sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Folclore Brasileiro (Lenda do Negro D’água)

O negro d’água faz parte da vida de todos os pescadores do Centro Oeste. Crendo ou não crendo, todos eles já experimentaram um sustozinho, certa vez que um boto apareceu com a sua cabeça de porco a soprar bem pertinho de onde estava a sua vara de anzol. Em certa pescaria no curso baixo do rio Vermelho, uma vez, acompanhou-nos um "chauffer" chamado João, de sobressalência, para ajudar-nos a remendar câmara de ar no caminho, ou consertar as avarias dos pontilhões. Sempre ia por conta de serviços prováveis, sem pagar a contribuição para a cobertura das despesas. Era, pois, um companheiro para tudo.

Uma noite, quando já estávamos em boas redes, contando anedotas uns para os outros, e esperando chegar os últimos companheiros que subiram e desceram o rio, para dormirmos sossegados, escutamos um ruído do lado do rio, como se animal espantado tivesse corrido para nosso lado, derrubando mato. Era o João. Chegou sem poder falar, e horrorizado com o que vira naquele poço escuro que fica na curva do rio. Todos nos levantamos para socorrê-lo.

Que foi isso rapaz, perguntamos a um só tempo. Foi o negro d’água que brotou mesmo em baixo do meu pesqueiro, fazendo um rebojo e um barulhão, antes de erguer a metade do corpo fora d’água. E dizendo isto olhava para todos os lados, assombrado.

Você viu negro d’água coisa nenhuma, o que você viu foi um boto, que nós também vimos hoje à tarde, na curva do poço da piratinga. Os bolos do Araguaia sobem até aqui e gostam de se mostrar para os pescadores. E para provar que era isso mesmo, o nosso comparsa se meteu pelo caminho do poço indicado. Meia hora depois voltou confirmando que era boto mesmo, e se quiséssemos ver iríamos todos apreciar as evoluções que eles fazem quando vêem o homem.

Alguém "pediu a palavra" para contar um caso que havia acontecido há tempos, e dava o seu testemunho de homem de fé, qualidade que ninguém lhe negava. Todos aproximaram-se para ouvir a narrativa. Tratava-se do Tenente Pacheco, um excelente companheiro de pescaria e de caçada, profundo conhecedor daquela região e também do Estado todo.

— Uma noite, começou o oficial, estávamos pescando no rio Tapirapés, tributário do Araguaia, muito piscoso e com excelente caça; por essa razão preferido para as excursões dos que vão à Ilha, quando se formou, em baixo do nosso pesqueiro, um enorme rebôjo. Logo a seguir algo emergiu espadanando água, e fazendo um estranho barulho. Julguei que se tratasse de enorme sucuri, e pus de jeito minha espingarda de caça. Há, naquela região, muitas lagoas que são viveiros de sucuris. São elas que formam a cabeceira do rio. Não atirei no rumo; nunca fiz isso. Meti a lanterna elétrica em cima do rebôjo e avistei uma cara horrorosa, meio macaco, meio homem, cabelos lisos e bem pretos, cobrindo todo o rosto.

Os dentes eram alvos e pontiagudos, rindo para mim com ar de mofa. Os olhos, refulgindo pelo efeito da luz do farolete, eram duas tochas acesas. Nunca mais vi coisa igual. O índio Carajá que estava comigo já havia corrido espavorido. Gritou em português que não atirasse nele que ganharia maldição para o resto da minha vida.

Quando o bicho mergulhou, aproveitamos para dar o fora, e o índio pediu que fossemos embora, a seguir, porque não haveria mais um único peixe para nós. Este, é o sapo grande, que governa o rio e aparece para quem fala mal do Araguaia. Não fizemos objeção e até hoje nos recordamos daqueles olhos que pareciam farol de automóvel aumentados pela luz da lanterna.

Cada um, então, contou um caso de negro d’água e João nunca mais quis saber de participar de nossas pescarias, apesar de convidado com insistência, porque no pior servia para ajudar a empurrar o fordinho e remendar câmaras de ar.

Fontes:
Regina Lacerda (seleção). Estórias e Lendas de Goiás e Mato Grosso.
Imagem = http://www.sohistoria.com.br

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Oswald de Andrade (Redondo)


Machado de Assis (Gazeta de Holanda) – N.° 5 – 21 de novembro de 1886.

Com franqueza, esta Bulgária
Vai-me esgotando a paciência;
Lembra a ilha Baratária,
Onde, após uma audiência,

Sancho, que naquele dia
Começara a governá-la,
Foi, com muita cortesia,
Levado a uma grande sala.

Tinha uma fome de rato
O governador recente,
E viu prato, e prato, e prato,
Prato de atolar o dente.

Quanto manjar, quanto molho,
Não direi, por mais que diga;
Só a vista enchia o olho...
Restava encher a barriga.

Mas tão depressa acudia
Algum servo respeitoso,
Trazendo-lhe uma iguaria
De cheirinho apetitoso,

Um doutor, que se postara
Ao lado, sem mais demora
Fazia um gesto co’a vara,
E ia-se a iguaria embora.

Afinal, pergunta o Sancho
Que era aquela caçoada.
Responde o doutor, mui ancho,
Que nada, não era nada.

Que, como ele tinha a cargo
A sua saúde e vida,
Cabia-lhe pôr embargo
A uma ou outra comida.

— “Bem, então dê-me essas belas,
Maravilhosas perdizes”.
— “Livre-o Deus de tocar nelas,
Nem de chegar-lhe os narizes”.

— “Mas, aquele gordo coelho
Espero que me não negue”.
— “Senhor, o melhor conselho
É que nem sequer lhe pegue”.

— “Naquele prato travesso
Cuido que há olha-podrida”.
— “Não coma, por Deus lh'o peço!
Aquilo espatifa a vida.

“Deixe Vossa Senhoria
A cônegos e a reitores
Essa péssima iguaria
Que tanto estraga os humores”.

E o pobre Sancho com fome,
Por mais que lhe dê na gana,
Tudo pede e nada come,
Até que se desengana.

Assim anda a tal Bulgária;
Elege, mas não elege,
Pois, como na Baratária,
Há um doutor que a protege.

“Este príncipe!” — “Não presta;
Faz-lhe mal aos intestinos”.
— “Est'outro?” — “Escolha funesta”.
— “Aquel'outro?” — “Um valdevinos.

“Para os seus humores basta
Este da Mingrélia; é moço,
Boa cara e boa casta;
Demais, pertence ao colosso”.

E a Bulgária, se há de os braços
Estender e recebê-lo,
Fazendo assim com abraços,
Em vez de a murros fazê-lo,

Timeos Danaos, et dona
Ferentes, pensa consigo;
E com ar de valentona,
Recusa o presente amigo.

Bulgária dos meus pecados,
Imita o meu pobre Sancho,
Que, vendo os pratos negados,
Agarrou um pão a gancho.

Um pão seco e frescas uvas,
Acaba essas longas bodas.
Já tens véu, grinalda e luvas,
Escolhe uma vez por todas.

E, tomando a liberdade
De te chamar D. Amélia
(Ó rima! Ó necessidade!)
Bulgária, escolhe o Mingrélia!

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

Juarez Barroso (Joaquim Bralhador)

Agradecido, doutor, agradecido, quero mais não. Quando eu ando assim de bicicleta, não sou muito amigo de beber, não senhor, os meus camaradas aqui presentes sabem disso. Bebida e bicicleta não se casam.

                Mas como é que o senhor estava perguntando? Ah, sim. Pois é isso que eu já disse, doutor. Isto aqui é um sertão pouco, acanhado. Uma terra sovina, pra gente, pra bicho, pra tudo. Quando escuto dizerem que naqueles centros do sertão, Santa Quitéria, Quixeramobim, os Inhamuns, tem fazendeiro com mil e tantas cabeças de gado, eu fico até sem acreditar. Como é possível? Aqui, nem jumento se dá bem.

                Sertão infeliz, este. Bem verdade que nem toda vida foi assim. Eu ainda alcancei melhor tempo. A gente nunca foi rico, mas o finado meu pai tinha algum recurso, pelo menos para criar os oito filhos de barriga cheia. Passava-se o verão na serra, o inverno aqui. Quando se descia para o sertão, trazia-se de um tudo nas cargas dos animais: rapadura, sacas de café, fruta muita. De quinze em quinze dias, a finada minha mãe mandava um cargueiro na serra ver banana, rapadura, o que tivesse precisão. De dois em dois dias, eu saía pelas moitas, na saia da finada minha mãe, com um alguidar, caçando ninho de capota. Era de cento de ovos. Quando lhe dava na vontade, o finado meu pai pegava a espingarda, fazia ponto num capote, no terreiro, engordava a nossa janta. Capote demais, a gritaria nos ouvidos da gente, tó-fraco, tó-fraco, tó-fraco. No inverno, tinha fazendeiro de fazer queijo de cinco quilos, todo santo dia. Muito feijão, muito milho, muito tudo. Bem verdade que dinheiro nunca se teve. Mas se tinha cavalo gordo, cavalo de sela, cavalo de campo, cada animal de fazer gosto.

                Sei não, doutor. Hoje em dia, eu moro na mesma terra, no pedaço que herdei, mas é tudo diverso. Café, nem se fala, é comprado, ninguém tem mais sítio na serra. Os capotes se sumiram, se vê um aqui, outro acolá. Galinha? Quando a finada minha mãe paria, quarenta galinhas gordas já estavam no chiqueiro, uma para cada dia de resguardo. Hoje? Quando surge menino novo na minha fazendinha, a mulher tem que se arremediar com o que existe. Às vezes aparece gente lá em casa para comprar ovo, doutor. A finada minha mãe nunca ia acreditar numa história dessas. Já teve ano ruim, aqui, doutor, de eu comprar feijão e farinha para comer. Onde já se viu? Bem verdade que algodão agora vale mais dinheiro. Mas do que adianta? Aqui, ou não chove, ou chove demais. Se a safra é boa, a gente tem que implorar pelo amor de Deus a um caboclo desses para apanhar uma arroba de algodão. E pagando bem. No fim, cadê o ganho?

                Sabe, eu vou tomar sempre o diabo desta outra cana. Afinal de contas, ainda estou com o juízo sentado, ainda domino o diabo de uma bicicleta.

                Coisa engraçada, doutor, que eu já reparei. Sertão minguante, as distâncias encurtaram também. Antigamente, se a gente ia daqui para o sítio que foi do meu povo, lá perto de Palmácia, na serra, era dia e meio de viagem, saía-se de madrugada, dormia-se no Rato, para fazer o restante do caminho na madrugada seguinte. Com carga de burro, eram dois dias. Hoje, nos mesmos cavalos, nos mesmos burros, a gente sai de madrugada e vai jantar na Palmácia. As mesmas onze léguas. O senhor tem explicação?

