edição Fac-similar, organizada por Jomar de Morais, publicada no ano de 1979. A escolha se deu por acharmos que essa versão, sendo a última reedição de O Guesa, apresenta-se mais completa, oferecendo maiores possibilidades para o pleno desenvolvimento do trabalho.

Concordando com o posicionamento de Lobo (1986, p. 24), para quem o Romantismo teve um caráter “revolucionário e inovador – antes mesmo que o Modernismo preconizasse a deglutição do estrangeiro para sua reintegração na cultura nacional”, procuramos compreender esse movimento como ponto de partida para a Modernidade. Acreditamos que as antecipações à estética modernista encontradas na obra de Sousândrade – fato já apontado pela crítica do século XX[i] – estão intimamente relacionadas à racionalização imposta pelo poeta ao impulso emotivo primário do movimento romântico. Nossa hipótese é a de que o poeta maranhense, ao se apropriar da tradição romântica, o fez de maneira racional, tocando algumas características que ganhariam contornos definitivos com a arte do século XX.

O Romantismo brasileiro é visto aqui como um movimento amplamente heterogêneo, no qual podem ser percebidas duas vertentes principais: de um lado, uma vertente epigonal ou canônica, na qual prevalece uma visão conservadora marcadamente emotiva e extremamente dependente de modelos externos; de outro, uma vertente racional ou titânica, perpassada por uma maturação crítica e racional das características canônicas consagradas pela vertente epigonal e que, a nosso ver, pode ser percebida na poética de Sousândrade.

Como comenta Lobo (1986, p. 167), o “Romantismo tardio passou a apontar para novas soluções literárias, em busca de uma nova linguagem e um novo tipo de homem”. Esse “Romantismo tardio”, crivado de racionalidade, estaria na base do pensamento moderno. A partir desse prisma, centramos nossas considerações na modernidade de Sousândrade, entendendo-a como resultado de um olhar impregnado pelo Romantismo.

2 Romantismo: considerações preliminares

O Romantismo foi a expressão artística de uma sociedade em transição. O século XIX foi marcado por grandes mudanças sócio-econômicas como a Revolução Industrial, a Revolução Francesa, o crescimento e fortalecimento da classe operária, a transferência de grandes massas populacionais do campo para a cidade, além do fortalecimento e posterior ascensão da burguesia ao poder, que representaram uma mudança radical do comportamento do homem desse século.

Ocorre, assim, uma mudança de ordem social, e o Romantismo, como arte desse período, expressa as novidades e as agitações do “novo mundo”, expondo as expectativas e frustrações do conturbado homem do século XIX. Para Kal Mannheim (1959), o Romantismo foi a expressão dos sentimentos das camadas que ficaram à margem da sociedade. O artista romântico via, na arte, a concretização da “liberdade” materializada na rebeldia contra a estética vigente.

Sendo a expressão dos marginalizados, o movimento refletiria o desconforto do homem com seu meio, caracterizando o chamado “desajuste romântico”. Apresentando em seu âmago um profundo desapontamento com sua realidade, já que seus ímpetos eufóricos iniciais (concretização do ideário francês de Liberdade-Igualdade-Fraternidade) foram bruscamente interrompidos pelo aumento da pobreza e pela dificuldade de ascensão social na Europa do século XIX, o artista tenta, através da arte, expressar a possibilidade de mudança desse quadro degradante.

Diante desse quadro, o Romantismo expõe o desajuste do Eu com a realidade circundante. O sujeito nega a realidade para criar uma ilusão de equilíbrio. O mundo empírico não é suficiente para a expressão das aspirações do Eu; é preciso transfigurá-lo, transcendê-lo. Não podendo esse mundo ser alcançado na realidade empírica, o desejo de transcendência leva à transfiguração da realidade e, como conseqüência, a uma valorização da visão do Eu em relação ao mundo. “O mundo exterior nada é senão o mundo íntimo elevado a um estado secreto” (NOVALIS apud ROSENFELD, 1985, p. 158). Tem-se, então, o que Novalis denomina “transcendência romântica”.

Dessa forma, a transcendência configura-se como desejo de mudança, pois a perspectiva individual/subjetiva impõe a valorização da visão do Eu em relação ao “real’. O sujeito bifurca-se em duas possibilidades realizáveis: uma, centrada na realidade e outra, centrada na sublimação dessa realidade. Essas duas possibilidades complementam-se na esfera do Eu transcendente. Este, à medida que filtra a realidade, produz uma nova realidade através do olhar subjetivo sobre o mundo.

Centrado no traço subjetivo/individual, o movimento romântico, como representação de uma individualidade conflitante, torna-se complexo e escapa a uma definição exata e totalizadora, refletindo a inquietação do homem inserido no mundo. O romântico vive a contradição em seu grau máximo, pois, ao negar a realidade, nega a si próprio. Ao afirmar que seria necessário ter perdido todo o espírito de rigor para definir o Romantismo, Valéry (1999) já alertava para a dificuldade de uma delimitação exata da visão romântica. Segundo o crítico, é a totalidade complexa do movimento, imposta pelo olhar subjetivo/individual sobre o mundo, que dá a ele sua importância renovadora e o marca como ponto de influência sobre a arte moderna.

