quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Nemésio Prata (A Seca no Sertão em Trovas) 2


Folclore Africano – Tribo Bantu (O Taumaturgo das Planícies)

A tribo bantu habita os distritos de Lourenço Marques, Gaza e Sofala, em Moçambique, cujos membros têm o nome de Ba-Rongas. Sua língua é o xironga, vulgarmente chamada landim.
Era uma vez um homem e uma mulher que tiveram primeiro um filho, depois uma filha. Quando foi pago pela jovem o resgate da esposa, e ela casou-se, os progenitores disseram ao filho:

— Temos um rebanho, do qual poderias dispor. Agora já é tempo de que te cases. Escolheremos para ti uma esposa agradável, que seja filha de gente de bem.

Mas o filho recusou redondamente.

— Não — disse ele — não vos ocupeis de tal coisa. Não me agrada nenhuma das moças que aqui vivem. Se é preciso que me case, escolherei sozinho aquela que desejo.

— Faze como quiseres — disseram os pais — mas se fores infeliz, mais tarde, não teremos culpa disso.

Então, o moço partiu, deixou sua terra, e foi para muito, muito longe, para uma região desconhecida. Finalmente, chegou a uma aldeia onde viu um grupo de jovens, algumas que moiam o grão, outras que cozinhavam. Fèz secretamente sua escolha, e disse consigo:

— Aquela é a que me agrada.

Então, aproximou-se dos homens da aldeia, e disse:

— Bom dia, mestres.

—  Bom dia, jovenzinho — responderam eles. — Que desejas?

— Quero contemplar vossas filhas, pois desejo casar-me.

— Muito bem, muito bem — disseram os homens — vamos mostrar-tas, e assim poderás escolher.

Dito isto, fizeram desfilar diante dele todas as suas filhas, e ele indicou a que desejava. A moça consentiu imediatamente.

— Os teus pais, pensamos, virão visitar-nos e trazer o resgate da esposa, não é isso? — perguntaram os pais da moça.

— Não, nada disso — respondeu o jovenzinho. — O resgate trago eu comigo. Tomai: aqui está.

— Então — continuaram eles — virão mais tarde, esperamos, para acompanhar tua mulher à tua casa?

— Não, não, tenho medo de que venham apenas para angustiar-vos com suas duras advertências à jovem. Deixai que eu a leve agora mesmo.

Os pais da jovem acederam ao pedido, mas ainda uma vez chamaram a filha de parte, na cabana, para aconselhar-lhe como devia comportar-se.

— Sê boa para com teus sogros e cuida bastante de teu marido!

Depois, ofereceram ao jovem casal uma moça, que seria de auxílio nos serviços domésticos. Mas a noiva recusou. Duas, dez, vinte moças lhe foram oferecidas, para que escolhesse. Antes de oferecer-lhas examinavam cuidadosamente todas as jovens.

— Não — insistia ela — não quero. Em vez disso, dai-me o búfalo da região, nosso búfalo, o Taumaturgo das Planícies. Deixai que êle me sirva.

— Como podes pedir tal coisa? — disseram-lhe. — Sabes que nossa vida depende dele. Aqui cuidamos dele, mas como

te arranjarias com ele, numa terra estranha? Ficaria em jejum, morreria, e, então, todos morreríamos com êle.

Antes de deixar os pais, ela apanhou um alguidar onde havia um embrulho de ervas medicinais, um chifre de sangria, uma faquinha para fazer incisões e uma cabaça cheia de gordura.

Depois, partiu com o marido. O búfalo seguia a jovem, mas apenas ela podia vê-lo. O homem não o via. Não suspeitava que o Taumaturgo das Planícies era o servo que acompanhava sua mulher.

Assim que chegaram à aldeia do marido, foram recebidos com gritos jubilosos: "Hoyo! Hoyo!"

— Olhem para êle! — disseram os velhos. — Eis que, afinal, encontrou esposa! Não quis as que aqui tínhamos sugerido, mas isso não importa. Assim está bem. Agiu segundo sua própria vontade. Se, porém, acontecer-lhe arranjar inimigos, não terá direito de se queixar.

O homem levou sua mulher para o campo e mostrou-lhe quais eram os dela e quais eram os de sua mãe. A moça observou cuidadosamente tudo e voltou com êle para a aldeia. No caminho, disse:

— Perdi minhas pérolas no campo, e preciso ir agora mesmo procurá-las.

O que ela queria, entretanto, era apenas ver o búfalo, ao qual disse:

— Aqui é o limite dos campos. Fica aqui! E ali está a floresta, onde podes esconder-te.

— Tens razão — respondeu-lhe êle.

Ora, todas as vezes que a mulher queria água, ia apenas até os campos cultivados e pousava a bilha diante do búfalo. Êle corria ao lago com a bilha, enchia-a e trazia-a para a patroa. Todas as vezes que ela queria lenha, êle corria ao bosque, rebentava as árvores com os cornos, e trazia-lhe quanta lenha a moça quisesse.

A gente da aldeia maravilhava-se com aquilo tudo.

— Como é forte, a moça! — diziam. — Volta sempre do poço, mal para lá seguiu, e num bater de pálpebras apanha braçadas de lenha seca.

Ninguém, contudo, suspeitava que o búfalo a servia.

A mulher, porém, nada levava de comer ao búfalo, porque ela e o marido tinham apenas um prato para os dois. Na casa paterna, naturalmente, os pais dela tinham um prato especial para o Taumaturgo, e alimentavam-no com todo o cuidado. Por isso, o búfalo tinha fome, ali. Ela trazia-lhe sua bilha e mandava-o buscar água. Êle ia, de boa vontade, mas a fome causava-lhe grandes ansiedades.

Um dia ela lhe mostrou um ângulo do silvado para arrotear. Durante a noite o búfalo agarrou uma enxada e tratou de grande parte da área. Todos comentavam:

— Como é esforçada! E como faz depressa o seu trabalho! Uma noite o búfalo disse à patroa:

— Tenho fome, e nada me dás para comer. Logo não conseguirei mais trabalhar.

— Aie! — disse ela. — Que posso fazer? Em casa temos apenas um prato. Os meus tinham razão quando diziam que devias ter começado a roubar. Rouba, então! Vai ao meu campo e come um pouco de favas, aqui e ali. Depois, passa para o outro. Mas não as comas todas no mesmo ponto, pois assim os proprietários poderiam ficar muito preocupados e viriam a cair de pernas para o ar, aterrorizados.

Aquela noite o búfalo foi ao campo. Devorou uma fava aqui, outra acolá, andou de um canto a outro, e por fim foi meter-se de novo em seu esconderijo. Quando pela manhã as mulheres vieram para o campo, não podiam acreditar em seus olhos.

— Ei! Ei! que está acontecendo por aqui? Nunca vimos uma coisa assim! Uma fera destruiu nossas plantas! Nem ao menos podemos seguir-lhe as pegadas. Oh! a pobre terra!

Assim, voltaram correndo e contaram o caso na aldeia.

À noite, a jovem mulher disse ao búfalo:

— Assustaram-se muito, mas não demasiado. Não tombaram de pernas para o ar. Portanto, rouba ainda esta noite!

E êle roubou. As proprietárias dos campos devastados gritaram fortemente, depois foram ter com os homens e pediram-lhes que chamassem os vigilantes, com seus fuzis.