                Bem, vocês, querendo, bebam. Eu não quero mais. Minha bicicleta está lá fora, me esperando, não quero maltratar ela. Está de fazer gosto. Botei dois espelhos novos, botei um farol de pilha, clareia que nem farol de caminhão. Uma burra de sela, a bichinha. Vantagem da burra é dar mais certo com cana, beba-se o tanto que se beber, a gente monta e ela sabe o caminho de casa, deixa a gente no alpendre, ninguém sabe nem como chegou. Já tive muita burra de sela. Para cabra novo e sem respeito ainda existe outra serventia. O cabra volta de um samba, de madrugada, os possuídos vêm doendo de tanto esfregado nas danças. Diabo daquela dor cansada, respondendo no pé da barriga, as boas lembranças agravando a dor. Aí, é só encostar a burrinha no pé de uma cerca, subir uns três lances de pau e fazer o serviço. Tem umas tão aviciadas que já levantam o rabo, na ocasião. Burra é bicho quente. Eu prefiro a minha bicicletinha. É ligeira, não come e nem bebe, não se acoa, não tem cisma e está livre de sem-vergonhice. Uma burra, se a gente manda um caboclo lhe dar de beber, banhar na cacimba, já o indivíduo quer passá-la nas armas. Já botei um para fora da minha terra por via disso, caboclo mais confiado. Peguei no flagrante, a minha burra de sela, estimada. A Mocinha não é rapariga de ninguém não, seu fiduaégua. Animal mimoso, a Mocinha, burra de qualquer passo, de galope, de marcha, de estrada. Mansa, bem mansa, e da maior inocência.

                Mas eu acho que se eu bebesse só outra não fazia mal não, n’era? O diabo é que a natureza de bicicleta não se dá com cana, com cachaceiro. Dá não, doutor. Bicicleta também tem a sua natureza, a sua ciência, que é a de se equilibrar em duas rodas fininhas, sem se saber como. Carece o indivíduo casar-se a esta natureza, sem brigar com ela, respeitando a ciência da bicicleta, como deve respeitar a do rádio, do avião. No referente aos bichos, é da mesma forma, e até mais. O indivíduo pode ser muito sabido, pode ser um Camões na adivinhação, um Aderaldo no repente, que qualquer cachorro magro tem mais faro do que ele, acha tudo pelo cheiro. Em questão de ligeireza, tem que tomar bença à ema e ao veado capoeiro. E não chega onde chega o burro, o cavalo, o jumento, muito principalmente se andar nos escuros da noite. Doutor, se o senhor anoitecer em cima da sela, se lembre sempre que a ciência é do burro, do jumento, do cavalo, e a ignorância é do senhor. Dê o rumo ao animal, porém não lhe ensine onde pisar, que nisso ele lhe dá lição. É da natureza deles, assim como andar dez léguas num dia, e no outro fazer a viagem de volta, estradando, bralhando ou galopando. A natureza do cristão não se mistura com a desses bichos, não adianta teimar, tem que ser cada um do seu jeito. E por falar em cavalo, só houve um vivente, neste mundo que misturou as duas naturezas, foi homem e cavalo a um tempo só, da cintura pra cima um cidadão de respeito, da mais boa educação, da cintura pra baixo o mais fino animal de sela que já pisou nestas paragens, conforme contam os antigos, que esta história do finado Joaquim Bralhador se passou há muito tempo.

                Quer que eu conte? Então, o senhor, por seu favor, mande me ver outra cana, que eu agora já estou começando e desgraça só quer um começo. Bem, o finado meu pai ainda alcançou ele. O finado meu pai ainda menino, e ele homem refeito, já bem passado dos trinta, dono de sua fama esquisita. De princípio, meu pai também só sabia de ouvir contar. O tal Joaquim Bralhador era nascido e criado no Saco do Santo Antonio, coisa de seis léguas daqui, terras da Dona Libânia, a pessoa mais rica destas paragens, dona de três sítios de café na serra, não sei quantas fazendas de gado no sertão. Diss’que até os oito anos de idade, o Bralhador foi um menino sem diferença dos outros, cumprindo as danações de menino, brincando de baladeira, ajudando o pai no roçado. Nessa idade, ao que parece, sucedeu o desacato, bateu-lhe a doença-de-menino, doença infeliz, pois se às vezes o indivíduo escapa com vida, não escapa com juízo. Um mês ele passou no fundo da rede, um febrão, tresvaliando, esperando só a hora da morte. E melhor mesmo que Deus tivesse feito dele um anjinho. Mas estava disposto o contrário. Passado aquele tempo, principiou a melhora, o febrão abrandou, o menino abriu os olhos, pediu caldo, daí a uns dias já caminhava pela casa, a canela fina, os ossos aparecendo, branco da cor de um lençol, mas vivo. Estaria bom do juízo? Com o correr dos dias, acharam que sim. Não falava heresia, respondia tudo com acerto. Ficou até mais quieto, bem mandado para todo serviço, nem mais gostava de acompanhar os irmãos nas vadiações de menino.

                E a tal doença já estava no esquecimento quando começaram a perceber um costume esquisito nele. O diabo do menino, em certas horas, se sumia de casa. Joaquim, Joaquim, a mãe dele chamava, o pai chamava. Nada. Onde tu andava menino? Em canto nenhum não, minha mãe. Mas o pai descobriu que ele se tocava para a manga, ficava feito abestado diante dos burros e dos cavalos. O pai danou-se. Diabo de cabrinha sem-vergonho, se eu te pego fazendo o que não presta com uma burra ou uma jumenta destas, te dou uma pisa de tirar o couro, eu te mato, diabo. Mas o menino olhava para o pai com tais olhos de inocência que o velho se desarmava. Coitado do meu filho, é a doença-de-menino.

                O sem jeito, sem jeito está. Se Deus mandou um padecer a um cristão, é porque assim foi servido. O povo acabou se acostumando com aquela doidice, tanto mais por ser uma doidice ajuizada.

                O Joaquim não refugava serviço, enchia os potes da casa de manhã cedo, era disposto na foice e na enxada. De esquisito, só a moda de ficar bestando no meio dos animais. Depois de um certo tempo, perceberam até mais serventia nele, como a sua ligeireza em cumprir mandado, ia e voltava de pés, como se bem montado estivesse. Menino, tu já voltou? Voltei, sim senhora. Era o que mais gostava de fazer, varando os caminhos numa carreira pulada, trocando as passadas, de dois em dois, a moda de um galope, pototoco, pototoco, pototoco.

                Passou-se. E perceberam que, com a natureza de gente, ele tinha também uma natureza de cavalo. E já não corria mais daquele jeito somente no cumprimento de algum mandado. Findo o serviço na fazenda, galopava pelo terreiro, ganhava os caminhos. E ia se apurando. Primeiro, o galope, depois a estrada, por fim a bralha, o passo mais macio e difícil para um cavalo, passo de animal de sela, apreciado. Executava em dois pés o que um cavalo executa nos quatro. Saía naquele ciscado miúdo e ligeiro, o corpo erguido como o de um cavaleiro na sela, porém a cabeça encurvada, meio pendendo, os olhos no chão, no feitio de um cavalo marchador. E os dois braços colados no corpo, ao comprido, as palmas das mãos batendo um baião nos lagartos das coxas, tatataco-taco-taco-taco-taco, tal baião se combinando com o ciscado dos pés, e tudo junto era mesmo que escutar um cavalo bralhando. Mas, se encontrava alguém pelos caminhos, dizia bom-dia, boa-tarde, tudo na boa educação, que ele não deixava de ser gente. Eram as duas naturezas, a natureza de cristão montando a natureza de cavalo. Depois de muito bralhar e muito suar, riscava no terreiro, a natureza de gente desapeava da outra, entrava em casa sozinha, e ele era um rapazote igual aos irmãos, sem sinal algum de doidice.

                E na medida em que se punha homem, acharam nele outra arte esquisita, que era a de pegar qualquer animal, por mais velhaco que fosse, sem auxílio de um cabresto, de uma cuia de milho. Isto ficou provado no caso do burro Capoeiro, que mais de vinte vaqueiros não conseguiram agarrar. Um burro velho de nada, animal de carga, pertencente ao finado Antonio Barroso, situado lá perto. O Seu Barroso também passava o verão no sítio dele na serra, cuidando do café e da moagem, os burros na cambitagem da cana. Choveu, ele descia para a sua fazenda no sertão, mais a família e os burros. Os animais se refaziam no pasto verde, em fins d’água estavam descansados e gordos, subiam outra vez a serra, tornavam à cangalha. Pois bem, houve um fins d’água em que pegaram todos os burros, tirante o Capoeiro, que inventou de não voltar. Não quero mais saber de serviço, quero descanso. Quem viu passarem o cabresto no burro? Os caboclos pelejaram, e nada. Homem, uma coisa desta é possível?, espantou-se o Seu Barroso, que mandou chamar o Antonio Preto, vaqueiro. Compadre Antonio, vista as mangas do gibão e me pegue aquele burro, por seu favor. O senhor pegou? Pois da mesma forma o vaqueiro. Seu Barroso, não sei que diabo é aquilo não, faz até vergonha eu dizer, mas o cavalo não encosta no desgraçado do burro. E veja que o Capoeiro não se achava em campo aberto, mas sim dentro do cercado. Foi justamente o que causou a galhofada dos vaqueiros de redor. Antonio Preto, que diabo é isso, você perdendo a fama diante de um burro? Vieram então o Zé Dias, o Zeca Ricardo, vizinhos, botaram os cavalos no burro, auxiliando o camarada deles, correram dois dias, de manhã e de tarde. Pegaram o burro? O senhor já viu que não. Para encurtar a história, numa semana tinha para vinte vaqueiros arranchados na fazenda, vaqueiros de sete léguas de distância, tudo gente de respeito e bem montada: Joaquim Joça mais dois irmãos dele, Luís Pascoal, toda a vaqueirada da Elva-Moura, do Feijão, da Providência, de toda esta beira do Rio Capitão-Mor. Cada um que chegava dizia, aqui não tem mais vaqueiro não? Pois experimente pegar, homem. O vaqueiro vestia as mangas do gibão, se tocava para o cercado, os outros só acompanhavam, no sentido de apreciar a derrota. O vaqueiro enxergava o burro amoitado, tocava-lhe o cavalo em cima, vais conhecer, burro desgraçado. Corria meia hora, uma hora, voltava de cara feia ante a risada dos outros. A gente não lhe dizia, Seu Joaquim? Cadê a sua fama?

                Se burro é ligeiro? Olhe, doutor, não é questão de ligeireza. É questão de arte na corrida, que certos burros possuem. Uma rês corre linheira, uma corrida num rumo só. Não tem rês ligeira para vaqueiro bom e bem montado. Mas o burro tem outro sistema, corre entortado. Espera o vaqueiro chegar perto, e quando o indivíduo vai se abaixando para pegar-lhe o rabo ele quebra de banda, muda o rumo da carreira, engabela o cavalo e o vaqueiro. O vaqueiro retoma a perseguição, e lá o burro procede da mesma forma, no momento certo. O bicho parece até que tem um olho no cu, com licença da palavra. E lhe digo mais, burro às vezes é tão ladino que entorta a carreira justamente para cima da perseguição. Se o cavaleiro está na esquerda, ele entorta para a esquerda, fechando, o vaqueiro tem que riscar o cavalo, mais que depressa, se não se esbagaça tudo, embolam na queda cavalo, vaqueiro e burro. Assim procedia o burro Capoeiro.