É justamente a complexidade do Romantismo que o leva a chocar-se com a linearidade objetiva e equilibrada da visão clássica. No lugar do equilíbrio clássico, surgiria no romântico a adoção do exótico, do mistério e de uma estética avessa à rigidez canônica. T S. Eliot (1989, p. 68), em comentário ao crítico John Middlteton Murry, observa que a diferença entre o clássico e o romântico está “entre o integral e o fragmentário, o adulto e o imaturo, a ordenação e o caos”. Para Rosenfeld (1993, p. 261), “o Romantismo é, antes de tudo, um movimento de oposição violenta ao Classicismo e à época da Ilustração”. O poeta romântico não quer pensar o mundo objetivamente, mas senti-lo em sua plenitude; a obra deve refletir aquilo que o Eu sente em relação ao mundo. Na busca por uma “pureza” expressiva, o artista romântico rebela-se contra a prisão imposta pela tradição clássica e, com isso, volta-se para o impulso emotivo, percebido como um mecanismo capaz de expressar os estados individuais em sua plenitude.

Permeada por uma rebeldia latente, tal postura proporciona ao movimento uma pluralidade expressiva, uma vez que o Eu muda sua perspectiva individual com o posicionamento do sujeito diante do mundo. Daí termos, nesse movimento, uma grande variedade de manifestações que lhe acabam outorgando uma enorme gama de possibilidades expressivas. Na Alemanha, por exemplo, o Romantismo deriva de um movimento surgido por volta de 1770, chamado “Strum und Drang” (tempestade e ímpeto) que, marcado por uma forte emotividade, teve uma atitude impulsiva em relação às características encontradas no discurso clássico.

Não obstante apresente afinidade com o “Strum und Drang”, o Romantismo alemão, propriamente dito, distingue-se dos “gênios impulsivos” no que se refere à irracionalidade impulsiva e à excessiva emotividade. Segundo Rosenfeld (1985, p. 154), o Romantismo na Alemanha “nada tem do titanismo fáustico dos gênios originais”, antes, busca a racionalização do ímpeto inicial dos Strümer do que sua perpetuação. Os artistas românticos alemães são racionais e tentam atingir o equilíbrio interior não pela pura emotividade, mas pela equalização racional desse elemento.

O poeta romântico alemão posiciona-se, assim, na interação racional com a sensibilidade emotiva. Dada essa tendência racional, a negação ao clássico, mais branda na vertente alemã, revela um fazer poético lúcido e consciente, valorizando, com isso, o trabalho estético como possibilidade de plasmar o impulso emotivo. Conhecida como Romantismo titânico, essa vertente racional do Romantismo alemão teve em Hölderlin um de seus maiores representantes.

Essas colocações vêm corroborar para a percepção da heterogeneidade imanente ao espírito romântico. Na Alemanha, por exemplo, os artistas procuram redefinir a realidade pela compreensão e interação e não pela simples emotividade. A esse respeito, Maurice Blanchot (1988) afirma que o Romantismo alemão teve um caráter político. Para esse autor, os alemães não querem negar a realidade, mas sim modificá-la por meio da interação do Eu com o mundo. Desejam, assim, retornar à situação de equilíbrio através da compreensão dos problemas que deterioram e corrompem os ímpetos positivos do homem. Para conseguir essa racionalização do ímpeto, os alemães buscam uma poesia emotiva trabalhada esteticamente.

Fonte:
Revista Linguagem em (Dis)curso, volume 4, número 2, jan./jun. 2004

Olivaldo Júnior (Água com Açúcar)

Segundo alguém,
sou um copo de água com açúcar.

Mas esse copo,
mas esse corpo,
sem se mover,
“amarga” o ser.

Segundo alguém,
sou um copo de água com açúcar.

Mas, sem afeto,
jamais me afeto.
Segundo alguém,
sou um copo de água com açúcar
cujo gosto d’água
está sem gosto.

Mas esse gosto,
mas esse rosto,
sem se gostar,
apaga o olhar.

Segundo alguém,
sou um copo de água cujo açúcar
quer toda a água
que não tem gosto
e não deságua.

Fonte:
O Autor

Ricardo Azevedo (Aquilo)

Quando aquilo apareceu na cidade, teve gente que levou um susto.

Teve gente que caiu na risada.

Teve gente que tremeu de medo.

E gente que achou uma delícia.

E gente arrancando os cabelos.

E gente soltando rojões.

E gente mordendo a língua, perdendo o sono, gritando viva, roendo as unhas, batendo palma, fugindo apavorada e ainda gente ficando muito, muito, muito feliz.

Uns tinham certeza de que aquilo não podia ser de jeito nenhum.

Outros também tinham certeza. Disseram: — Viva! Que bom! Até que enfim!

Muitos ficaram preocupados. Exigiram que aquilo fosse proibido. Garantiram que aquilo era impossível. Que aquilo era errado. Que aquilo podia ser muito perigoso.

Outros, tranqüilos, festejaram, deram risada, comemoraram e, abraçados, saíram pelas ruas, cantando e dançando felizes da vida.

Alguns, inconformados, resolveram perseguir aquilo. Disseram que aquilo não valia nada. Disseram que era preciso acabar logo com aquilo ou, pelo menos, pegar e mandar aquilo para bem longe.

Muitos defenderam e elogiaram aquilo. Juraram que aquilo era bom. Que aquilo ia ser melhor para todos. Que esperavam aquilo faz tempo.

Que aquilo era importante, bonito e precioso.

Alguém decidiu acabar com aquilo de qualquer jeito.