Ora, o marido da jovem era excelente atirador. Portanto, colocou-se no campo e esperou. Mas o búfalo pensou que alguém deveria estar a espera dele onde roubara na noite da

véspera, e assim foi ter às favas de sua patroa, o lugar onde tinha roubado da primeira vez.

— Mas olhem! — gritou o homem. — Aquilo é um búfalo! Jamais vi nenhum como este. É, realmente, um animal estranho.

Disparou. A bala entrou na têmpora do búfalo, perto da orelha, e saiu diretamente pelo outro lado. O Taumaturgo das Planícies fêz uma cabriola e caiu, morto.

— Que belo tiro! — exclamou o caçador. E foi para a aldeia contar o que se passara.

No mesmo momento, porém, a mulher dele começou a gritar de dor, e a contorcer-se.

— Ai, que me dói o estômago! Ai! Ai!

— Acalma-te — disseram-lhe.

Ela parecia doente, mas apenas queria justificar o fato de chorar daquela maneira, e a razão de ter se assustado tanto ao ouvir contar que o búfalo estava morto. Deram-lhe um remédio, mas quando ninguém estava mais prestando atenção, escapuliu dali.

Ora, todos puseram-se a caminho, as mulheres com seus cestos e os homens com as armas, para esquartejar o búfalo. Na aldeia ficou apenas a jovem esposa. Mas, de repente, também ela seguiu os outros, segurando o ventre, choramingando e gritando.

— Por que vens? — disse o marido. — Se estás doente, fica em casa!

— Não, não quero ficar sozinha na aldeia.

A sogra ralhou com ela, dizendo que não compreendia aquelas suas maneiras, e que assim acabaria por matar-se. Quando encheram o cesto de carne, disse ela:

— Deixa-me levá-lo na cabeça.

— Não! Estás doente e pesa demais para ti.

— Não — teimou ela — deixa-me levá-lo!

Assim, carregou-o às costas e levou-o.

Mas quando chegavam à aldeia, em vez de entrar em casa, ela foi para uma barraca onde estavam as panelas, e pôs lá dentro a cabeça do búfalo. Recusou, teimosamente, sair dali. O marido veio procurá-la, a fim de levá-la para a cabana, dizendo-lhe que lá estaria muito melhor, mas ela respondeu, duramente:

te. Convidei-o a vir aqui à aldeia, mas êle recusou, dizendo: "Iriam oferecer-me comida, e isso só faria com que eu me atrasassa". Foi embora no mesmo momento e pediu-me que não me demorasse, se não quiser que minha mãe morra antes da minha chegada. Portanto, adeus, eu me vou!

Naturalmente, tudo aquilo era mentira. Viera-lhe aquela idéia de ir ao lago para poder inventar a tal história e ter uma desculpa para ir informar sua gente sobre a morte do búfalo.

Assim, lá se foi, levando o cesto na cabeça e cantando pela estrada toda o fim da canção do Taumaturgo das Planícies. Onde quer que passasse gente ia se reunindo a ela, acompanhando-a para sua aldeia. Quando ali chegou, anunciou-lhes que o búfalo já não tinha vida.

Então, mandaram mensageiros por toda a parte, a fim de convocar os habitantes da região. Reprovaram violentamente o comportamento da jovem, dizendo:

— Estás vendo? Bem te havíamos prevenido. Mas recusaste todas as moças e quiseste a todo o custo o búfalo. Agora, mataste-nos a todos!

As coisas estavam neste ponto quando o homem, que tinha seguido a mulher até a aldeia, por sua vez chegou. Apoiou o fuzil contra o tronco de uma árvore e sentou-se. Todos o acolheram, gritando:

— Cumprimentos, criminoso, cumprimentos. Mataste todos nós!

Êle não compreendia, e perguntava por que o chamavam assassino e criminoso.

— A verdade é que matei um búfalo, — disse, — mas isso foi tudo.

— Sim, mas aquele búfalo era o servo de tua esposa. Ia buscar água para ela, cortava a lenha, trabalhava no campo.

Estupefato, o homem disse:

— Por que não me disseram isso? Eu não o teria matado.

— Assim estão as coisas — declararam os outros. — A vida de todos nós dependia dele.

Então, começaram todos a cortar o próprio pescoço. A primeira foi a jovem, que, ao fazê-lo, gritou:

— Ah! Meu pai! Taumaturgo das Planícies!

Depois, vieram seus pais, irmãos, irmãs, um depois do outro.

O primeiro disse:

— Deves ir para as trevas! O outro, depois:

— Deves tatear na noite em todas as direções! O que se seguiu:

— És a árvore jovem do milagre que morre antes do tempo!

O seguinte:

— Fazias com que flores e frutos caíssem sobre a tua estrada!

Todos cortaram os próprios pescoços e mataram até as crianças que ainda carregavam às costas, em seus abrigos de pele.

— Para que deixá-las vivas, — diziam, — já que irão perder a razão!

O homem voltou para a sua casa e contou à sua gente de que maneira, disparando sobre o búfalo, êle matara todos. Os pais disseram-lhe:

— Estás vendo? Não te havíamos dito que tombarias em desgraça? Quando te oferecemos uma jovem sensata, que fizesse tudo para ti, quiseste seguir tua cabeça. Agora, perdeste as tuas riquezas. Quem te devolverá o dinheiro que deste pela tua mulher, agora que todos os parentes dela morreram?

Fonte:
http://www.consciencia.org/o-taumaturgo-das-planicies-fabulas-da-africa

Machado de Assis (Gazeta de Holanda) N.° 9 – 21 de dezembro de 1886.

À Carmen Silva, à rainha
Da Rumânia, à delicada,
Egrégia colega minha,
Pelas musas laureada,

Pobre trovador do Rio,
Cantor da pálida lua,
Esta breve carta envio,
E aguardo a resposta sua.

Note bem que lhe não falo
Das suas lindas novelas,
Nem do plácido regalo
Que nos dá com todas elas.

Não, augusta e bela moça,
Não é prosa nem poesia
O meu assunto ...     Ouça, ouça,
Verá que é sensaboria.

Cá se soube que um partido,
Que há muito não dava cacho,
Após combate renhido,
Tomou ao outro o penacho.

Fez-se isso eleitoralmente;
A gente que não queria
O partido então vigente,
Mudou de cenografia.

Se fez bem ou mal, lá isso
É com ela; a culpa inteira
Pertence-lhe de o feitiço
Virar contra a feiticeira.

Mas, como aqui neste canto,
Não há tal eleitorado,
Que faça nunca outro tanto,
E pense em cousas do Estado;

E também porque isto, às vezes,
Está em qualquer cousa (adágio,
Que herdamos dos portugueses,
E tem o nosso sufrágio),

Lembrou-me que poderia
Obter, por seu intermédio,
Para uma tal embolia
O apropriado remédio.

Serão pastilhas? xarope?
Pílulas de qualquer cousa?
Um cozimento de hissope?
Fricções de madeira e lousa?

Seja isto ou seja aquilo,
Peço a Vossa Majestade
Uma amostra, um frasco, um quilo
Para ensaiar na cidade.