                Porém, já estava ficando demais. Afinal de contas, era dentro de um cercado. Às vezes, dois, três vaqueiros encantoavam o bicho num pé de cerca, peguei-te, Capoeiro. Que nada. O bicho se escorregava por entre eles, lá vai tudo principiar de novo. Os vaqueiros já envergonhados, com acanhamento uns dos outros. Até que alguém alertou, este burro tem é padrinho. Tem padrinho? Só pode ser. Alguém apadrinhou ele, e bicho que tem padrinho vaqueiro nenhum pega. Só se o padrinho der licença. E quem pode ser o padrinho deste burro? Deve ser um rapaz dacolá do Santo Antonio, por nome Joaquim, que bralha feito um cavalo e conversa mais os bichos. Nesse mesmo dia mandaram chamar o Joaquim Bralhador, que chegou de tarde. Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo. Para sempre seja louvado. É verdade, menino, que tu é o padrinho desse burro? Padrinho eu não sou, não, Seu Barroso, que eu nunca apadrinhei animal nenhum nesta vida. Mas se quiserem que eu pegue ele, eu pego. Pois então pegue. E lá se foi ele, de pés, caminhando na frente, sem um cabresto, sem uma corda na mão, os vaqueiros atrás, no passo dos cavalos. Lá no meio do cercado divisaram o burro pastando junto a uma moita de mufumbo. Foi o Capoeiro enxergar os homens encourados e murchar as orelhas, aprontando a carreira. Mas aí o Bralhador determinou, vosmicês fiquem aí, senão atrapalha. E marchou no rumo do burro, na calma, como se marchasse no rumo de uma pessoa, o burro espiando, esperando. O rapaz passou-lhe a mão pela crina, alisou-lhe o lombo, o bicho mansinho, esfregando a cabeça no peito dele. E manso ficou quando um vaqueiro entregou um cabresto ao rapaz. Vambora para casa, Capoeiro. Já vou indo, meu amigo Bralhador. Foi um assombro. Este rapaz tem parte com o Cão, alguém disse. Não, Senhor, é que ele teve doença-de-menino e adquiriu a ciência dos bichos.

                E continuou o referido Joaquim com as duas naturezas, a de gente e a de cavalo. Só que, no passar do tempo, mais era presente a segunda natureza. Xerexexeco-xeco-xeco-xeco-xeco, o arrastado das apragatas pelos caminhos, tatatataco-taco-taco-taco-taco, as mãos batendo nas coxas, o povo acordava de noite. Tu escutou, marido? Nada não, mulher, é o Joaquim Bralhador bralhando.

                Foi deixando de ajudar o pai, os irmãos. Só uma vez ou outra ia com eles ao roçado. Preferia bralhar. O povo tinha pena. Coitado, não faz mal a ninguém, é a doença-de-menino. E descobriam aquele proveito nele, que era a sua ligeireza para mandados. Durante o verão, ia não sei quantas vezes à serra, com recado do finado Zé Dias, o vaqueiro, para a patroa dele, a Dona Libânia. Ia num dia, voltava no outro, dez léguas de ida e volta. E levava e trazia tudo no certo, sem sobrar e nem faltar nenhuma palavra, que a memória era boa, de gente.

                Muitas façanhas contavam do finado Joaquim Bralhador.

                Certa feita, iam daqui deste sertão para a Cruz do Lagedo, hoje Itapebuçu, o Capitão Teófilo e a mulher dele, Dona Nazinha, casal de muito dinheiro e fama. Viajavam em seus cavalos de sela, a Dona Nazinha montando o pedrês, o cavalo de mais nome que já pisou nestas bandas, animal de bralhar solto ou no cabresto, sem precisão de rédea, cavalo de tal competência que chegou a ser chamado de encantado. A certa altura da viagem se depararam com o Bralhador. Adeus, Capitão, como passa vossa excelência? Adeus, Dona Nazinha, como vai a sua saúde? Adeus, Joaquim, para onde se bota? Me boto para a Cruz do Lagedo. Pois então vambora juntos, que é lá também o nosso destino.

                Agora, eu quero ver se este tal Bralhador vai mesmo à viagem, imaginou o finado Capitão Teófilo. E subiu a altura da marcha do seu cavalo, no que o pedrês da finada Nazinha acompanhou, sem ser mandado. O Bralhador ali, do lado, emparelhado todo tempo. Aí foi a Dona Nazinha que imaginou, não é um ente de dois pés que vai bralhar com o meu cavalo pedrês. Subiu-lhe a marcha, o castanho acompanhou, cumprindo as ordens do Capitão, subiram, subiram, foi a bralha mais doida deste mundo, aquele baião ligeiro batido no chão do caminho, coisa que outro cavalo, em galope alto, ia sofrer para acompanhar. Pois no mesmo rojão dos cavalos bralhou Joaquim Bralhador, sua parte de cavalo acertada com o passo dos animais, sua parte de gente palestrando com o rico casal, receitando remédio dos matos para os achaques da finada Nazinha. Assim por mais de três léguas, e desse jeito entraram os três na rua da Cruz do Lagedo, sendo que o Bralhador não chegou mais suado do que os dois animais.

                De outra vez foi o dito Seu Barroso que precisou mandar uma carta missiva para o irmão dele, o finado João Barroso, no sertão do Caxitoré, coisa de vinte léguas distante. Chamou pelo Bralhador, que num dia foi e no outro já voltava com a esperada resposta, bralhando quarenta léguas em dois dias. Um feito de fazer inveja a qualquer cavalo bom, de antigamente.

                E assim foi até ele cumprir a casa dos trinta, entrar na casa quarenta, metade gente, metade cavalo, pois aí, conforme contavam, as duas naturezas começaram a se estranhar, a se cansar uma da outra. Em certas horas, e mais durante o dia, a natureza de gente reinava, montava o cavalo quando queria, o Bralhador galopava nos seus mandados, que disso vivia e sustentava a mãe dele. Em outras horas, e mais no forte da noite, o cavalo se soltava, desconhecia o cavaleiro, corria pelos cercados. O povo acordava de noite, uns rinchos distantes, um atropelo de bichos. As mulheres com medo, marido, valha-me Nossa Senhora, aquilo é o Bralhador com sem-vergonhice. Besteira, mulher, aquilo é o cavalo de lote de Dona Libânia, com sentido nas éguas. Verdade ou não, o Bralhador era desinfluído por mulher, passou da idade de casar sem nunca ao menos demorar a vista em qualquer moça daqueles recantos. Isto é vício do Satanás, as mulheres se benziam.

                Também contavam que, com o passar do tempo, ele deu de se espojar, no chão, feito animal, coçando as costas na areia, braços e pernas erguidas, o homem rinchando de contentamento. E até a obra dele já não era mais de gente, e sim de animal, aquelas bolotas nem verdes e nem amarelas, conforme jurava um caboclo depois de ver o finado Bralhador fazendo uma precisão.

                O homem montando o cavalo, o dia todo. Quando imaginava desmontar, para o descanso, o cavalo disparava com ele, atrás das éguas, ou corria pelo gosto de correr, cavalo inteiro. De modo que não tinham um sossego, nem o homem e nem o cavalo, sendo ainda que, na peleja, o homem perdia, que cavalo carece de menor descanso e dorme em pé. O povo percebia o finado Bralhador minguante, as feições magras, o homem calado de cansaço. Aí, que eu quero minha rede, uma pestana, ando enfadado de tanta viagem, quantas léguas naveguei. Se esqueça do seu descanso, meu patrão, já tem estrela no céu, meus camaradas me esperam, se for homem desamonte, sou o cavalo Bralhador, nada respeito neste mundo, minha rédea só eu tenho. E disparava o cavalo, Joaquim grudado na sela, fiduaégua, tu me paga, tu me paga. Pois então me segure, se é capaz.

                Marido, que diabo é isso? São os cavalos de lote de Dona Libânia, mulher. Cavalo de lote o quê, marido, vou acender uma vela para Nossa Senhora do Desterro desterrar esta fantasma, este ente lobisomem. Pois, se quer acender, acenda.

                Tudo por dizerem que a natureza de animal, depois de uns tempos, já não se contentava de bralhar e galopar na forma de cristão de dois pés e que o finado Bralhador de noite se encantava num cavalo, virava um lazão fogoso, correndo solto, chupando as forças do homem, que amanhecia mais morto do que vivo, gemendo na rede. Seu Bralhador, tem um mandado para o senhor fazer no Campos Belos. Pois bem, já vou. Mas o homem não tinha a mesma disposição de montar a natureza de animal, não tinha nervo para ela, pegava o caminho em estrada baixa, medroso de aferventar o cavalo, feito um velho, receio do bicho desembestar. De quando em vez, a raiva, diabo, bicho nenhum me sujiga, o cavalo disparava, e começada a carreira o Bralhador encontrava seus nervos, vais conhecer, se deparavam com ele nos caminhos, riscando em cima dos pés de pau, em cima das cercas, pinotando, as naturezas brigando, o bucho do Bralhador todo cortado de unha, esporas dele, o sangue manchando a blusa. Te esconjuro, dizia o povo. Coitado do meu filhinho, dizia a mãe dele.

                Até o dia em que o pobre anoiteceu fora de casa e não amanheceu. Como não amanheceu no dia seguinte e nem no outro, a mãe chorando, sucedeu uma desgraça com o meu filho, e o povo, é castigo, é castigo. Foi achado com três dias, pelos urubus, e o vaqueiro que achou se benzia, eu nunca vi coisa tão feia na minha vida. E devia ser mesmo. O senhor já ouviu contar de cavalo de lote que morre estrepado? Assim foi. Uma estaca de cerca, da ponta fina, madeira cortada de novo, ele espetado pela barriga, a ponta quase lhe saindo pelas costas.

                Nunca se tinha visto aquele cavalo por lá, um lazão grande, estrela na testa. O Bralhador, morto na natureza de cavalo, com sentido nas éguas, latejando de vontade. Pulou a cerca atrás de uma, para voar-lhe nas ancas, cavalo inteiro, estrepou-se na vontade. Te esconjuro, dizia o povo. Se enterra ou não se enterra? Acabaram enterrando no mato, o povo se benzia, rezando para Nossa Senhora desterrar a alma do homem.

                O fato é que não se pode misturar as naturezas, doutor. O homem tem o seu sistema, cada bicho tem o seu. Se o Bralhador permanecesse gente, botava um cabresto na égua, marrava a bicha junto de uma cerca, botava ela na posição devida, fazia o serviço, bem escondido no seu canto, sem risco de morte excomungado. É assim que se procede.

                Agora, se me dão licença, eu vou chegando, enquanto não fico bêbado, vou ver se a minha bicicleta ainda me aceita. Lá está a bichinha esperando por mim, toda equipada. Tem jeito de moça, é a minha burra de sela, burrinha de estimação.

(Juarez Barroso, Joaquinho Gato, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1976, Coleção Vera Cruz, volume 225)

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Juarez Barroso

Juarez Távora Barroso de Albuquerque Ferreira (Pernambuquinho, Serra de Baturité, 1934 - Rio de Janeiro, 1976), apesar de se ter formado em Ciências Jurídicas e Sociais, cedo ingressou no radialismo. Mudou-se para o Rio de Janeiro, onde estudou jornalismo e publicidade. Premiado num concurso permanente do antigo Boletim Bibliográfico Brasileiro, em 1958, foi incluído no Panorama do Novo Conto Brasileiro (Editora Júpiter, 1964), organizado por Esdras do Nascimento, e em Uma Antologia do Conto Cearense (Imprensa Universitária do Ceará, 1965). Deixou as narrativas de Mundinha Panchico e o Resto do Pessoal (1969), ganhador do Prêmio José Lins do Rêgo, do ano anterior, e Joaquinho Gato (1976). Tem também um romance, Doutora Isa (Editora Civilização Brasileira, 1978), publicação póstuma.