Mas outro alguém disse não! E foi correndo esconder aquilo devagarinho no fundo do coração.

Caro leitor: aquilo pode ser muitas coisas.

Se sentir vontade, pegue um lápis e uma folha de papel e escreva sobre aquilo: diga, em sua opinião e em seu sentimento, o que é aquilo, como é aquilo, o que aquilo faz, de onde aquilo veio, para onde aquilo vai e que sentido, afinal, aquilo tem. Se quiser, desenhe aquilo também.

Fonte:
Revista Nova Escola: Contos

Soares de Passos (A Vida)

A meu irmão

Que! lutar sempre em afanosa guerra
Contra os rigores dum feroz destino!
A cada passo lacerar as plantas
Nesta agra senda que nomeiam vida!
Correr após um sonho, uma esperança
Que leda nos sorria, a vê-la ao cabo
Sumir-se, desfazer-se como o fumo!
Ou, se tocamos o vedado pomo,
Arrojá-lo de nós, murcho e vazio!
Alcançar por um bem, mil dissabores!
Por uma hora de gozo, mil de prantos!
Sofrer, sempre sofrer, não vir um dia
Em que possamos exclamar: ventura!
E é este o cálice de aprazível néctar
Que ao banquete do mundo nos convida?
É este o éden que nos prende os olhos,
E nos faz recuar ante o sepulcro?

Nascemos: com que pena à luz do dia
Surgimos logo do materno seio,
Filhos da dor, obedecendo à origem,
Nos vagidos da infância a anunciamos:
E ainda assim no deslizar sereno
Dos dias infantis, a vida encanta;
A taça da existência tem doçura,
Como se o mel lhe coroasse a borda
Para mais fácil nos tentar os lábios.
O horizonte dos anos se dilata;
Vem a idade do amor. Que belos sonhos
Em mágico painel a vista iludem!
Um ser, que a mente em chama nos diviniza,
Nosso oásis feliz anima todo,
Bem como o sol anima toda a natureza,
Ou a rosa do vale os flóreos prados.
Mas quantos podem na manhã da vida
Colher a rosa de seu mago enlevo?
Quantos a estrela que adoraram crentes
Sentem passar, e desfazer-se em breve,
Não luzeiro do céu, porém da terra,
Meteoro fugaz que baixa ao solo,
E se dissipa, redobrando a noite!

As ilusões do amor se desvanecem:
Desse mundo feliz o homem baqueia
E devorando a mágoa segue avante.
Prometeu afanoso ei-lo procura
Dar alma e vida ás criações que inventa,
Ai! já não belas, mas de impura argila.
Honras, glórias, poder, bens de fortuna,
Ciência austera, festivais prazeres,
A tudo se abalança, aspira a tudo,
E em tudo encontra desenganos sempre,
Ao ponto que fitara jamais chega,
Ou, se o alcança, não lhe dura o gozo.
Ai do que envolto em miserandas faixas,
Embalada sentiu a pobre infância
Cos gemidos da fome! Esse à ventura
Quase nem ousa levantar os olhos:
Perpétuo desalento lhos abate
À triste condição em que nascera.
Planta gerada num terreno estéril,
Não se ergue altiva, não estende os ramos,
Vive entre espinhos, e entre espinhos morre.
Em vão se cansa o triste: raras vezes
A dura terra lhe concede o prémio
Do suor e das lágrimas que verte
No seio ingrato dessa mãe ferina
Um pão acerbo que amassou com pranto,
É o alimento que reparte aos filhos;
E o marco do caminho à cabeceira
Onde desprende o moribundo alento.
Ai dele! mas não menos desditoso
O que em púrpuras e ouro vendo o dia,
Ou conduzido pela mão da sorte,
Chegou ao cumes que a fortuna habita;
E, na posse dos bens que o mundo anseia,
Palpou tremendo seu medonho nada.
Este empunhando o cetro, empalidece,
Sentindo às plantas vacilar-lhe o sólio;
No fastígio da glória aquele geme,
Ao ver o louro que lhe cinge a frente
Pelo bafo da inveja emurchecido.
Um as honras consegue, e as vê sem preço;
Outro as riquezas, e lamenta os dias
Que mais belos perdeu em seu alcance.
Qual, a ciência devassando ousado,
Após longas vigílias estremece
Da dúvida ante o espectro; qual ardente
Das festas no rumor despende a vida,
E a taça do prazer lhe deixa o enfado.

Feliz aquele que em modesta lida,
Isento da ambição e da miséria,
No regaço do amor e da virtude
A vida passa. Mas feliz ainda
Se, das turbas ruidosas afastado,
À sombra do carvalho, entre os que adora,
Sente a existência deslizar tranquila.
Como as águas serenas do ribeiro
Que as herdades pacíficas lhe banha.
Mas, que digo! nem esse. Infindos males
Comuns a todos, seu viver não poupam,
Dum lado a crua guerra lhe sacode
O facho assolador às brandas messes;

A pálida doença, doutro lado,
Dos entes que mais ama o vai privando;
E ele mesmo talvez, infausta presa
Dessa serpente que nos liga à morte,
Nos ecúleos da dor a vida exaure.
E, como se estes males não bastaram,
Sua mesma virtude lhe é suplício.
Compassivo coa dor que os outros sofrem,
A dor alheia o atormenta ainda.
Justo, adora a justiça; e, olhando em torno,
A injustiça e opressão verá reinando;
Verá a inocência vítima do crime,
A virtude humilhada, o vício altivo,
Os prantos da miséria escarnecidos,
Por toda a parte o mal, a dor; e as queixas,
Ai dele, ai dele, se um momento pára
Na atroz contemplação de tantos males!
Ai dele, que turbado e confundido,
Em maldições blasfemará terrível
Da virtude, de si, de Deus, de tudo!