Porque, como ora se trata
De uma operação sabida,
Que a gente que se maltrata
Torna a pôr amada e unida,

Operação que dissolve
Os grupos mais separados,
E rapidamente absolve
Todos os ódios passados;

Quisera, logo que esteja
Toda a obra recomposta,
E esta liberal igreja
De novo aos fiéis exposta,

Quisera ver se, tomando
A droga rumaica um dia,
Chegaríamos ao mando
Pela mesma e larga via.

De outro modo ficaremos
Nestas náuticas singelas
De largar o leme e os remos
E abrir à fortuna as velas.

Eia, pois, augusta musa,
Mande-me o remédio santo,
E não vos concedo escusa;
Quero tirar o quebranto.

Quero ver se, finalmente,
Depois de tão larga espera,
A nossa eleitoral gente
É gente, não é quimera.

Para que depois se queixe
De si e das culpas suas,
E por uma vez se deixe
De murmurar pelas ruas.

Vede, flor das maravilhas,
Como esta alma pede e roga:
Mandai-me as vossas pastilhas,
Pílulas ou qualquer droga.

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

Gilmar de Carvalho (Composição)

Em off-set os jornais que eu engoli. Esteira em sangue sobre a calçada. As manchetes que eu não consigo decifrar em código morse.

                O espaço vazio e as manchas de uma diagramação estética. Letras que se dilatam num contracampo de centeio e se contraem entre os matizes de ferrugem. No claro escuro os logotipos genéticos de uma explosão erótica e  relojoaria. Tipos móbiles: mãos.

                Os arabescos do portão de ferro gravados em teu rosto como maquilagem fantástica ou longos caminhos percorridos por unhas em carnavais passados.

                Teu sorriso em quatro colunas do templo. As folhas murchas de outono cinzas em camadas ou confetti e o chão das ruas.

                O quarteirão vira folhinha de ano bissexto. O papel parede se descola como cascas de feridas remotas. O  sangue dos crimes lava as almas e expia as nossas fraudes eleitorais. Procuro um amor: você, nos classificados dos tabloides especializados.

                Quero teu dente partido e os eixos cromados da rotação da terra em torno de si mesma ou a presença pendular em ampulhetas mágicas. Os raios e diâmetros de círculos concêntricos como discos ou tampas de panelas. Teus cabelos, all those flowers, e a alternância dos pés no fio de pedra da história.

(Gilmar de Carvalho, Pluralia Tantum)

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Gilmar de Carvalho

Francisco Gilmar Cavalcante de Carvalho (Sobral, 1949) é Professor da Universidade Federal do Ceará. Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP. Autor de Publicidade em Cordel (São Paulo: Maltese, 1994); Madeira Matriz (São Paulo: Annablume, 1999); Patativa do Assaré (Fortaleza: FDR, 2000); Patativa Poeta Pássaro do Assaré (Fortaleza: Omni, 2002), e Desenho Gráfico Popular (São Paulo: IEB/USP, 2000); dentre outros trabalhos acadêmicos. Tem artigos publicados em revistas do Brasil e do exterior. Como ficcionista, publicou Pluralia Tantum (Fortaleza: GRECEL, 1973); Parabelum (Fortaleza: GREEL, 1977); Queima de Arquivo (Fortaleza: SECULT, 1983); Resto de Munição (Fortaleza: SECULT, 1984): Buick Frenesi (Fortaleza: SECULT, 1985); e Pequenas Histórias de Crueldade (Fortaleza: SECULT, 1987).

Entre os que acreditaram ter concluído sua obra de contista está Gilmar de Carvalho. No entanto, pela singularidade de suas narrativas, não pode ser comparado a nenhum prosador de ficção do Ceará. Não somente porque seus contos são fundados na erudição, seja no latim, no inglês, na História, na Filosofia, na mitologia, na Bíblia etc. Também porque ora escreve como poeta, ora como salmista, ora como ninguém. Juarez Barroso, nas dobras de Pluralia Tantum, diz que a literatura de Gilmar é “uma afirmação de liberdade. Mas ele não fica junto à turma do sereno, ao bloco da contracultura. Formalmente, rejeita o marginalismo artístico, os vanguardismos escandalizantes. Seu estilo é clássico, sua narração, fabular, levemente borgiana. A partir daí ele constrói, ou destrói, ri dos deuses, mais perto de Lúcifer que do Arcanjo São Miguel (afinal de contas, uma figura do establishment), simpatizante dos exus, louvador da pomba-gira, Vênus mestiça e mais sensual, naturalmente”. A seguir se nega chamar de contos os textos de Gilmar. Na verdade, não são contos tradicionais. Em comum com estes apenas o terem títulos, alguns personagens, alguma narração. O resto é bem diferente. Afirma Juarez: “Gilmar não escreve contos. O conto, por mais de vanguarda que seja, tem a sua disciplina, sua forma de discurso. Gilmar é um compositor de cantos em prosa, discípulo remoto do Rei Salomão, que tanto trabalho deu ao Senhor com sua rebeldia e sua mania de amor. Amante da vestal romana, consagrada em virgindade ao deus maior, Gilmar, libertário e libertador sofre agora o mesmo castigo de Prometeu. Zeus acorrentou-o ao relógio da Praça do Ferreira, à Coluna da Hora. Que, aliás, não existe mais”.

Publicado em 1973, Pluralia Tantum, de Gilmar de Carvalho, é provavelmente o livro de prosa de ficção mais singular da literatura cearense. Constituída de 41 textos – que poderão ser denominados narrações (e não narrativas), composições, legendas, escrituras, salmos, hinos, estudos, crônicas, crônicas-poemas, verbetes, lendas e até contos – a obra inaugural do romancista de Parabelum pareceria alienígena (lato sensu) se posta ao lado dos livros de contos de outros escritores cearenses. Em “composição”, como o título indica, tudo se volta para o compor: “em off-set os jornais”, “manchetes”, “diagramação”, “letras”, “logotipos genéticos”, “tipos móbiles”, “quatro colunas”, “folhinha”, “papel parede”, “sangue dos crimes” (nos jornais), “classificados dos tabloides”. Um dos textos é intitulado “um conto”, como a deixar bem claro que os outros não são contos. Nele há diálogos (com travessão), narração e personagens, embora não identificados. No entanto, “trajetória” é uma narrativa quase linear. Há um enredo, uma cadeia de pequenos fatos, uma história, que podem ser percebidos claramente nos seguintes trechos de frases: “proferem um palavrão”, “uma freada brusca”, “anúncio de Coca-Cola”, “andou”, “apressou o passo”, “cruzou com um desconhecido”, “um bar”, “um velho desenrolava um embrulho”, “precisava chegar logo”, “viu pessoas”, “subiu o primeiro degrau”.

Busque-se em Pluralia Tantum o drama e o leitor encontrará algo entre o conflito e o não-conflito. O tempo é medido como numa roda-gigante, estonteante. O espaço da ação é poucas vezes mencionado ou não tem nenhuma importância: “Já vi e revi os lugares santos e os comuns” (“hollywood”). E os personagens onde estão, quem são? Em algumas composições apenas um “narrador” se mostra, fala: “O rapaz morto sou eu” (...), como se vê em “laudatio”.

Em alguns “contos” de Gilmar não se percebe um enredo claro, mas somente fiapos (frases) de um enredo esgarçado, de um tecido rasgado, esticado, esfiapado (“memory”). Pode-se falar também em enredo diluído (“hermenêutica”).