Os contos de Juarez Barroso são quase todos longos, alguns com feição de novela. Neles, assim como no romance Doutora Isa, predomina a linguagem oral do campo e, em menor escala, dos subúrbios. Em consequência, a maioria dos dramas se localiza no meio rural (Serra de Baturité). Em uns poucos (naqueles situados em Fortaleza, ou seja, nos contos da segunda parte – “Os Hereges” – do primeiro volume) o ambiente é urbano. Os personagens são sempre tipos, quase todos serranos: pequenos proprietários rurais, mulheres fortes, homens valentes e vingativos. Também os tipos suburbanos, como as prostitutas, os operários, os cachaceiros, carecem de profundidade. As histórias apresentam dramas pessoais e familiares quase sempre trágicos, mesmo quando o humor se faz presente.

A linguagem oral do campo irá se manifestar em maior escala no segundo livro, cujos narradores são protagonistas ou testemunhas. No primeiro livro predomina o ponto de vista de narrador em terceira pessoa. Em “Estória de Seu Armando e de Seu Amor” a oralidade da linguagem matuta se revela apenas nos diálogos. Na novela “Estória de D. Nazinha e de Seu Cavalo Encantado” também nas falas dos personagens a linguagem oral do campo é visível: “Taí” (Está aí), “Dextá” (Deixa estar), “Jouviu?” (Já ouviu?). Em “Um Tal de Pedro Amorim”, do segundo volume, a oralidade é mais evidente. O narrador onisciente narra e “deixa” os personagens falarem ou dá voz a eles. As falas se superpõem, como no trecho seguinte: “Quantas vezes, caboclo, quantas vezes?” (Fala de Seu Aprígio) (...). O narrador retoma a palavra: “A ponta da faca à procura da goela, acelerando os soluços, ai, ai, ai, que a confissão aí vem, pelo amor de Deus, Seu Aprígio, foi só uma vez” (...), e sua fala se confunde com a do outro personagem.  

O primeiro livro é dividido em duas partes: “A Sagrada Família”, composta de três histórias ou estórias, e “Os Hereges”, de seis. Naquelas, o ambiente rural; nestas, o urbano (Fortaleza). Em “Estória de Seu Armando e de Seu Amor” o primeiro ato se atém ao velório do protagonista, em sua casa, num sítio. No segundo, em flashback, são narrados momentos da vida de Armando: na cadeira de balanço no alpendre olha para o baixio, o açude, a torre da igreja, os telhados da cidade, a fábrica de cachaça, as moendas etc. Referências a cidades do Ceará são frequentes: Guiúba, Pacatuba, Redenção. Em “Estória de D. Nazinha e de Seu Cavalo Encantado” também: Palmeira, Pacoti, Cruz do Lajedo, Quixadá, “em baixo ou em cima da serra”. E toda a trama envolve um cavalo de montaria em sua vida no campo. Em “O Trato” vê-se um jumento pastando na praça de uma cidadezinha. Um sapateiro bate sola. Homens jogam bilhar. Antes “tudo era o sítio do Coronel Tomé, um mangueiral só, cortado pelo riacho.”

A parte denominada “Os Hereges” traz a informação: (Sitiados na cidade de Fortaleza). Veem-se “ônibus lerdos”, um automóvel bonito, fala-se em chatôs. Bairros da capital cearense são mencionados: Benfica, Pan-Americano, Campo do Pio, Aldeota, Jardim América, Montese, assim como logradouros: Rua Júlio César, onde vivia Mundinha Panchico e o resto do pessoal, isto é, as meninas do chatô. Clubes de futebol também: Ceará e Ferroviário. Nenhuma menção ao Fortaleza.

   Os personagens de Juarez Barroso são tipos comuns ao espaço rural cearense e suburbano. Há também caricaturas ou tipos deformados. O velho Armando Chaves, dono de fábrica de cachaça, em atrito com a família, em razão de um relacionamento amoroso com uma cabocla (“Estória de Seu Armando e de Seu Amor”). Dona Nazinha, seu cavalo encantado e o marido humilhado, que se rebela e se vinga, maltratando o animal durante uma noite inteira. Duda e Geraldo, matadores de Pedro Lopes, em vingança pela morte do pai. Expedito (“O Ex-Operário Expedito em Sua Maior Felicidade”) é talvez um dos personagens mais bem pintados da obra de Juarez. Desde sua chegada ao bairro onde morava, num belo automóvel de praça (antecessor do táxi). O início da farra: “Bote toda a cerveja que você tiver aí pra gelar e traga logo uma pra mim.” A chegada dos amigos e conhecidos. O convite à bebedeira. A mão aleijada (“o corrupio da serraria lhe cortara dois dedos”) sobre a mesa, aquela “joia cara” que lhe rendera uma fortuna (o seguro). Sim, ele, ex-operário, um homem anormal, com apenas três dedos na mão, sentia piedade dos outros, dos normais, dos não-mutilados, uns pobres-diabos: “O cabo era como os demais, cinco dedos em cada mão, coitado.” A noite passa, os convidados cochilam, vão embora, e ele, sozinho de novo, volta para a casa pobre, a mulher preocupada com o aluguel atrasado, a conta da bodega, as roupas dos meninos.

Um dos personagens mais estranhos de Juarez é Japi, de “Isaura, Japi e o Marido”. Japi é criatura humana ou canina? “E sai Isaura com o filho no colo, sentado em seu braço, menino, mas um menino desajeitado, gordo, mole, espinha curva.” Para o narrador Japi é humano. Batista, personagem secundário, o chama de cachorro, o que irrita Japi: “Aquele bicho feio me chamou de cachorro, mamãe! Cachorro pode ser o pai dele.” Japi tanto não se sente cachorro que chama o outro de bicho. A fala de Japi pode ser uma voz representada por Isaura, como o fazem adultos com crianças ainda sem fala e animais. No entanto, a mulher é impedida de subir a um ônibus com Japi: “Disseram que não conduziam cachorro.” Ou Japi é realmente um cachorro ou se assemelha àquele animal. Entretanto, o “pai” parece estar “ficando doido”, segundo a “mãe”. Ou é ela, Isaura, a louca?

Alguns personagens aparecem em mais de uma história. Mundinha Panchico, dona de chatô em Fortaleza, é protagonista em “Cantar de Amigo de Mundinha Panchico”. Em “Incursão na Vida Sentimental de Alzira Ferreira Lima, Boneca na Intimidade”, apenas personagem secundária ou mencionada. Dona Nazinha e seu marido, Capitão Teófilo, são protagonistas em “Estória de D. Nazinha e de Seu Cavalo Encantado”. Reaparecem, secundariamente, em “Joaquim Bralhador”. Joaquinho Gato talvez seja o mais importante desses personagens, ora como narrador, ora como testemunha.

Muitos são os tipos deformados na obra de Juarez Barroso, como o já mencionado Japi. Merece destaque Joaquim Bralhador, protagonista do conto homônimo. O narrador não identificado se dirige a um ouvinte também oculto, chamado ora de senhor, ora de doutor. Depois de muito falar da serra, do sertão, de sua bicicleta, de burras, em quase três páginas, dá início à narrativa do homem-cavalo: “E por falar em cavalo, só houve um vivente, neste mundo, que misturou as duas naturezas, foi homem e cavalo a um tempo só” (...). A descrição do personagem, ao longo na narração, é perfeita, precisa. O narrador não se mostra apavorado ou não infunde pavor, talvez porque se refira a fatos há muito ocorridos. A misteriosa vida de Joaquim não é, na verdade, um fenômeno sobrenatural. A história não tem, pois, ingredientes do fantástico. A deformação mental do personagem é oriunda de uma doença infantil, “doença-de-menino”, razão pela qual a narrativa não pode ser vista como uma fantasia, mas como uma “realidade” natural, embora anormal.

Pequenos dramas pessoais e familiares, às vezes com pitadas de humor, são a tônica dos contos de Juarez. Esse humor se manifesta mesmo nas histórias em que a violência humana se apresenta em toda a sua plenitude.  Em “Riqueza” Artur lava a honra dos varões de Baturité, ao provar a uma prostituta vinda de outras terras que ali havia, sim, homem que desse em sua medida. O humor se confunde com o anedótico.

Chegado à velhice, Seu Armando se revolta com os filhos que não admitem a sua paixão pela negra Assum-Preto. Um desrespeito à mãe deles. Não se iniciasse a narrativa com o velório do velho, o leitor se deleitaria o tempo todo com as esquisitices do protagonista.  Dona Nazinha, o Capitão Teófilo e um cavalo pedrês, adquirido a peso de ouro, vivem uma estranha história de orgulho, com final trágico. A longa cena da humilhação imposta pelo homem ao animal é das mais pungentes.  Em “O Trato” dois irmãos vingam a morte do pai. Nada de mistério, tudo muito real.

Em alguns contos situados no campo, o real social pode ser visto pelo leitor metropolitano como extravagância do escritor ou simples recriação de anedota folclorizada. O real natural, no entanto, pode espantar esse leitor, pela crueldade de alguns personagens, como o já mencionado Teófilo, Seu Aprígio e familiares (no ato de castração de um homem) ou Seu Zezé, o matador de cururus.

Nas narrativas urbanas, localizadas em Fortaleza, os personagens vivem dramas de amor, de desavença familiar e pobreza. Em “Seu Mozart e o Povo da Rua” se narram conflitos de uma família pobre, seu cotidiano de discussões e bebedeiras. Na história do ex-operário Expedito mais uma vez a pobreza, o alcoolismo, o dia-a-dia no subúrbio. O humor permeia as páginas de “Primeira Comunhão de Filha de Pobre”. Mais brigas, mais bebedeiras, mais confusão, a presença da polícia. Em “Cantar de Amigo de Mundinha Pachico” o conflito vai além da família: a protagonista é acusada de abrigar em seu chatô “uma menor”: “Há tempos que um freguês levava uma menor para lá quase todos os dias. Mas ninguém sabia que o diabo da menina era menor, não.” Conduzida numa rádio-patrulha, a caftina é presa, para alvoroço do povo da Rua Júlio César. Era no tempo em que nas ruas ainda não se via asfalto: “Lá fora, a areia da rua pegava fogo.” Personagens do submundo da prostituição também compõem o conto de Alzira Ferreira Lima.

No segundo livro novos conflitos familiares, talvez mais pungentes do que os do primeiro. Em “Um Tal de Pedro Amorim (Cantiga de Joaquinho Gato)” quatro homens se reúnem para supliciar e castrar um amante de Zila, mulher de Seu Aprígio. O narrador se esmera nos mínimos detalhes das ações. Aliás, são diversos os narradores, que se sucedem ao longo da narrativa. Qual o conflito de “Cururu”, história essencialmente naturalista? No saco da Serra do Rato, homens capturam sapos, conduzem-nos em caçuás e os vendem a Seu Zezé. Outros homens se encarregam de extirpar-lhes o couro. É um primor a narração do ato de crucificar o animal e, em seguida, ainda vivo, retirar-lhe, a canivete, o couro. No entanto, a simples narração da morte dos cururus não constituiria um conto. Juarez Barroso consegue, porém, fazer do narrador um personagem mais humano, ao pôr um sapo em sua rede.