Não! da vida no pélago agitado
Um abrigo não há, não há um porto
Onde possamos descansar tranquilos.
Em nós, dentro em nós mesmos, ruge irada
A tempestade que evitar queremos.
Como a serpente no cristal da linfa,
Na alma serena o sofrimento mora;
Não pode o gozo dos mais belos dias
Encher o abismo que no seio temos.
Em vão, em vão ansiamos a ventura:
Sumos na terra qual viajante exausto
Que ouve o sussurro d'escondida fonte,
E morre à sede sem poder tocá-la.

Vida, tremenda herança d'amarguras,
Eu te hei sondado nos meus próprios males,
E em meus irmãos na dor, nos homens todos:
Grilhão pesado que nos dá o berço,
E que depomos nos umbrais da tumba
A luta, a mágoa, eis os teus dons funestos.
Mas donde a causa do sofrer eterno
Que as gerações às gerações transmitem?
Que um século, tombando de cansaço,
Como um peso importuno lega ao outro?
Donde o crime feroz que um tal castigo
Sobre nós atraiu? Se um Deus é justo,
Que deus, que lei, sem escutar-nos, pôde
A sentença lavrar? Silêncio é tudo!
Em vão, para sabê-lo, em vão mil vezes
Interroguei confuso o céu e a terra:
O céu de bronze não me ouviu a prece,
A terra obscura não me soube o enigma.
Dos profetas na voz, na voz dos sábios,
A dúvida cruel achei somente.
Pedindo à morte a solução da vida,
Desci às tumbas; apalpei as cinzas;
Quis ver se um eco da gelada campa
Surgirá à minha voz; mas foi debalde.
Frias ossadas, carcomidos restos
De quem sofreu também, só me disseram
Que tudo acaba ali. A terra, a terra,
O seio impuro dos famintos vermes:
Eis o refúgio, a habitação amiga
Que após a luta nos espera ao cabo!

Morte, morte, bem vinda sejas sempre,
Em nome da existência eu te saúdo!
Tu reinas pela dor na espécie humana,
E, quem sabe? talvez nesse universo;
O sol, o mesmo sol envolto nas sombras,
Parece reflectir-te as negras asas;
E acaso à tua voz, a cada instante,
Um cometa voraz fulmina um globo.
Por que inda tardas a empunhar o ceptro
Que neste ao menos te pertence há muito?
Ao desterrado do éden por que deixas
O resto do poder que inda te usurpa?
Eia, desprende sobre a terra as asas,
Sobre esta criação, que abandonada
Talvez por seu autor como imperfeita,
Qual nau perdida em tormentosos mares,
Vaga sem rumo nesse espaço etéreo!

Mas que sinistra voz! Silêncio, ó lira!
Não mais prossigas teu cantar blasfemo!
Fanal de salvamento, luz d'esp'rança,
Que na altura do Gólgota brilhaste,
Desce à minha alma que a tristeza inunda!
Desce! de todos resumindo as dores
O cálice d'Ele foi o mais acerba.
Ele sofreu! Soframos, e esperemos!
Depois da noite escura vem o dia:
Depois deste desterro, a eterna pátria!

Fonte:
Poesias de Soares de Passos. 1858 (1ª ed. em 1856). http://groups.google.com/group/digitalsource

Santos Dumont (O Que Eu Vi, o Que Nós Veremos) Parte 5

Melhorado pelas necessidades e exigências da guerra, o aeroplano — desviado dos fins destruidores — provará o seu incalculável valor como instrumento dos objetivos úteis da raça humana. No momento atual é bem possível que qualquer dos atuais grandes aparelhos possa fazer viagens de Nova York a Valparaíso, ou de Washington ao Rio de Janeiro. Um ponto de abastecimento de combustível poderia ser facilmente instalado em cada 600 milhas de percurso.
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A principal dificuldade para a navegação aérea está no progresso precário dos motores. Francamente, o motor atual ainda não atingiu o que deveria ser. O aeroplano em si desenvolveu-se mais rapidamente que o motor.

Penso, entretanto, que, em breve, o motor do aeroplano se aperfeiçoará a tal ponto que não terá maiores imperfeições que os dos melhores e mais perfeitos automóveis, hoje fabricados.

Atualmente, um motor de aeroplano precisa ser relativamente leve e, ao mesmo tempo, resistente a grande trabalho contínuo.

Já o aço tem sido melhorado e tornado mais resistente por processos especiais; ninguém sabe até que ponto poderíamos continuar a melhora-lo ainda. Se inventores como Edison, Tesla, Henry Wise Wood, Spery, e Curtis, etc., dedicassem sua energia a este assunto, estou convencido que em pouco tempo teríamos um motor perfeitamente satisfatório.

Outra dificuldade, que se apresenta à navegação aérea, é a de localizar-se o aeroplano. É agora impossível o uso do sextante nos ares.