O latim e a Bíblia são fontes permanentes de enredo nesta obra de Gilmar. O estudo “plvralia tantvm”, que dá título ao volume (com o “v” latino transformado em “u”), é nada mais do que uma explicação de alguns plurais: exéquias, férias, núpcias, alvíssaras, primícias, anais (subtítulos), e a decodificação de uma oração latina. Na parte intitulada “teodiceia”, composta de sete escrituras, os temas bíblicos estão muito presentes. Em “teodisseia” a eles se juntam os mitos de Ulysses, Penélope, Zeus, Posseidon, isto é, a mitologia grega. Contudo, em “genesis” e “exodos” se podem ler reescrituras desses livros.   Em “o jardineiro cego” se conta a reinvenção do pecado original, sendo o jardineiro personagem simbólico. Embora não ligado diretamente a temas bíblicos, “gaia scientia” também se constrói sobre a ideologia cristã: o tribunal da inquisição.

Crônicas ou crônicas-poemas podem ser vistas na parte intitulada “minas”. A primeira, “entradas e bandeiras”, é crônica histórica; “minas novas”, “minas novas: porões”, “doroteia” e “o inconfidente” são crônicas-poemas. Outras composições podem ser designadas como verbetes, à falta de outro termo, como na parte “orixás do ceará”. Pois não são contos nem crônicas nem poemas. Nelas há como que um misto de alguns gêneros da prosa de ficção. Em “nanã”, por exemplo, leem-se definições como nos verbetes: “Nanã é dama de antigas cortes” (...); “Nanã é senhora de todas as cachoeiras” (...); “Nanã é força a mover antigas moendas” (...) Entretanto, há um personagem, um narrador: “Nanã me contou histórias” (...). Em “oxossi” aparece a figura de Dom Sebastião, o iluminado. Em “omulu” se pode ler uma lenda ou como narrar uma lenda. “yemanjá” seria uma narração (não uma narrativa). Em “iansã” se vê um narrador (“Uma Iansã me saudou: eparrê”) e a protagonista, com tratamento na segunda pessoa.

Os personagens de Gilmar de Carvalho são quase todos distorcidos, como se vistos de um espelho quebrado ou opaco. Além disso, são pequenos, quase microscópicos, sem muita importância no contexto. Um ou outro se sobressai, como Patrícia Chantal. Talvez porque personagem de uma história ou, mais do que isso, protagonista. Em “memory” Luzia é tão pequena que parece personagem secundária de uma historinha. Dividido em três segmentos, o conto teria começo (ludus), meio (parábola) e fim (conclusão), o que não é real. Luzia aparece no segundo segmento e logo desaparece, para dar lugar ao narrador, que não se refere a ela, a não ser no plural: “a gente ouvia sempre”, “ao nosso alcance”, “Nós estamos gastos”, “Somos estátuas”, “Nossa vista”. E esse plural pode até se referir ao todo, à humanidade.

                Na parte intitulada “legendas”, que comporta “gesta”, “legenda”, “hollywood”, “as aventuras de carmem miranda” e “sweet hunters”, Gilmar se volta para a História ou para personagens históricos. Na primeira encontram-se Roland, El Cid, Rei Artur, Charlemagne, Ricardo Coração de Leão, Luís IX, a camponesa de Domrémy e outros. É como se o escritor escrevesse legendas de gravuras clássicas, descrevesse fisionomias, indumentárias, espíritos, cenários e compusesse ou narrasse cada uma das “histórias” à sua maneira. Em “legenda” (“Legenda é substantivo abstrato: a revivificação da fantasia”) não há personagem, a não ser o narrador e o outro, o tu: “A fada bondosa me prometeu te conhecer e seduzir.” Em “hollywood” personagens como Marylin Monroe, Carmem Miranda, Darryl Zanuck, Shirley Temple, Jean Harlow, Teda Bara, Carlitos passeiam pelo tempo e o espaço, como simples imagens de “álbuns de colagens”. A cantora reaparece na legenda seguinte: personagem (“servidor federal lotado na farmácia do INPS”) se fantasia de Carmem Miranda, para logo desaparecer de cena e dar lugar à própria artista, sua trajetória, suas relações com Getúlio Vargas etc. Por último os gentis caçadores de “sweet hunters”, as cenas de caça, a pontaria, “morte é passatempo e ludus”, trombetas, alçapões, e um duelo: “Tu escolheste as armas e este lugar”, a cerimônia, o ideal romântico, o ajuste de antigas contas, os padrinhos que verificam as armas. Descrição de um quadro e narração de outra caçada (“Tento te laçar enquanto te refugias em becos e esquinas”), outra busca de posse ou morte (caçador e caça, fera e presa, homem e mulher): “Imagino te possuir, estupro, em qualquer calçada ou em terrenos baldios de subúrbios.”

Talvez a principal característica de Gilmar seja a própria linguagem ou a sua manipulação. Pode-se falar até num jogo de palavras: “mosteiro da paciência”, “confeitado de glacê e conchas”, “A primeira sexta-feira, o segundo sábado, o terceiro domingo, a quarta-feira têxtil agrícola” (“a vida pregressa de patrícia chantal”). Percebe-se o uso do lugar-comum, porém retorcido, reinventado: “clássico (das multidões) da língua vernácula”, “cotação de ações e omissões”, “poema processo civil”, “cores pastéis e sanduíches”, “amor enfim achado e perdido”, “dentes e presas de guerra” (“monástica”). Às vezes o escritor se vale de expressões tornadas clássicas para lhes dar outro significado: “No princípio era o ponto e a perspectiva de retas”, “a luz negra do quinto dos infernos”, “nexo de causa e efeito” (“laudatio”). Observa-se, ainda, o corte incisivo da frase, da oração, com a supressão de verbos: “As línguas de fogo lançadas pelos dragões incontidos pelos jatos d’água sulfurosa” (idem). Ou “McCartney na sala cortinas fechadas” (“gymnástica”).

                Descrição de personagem se pode ver com frequência em Pluralia Tantum, como em “a vida pregressa de patrícia chantal”: “Loura celebrada, imaculada de homens em todas as portas” (...); “Vamp/vampiresca e suburbana criatura, pontifica nos anais da polícia e nos bastidores dos teatros de revista marrons amenos.”

                Raros são os diálogos neste livro de Gilmar. Mais se assemelham a falas teatrais, como se lê na primeira história (uma das poucas do livro): “Médico – o vento varre as ruas” (...) “Mãe – o rio deve seguir para leste.” Em outro trecho Sogra e Chantal (nora) conversam. As falas são antecedidas de travessões. No entanto, os nomes das personagens só aparecem na primeira fala de cada uma. Os personagens são identificados ou nominados como em peças de teatro.

Muitas vezes o narrador de Gilmar não é propriamente narrador, mas espécie de salmista (“philarmónica”). Outras vezes o narrador fala a outro personagem (oculto), que pode ser visto como protagonista (“termas”). O tratamento dado a este é sempre na segunda pessoa, sem citar nome: “tua virgindade”, “tua solidão”, “teu cansaço”, “tua veste branca”, “tuas formas”, “tua loucura” (idem). O mesmo modo de narrar pode ser encontrado em “dez anos depois”, que tem no desfecho esta fala: “Tu és meu personagem preferido” (...) Em “teodisseia” (teo + odisseia) personagem faz perguntas curtas a um deus ou a uma pitonisa. As respostas soam como narrações, com alguns jogos de palavras e expressões: “O peso argentino líquido e certo”, “rendas per capita tecidas por bilros e fusos horários”.