A presença de animais é fundamental nas histórias em análise. Além dos sapos de “Cururu”, os cavalos são “personagens” de maior relevância, como o pedrês de Dona Nazinha. Há, porém, um personagem muito mais significativo: Joaquim Bralhador, o homem-cavalo. Ainda menino, após um “febrão”, passou a ficar “feito abestado diante dos burros e dos cavalos”. Passava horas “numa carreira pulada, trocando as passadas, de dois em dois, a moda de um galope, pototoco, pototoco, pototoco.” Sentia-se animal e ao mesmo tempo homem. Com o tempo, porém, “as duas naturezas começaram a se estranhar, a se cansar uma da outra”. Até morrer tragicamente, feito “cavalo de lote que morre estrepado”, “espetado pela barriga, a ponta (de uma estaca) quase lhe saindo pelas costas.”

Essa não-idealização da realidade, essa fidelidade ao real e ao natural faz de Juarez Barroso um autêntico neonaturalista, apesar de alguns traços de humor e até de fantástico em sua obra. Não somente o real social, mas, sobretudo o real natural, especialmente o do ser humano.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.


quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

José Feldman (Aquarela de Trovas n. 5)


Ou o amor enfim nos faz
desarmar o coração,
ou do cachimbo da paz
nem as cinzas sobrarão!
A. A. DE ASSIS – Maringá/PR
 * * * * *
Desde o tempo de Noé
que o mundo pôs-se a saber
que manga não cai do pé
porque não sabe descer!
ADEMAR MACEDO – Natal/RN
* * * * *
Eu vi crianças brincando
junto de lindas roseiras,
como aves cantarolando
nos ninhos, todas faceiras!
AGOSTINHO RODRIGUES – Campos/RJ
* * * * *
Da viagem pouco importa
minhas dores e cansaços,
se ao voltar te encontro à porta
a receber-me nos braços!
AMÁLIA MAX – Ponta Grossa/PR
* * * * *
Fugindo pela janela,
o “dom juan” quis “dar no pé”.
– Um fantasma!, gritou ela.
E o marido: – Agora é!
ANGÉLICA V. SANTOS – Taubaté/SP
* * * * *
Eu quero ser o seu vinho,
o cálice que inebria;
ser seu parceiro no ninho,
ser madrugada, seu dia!
ANTONIO MANOEL ABREU SARDENBERG –  São Fidélis/RJ
* * * * *
Quem tem amigos por perto
vence qualquer desafio.
Só o tolo enfrenta o deserto
levando o cantil vazio!
ARLINDO TADEU HAGEN – Belo Horizonte/MG
* * * * *
Se eu for a todos dizer
o que está em meu coração,
num livro não vai caber
toda a minha gratidão.
CIDINHA FRIGERI – Londrina/PR
* * * * *
Eu confesso hoje, sem medo,
que este amor em mim guardado
não é só o meu segredo,
é também o meu pecado!
CLENIR NEVES RIBEIRO – Nova Friburgo/RJ
* * * * *
Tem gente que tanto mente,
conta lorota, faz fita,
que, da verdade descrente,
nem em si próprio acredita.
CLEVANE PESSOA – B. Horizonte/MG
* * * * *
Nossa foto, na "lixeira",
meu amor, levou "delet".
Vou procurar quem me queira,
noutro "site da Internet"
CRISTIANE BROTTO – Curitiba/PR
* * * * *
Sofrem tantos na agonia
do delírio, dito "amor";
isso tudo acaba um dia:
faz  frio após o calor...
DIAMANTINO FERREIRA – São Fidélis/RJ
* * * * *
Poeta mantém acesa
a chama do amor fecundo,
minimizando a tristeza
e as dores cruéis do mundo.
DJALMA MOTA – Caicó/RN
* * * * *
Foi fantasma!... Creia em mim!
diz a soprano ao marido.
– Fantasma no camarim?
– E’ o da ópera, querido!!!
EDMAR JAPIASSÚ MAIA – Rio de Janeiro/RJ
* * * * *
Não te rendas nunca à dor,
se o teu bem tem rumo incerto,
pois, muitas vezes, no amor,
esse longe é muito perto!
EDUARDO TOLEDO – Pouso Alegre/MG
* * * * *
Minhas mágoas disciplino
com a força da oração:
tenho um médico divino
que jamais deixa o plantão!
ÉLBEA PRISCILA – Caçapava/SP
* * * * *
No jogo da vida é assim:
tem encrenca e desacato,
e, quando ele chega ao fim,
a mãe de alguém paga o pato...
ERCY MARQUES DE FARIA – Bauru/SP
* * * * *
Minha jangada, tristonha,
abandonada no cais,
vela içada, ainda sonha
com ventos do nunca mais!
FERNANDO CÂNCIO – Fortaleza/CE
* * * * *
Deus, garimpeiro maior,
vai, no seu mister profundo,
salvando o bom e o melhor
que há nos garimpos do mundo.
FLÁVIO STEFANI – Porto Alegre/RS
* * * * *
Vou revelar o caminho
de uma longa vida-a-dois:
é trocar muito carinho
antes, durante e depois.
FRANCISCO MACEDO – Natal/RN
* * * * *
Tuas palavras magoam,
mas te perdôo, pois, enfim,
são abelhas que ferroam
mas que dão mel para mim.
FRANCISCO PESSOA – Fortaleza/CE
* * * * *
Meus lábios apaixonados
bebem o orvalho dos teus,
desses teus lábios molhados
que sonham com os lábios meus!
GISLAINE CANALES – Balneário Camboriú/SC
* * * * *
Sem esquinas... sem saídas...
muitas vidas são assim...
Ruas retas e compridas,
e um grande portão no fim...
IZO GOLDMAN – São Paulo/SP
* * * * *
No silêncio da memória,
onde a saudade faz ninhos,
eu deixei a nossa história
e vivo a paz dos sozinhos!
JOAQUIM CARLOS – Nova Friburgo/RJ
* * * * *
Insisto em que não desistas
jamais das glórias que queiras:
antes das grandes conquistas
erguem-se as gandes barreiras!
JOSAFÁ SOBREIRA DA SILVA – Rio de Janeiro/RJ
* * * * *

Sonhando com um amor,
buscava um novo horizonte.
Colhi sementes de dor...
espalhadas pela ponte.
JOSÉ FELDMAN - Maringá/PR
* * * * * Caio, levanto-me e sigo!
Mal sabem que esta coragem
é apenas meu medo antigo,
usando nova roupagem!
JOSÉ OUVERNEY – Pindamonhangaba/SP
* * * * *
Nos garimpos desta vida,
que o destino abandonou,
eu sou batéia esquecida
que nem cascalho pegou.
JOSÉ VALDEZ C. MOURA – Pindamonhangaba/SP
* * * * *
Num certo 12 de junho,
vi caracteres gravados:
Meu nome escrito em teu punho,
pois éramos namorados!
LAIRTON TROVÃO DE ANDRADE – Pinhalão/PR
* * * * *
Há sorriso de ironia,
há sorriso imerso em dor,
há também de simpatia...
mas o melhor é o de amor!
LÓLA PRATA – Bragança Paulista/SP
* * * * *
A mais linda das respostas
nos dá Jesus, nosso amigo:
– “Pode o mundo dar-te as costas,
mas Eu estarei contigo!”
LUCÍLIA DECARLI – Bandeirantes/PR
* * * * *
Teus sucessos, conta aos pais,
que ao certo vão se alegrar;
mas aos “amigos”,  jamais,
pois por trás vão te pichar...
MARIA DE ARCHIMEDES – Rio de Janeiro/RJ
* * * * *
Somos, sim, irmãos de fé,
e a música tem provado:
no riso, samba no pé;
no choro, a emoção do fado!
MARIA ELIANA PALMA – Maringá/PR
* * * * *
Pelas procelas da vida
passei tanto vendaval...
A cada onda vencida
nela afundei o meu mal!
MARIA JOSÉ FRAQUEZA – Portugal
* * * * *
Quebrei a estrela do sonho
na longa noite vazia,
mas... de seus cacos componho
o sol de minha alegria...
MARIA LUA – Nova Friburgo/RJ
* * * * *
Para este amor, que a nós dois
tomou – assim de improviso –,
não houve “antes” nem “depois”;
houve o “momento preciso”!
MARIA MADALENA FERREIRA – Magé/RJ
* * * * *
Revivendo o meu passado,
me torturo de tal jeito,
que chego a crer que é pecado
guardar saudades no peito !
MARIA NASCIMENTO – Rio de Janeiro/RJ
* * * * *
Com volúpia e desvario,
neste amor vou mergulhar...
Eu me sinto como o rio,
que se atira para o mar!
MARIA THEREZA CAVALHEIRO – São Paulo/SP
* * * * *
Por razões, às vezes fúteis,
corre o sangue numa guerra.
Eis as sangrias inúteis
que envergonham nossa terra.
MIGUEL RUSSOWSKY – Joaçaba/SC
* * * * *
O poeta, em sua lida,
ainda que o mundo o afronte,
tem sempre um sopro de vida
que o leva além do horizonte...
MILTON NUNES LOUREIRO – Niterói/RJ
* * * * *
Lá fora, nada me importa,
e esqueço da vida ingrata,
quando você fecha a porta...
e tira o nó da gravata!
NEIDE ROCHA PORTUGAL – Bandeirantes/PR
* * * * *
No teatro desta vida
cada qual faz sua história:
se não for bem aplaudida,
é vaiada e vexatória.
NEI GARCEZ – Curitiba/PR
* * * * *
Da Juruti gemedeira
já não ouço o seu refrão:
foi a seca "matadeira"
que enxotou-a do sertão!
NEMÉSIO PRATA CRISÓSTOMO – Fortaleza/CE
* * * * *
De que vale o meu protesto,
se manténs, em tuas mãos,
o poder de, a um simples gesto,
cortar o “til” dos meus nãos!
OTÁVIO VENTURELLI – Nova Friburgo/RJ
* * * * *
Viajei pelo mundo inteiro
e nunca mais pude achar
o que no instante primeiro
encontrei em seu olhar.
OLGA AGULHON – Maringá/PR
* * * * *
Por vaidosa a tartaruga
olha no espelho e faz planos
de remover uma ruga
surgida aos 200 anos!
PEDRO ORNELLAS – São Paulo/SP
* * * * *
Um degrau eu sempre subo
quando a grana é insuficiente
e pulo em cima do tubo
pra sair pasta de dente...
RENATA PACCOLA – São Paulo/SP
* * * * *
Quando me pego tristonho,
de pensamento disperso,
tiro um sonho de outro sonho,
vou passear no universo!
SELMA PATTI SPINELLI – São Paulo/SP
* * * * *
Do sonho compartilhado,
agora, somente resta
um convite, amarelado,
marcando o dia da festa...
SÉRGIO FERREIRA DA SILVA – São Paulo/SP
* * * * *
Colheita, ainda guardada
num simples grão amarelo,
é uma obra a ser lançada,
mas que ainda está no prelo.
VANDA FAGUNDES QUEIROZ – Curitiba/PR
* * * * *
Causador da minha insônia,
motivo do meu sorriso,
sem nenhuma cerimônia
me transporta ao paraíso!
VÂNIA ENNES – Curitiba/PR

Machado de Assis (Gazeta de Holanda) – N.° 4 – 17 de novembro de 1886.

Que será do novo banco?
Interroga toda a gente;
Respondem uns que um barranco,
Outros dizem que uma enchente.

Certo é que andaram milhares
De contos, contos e contos,
Uns por terra, outros por mares
Contos de todos os pontos.

Caíam como sardinhas,
Pulavam como baleias;
Aí belas ambições minhas!
Ai sonho, que me incendeias!