Creio que um horizonte artificial, produzido por meio de um espelho, mantido em posição horizontal por um giroscópio, resolverá este problema. Com a aplicação do giroscópio os cientistas têm conseguido resultados maravilhosos. Não somente um aeroplano pode ser hoje mantido em equilíbrio, por meio de um giroscópio, como um grande vapor.
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Com o motor aperfeiçoado e meios precisos de guiar seu curso, o aeroplano está certamente predestinado a figurar como um dos fatores mais importantes no desenvolvimento do comércio e na aproximação das nações que se acham separadas pelas grandes distâncias.

Os países onde faltaram as boas estradas de rodagem foram, creio, os primeiros a adotar as estradas de ferro.
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Nos países novos da América do Sul, não há abundância de estradas de ferro.

Há cidades a tal altitude que a estrada de ferro dificilmente as poderia atingir, e é a essas cidades que o aeroplano levará a civilização e o progresso.
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Prevejo uma época em que se farão carreira regulares de aeroplano, entre cidades sul-americanas, e também não me surpreenderá se em poucos anos houver linhas de aeroplanos funcionando entre as cidades dos Estados Unidos e a América do Sul.
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Além das vantagens provenientes da aproximação dos países sul-americanos entre si e com os Estados Unidos, há ainda um ponto para o qual chamo vossa atenção. Todos os países europeus são velhos inimigos e aqui no Novo Mundo devemos ser todos amigos. Devemos estar habilitados a intimidar qualquer potência européia que pretenda guerra contra um de nós, não pelos canhões, dos quais temos tão pequeno número, mas sim pela força da nossa união. No caso de uma guerra contra uma potência européia nem os Estados Unidos, nem, tampouco, qualquer dos maiores países sul-americanos, nas atuais condições, poderia convenientemente proteger suas extensas costas. Seria irrealizável a proteção das costas brasileira e argentina por uma esquadra.

Unicamente uma esquadra de grandes aeroplanos, voado a 200 quilômetros por hora, poderia patrulhar estas longas costas... Aeroplanos de reconhecimento poderão descobrir a aproximação da esquadra hostil e prevenir os seus navios de guerra para a luta.
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Estarei eu falando de coisas irrealizáveis?

Lembrai-vos de que há dez anos ninguém me tomou a sério. Agora temos ocasião de observar o que tem feito o aeroplano na Europa, fazendo reconhecimentos, dirigindo batalhas, movimento de tropas, atacando o inimigo e defendendo as costas.
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A falta de comunicação nos antigos tempos foi a origem básica de uma Europa desunida e em guerra.

Esperemos que a navegação aérea traga a união permanente e a amizade entre as Américas.
* *

Aqui acabo de expor, em resumo, o que eu disse na minha conferência de Washington, e não tenho razão de desdizer-me. Pelo contrário, cada vez mais, creio maior e mais próximo o futuro da navegação aérea. As revistas especiais que recebo falam constantemente do problema da travessia do Atlântico. Podemos pois dizer que a idéia está no "ar"; é pois uma questão talvez de meses e, então, saberemos que um aeroplano partido do Novo Mundo foi ter ao Velho em talvez um dia! Colombo para fazer a viagem em sentido inverso levou 70. Saberemos também que 3 ou 4 audaciosos que pilotavam essa máquina, sofreram muito do frio, da chuva, etc., porém, cara leitor, tenhamos um pouco de paciência; em breve existirão transatlânticos aéreos com quartos de dormir, salão e também, o que é muito importante, governados automaticamente por giroscópios e acionados por vários motores com um grande excedente de força, para o fim de, em caso de avaria em um deles, serem os outros bastante poderosos para manter o vôo do aparelho.

Um pouco de paciência!

Quem ler o n.º 1 de "Je sais tout", 1905, verá que em meu artigo publicado nesse número eu dizia: "La guerre de l'avenir se fera au moyen de croiseurs aériens rapides se tenant à d'inaccessibles hauteurs, et bombardant à leur guise les forts, les armées et les vaisseaux". Este artigo foi ridicularizado por alguns militares.

Haverá hoje, talvez, quem ridicularize minhas predições sobre o futuro comercial dos aeroplanos. Quem viver, porém, verá.
* *

Esta minha conferência de Washington foi bem aceita e eu creio que uma das provas está em me ter o Aero Club da América, logo após ela, convidado para representa-lo no Congresso Pan-Americano de Aeronáutica, que se ia reunir no Chile. Aceitei esta honra e parti disposto a tudo encontrar no Chile: tinha conhecido em Paris a sociedade chilena e a sabia a mais amável do mundo; tinha ouvido falar nas belezas naturais do Chile, ia pois vê-las. Ia ver os Andes, ia ver muita coisa, tudo, menos aeroplanos. Era a minha expectativa. Faça, pois, o leitor idéia do meu espanto quando logo ao meu desembarque e em uma festa que organizaram em minha homenagem, voaram mais de 12 aparelhos e os mesmos aparelhos com aviadores diferentes!! Chegando a Santiago fui visitar o campo de aviação do exército, esplendidamente bem escolhido. À minha vista, os oficiais aviadores voavam e pousavam com a maior perícia. O meu espanto ainda foi maior quando me mostraram as usinas de construção, propriedade do exército e que são contíguas ao campo!!

Parecia que eu estava de novo nos arrabaldes de Paris!! Um dos oficiais presentes, com a maior naturalidade do mundo, convida-me para voarmos até Valparaíso, que se achava a 150 quilômetros e, para ir lá, era necessário passar por cima de parte dos Andes; aceito, e hora e meia depois lá estávamos!