                Como observou Juarez Barroso, nas abas do livro, “Gilmar não escreve contos. O conto, por mais vanguarda que seja, tem a sua disciplina, sua forma de discurso. Gilmar é um compositor de cantos em prosa, discípulo remoto do Rei Salomão” (...). Pois fiquemos com esta definição: Gilmar de Carvalho é um compositor de cantos em prosa, de narrações (e não narrativas), composições, legendas, escrituras, salmos, hinos, estudos, crônicas, crônicas-poemas, verbetes, lendas e até contos. Um escritor singularíssimo.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

Adelmo Oliveira (Cântico para o Deus dos Ventos e das Águas) II

AS BODAS DA MORTE

Para Carlos Lamarca,
In memoriam

Entre os frisos vermelhos da tarde
Eu canto a aurora

Nas colunas de mato e rebanho
Eu canto a aurora

Um fuzil pendurado entre arbustos
Eu canto a aurora

Eu canto a aurora

Uma estrela desmaia de sangue
Eu canto a aurora

E este tempo é um marco de prata
Eu canto a aurora

E esta morte é amarga e sonora
Eu canto a aurora

BILHETE A UM POETA

Olha, Capinam
chegando a Nova Iorque
não te esqueças
escreve um poema
(daqueles)
e manda pelo correio
Vê se as tristezas de lá
são iguais ou mais fundas
que as tristezas daqui

Sabe (e disto não te iludas)
– pelas notícias que tenho
de um amigo que lá esteve –
que há muito ladrão solto
pelas ruas e avenidas
à espreita de fama
e de cenas tão vivas
quanto as letras de sangue
dos crimes de mistério da Rua Morgue

Levas contigo o telescópio?
Sei que montarás
– como navegante de rotas aéreas
um pequeno observatório
para a lua e para as estrelas
– Dizem até que o céu é de prata
além (e por cima) dos arranha-céus de vidro

Tira o primeiro domingo
e vai a Washington
e vê quantas manchas e sangue negro
salpicam os muros
as paredes
e os vitrais da Casa Branca

Escuta se chega
através do vento
do dia e da hora
o eco das vozes
oprimidas do mundo

(Onde se encontra
o radar eletrônico
da Agência de Informações?
– Um detector de mentiras
guardado em sete segredos
que capta a dor em alegria
o pranto em riso
a morte
a morte em vida?)

Ah Poeta andarilho
não te canses agora
aperta a mão de cada astronauta
mas procura nos parques
ou na Quinta Avenida
um jovem que tenha
no peito uma flor
E os Guetos? E as Guerras?
E a Bomba? E a Paz?

Nem te lembro
mas te confesso
que certo dia
morri dez vezes
quando William Calley
– o tal tenente Batman
destruiu com a morte
a vida
e os brinquedos
dos meninos de Mi Lay

E os mísseis?
Inverossímeis?

Não te perturbes, amigo
a hora explode toda em chamas

De tanto espanto
ódio conflito
as palavras se trituram
em pó. Em grito

Depois
antes de teu regresso
(máquina de filmar a tiracolo)
quero fazer-te um pedido
– Dá um pulinho à Ilha de Manhattan
para ver de perto
se a Estátua da Liberdade
continua de pé
ou caiu

CANÇAO DO MENINO PRESENTE

Cada palavra é uma porta
E toda porta é um enigma
Não canto poesia morta
No leito estreito da vida

E canto, poeira e espuma
Amor punhal catavento
Canto as esporas da lua
Cravadas no pensamento

Oh lâmina do céu que arde
Oh dor que no tempo corre
Canto um menino que nasce
Distante de outro que morre

Não morre. O signo guerreiro
Crepita fagulhas e asas
– O peito expulso de medo
E as mãos cruzadas de espadas

O lábio rente e ferreiro
É um rio cortado de datas
A boca é pranto e ponteio
Num poço de ondas e mágoas

A voz é grito na praça
– Lanças agudas no peito
Aurora que se desata
Na fechadura do tempo
_______________________

Fugiu agora a tristeza
Chegou na face à alegria
– Os deuses caíram mortos
Em cinzas de fantasia

APARIÇÃO

Na veia d’água
Ao pé do monte
Tem uma sombra
Atrás da ponte

Em duas pontas
O sol quebrado
Parte os sentidos
De um potro alado

Em puro sangue
O céu se banha
– Cristais de cores
De nuvem estranha

Até na grota
A cotovia
Crespa os cabelos
Da ventania

A natureza
Assim trabalha
Cortando as dobras
De uma mortalha

Na veia d’água
Ao pé do monte
Tem uma sombra
Atrás da ponte

Fonte:
Adelmo Oliveira. Cântico para o Deus dos Ventos e das Águas. 1987. http://br.geocities.com/rsuttana/adelmo_cantico.pdf

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Marina Bruna (1935 - 2013)

A Trova vem sofrendo uma sucessão de perdas em sua legião. Mal ainda estamos nos recuperando da morte de Rodolpho Abbud e Izo Goldman, uma nova surpresa, o falecimento de Marina Bruna,ontem, em São Paulo.

Mas, como todos que se foram, ela foi uma batalhadora pela nossa “Rosa”, e que neste momento de tristeza vertamos lágrimas, e que cada lágrima que vir a encharcar a terra seja uma trova de nossa irmã que partiu.

Façamos com que suas trovas sejam raios de luz, como os raios do sol que caem sobre a terra todas as manhãs. E que estes raios aqueçam sempre nossas almas, nossos corações.

Marina! Seja Luz!

(José Feldman)
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Download do e-book com biografia e trovas de Marina Bruna podem ser encontradas em:
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O livreto está em PDF e possui cerca de 7 megabytes.

Marina Bruna (Trovas Escolhidas)

A ciranda traz lembranças,
que a saudade perpetua,
de um tempo em que nós, crianças,
éramos todas de rua...

Afeto infinito eu leio
nos olhos, cheios de brilho,
da mãe que desnuda o seio
e oferta seu leite ao filho!

A noite desfez em contas
seu rosário de cristal
e enfeitou todas as pontas
da grama do meu quintal!

Ante um berço, comovida,
e no adeus dos cemitérios,
fui aprendendo que a vida
é ponte entre dois mistérios.

Ao tanger minha guitarra,
ser pobre não me importuna.
Tenho o perfil da cigarra
que é feliz sem ter fortuna.

A teu lado, mas... sozinho...
quantas noites, quantos dias
eu transbordei de carinho
mas te achei de mãos vazias...

A tua mão deslizando
no meu corpo, em leve afago,
é como a brisa encrespando
a superfície de um lago.

A tua ofensa me assusta
e, desta vez, digo “não”!
Quem ama sabe  o que custa
ter que negar o perdão!

A vida insiste em manter
em dois tons sua canção:
o mais agudo é o poder;
o mais grave, a servidão!