E o Holman, o forte e ledo
Inglês abrasileirado,
Contemplava o Figueiredo,
Que olhava, grave e barbado.

Supunha que muita gente
Viesse; mas gente tanta
Não cuidavam certamente...
Obra abençoada e santa!

Da empresa, ora começada,
Há quem diga maravilhas;
Muita idéia cogitada;
Ouro a granel, ouro em pilhas.

Circulação recolhida,
Câmbio a vinte e seis ou sete,
Mudança da antiga vida,
Outra cara, outro topete.

Ai, sonho! ai, diva quimera!
Pudesse eu entrar na dança!
Ai viçosa primavera!
Ai verde flor da esperança!

Nem eu, nem o meu compadre
Eusébio Vaz Quintanilha,
Que, por mais que corra e ladre,
Nenhum grande emprego pilha.

Que, para matar a fome,
Vem matá-la em minha casa,
Sem poder dizer que come,
Mas que destrói, mata, arrasa.

Pobre Quintanilha! Um anjo!
Coitado! Afinal parece
Que lá teve algum arranjo
Que lhe dá certo interesse.

Há já dias que o não via;
Onde iria o desgraçado?
Quem sabe se morreria,
Faminto, desesperado?

Eis que ontem, quando passava
Pela rua da Quitanda,
E nos negócios cismava
Desta Gazeta de Holanda,

Lá no outro lado da rua
Uma figurinha pára;
Trazia a cabeça nua,
Bacia, opa e uma vara.

Era o pobre... Deu comigo
E veio, em quatro passadas,
Ao seu delicado amigo
Apertar as mãos pasmadas.

— “És andador de irmandade?
Aprovo os teus sentimentos
De devoção, de piedade...
Toma um níquel de duzentos”.

— “Não, Malvólio, não, não ando
Como um andador professo...”
— “Andador de contrabando?”
— “Também não; ouve, eu t’o peço.

“Esta opa, esta bacia
Alugo a alguma Irmandade:
Dou cinco mil réis por dia,
E corro toda a cidade.
“Varia o lucro, segundo
Dou mais ou menos às pernas;
Não escandalizo o mundo
E mato as fomes eternas.

“Rende-me oito ou nove, e há dias
De dez mil réis, dez e tanto.
Crês? Já faço economias,
Já deito algum cobre ao canto.

“É este o meu banco. O fundo
É variável, mas certo;
Deus dá banco a todo o mundo;
Uns vão longe, outros vão perto.

“Eu cá não ando com listas
De ações, nem faço rateio;
Todos são meus acionistas,
Gordo ou magro, lindo ou feio.

“Que um só vintém esmolado
Vale no céu muitos contos;
E há muito vintém cobrado...
Vinténs de todos os pontos!”

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

Caio Porfírio Carneiro (Terceiro Cavaleiro: A vingança)

Por isto ele tinha aquela grande tristeza,
Que ele nunca disse bem que tinha...
Fernando Pessoa


As patas do animal deslizaram no barro e a mão susteve a rédea para manter o equilíbrio. A chuva caía persistente e encharcava a longa crina castanha.

Olhos tristes, faces encovadas, aproximou-se da calçada alta e em rápida laçada prendeu o animal ao poste. Chegou-se ao balcão deserto, coberto de moscas:

– Uma dose. Forte. Bem forte.

O homem flácido embrulhou-se e recuou tímido antes de atendê-lo.

– Este frio que não passa...

O homem flácido entregou-lhe a bebida. Examinou o conteúdo do copo, onde pequenas borbulhas explodiam como pérolas.

– Da melhor.

– Obrigado.

Sorveu o líquido de uma vez e sentiu a sensação morna espalhar-se por todo o corpo. Enfiou as mãos nos bolsos do capote e deteve-se à porta. Circulou a vista pela praça deserta:

– Apenas o senhor vive neste lugar?

O homem escorou-se ao balcão e balbuciou palavras ininteligíveis.

– Todos se foram?

O homem flácido continuava a atropelar palavras.

– E se eu estivesse aqui para matá-lo?

O homem abria desmesuradamente os olhos e fazia gestos confusos com as mãos.

– Pensarei nisto, homem. Pensarei nisto.

Aproximou-se do animal e enxugou-lhe, com a aba do capote, o focinho gotejante. A vista caiu então no vulto, encolhido no banco tosco, no centro da praça. Voltou ao balcão e bateu muitas vezes com os nós dos dedos na madeira:

– Ele lá. Está vendo? Lá, no banco da praça. Persegue-me há anos. Sabia?

O olhar do homem flácido procurava compreender. O braço continuava apontando:

– Lá. No banco da praça.

O homem encolhia-se e mostrava-se mais balofo. E tinha medo dos olhos tristes.

– Persegue-me sempre, sem parar. Um tormento.

Voltou à porta, decidido. A praça mostrava-se deserta. Circulou pela calçada, olhos vigilantes e mais tristes. As casas, iguais e cinzentas, acachapadas sob o aguaceiro, cercadas de carrapicho. A igreja, ao centro, coberta de lodo e descascada, crescia monstruosa e ele teve uma ponta de medo. A água, em riachos, gorgolejava em muitas direções.

Recuou em passos lentos, levantou a aba do capote, desceu a do chapéu, para impedir que o vento continuasse a lhe navalhar o rosto.

O homem, debruçado ao balcão, disforme e pesado. Foi necessário que o suspendesse pelas axilas, acumulando o máximo de forças, e o jogasse sobre sacas. Então pulou o balcão e se serviu sucessivamente de doses douradas, até se sentir perfeitamente aquecido. Com esforço, transpôs uma das sacas sobre o balcão e aproximou-a do animal:

– Farte-se.

Apanhou, nadando no enxurro, o pedaço de madeira com muitos nós, e sopesou-o. Ao erguer-se, os olhos abriram-se surpresos e depois semicerraram-se desconfiados para estudar, com cuidado, o vulto ali encolhido no banco tosco, meio enfiado na lama, no centro da praça.

Voltou rápido e bateu o pedaço de madeira com tal violência no balcão que o homem deslizou pela parede como enguia.

– Persegue-me sempre! Não me deixa em paz.

Pegou o homem pelo braço, decidido:

– Venha.

Trouxe-o por sobre o balcão, as pernas gordas a atrapalhar.

– Venha!

Empurrou-o porta afora e juntos percorreram a calçada. Estacou. O banco estava deserto, lá sozinho no centro da praça, meio encoberto pelo mata-pasto, e cresceu-lhe por isto um começo de ódio e decepção.

– Volte, homem, para a sua venda. Não preciso mais de você.

Sentou-se na ponta da calçada, junto ao animal, que focinhava o conteúdo da saca, na pressa de comer. O capote aberto, indiferente ao vento frio, não afastava os olhos do banco tosco e deserto. Demorou-se ali longamente. Depois levantou-se, abotoou-se até o pescoço, voltou a descer as abas do chapéu e a subir a gola do capote. Firmou na mão o pedaço de madeira e saiu, blote, blote, a mergulhar as botas no barro mole, disposto a uma inspeção. O animal, farto, escorou-se ao poste, sonolento, indiferente à chuva.

Aproximou-se do velho banco de madeira carcomida, derreado na lama e no mato crescido. As casas pareciam vigiá-lo. A igreja bem plantada e disforme no meio do capinzal que alcançava os peitos.

Parou diante da porta e pensou em abri-la em encontrão rápido. O sentimento de respeito fê-lo apenas encostar os dedos. Surpreendeu-se ao vê-la ceder sem esforço e escancarar-se par em par. A nave pareceu-lhe imensa, sem fim e deserta. Os passos reboaram e ele passou a mudá-los com prudência. A abóbada, lá no alto, e o crucifixo, lá distante, deram-lhe conta de que estava sozinho. Voltou sobre os próprios passos e se deteve à porta escancarada para o tempo. O vulto estava no banco, encurvado e solitário. O ódio e o desespero crisparam-lhe os dedos no pedaço de madeira.

Aproximou-se pisando em tufos de capim. Viu-se às costas do vulto, que se tornara mais impreciso, envolto que estava na espessa neblina. O braço subiu e caiu em pancadas violentas e sucessivas, até sentir-se exausto e descobrir que o pedaço de madeira se partira em farpas miúdas.

Voltou para junto do animal. Estirou-se na calçada, abriu o capote, jogou o chapéu para o lado, desabotoou a camisa e recebeu no peito, como um bálsamo, a água fria que caía em cortina cerrada. Poderia dormir profundamente e deixar o tempo passar.

Então aproximaram-se e seguram-lhe os pulsos. A multidão fechava o círculo e o homem flácido mostrava-se ainda apavorado:

– Entrou aqui na venda, tirou-me do sono, bebeu e espancou-me.

O homem fardado olhou-o nos olhos e o homem flácido ampliou os gestos:

– Arrastou-me aqui fora, por cima do balcão. Aqui fora.

O dedo gordo, igualmente flácido, apontou trêmulo para a saca:

– E tudo aquilo, de muito valor e de minha propriedade, para o cavalo dele. Prejuízo grande.

O homem fardado ordenou que se afastassem. Austero e silencioso, examinou o animal. Depois, encurvado, mãos nos joelhos, estudou o homem de faces encovadas estirado na calçada:

– Encapotado como está, e com este sol, de onde terá vindo?

Voltou ao animal. Verificou sela, arreios.

– Coberto de suor. Estafado. Vê-se logo.

A voz cansada e catarrosa de um velho tão velho que não tinha mais o que envelhecer se destacou por entre as muitas cabeças:

– Muitos se foram, amargurados e tristes, no tempo das chuvas e das pestes na Lagoa Grande. Lembram-se? Parece um deles.

O homem fardado encarou o velho bem velho, com ar de incredulidade:

– Muitos e muitos anos já se passaram, velho. Anos e mais anos.

Depois, mostrou-se revoltado:

– Ninguém surgiu, da multidão tão grande, a passear na praça ou a rezar na igreja, para segurar-lhe o braço e impedir que desse cabo daquele pobre coitado, que apareceu por aqui e ninguém sabe também de onde veio.

Voltou a examinar, detidamente, o homem encapotado, estendido na calçada, e sentiu por ele, inexplicavelmente, muita pena.

– Dorme profundamente.

Pensou um instante e concluiu:

– Melhor assim.

E olhou na direção do morro, para os lados da serra do Catolé:

– Levem-no e julguem-no.

(Caio Porfírio Carneiro, Chuva: Os dez cavaleiros)

Fontes
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.
Imagem = Cavaleiro da Morte, de Lúcio Mota

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Caio Porfírio Carneiro

Caio Porfírio de Castro Carneiro (Fortaleza, 1928) bacharelou-se em Geografia e História pela Faculdade de Filosofia de Fortaleza. Transferiu-se para São Paulo em 1955. Secretário administrativo da União Brasileira de Escritores de São Paulo desde 1963. Ganhou vários prêmios literários, como o Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, e o Pen Clube de São Paulo. Contos seus estão incluídos em duas dezenas de antologias do gênero e traduzidos para o espanhol, italiano, alemão e inglês. Publicou os livros de contos Trapiá (1961); O Menino e o Agreste (1969); O Casarão (1975); Chuva – Os dez cavaleiros (1977); O Contra-Espelho (1981); 10 Contos Escolhidos (1983); Viagem sem Volta (1985); Os Dedos e os Dados (1989); Maiores e Menores (2003). Escreveu também romances, como O Sal da Terra (1965), que foi traduzido para o italiano, árabe e francês e adaptado para o cinema, e Uma Luz no Sertão (1973), também as novelas Bala de Rifle (1963), A Oportunidade (1986), Três Caminhos (1988) e Dias sem Sol (1988), além de literatura juvenil, poesia, reminiscências, perfis e memórias.