O trabalho, a perícia, a capacidade e o sucesso destes nossos amigos do Pacífico só é excedida pela sua modéstia, pois é verdade, não perderam momento de me pedir conselhos, ora sobre hidroaviões; quando nas usinas, sobre material, madeiras nacionais, possibilidades de aperfeiçoamentos, etc. Querem aperfeiçoar-se e deram-me a honra de acreditar-me um especialista na arte.

De lá passei à Argentina, onde de novo encontrei um grande entusiasmo pela aeronáutica e também um grande resultado obtido; aí, porém, a aviação é muito facilitada pela topografia do país. Não sei o número de pilotos que há ali, mas é o que há de mais comum encontrar moços da alta sociedade que tem carta de piloto.
* *

Devo aqui fazer um elogio aos nossos amigos do Prata que, podendo encontrar facilmente um bom terreno para aeródromo, a 10 minutos de Buenos Aires, o foram escolher a algumas horas da cidade, para o terem ótimo, obrigando os oficiais e discípulos a lá viver e estar de pé ao nascer do sol, que é a hora das aulas!

Lá vi também um curso para oficiais observadores!
* *
Houve, entre os aeronautas argentinos e chilenos, uma rivalidade esportiva, em que se empenhavam para ver quem primeiro atravessaria os Andes. Era uma prova difícil, de cuja realização muitas honras viriam para a aeronáutica sul-americana.

Dois argentinos, os Srs. Bradley e Zuloaga, conseguiram fazer essa travessia.

Partidário que sempre fui da aproximação do Brasil e da Argentina e, seguro de interpretar os sentimentos dos meus patrícios, saudei-os em nome dos brasileiros, por ocasião da sua chegada a Buenos Aires, vindos do Chile pelo caminho dos ares.

Desse discurso aqui transcrevo algumas frases em homenagem a esse arrojado empreendimento daqueles dois filhos do povo amigo:

Bradley, Zuloaga:

Yo os saludo:

Para vosotros, que ayer fruisteis saludados por los condores, mi saludo es insignificante.
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Hoy, al cruzar los mares, pensamos en Colon... Mañana, los navegantes del espacio, al cruzar los Andes, recordaran los nombres de San Martin, Bradley y Zuloaga y diran: "Por aquí, dos veces, los argentinos passaron los primeros".
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En su "leyenda de los Siglos" Victor Hugo dice: "Car, devant un héros, la mort est la moins forte."

Vosotros habeis probado que el poeta tenia razon. Bravo!

Yo puedo assegurar os que veinte millones de corazones brasileños os han aplaudido.

Grande interesse, pois, no Chile e Argentina; nos Estados Unidos esse interesse chega quase ao delírio.

* *

Depois de ter visto o interesse extraordinário que tomam pela aeronáutica todos os países que percorri, e vendo o desprezo absoluto com que a encaravam entre nós, falou mais alto que minha timidez o meu patriotismo revoltado e, por duas vezes, me dirigi ao Sr. Presidente da República.

Há dois anos, fiz ver a S. Exa. o perigo que havia em não termos, nem no Exército, nem na Marinha, um corpo de aviadores. Há um ano, escrevi uma crítica e apresentei um exemplo a S. Exa.

Nestas notas, eu assim dizia: Leio que o governo vai, de novo, tomar posse do Campo dos Afonsos, onde será instalada a Escola Central de Aviação do Exército, e que a Marinha vai transportar para a Ilha do Governador a sua escola.

continua…

Fonte:
Universidade da Amazônia
NEAD – NÚCLEO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA
Belém – Pará
www.nead.unama.br

Apelo da Biblioteca Comunitária de Itu (Pode Acabar. Mas Não Deveria)

Somos a realização de um sonho em uma cidade com poucas alternativas de cultura, manifestação artística e educação não formal. Somos uma iniciativa popular construída com a ajuda de toda comunidade, gerida e organizada por uma rede de voluntárias/os desde 2008.

Uma grande campanha de doação de livros construiu todo o nosso acervo, hoje com mais de 15 mil itens, desencadeando uma rede de outras iniciativas em Porto Feliz, Salto e a do bairro São Judas também em Itu.

Nós somos um espaço de cultura e debate (eleitos pelo Ministério da Cultura como ponto de Leitura) até então não visto na cidade, com realização de sarais, exibições do cineclube, oficinas de grafite, fanzine, várias festas culturais, com ampla participação de jovens, famílias, estudantes e turistas. Hoje, temos mais de 600 usuários cadastrados em nosso sistema, além dos assíduos frequentadores.

Infelizmente, nossa casa sede foi vendida. Nossos livros, fanzines, dvds, jornais, estão todos sendo encaixotados, para serem levados à um local que ainda precisa ser construído e, assim, possa abrigar tudo que já construímos até hoje.

Queremos continuar a ser um espaço alternativo para a população da cidade. Queremos que a falta de dinheiro e local não seja um empecilho ao nosso funcionamento, pois o mais importante já temos: braços e sonhos. Dessa forma, pedimos à todos/as que contribuam doando tempo, materiais de construção ou dinheiro para que possamos reformar a nossa futura sede.