Blasfemar... sei que é errado
mas, Te pergunto, Senhor:
se o amor que eu sinto é pecado,
por que me deste este amor?...

Bondes... quintais... lampiões...
Nesta saudade eu me abrigo
aconchegando ilusões
que envelheceram comigo...

Brinquedos velhos, em trapos,
sem importância parecem,
mas guardam, nos seus farrapos,
lembranças que não se esquecem.

“Cachorro!”, gritou o pato
numa atitude insensata,
quando ouviu dizer que o gato
estava lambendo a pata!

Com a emoção renascida
no amor que só veio agora,
o ocaso de minha vida
ganhou matizes de aurora!

Com meu orgulho pisado
mas, de saudades vencida,
dou-te o perdão e a teu lado
esqueço as mágoas da vida.

Como é grande a solidão
de um ator, que em sua estréia,
põe em cena o coração
e está vazia a platéia...

Das saudades e lembranças
do amor, que foi verdadeiro,
restou um par de alianças
na mão de um só companheiro.

De cada galho abatido,
em silêncio a seiva escorre
mostrando o pranto sentido
de uma floresta que morre!

Depois da tua partida,
na desordem dos meus passos,
o que me prende na vida
é a memória dos teus braços…

Descalços pelo gramado
teus pés mansamente vão...
Pões, no pisar, tanto agrado,
que eu tenho inveja do chão!...

Descem do morro, sambando,
o Conde, o Rei e a Princesa.
É o Carnaval mascarando
de sangue azul a pobreza…

Deus modela a nossa estrada
porém nós, em atos falhos,
modificando a jornada,
nos perdemos nos atalhos...

Disse um "sábio" picareta
sobre um voo espacial:
- "Pra chegar noutro planeta
é só ter um mapa astral...”

Dos naufrágios, dos degredos,
restaram, dentro do mar,
ecos de velhos segredos
que as conchas sabem guardar...

Ele partia e, na pressa,
prometeu que voltaria.
Hoje eu sei, não foi promessa.
Na verdade... ele mentia...

Em fortuna, eu tenho sido
qual uma agulha modesta
que borda um belo vestido
e a linha é quem vai à festa!

Enfim voltaste... mas peço
que este clima de alegria
envolvendo o teu regresso
não dure só por um dia...

Esta fé que me incentiva,
e em minha vida se espalma,
é uma luzinha votiva
na capela de minha alma!

Esta flor que me restou
num livro da mocidade
é um sonho que se tornou
medalha de uma saudade!

Eu faço um apelo mudo
na velhice que me alcança:
– Destino, tire-me tudo
mas não me roube a esperança!

Fim do amor… mas nosso enredo
restou em minha lembrança,
como ficou em meu dedo
a marca de uma aliança…

Foi num mar encapelado
que o meu barco de ideais
naufragou de tão pesado:
- tinha esperanças demais!

Homem bom de rosto feio!
Tua aparência enganosa
lembra a pedra cujo seio
guarda uma gema preciosa!

Impiedoso, o fogo avança
e a floresta, calcinada,
perde o verde da esperança;
ganha o cinza do mais nada!

Mágico no seu cantar,
o poeta tem na voz
a virtude de criar
mil mundos dentro de nós!

Meu olhar no céu passeia
e me diz, mesmo disperso,
que o mundo é só um grão de areia
na imensidão do Universo…

Meu viver lembra uma estrada
com mistérios para mim:
do começo não sei nada...
não sei nada do seu fim...

Na história de tua vida
sou apenas, sem escolha,
uma sentença esquecida
no rodapé de uma folha.

Na insônia, escuto um rumor
e percebo, entre ansiedades,
que anda na noite um pastor
apascentando saudades!

Na tarde cálida e mansa,
o tempo quase não passa
e até o silêncio descansa
nos velhos bancos da praça.

Neste ano novo eu pretendo
rasgar meus dias tristonhos
e, de remendo em remendo,
reconstruir os meus sonhos...

No abandono, em desalinho,
eu sonho me embriagar
na branca taça de vinho
que se derrama em luar...

No acolchoado de paina,
colhida ao pé da paineira,
o homem esquece da faina
nos braços da companheira.

Nosso amor, hoje em desgaste,
fez do convívio um açoite...
Tempo! Por que não paraste
naquela primeira noite?

Nosso amor hoje e passado
e, apesar de breve história,
persiste, ainda, ancorado
no cais de minha memória.

Num foguetório cerrado,
o céu junino reluz
qual um chuveiro dourado
pingando gotas de luz!

O Ano Novo se avizinha
e eu, de tristezas cansado,
compro uma nova folhinha
e rasgo o tempo passado.

O destino rege as vidas
num balé, cujo andamento
lembra o das folhas caídas
dançando ao sabor do vento…

O destino se disfarça...
Veste risos e tristezas
e apresenta, em cada farsa,
incalculáveis surpresas...

O flerte, as voltas na praça,
o tempo levou embora
e o amor foi perdendo a graça
sem o respeito de outrora...

O homem pobre, passo a passo,
ergue a cidade cinzenta
tirando da pedra e do aço
a quimera que o sustenta!

Passei a viver tristonho
depois que encontrei, surpreso,
o limite do meu sonho
no muro do teu desprezo!

Partias... mas era tarde
para eu tentar te deter...
E nessa omissão covarde
te perdi... sem combater...

Partiste... e a tarde silente,
daquele dia tristonho,
vestiu de roxo o poente
no funeral do meu sonho...

Por florescer altaneira
na paisagem descampada,
aquela velha paineira
tornou-se um marco de estrada!

Primeiro amor... é a ternura
que a nossa memória enfeita.
É como a fruta madura
de uma primeira colheita...

Prostrado... na dor infinda
de um desprezo que o consome,
meu coração bate ainda,
porque murmura o teu nome...

Quanta família é desfeita
sem notar, que em meio aos brados,
há uma vítima que espreita
de olhinhos arregalados ...

Que eu te esqueça... não me peças...
Não me obrigues a fingir
e fazer falsas promessas
que jamais irei cumprir.

Quem faz poemas alcança
todo o brilho do Universo
pondo estrelas de esperança
nas rimas de cada verso!

Que o amor faz sofrer... sabia...
mas, mesmo assim, eu te amei
e, agora, a sabedoria
vive a dizer: - Não falei?...

Quis te falar... mas não pude...
E, então, te dei uma flor...
As flores têm a virtude
de saber falar de amor...

Sem aliança no dedo,
sem altar, sem certidão,
quanto amor vive em segredo
com laços no coração!

Sem muros, as casas pobres
trocam favores, carinhos...
enquanto que em ruas nobres
ninguém conhece os vizinhos.

Se um dia o céu censurar
o nosso amor, não aceito...
e a teu lado hei de encontrar
um outro céu...mais perfeito!

Sigo em frente em meus trabalhos,
porém não sigo sozinho.
Com Deus, que aponta os atalhos,
encurto muito caminho.

Sobre os espelhos fanados,
o tempo, em seu transcorrer,
passa escrevendo recados
que não gostamos de ler...

Tem pena de minha dor!
Por favor, usa a franqueza!
Pois as dúvidas, no amor,
maltratam mais que a certeza!

“Terra à vista”! e, em praias calmas,
foi ancorando Cabral.
E o destino bateu palmas
nos unindo a Portugal!