Caio Porfírio Carneiro é um dos mais fecundos cultores do conto no Ceará. Sua obra de contista e romancista tem sido objeto de estudo de diversos críticos. Alguns o consideram um dos mais importantes contistas brasileiros do século XX.

As primeiras narrativas curtas de Caio têm como palco o sertão, o campo, os vilarejos, as pequenas cidades. Em “Milho empendoado”, de Trapiá, os personagens circulam pela caatinga, pelo mata-pasto, pelo roçado. Do campo para a cidade pequena é um passo. A vida rural é retratada nesses contos com fidelidade. Em “O pato do Lilico” também se vê toda aquela paisagem sertaneja, quer no campo propriamente dito, quer no interior das casas, bem como os costumes (cavalo de talo de carnaúba), os objetos (bilros de almofada, cabresto, cangalha, grajaú), a linguagem (bichinho, socar-se, rachar de peia). Em “Come gato” o contista entrança duas histórias aparentemente díspares – a disputa política entre coronéis e a humilhação diária do pobre Olavo, apelidado pela meninada de Come Gato – para pintar um quadro de agudo realismo. Esses primeiros contos são relativamente longos, se os compararmos aos de alguns livros posteriores. Neles os diálogos se alongam, entrecortados por breves narrações.

A estrutura das narrativas de Caio foi se transformando lentamente de livro para livro. A linearidade de Trapiá desaparece a partir de Os Meninos e o Agreste. “O bilhete” é composto de diversas ações, ao longo dos dias. O espaço é o de uma cidade pequena, porém não mais Trapiá. O enigmático – um dos esteios da obra de Caio – prende o leitor desde o primeiro diálogo. Novas estruturas de conto aparecem aqui e ali. Em “O pecado” exibe elementos do teatro: como se fossem subtítulos, os atos são encimados por anotações como “Voltando da missa”, “Em casa”, “À tarde, no campo de futebol” etc.

Os contos de O Casarão também se afastam do discursivo linear. Veja-se a espinha dorsal de “A herança”: o narrador descreve um morto (“mãos cruzadas ao peito”), sem se apresentar. Passa a narrar uma reunião familiar, em volta do defunto. Somente na segunda página o narrador se mostra como personagem. E mais adiante como menino, na ordem recebida “– Vá deitar-se.” A narração se faz lenta, detalhada. Na terceira página um flashback curto, e logo o passado se funde ao presente de forma sutil.

O elemento tempo é regido com diversas técnicas, como em “A volta”, no qual os tempos se confundem. Já em “A viga” as ações se dão em sequência e também em círculo.

Observa-se em Caio também a ausência de descrições. Assim, a referência a casco de animal, novilho, ingazeira sugere o espaço rural. No terceiro volume ainda são longas as narrativas, sempre repletas de diálogos. Há, porém, narrativas em outro formato, como “A busca”, sem diálogos e num só parágrafo. O espaço das ações é um casarão. Em “A herança” há certo mistério no desenvolver-se da trama, com desfecho inesperado ou enigmático. A intriga é muitas vezes recheada de mistério, como em “A busca”.

Chuva (Os Dez Cavaleiros) é quase um romance, se é possível isto. A chave para esta observação se encontra na última narrativa, quando o décimo cavaleiro, dirigindo-se ao seu interlocutor, fala: “Olhe aqui, homem: de toda a multidão que conheci, correndo a planície, a serra do Catolé e todos os lugares que cercam a Lagoa Grande, nove ficaram na minha cabeça. Nove. Todos cavaleiros como eu”. Como se dissesse ter conhecido as outras nove histórias do livro. Nos dez contos há sempre um cavaleiro vestido de capote e coberto de chapéu, e outra personagem, ambos sem nome explícito. A paisagem é composta de chuva, um ambiente de campo, com um casebre ou choupana, com chão de barro batido, às vezes uma vila, com uma pracinha, uma igreja abandonada e gente desvalida, sofrida, com medo. De comum também o espaço apenas referido da serra do Catolé e da Lagoa Grande, sempre muito distantes. Quase uma miragem. Para completar a narrativa, um drama e um desenlace enigmático, de parábola. Os desfechos muitas vezes estão nos títulos das histórias.  O fantástico se desenha em quase todos os contos, quer no desenrolar da trama, quer no epílogo. Seria, porém, um fantástico mais próximo da parábola, do simbólico, do enigmático. Outras vezes é apenas uma sugestão. Esse enigmático é como que o sangue do corpo das narrativas de Caio, presente desde os seus primeiros livros. Alguns personagens chegam a parecer anormais, por conta do enigma que conduzem. Em “O olhar”, de Maiores e Menores, o narrador é tratado como louco, “vigiado por pessoas de branco, dopado de tantas agulhadas”. Em “Antanho”, do mesmo volume, o leitor não sabe se o tempo existe ou não existe, se a história é real ou irreal. O protagonista volta à vila de sua infância muitos anos depois. Está tudo igual a antes, à exceção de uma motoca que “entrou como um raio na rua, aos papoucos” (...). No final, o motoqueiro esclarece tudo: “– O que foi fazer naquela vila morta? Lá não mora mais ninguém.” Afinal, quem é o homem que volta à vila sem vida, à procura de uma tal Maria Cristina (que já devia ter morrido há muito), conversa (ou imagina conversar) com “fantasmas”?

Em todos os contos de Chuva a narração se dá na terceira pessoa, mais para observador do que para narrador onisciente. Talvez apenas em um trecho de um dos contos o narrador se faz onisciente. A narração é quebrada, aqui e ali, por breves e ásperos diálogos, em linguagem culta ou literária. Caio manipula a linguagem com sabedoria, valendo-se de muita imaginação e do conhecimento das melhores ferramentas da arte de narrar.

Em Os Dedos e os Dados, o contista parte por caminhos menos espinhosos, lamacentos, embora retrate também graves conflitos humanos. E se serve de formas variadas para compor as histórias. “A Promessa” é quase todo um só diálogo, de frases curtas. “A Confissão”, como o título sugere, é um diálogo. Em “A Missão” não ocorre uma só fala e a narração é composta de um longo parágrafo e uma frase curta: “A outro qualquer caberia terminar a tarefa”. É a busca da crucificação, novo Cristo sem algozes. Alguns contos tratam do relacionamento amoroso e podem ser tidos como eróticos.

Caio é um especialista da história curta, breve. No entanto, é capaz de se alongar, como em “Um Segundo”. E aí mora o mistério. Em um segundo ele consegue ser mais expansivo do que em histórias que duram horas.

A Partida e a Chegada é outro livro de construção inusitada, a lembrar uma casa composta de fachada rococó, paredes barrocas, colunatas romanas. Como Chuva, deve ser lido como um todo, conto a conto. Leiam-se os diálogos de abertura do volume, como se fosse um prólogo ou, em termos de arquitetura, o átrio de uma casa romana ou o alpendre de antigas casas sertanejas. Duas personagens, sem nome explícito, conversam, como se resumissem as histórias seguintes. A descrição do ambiente é mínima: a lua, as nuvens, as estrelas, o céu. São como cenário singelo de um palco pequeno, onde dois personagens encenassem cinco brevíssimas peças. Tudo muito contido.

Ao contrário de Chuva, todo ambientado no campo, as narrativas deste são, na maioria, de inspiração urbana. No primeiro conto, “A Carícia”, é narrado  assalto a um banco. O contista utiliza alguns procedimentos formais mais ousados, embora não mais de vanguarda (hoje), como o cruzamento de narrações na terceira e na primeira pessoa, além do diálogo indireto e da linguagem oral. As narrativas “Saparanga” e “Zecapinto” ocorrem num lapso de tempo bem mais longo do que na maioria das histórias curtas de Caio.  A contrastar com a tensão do primeiro conto, nestes perpassa um humor circense. Os protagonistas são um tanto picarescos. Há, no entanto, uma variedade de enfoques no livro. Assim, “O Crime” é quase a reconstituição de um fato histórico, em Caucaia, Ceará.          

Os livros de Caio têm a marca de Caio, até pela estrutura dos contos. Em Maiores e Menores o contista mostra narrativas escritas entre 1995 e 2002. Umas mais longas, outras mais curtas. Em “Cantiga de ninar” os personagens não têm nomes explícitos, o que ocorre em muitas outras narrativas. A história é narrada quase toda num longo diálogo conduzido por narrador onisciente. No entanto, isento de opinião. O diálogo é interrompido aqui e ali pelo narrador, para indicar ao leitor o lugar onde um homem conversa com outro mais velho e para mostrar os movimentos dos personagens: “Olhou o carro que ia em disparada na estrada asfaltada, do outro lado da porteira” (...). Sabe-se, então, que os personagens se encontram numa casa de campo. Caio, porém, não se atém a esse tipo de narrativa. Em “Ele”, por exemplo, o leitor não sabe quem é o narrador até as proximidades do final da história. Percebe que o ponto de vista é da primeira pessoa quando lê: “Ele me olhava com olhar neutro.” Além disso, o conto é narrado no pretérito imperfeito (“Ele sempre se sentava na mesma cadeira”) até o desfecho, quando o narrador substitui aquele tempo verbal pelo perfeito (“Ele ficou assim depois que a esposa se foi”...) e pelo presente (“Ele me assusta quando olho para a criadinha”).

Quase todos os livros de narrativas curtas de Caio apresentam características de romance. Veja-se Trapiá. As histórias se desenrolam na pequena cidade de Trapiá e em seus arredores. Não há um conto intitulado “Trapiá”. Em Casarão ocorre o mesmo processo: as narrativas têm como palco um casarão, embora em tempos diferentes.

Embora também romancista, e dos bons, Caio Porfírio Carneiro é contista com pleno domínio das técnicas da história curta. Seus contos não são esboços de novelas ou romances. São contos de alta linhagem, merecedores de leituras, releituras, estudos.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Paulo Walbach (Caderno De Versos)

APENAS UMA PLUMA

Sou apenas uma pluma carregada pelo vento;
vou vivendo a minha vida, por aqui ou acolá,
sem morada, sem família e sem ninguém.
Sou apenas uma pluma, desgarrada de meu sabiá...

Não tenho asas, não tenho canto,
não tenho vida, só tenho encanto.
Sou suave, leve solta eu sou,
Sem presa, sem saber para onde vou.

Sou apenas uma pluma do meu sabiá,
que voava e cantava pra viver...
Mas, um dia, triste dia aconteceu:
Uma pedra, dura pedra o abateu.

E soltei-me da plumagem de seu peito,
e do sopro derradeiro, eu voei...
Sou a pluma separada do meu ser,
que morreu, sem saber do meu viver!

Minha vida se é vida, feito assim...
Pouco dela sei, pouco sei de mim.
Pois eu vivo, se o sopro me soprar,
se a brisa ou se o vento me levar.

Mas um dia, a sorte me pegou
pelo vôo de um pássaro de acolá,
carregando-me pelo bico familiar:
Era o bico da mulher do meu sabiá.