Diante de 5 anos de existência – e resistência – temos a certeza de que não queremos parar. Nossa vontade é compartilhar as experiências e alegrias que sempre transbordaram da Biblioteca. Precisamos de um espaço para que continuemos construindo, através da leitura, arte, cultura, 'um mundo onde caibam vários mundos', incluindo o seu. Vamos construí-lo juntas/os?

Saiba como ajudar enviando um e-mail para ajude@comunateca.com.br

PONTO DE LEITURA
BIBLIOTECA COMUNITÁRIA PROF. WALDIR DE SOUZA LIMA
Rua Floriano Peixoto, 238, Centro, Itu.SP
CEP: 13300-005

Contatos: (11) 8110.3598 (seg à sex) ou (11) 2429.2619 (sáb)
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www.bibliotecacomunitaria.wordpress.com

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia I)

ABAT-JOUR

A lâmpada acesa
(Outrem a acendeu)
Baixa uma beleza

Sobre o chão que é meu.
No quarto deserto
Salvo o meu sonhar,
Faz no chão incerto
Um círculo a ondear.

E entre a sombra e a luz
Que oscila no chão
Meu sonho conduz
Minha inatenção.

Bem sei ... Era dia
E longe de aqui...
Quanto me sorria
O que nunca vi!

E no quarto silente
Com a luz a ondear
Deixei vagamente
Até de sonhar...

ABDICAÇÃO

Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços
E chama-me teu filho.
Eu sou um rei
que voluntariamente abandonei
O meu trono de sonhos e cansaços.

Minha espada, pesada a braços lassos,
Em mão viris e calmas entreguei;
E meu cetro e coroa — eu os deixei
Na antecâmara, feitos em pedaços

Minha cota de malha, tão inútil,
Minhas esporas de um tinir tão fútil,
Deixei-as pela fria escadaria.

Despi a realeza, corpo e alma,
E regressei à noite antiga e calma
Como a paisagem ao morrer do dia.

ABISMO

Olho o Tejo, e de tal arte
Que me esquece olhar olhando,
E súbito isto me bate
De encontro ao devaneando —
O que é sério, e correr?
O que é está-lo eu a ver?

Sinto de repente pouco,
Vácuo, o momento, o lugar.
Tudo de repente é oco —
Mesmo o meu estar a pensar.
Tudo — eu e o mundo em redor —
Fica mais que exterior.

Perde tudo o ser, ficar,
E do pensar se me some.
Fico sem poder ligar
Ser, idéia, alma de nome
A mim, à terra e aos céus...

E súbito encontro Deus.

A GRANDE ESFINGE DO EGITO

A Grande Esfinge do Egito sonha por este papel dentro...
Escrevo — e ela aparece-me através da minha mão transparente
E ao canto do papel erguem-se as pirâmides...

Escrevo — perturbo-me de ver o bico da minha pena
Ser o perfil do rei Quéops ...
De repente paro...
Escureceu tudo... Caio por um abismo feito de tempo...

Estou soterrado sob as pirâmides a escrever versos à luz clara deste
candeeiro
E todo o Egito me esmaga de alto através dos traços que faço com
a pena...

Ouço a Esfinge rir por dentro
O som da minha pena a correr no papel...
Atravessa o eu não poder vê-la uma mão enorme,
Varre tudo para o canto do teto que fica por detrás de mim,
E sobre o papel onde escrevo, entre ele e a pena que escreve
Jaz o cadáver do rei Quéops, olhando-me com olhos muito abertos,
E entre os nossos olhares que se cruzam corre o Nilo
E uma alegria de barcos embandeirados erra
Numa diagonal difusa
Entre mim e o que eu penso...

Funerais do rei Quéops em ouro velho e Mim! ...

A MINHA VIDA É UM BARCO ABANDONADO
A minha vida é um barco abandonado
Infiel, no ermo porto, ao seu destino.
Por que não ergue ferro e segue o atino
De navegar, casado com o seu fado ?
Ah! falta quem o lance ao mar, e alado
Torne seu vulto em velas; peregrino
Frescor de afastamento, no divino
Amplexo da manhã, puro e salgado.

Morto corpo da ação sem vontade
Que o viva, vulto estéril de viver,
Boiando à tona inútil da saudade.

Os limos esverdeiam tua quilha,
O vento embala-te sem te mover,
E é para além do mar a ansiada Ilha.

A MORTE CHEGA CEDO

A morte chega cedo,
Pois breve é toda vida
O instante é o arremedo
De uma coisa perdida.

O amor foi começado,
O ideal não acabou,
E quem tenha alcançado
Não sabe o que alcançou.

E tudo isto a morte
Risca por não estar certo
No caderno da sorte
Que Deus deixou aberto.

ANDEI LÉGUAS DE SOMBRA

Andei léguas de sombra
Dentro em meu pensamento.
Floresceu às avessas
Meu ócio com sem-nexo,
E apagaram-se as lâmpadas
Na alcova cambaleante.

Tudo prestes se volve
Um deserto macio
Visto pelo meu tato
Dos veludos da alcova,
Não pela minha vista.
Há um oásis no Incerto
E, como uma suspeita
De luz por não-há-frinchas,
Passa uma caravana.

Esquece-me de súbito
Como é o espaço, e o tempo
Em vez de horizontal
É vertical.

A ALCOVA

Desce não se por onde
Até não me encontrar.
Ascende um leve fumo
Das minhas sensações.
Deixo de me incluir
Dentro de mim. Não há
Cá-dentro nem lá-fora.

E o deserto está agora
Virado para baixo.