Teu amor... quase acabado...
Mas, tentando me iludir,
sigo sofrendo a teu lado
sem coragem de partir...

Teu desprezo me magoa.
Não me queres, não te forço.
Mas, o que mais me atordoa
é não sentires remorso...

Tímida, não disse nada,
mas o sorriso que deu
foi a mensagem cifrada
que o meu amor entendeu...

Trago um porongo em meu peito
onde a saudade, contida,
é um chimarrão que tem feito
o amargor de minha vida…

Vai com seu dono mendigo,           
dando-lhe o único alento...
E eu penso: - Este cão amigo
bem merece um monumento!

Vai, de saberes repleto,
um sábio pela metade.
Para ser sábio completo
faltou-lhe o grau de humildade...

Vou te deixar... Partirei...
Sem saudade... Sem sofrer...
Por um motivo eu te amei;
por muitos, vou te esquecer…
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Download do e-book com biografia e trovas de Marina Bruna podem ser encontradas em:
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Fontes:
BRUNA, Marina. Cantares: trovas. São Paulo: Ar-Wak, 2010.
Resultados de Concursos.

Marina Bruna (1935 – 2013)

Marina Bruna nasceu em Franca, SP, filha de Diva Luz Paiva Bruna, diretora de escola e Jaime Bruna, doutor em Latim pela USP e tradutor de grego e latim, além de professor de Latim no curso de Letras da universidade.

Marina Bruna, graduada em Matemática pela PUC/SP; em Pedagogia pela “Carlos Pasquale” e em Jornalismo pela “Cásper Líbero”, exerceu o Magistério como professora concursada em Escolas Estaduais e Municipais de São Paulo.

Lecionou, também, em Escolas particulares. Aposentada dessas funções.

Uniu conceitos de áreas supostamente opostas, mas que resultaram em sua formação poética.

Descobriu o mundo mágico do movimento trovista na década de 90 por meio de Mário Graciotti, da Casa do Poeta de São Paulo. Poetisa desde a adolescência, distinguiu-se como Trovadora, com mais de 500 trovas classificadas em concursos de âmbito nacional e internacional, entre as quais se incluem premiações em Portugal, Argentina e República Dominicana.

Somente em 1988 passou a frequentar a Casa do Poeta Lampião de Gás, de São Paulo.

Fez parte da União Brasileira de Trovadores, onde foi agraciada com os troféus “Revelação” (1989); “Destaque” (1994) e os de Trovador mais premiado do ano (1999; 2001; 2004; 2005; 2007 e 2009).
Recebeu em 2007 o troféu “Lilinha Fernandes”, que a União Brasileira de Trovadores de Porto Alegre atribui ao Trovador mais premiado nacionalmente nos concursos de Trovas do ano.

Publicou os livros: “Transparências” (poemas e trovas); “Cintilações” (trovas), Cantares (trovas) e trabalhos em Jornais Literários, Antologias e Coletâneas poéticas.

Proferiu várias palestras sobre Trovas em diversos espaços culturais de São Paulo, Santos, Niterói e outros, entre as quais “A Esperança nas Trovas” (1993), “Cantigas do Paranaso” (1998), “Pegando Carona na Trova” (1999), entre outras.

Foi colaboradora da revista “Litteratrova”, de Taubaté, na qual mantinha uma coluna mensal intitulada “Redondilhas”.

Além da Academia de Letras, Ciências e Artes da Associação dos Funcionários Públicos do Estado de São Paulo, onde ocupou a cadeira de n. 13, cujo patrono é Paulo Setubal, pertenceu às seguintes entidades culturais:
Casa do Poeta “Lampião de Gás” de São Paulo;
Movimento Poético Nacional;
União Brasileira de Escritores; e
“União Brasileira de Trovadores, seção São Paulo.

Fontes:
http://www.recantodasletras.com.br/biografias/3167512
http://blogdopedromello.blogspot.com.br/2013/01/trova-do-dia-25012012-marina-bruna.html
BRUNA, Marina. Cantares: trovas. São Paulo: Ar-Wak, 2010.

domingo, 15 de dezembro de 2013

Nemésio Prata (A Seca no Sertão em Trovas) 1


Aparecido Raimundo de Souza (Comparações)

GOSTAR DE ALGUÉM NÃO É MORAR EM SÃO PAULO, Rio de Janeiro, Brasília ou qualquer outra cidade importante, mas morar com ela, de preferência dentro de seu coração. Gostar de alguém é lhe dar as mãos estendidas de carinho, depois de lhe ofertar a vida com esperanças de um porvir melhor.

Gostar de alguém é participar ativamente do seu dia a dia, ouvir e entender sem fazer sombras, por menores que sejam, em suas ideias. Gostar de alguém é apoiar todos os seus planos sejam eles quais forem, mesmo os mais loucos e desconexos, incentivá-la dando-lhe o apoio moral necessário, perseverando juntos, como se fossem uma só pessoa e, sobretudo, não abandonar, jamais, a própria personalidade.

Gostar de alguém é chegar de mansinho, acompanhar, ver e sentir, compreender e não fazer perguntas desnecessárias, nem meter o nariz aonde não foi chamado.

Gostar de alguém é confiar plenamente nela e envolvê-la com doçura, com muita ternura. Fazê-la se sentir cativa da sua presença, prisioneira dos seus desejos, porém, sem querer saber se existe o lado contrário, a parte escura, o esconderijo secreto, porque amando e, consequentemente gostando de verdade, com a alma, nunca, durante esse tempo, será tão imensa a contrariedade.

Gostar de alguém é uma coisa muito sublime e por demais complexa. Algo que às vezes está longe e acima do alcance das nossas vontades e entendimentos.

Gostar de alguém é como buscar a Deus sem intermediários, sem meios termos.

Gostar de alguém é dar e doar a alma e não esperar calculadamente pelo espírito.

Gostar de alguém é passar a noite sonhando com ela, imaginando-a nos braços, gozar esses instantes como se fossem eternos e não se preocupar se dia seguinte, o sol quente ou o vento forte vierem interromper suas fantasias batendo forte nas vidraças da janela.

Gostar de alguém é tentar ser sempre o prometido, o príncipe encantado dos contos de fada. Aquele cavalheiro solitário que chegará de um momento para outro, montado num lindo cavalo alazão e depositará cheio de reverência, um beijo em meio a sua testa, como o Romeu buscando a sua Julieta eterna. Gostar de alguém é fazer o impossível dentro do possível para não quebrar o  encanto e nunca — nunca cobrar as promessas que não vingaram.

Gostar de alguém é ter silêncio no instante exato, respostas firmes na hora precisa, no minuto derradeiro e, ainda, ter o sopro da vida em abundância, para tentar suprir o vazio, a lacuna deixada por alguém que o destino levou para longe, numa viagem por entre estrelas de primeira grandeza, mas que se sabe, não terá volta.

Gostar de alguém é gritar, pular e fazer sorrir a companheira de todas as horas. É transformar o feio numa flor perfumada e de rara beleza. É esculpir a amada num quadro indescritível, mesmo quando pintar em seu rosto o mau humor motivado pelas incoerências, ou pelas horas tristes de angústias e aflições. Gostar de alguém é ser como um anjo no momento que os dissabores insistirem em marcar presença constante ao seu lado.