De uma vida com passado, sem futuro,
transmutada de um dia para cá...
Do nada, quase nada, virei ninho
da ninhada dos filhotes do meu sabiá!
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A LINGUAGEM DO POETA
 

Arte, Sonho, Liberdade! – a Poesia;
que o poeta,sem passagem, acredita,
pelos sonhos, perambula na magia
das palavras de sua Língua tão Bendita.

Ele voa pelas asas da alegria,
no embalo da estrela que palpita…
nos acordes do silêncio e da folia;
acelera, anda, passa, freia, grita…

Na linguagem; sinestesia ele tenta…
Escrevendo, vai suprindo sua emoção,
muitas vezes, já cansado de Sonhar…

O Poeta, com coragem, experimenta
até o fogo, que embriaga o vulcão,
acendendo seu pavio do Amar!
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RASCUNHO & BORRÃO

Nas linhas pautadas do velho caderno
aterrissam sonhos, que viajam em mim…
Vêm de algures, além do inverno,
ao porto seguro da pista molhada,
em versos sem fim…

Pedaços poemas, delírios sem asas,
fonemas opacos que vêm para mim;
às vezes quebrados, não chegam, não vingam,
se perdem no espaço…
e viram poeira num outro jardim.

Palavras sem forças, sem nexo,sem voz,
que risco e apago e faço borrão.
Pensamentos que fogem, se soltam no ar,
e voltam sem vida na mente cansada
de minha emoção…

Os versos que morrer no ventre da alma
são sementes estéreis jogadas no chão…
Sepulto as letras nas pautas vazias,
escritos perdidos à espera de luz,
meu lápis riscando em traços em cruz…
fechando o caderno rascunho e borrão!
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VENTO MENINO

Acordei com a voz do vento,
Que batia na minha janela...
Pensei na hora e no tempo,
Acendi ao meu lado uma vela.

Lá fora o frio ardia,
Doíam, a relva e a flor...
O vento na janela batia;
Batendo, implorava calor.

Abri a janela e o vento...
Tremendo, em mim desmaiou;
Passei minhas mãos sobre ele,
Sorrindo, o vento acordou.

Parecendo um menino perdido
Entre as mãos espalmadas o acolhi,
Balbuciando logo em meu ouvido,
melancólico adágio eu ouvi.

Tremendo ainda o vento,
No outro ouvido cantou...
Parecendo elemento alado,
O vento pra mim sussurrou.

Não sendo menino e nem pássaro,
Que presos, ainda podem cantar...
Levei-o tão logo à janela...
E o vento se põe a voar!
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MÃE

MÃE é presente e eternidade
Que amarra a prole e a família
Por laços de verdade,
No mais nobre sentimento e magia.

MÃE é futuro da mulher...
Que DEUS faz no seu corpo crescer
A semente da mais bela flor,
Pelo filho que um dia há de nascer.

MÃE é passado de glória, agonia e ventura...
É esplendor e saudade pura
Num perene estado espiritual.

MÃE é um ser tão singular,
Da mais forte e fiel expressão
Dos verbos sofrer e amar!
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CURITIBA...
 

Índios correndo, abrindo picadas por dentre as matas....
Itupava...caminho de pedras, início de tudo.
Atuba, primeiro local, riacho tão rico, de ouro e pedras.
Cory-etuba!.
Pinheiros rodeando, pinhão florindo, é seu dia de festa!

Um pássaro azul solta seu canto,
voeja suas asas plantando a semente,
fazendo seu ninho nos braços esguios da árvore gigante.
Nasce a cidade, no largo central...
Pelourinho, futura matriz – a Catedral...

29 de março de mil e seiscentos e noventa e três...
Mateus Leme, Ébano Pereira, Baltazar Carrasco dos Reis...

Cidade Sorriso da rua das flores...
Do Ipê amarelo que traz primavera,
Dos campos, colinas, riachos, amores...
Curitiba escancara nos abraços seus,
fazendo de sua terra a miscigenação,
na riqueza dos irmãos filhos de Deus,
Que fizeram desta casa o seu rincão.

No sotaque tão aberto deixa a gente
Tão sem graça e na graça, vem o riso
quando pede o gostoso ´leite quente´...

Curitiba, de seus bosques e postais,
Ornamenta a cidade nos Natais
Curitiba dos tubos, da Boca Maldita...
Cidade que se recicla, cidade bendita.

Curitiba dos prêmios internacionais,
Capital modelo, no papel e no serviço,
Da Universidade quase centenária tem nos anais,
o irmão, o Centro de Letras de Emiliano Perneta,
Euclides Bandeira, Emilio Meneses e de tantos mais...

Curitiba, cantamos o Parabéns pra você,
Por que é a menina cativa que muito cresceu...
És a dama de sempre, e dos pinheirais
Curitiba, poema, te amamos demais!

Fontes:
http://simultaneidades.blogspot.com
http://poetasdobrasil.blogspot.com
Lilia Souza (organizadora). Coletânea da Academia Paranaense de Poesia. 2012

Moacir Costa Lopes (Estante de Livros)

MARIA DE CADA PORTO

Romance de estréia do autor, Maria de Cada Porto é uma narrativa ousada que nos conta o drama de marinheiros náufragos que, enquanto esperam a salvação ou a morte, refletem sobre sua rotina a bordo e sobre o seu passado de festas, amores e desamor em cada porto.

Trechos do Livro

Mas é bonito o mar. Experimente ficar no bico de pro-a. A gente olha a linha do horizonte e diz tolamente: daqui a pouco estarei lá. E nunca está, nunca transpõe aquela linha que brinca de correr com a gente. A maresia entra-nos pelas narinas e nos dá vontade de ser toninhas, as bailarinas do mar. O sol mergulha e vai surpreender os peixinhos lá embaixo, às vezes mostra um peixe grande correndo atrás dos pequenos para engolir. Os peixes-voadores são zombeteiros, o grande vem com fome, raiva e sede, eles pulam fora d’água e voam vinte metros, o peixe grande engole dez sardinhas por vingança. Mais adiante um lombo escuro empurra o mar para os lados e parece até uma ilha submersa que quer respirar, mas é uma baleia que vem estudando há bilhões de anos um modo de engolir peixes sem água e, não fosse a chaminé em cima da cabeça, teria que mijar muitos dias seguidos.

O sol fica com raiva, vermelho, por não ter podido ferver o mar, e essa vermelhidão cai em cima d’água e resvala, tirando faísca de luz do costado e dos vidros das vigi-as. A maruja fica enternecida, bestamente sentimental, e dá em pensar na infância frustrada e descobre que está longe dela pela velhice de tantas viagens.

Então, um dia a gente pisa no cais, e ele parece mexer-se.

– Linda manhã.

– Manhã linda. Há muito te esperava. Que viagem longa!

– Longa viagem. Regresso mais velho, mais tolo.

E vi muita coisa. Num crepúsculo manso, uma vaga de onda crescendo e se envergando em forma de vespa, vi as bolhas se inflarem com a luz do sol morto, no topo da vaga, e se arrebentarem no arrojo das águas, se partindo, e o som do estalo chegando ao ouvido da maruja embevecida como canto das sereias, de que narram lendas antigas.

E vi também, numa esquina de rua, um homem só morrer sozinho de frio e de fome e de uma chaga roendo-lhe o corpo; janelas abertas ao lado e de frente, homens e mulheres lhe observando a morte, de portas fechadas. Quando o homem deu o último suspiro, esparramando moedas de uma lata no chão, homens e mulheres fecharam suas janelas, abriram as portas e trouxeram velas acesas para cercar o corpo do homem só, que morreu sozinho. Aí rezaram... e sentiram sua morte.

– Vi mais coisa e volto mais velho.

– Vamos então.

– Vamos.

... amores explosivos que têm a existência de um foguete de junho, amor de parada de trem, amor de linha de telefone cruzada, amor de marinheiro. Depois, num cantinho de nossa memória, esse amor catalogado mas sem local, sem data e sem nome.

– Lembrarei esta tarde por muito tempo.

– Então façamos dela uma grande lembrança, meu bem, pois estamos vivendo hoje o nosso passado de amanhã.
 
POR AQUI NÃO PASSARAM REBANHOS

Sexto e mais alegórico romance de Moacir C. Lopes, Por aqui não passaram rebanhos nos convida a refletir sobre o tempo, a transitoriedade do homem e a eternidade simbolizada pela pedra.

Na linha explícita do realismo mágico, o livro sugere que, enquanto busca sua definição como ser completo, o homem é um monstro em transição. Inspirado no Parque das Sete Cidades, no Piauí, cujas antiquíssimas formações rochosas lembram seres petrificados, conta a história de um homem despojado do passado que não sabe o que o espera no futuro.

Longe da civilização e em meio a uma região inóspita, Emiliano refugia-se numa caverna onde encontra Selene, jovem bela e sedutora que o espera há três mil anos. Ele se apaixona e tenta a todo custo embarcar no tempo dela para viverem juntos para sempre. No processo, conhece o Sumé, um velho aguadeiro cujo animal carrega tonéis furados no lombo. Por onde vai pingando a água dos tonéis, nasce uma floresta onde crianças se tornam adultos em questão de minutos. Eles dividem o mesmo espaço, mas seus tempos são desencontrados.

No final, de alguma maneira Emiliano se torna eterno, mas nem ele arriscaria dizer se ficou mais próximo da redenção ou da ruína.

Trecho do Livro


Emiliano não sabe quanto tempo caminhou. Vem de longos caminhos.

Um dia uma mulher morreu nos seus braços e os habitantes de seu povoado, em bandos de caçadores, com armas e cães, o seguiram até o meio da floresta, como fera que estivesse ameaçando o mundo. E ele era apenas uma criança. Nem trazia o contágio da doença que matara aquela mulher. Arrastava consigo apenas o contágio de sua própria espécie.

Muito depois, outra mulher, jovem, morreu nos seus braços. Também esta o amava, e ofertava-lhe o corpo cada noite. Antes, ela lhe dissera: eu vou morrer. E ele falou: vamos. A minha morte será mais longa que a tua. Assim, a partir desse dia, Emiliano começou a morrer. E não sabe quando completará a sua morte.

A última lembrança foi de uma criança com quem conviveu. Não lhe dera nome, nem sabe se chegou a ser sua filha, esposa ou irmã, só recorda que ela estendia-lhe as mãos porque queria convivência. Quando ficou adulta e julgou que já conhecia o mundo, um dia, na bifurcação de dois caminhos, ela seguiu o outro.

Foi esquecendo os gestos aprendidos, porque não conseguiu mais entender seus semelhantes, se aprendeu a sorrir também não sabe. Surpreendeu-se algumas vezes de mãos estendidas mas logo as contraía, envergonhado de querer, de pedir ou mesmo de ofertar-se. Só restava caminhar.

Lembrou-se que, por onde havia passado, o mundo era todo pertencente, cada metro quadrado de chão fora medido, entre um e outro havia faixas que diziam: passe por aqui, cuidado. E cada pedaço do mundo era de alguém que criara um idioma próprio para poder comunicar-se com os rebanhos que lhe pertenciam. Se ele caminhava por um quadrilátero e sua sombra se projetava no quadrilátero vizinho, taxavam bem caro a invasão de sua sombra.

Então, do alto do promontório, contemplando o vale, disse: por aqui não passaram rebanhos. Seguirei por aqui.

Assim, como se o corpo não lhe pertencesse e fosse trapos que espalhara, as estrelas perto do seu rosto, velando seu cansaço, adormeceu sono profundo.

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