A noção de mover-me
Esqueceu-se do meu nome.
Na alma meu corpo pesa-me.
Sinto-me um reposteiro
Pendurado na sala
Onde jaz alguém morto.

Qualquer coisa caiu
E tiniu no infinito.

AO LONGE, AO LUAR
Ao longe, ao luar,
No rio uma vela,
Serena a passar,
Que é que me revela ?

Não sei, mas meu ser
Tornou-se-me estranho,
E eu sonho sem ver
Os sonhos que tenho.

Que angústia me enlaça ?
Que amor não se explica ?
É a vela que passa
Na noite que fica.

Fonte:
Fernando Pessoa. Cancioneiro.
Imagem = formatação da imagem para o blog, com imagens sobrepostas e modificadas, encontradas na internet, as quais não se pôde apurar a autoria.

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) 4. O Pescador e o Silêncio

"Com que então, Barbosa, você é pescador?"

Esta simples frase, dita numa voz branca, de um jeito quase distraído, me ia hoje rendendo uma quebra de amizade.

Frederico Paulo Barbosa Ramires é o homem mais calmo, sisudo e direito que jamais conheci. O senso comum encarnou-se nele como a seiva se infunde e se solidifica numa cabiúna. Dir-se-ia que a própria arquitetura de Barbosa fora armada com aquele material primário: os ossos robustos, as carnes duras, o corpanzil maciço, a fisionomia densa de hoplita membrudo. Familiarizamo-nos há muito. E nunca descobri no meu amigo uma trinca, um recanto desleixado, uma dependência indecisa e frouxa.

Vendo-o, hoje, no bonde, de caniço em punho, tive uma pequena surpresa, olhei para ele fiz-lhe aquela pergunta inócua. Parece que lhe toquei num ponto dolorido. Não se desconcertou, nem se irritou propriamente, mas respondeu-me com um nadinha de impertinência:

- "É verdade; pescador. Todos têm a sua mania, a minha é esta. Não faz mal a ninguém - senãoaos peixes. É higiênica, tem a sua dose de poesia..."

-"Bem, Barbosa, pesque, pesque, isso não precisa de justificação."

-"Mas, se eu quiser justificar?"

Fez então o elogio da pesca de vara. Uma pessoa fica à beira da água com a cana em punho, lança o anzol, e espera. Não há nisso nenhum desbarato de energias físicas nem morais. Por outro lado, não há tampouco a mínima astúcia nem a mínima violência. Fica à espera. Não corre atrás do peixe, não vai agarrá-lo. Nem o enxerga sequer. É como quem tira a sorte. O rio traz o peixe, o peixe vê a isca, engole-a, engasga-se. Então, o pescador sente na ponta da vara um estremecimento característico, dá-lhe um meneio, e puxa.

-"Como vê" (prosseguiu) "a intervenção do pescador é em tudo semelhante à do acaso, ou dos acidentes cegos que semeiam o curso dos rios e de todas as coisas. Ele espera, entendeu? ali, parado. Não vê o peixe, não sabe se o peixe virá, nem de que espécie há de ser caso venha;não sabe nada. Espera. É de uma imparcialidade absoluta."

-"Em todo caso atalhei, sabe que o rio é piscoso. E a imparcialidade, aí, quer dizer simplesmente que qualquer um serve."

-"Sim. Mas o peixe, se não pegasse no anzol, seria imortal? Não teria de morrer logo adiante?"
-"Dizem que eles têm o sestro de viver muito; até duzentos anos, conforme.,'

-"E você acredita isso? Quem é que contou os aniversários do peixe? E depois, olhe aqui, e depois que vem a ser um século ou dois diante da imensidade do tempo."

-"Alto lá, nós não vivemos a imensidade do tempo, Barbosa. Com esse artifício metafísico, se tem justificado muita pose de espíritos inumanos e muita monstruosidade material. Nós vivemos um minuto! Esse minuto é que deve ser a nossa medida. Tudo que o excede é imensurável. E, sendo imensurável, é sagrado."

-"Ahn..."

-"Mas, falando sério, você não precisa ter esse trabalho de justificar o seu gosto. Nada de repreensível na pesca, nem mesmo na caça. É lei do mundo que as espécies umas às outras se exterminem, por necessidade, por esporte, por prazer, por passar o tempo, é lei do homem que combata as outras espécies todas e a própria. Que lhe havemos de fazer? Observo-lhe, simplesmente, que a sua filosofia piscatória poderia justificar também uma larga parte da moral corrente nas relações humanas. Lança-se o anzol, fica-se à espera. Conheci um mercador que, fisgando e aleijando o freguês, não se desculpava por outra forma: Veio porque quis! Não obrigo ninguém a comprar."

-"Mas está muito direito" (replicou Barbosa). "Ele tinha razão. Eu, dono de um negócio, daria o preço que bem entendesse às minhas coisas."

-"Você não o faria, Barbosa."

-"Faria, sim, e você também."

-"Pois, se eu o fizesse, seria um espertalhão como qualquer outro."

Barbosa amuou, resmungou, e creio que só a sua sensatez e bonomia de animal forte, o impediu de levar adiante a contenda. Separamo-nos sem nos encarar. Fiquei penalizado com esse primeiro fio partido na teia de seda que vínhamos tecendo há tantos anos. Por um fio roto vai-se às vezes o tecido inteiro.

Fonte:
Domínio Público