Gostar de alguém é entender sempre e não querer ser o eterno entendido. É acompanhar a ilusão, passo a passo, enquanto ela existir, procurar vivê-la sem cogitações, e, como a uma fogueira, alimentá-la e intensificá-la sempre, “ad eternun”.

Gostar de alguém é saber a hora, o instante exato de se afastar antes do tédio e da monotonia baterem a porta, do copo transbordar todas as mágoas guardadas, e, ainda, das lágrimas brotarem por pequenas coisas fúteis que não foram ditas. Gostar de alguém é passar por cima dos problemas que ficaram sem solução. É saber como chegar ao minuto fatal de dizer adeus sem constrangimentos, e, ao fazê-lo, manter a cabeça erguida, sem a expectativa da volta ou de uma nova reconciliação.

Gostar de alguém é se render de corpo inteiro, sofrer por amor até a exaustão, mergulhar de cabeça, às cegas, num voo desconhecido, como Ícaro em busca do impossível, ou como o andarilho, cujo paradeiro ignora o desfecho que lhe aguarda no final da estrada incerta.

Gostar de alguém é dizer coisas lindas, é sussurrar juras de afeições profundas. É sentir as entranhas queimando, o corpo ardendo em febre acima de quarenta graus. É sentir a alma leve e solta, a vida fluindo como se fosse uma pluma na imensidão. É ter o coração batendo acelerado, descompassado, como se quisesse, de repente, saltar peito afora, criar asas e voar por espaços nunca imaginados.

Gostar de alguém é efetivamente nunca se arrepender, amanhã, depois, ou algum dia (sempre há um dia), por ter se entregue tanto, por ter anulado sonhos, ou deixado de fazer isto ou aquilo. Gostar de alguém é perder o rumo, o prumo, o pulso, a visão do que é certo ou errado, a ponto, inclusive, de não saber o caminho da volta, o porto amigo para tentar reconstruir a si mesmo dentro do vazio enorme que ficará martelando, pungente, como uma ferida aberta que se nega a cicatrizar.

Gostar de alguém é, por derradeiro, ter a coragem suficiente para correr atrás dela no instante exato em que ela tomar a decisão de sair porta afora, com as roupas do corpo, deixando, no ar, um vazio grande demais, uma inquietude intransigente, que logo se transformará em esquálida e intransponível solidão.

Fonte:
SOUZA, Aparecido Raimundo de. Havia uma ponte lá na fronteira. São Paulo: Ed. Sucesso, 2012.

Adelmo Oliveira (Cântico para o Deus dos Ventos e das Águas)

MEDITAÇÃO DO SILÊNCIO

Contra a dureza fria das máquinas
Contra o ruído cavo do mundo
Nasci para conquistar aldeias
E reunir as cidades e o campo

Profecia? Não serei profeta
– Grandes rebanhos do mundo moram
Em arranha-céus de arquitetura
E não pisam caminhos de orvalho

As almas ficam assim paradas
Que levantam estátuas de sombra
– Não respiram porque são de cera
– Já não se amam porque são de bronze

O gesto se perdeu no próprio eco
Cravado à fuligem das paredes
– A saliva em sal espuma a boca
E as palavras se petrificaram

Cedo, os corações se endureceram
Com setas de estruturas metálicas
– Só os operários da manhã
Acordam a sirene nas fábricas

O céu é um lacre azul de vidro
Que corrói as ânsias confinadas
– Ora é o tédio, ora é o delírio
Comprimindo o peito e a esperança

Inverterei agora o crepúsculo
Para conquistar a luz do dia
Profecia? Não serei profeta
– Não tenho ferida sob os pés

Sou pregador de antigas parábolas
– Sempre visito a porta dos túmulos
Não professo religiões mágicas
– Sempre aplaquei a ira dos tiranos

Profecia? Não serei profeta
Meu reino é o das estrelas eternas
– Minhas mãos não serão crucificadas
Entre a palavra, o mundo e o tempo

ELEGIA DOS DEUSES
Para Carlos Falck

Agora, as caravelas já partiram
– Neste cais um navio ficou em chamas
As águas negras batem-se contra as quilhas
Ao apito sonoro da distância

O porto está em ruínas. Embora iluminadas
As águas estão paradas e sombrias
– Velas acesas – Círios – Um tinir de cascos
Range de espera pela noite imensa e fria

Os marujos dos deuses ensanguentados
Já dormem num paiol de estrelas fixas
– Não há sorrisos nem flâmulas de prata
Navegando sobre as ondas desse mar infinito

A voz do mar é só um eco de espumas
Que não é brisa nem vento nem flauta
Mas ressoa no espaço cortado em luas
No mapa azul dos reis e argonautas

CANTIGA DE VIAGEM
Para Carlos Anísio Melhor, jogral e poeta agônico

Sei que esta noite ainda é longa
E longa será
Navego na luz deste cerco infinito
– Sigo enquanto espero – e não me finjo
E canto e lento me faço caminhar

Sei que esta noite ainda é longa
– As estrelas dão vertigem no céu
Visto meu casaco azul de malha e saio
– De cavalo de pó e nuvem pelo espaço
À procura da face errante de Deus

PÁSSARO
Para Carlos Pena Filho,
ausente


Eu canto e se cantar por solidão
A rosa em mim floresce no silêncio
Ninguém perturbe a paz deste momento
Em cuja fantasia eu me transvio

Muito menos turve a água desta fonte
Que bebo para o instante inumerável
– Acaso sei de mim que transitório
Sustento um pé na terra outro no espaço

Sou, pássaro de pedra sou. Jamais
Neguei de expor ao sol meu corpo duro
– Tenho postura de animal correto

Falo também a mesma língua escrita
Irmão que sou de tua solidão
Oh navegante além da mesma rota

QUEIXAS PARA ÉOLO

Ilha ou presídio longe um barco acena
Agora navegando em outros mares
Antiga solidão a deste porto
– Isolamento e cais de eternas águas

Ânsias de liberdade mutilada
E larvas de futuro acontecido
– Manhã azul: A quilha sobre as ondas
Risca no mapa um novo itinerário

Navegar, navegar, constante infinda
E sempre navegar por mar e céu
– Outro porto virá além no tempo

Onde a tristeza e a solidão se apaguem
– Atrás, o barco deixa as águas negras
Afastando os perigos dos abrolhos

SONETO DA MORTE FINGIDA

Aqui, perto de mim, na minha vida
Meus olhos ficam cheios de poesia
– A estrela se debruça na janela
E a lua troca a noite pelo dia

Aqui, perto de mim, na minha vida
Corre um vento de mar com melodia
– Risco do mapa antigas caravelas
E a espuma se contorce em fantasia

Aqui, perto de mim, na minha vida
Há um cais. E junto ao cais, há um porto
E no cais e no porto a despedida

Levanto os ferros. A sirene apita
Um corpo bate na água e, então, gravita
Aqui, perto de mim, na minha vida

CONVERSÃO DAS HORAS
(Elegia)
Para Vinicius de Moraes,
Amigo eterno


De repente, a casa virou festa
A maré subiu na praia
– O santo desceu da cruz
Fez um sinal na testa
Olhou de lado – cuspiu no chão
E passou a contar e a repetir
As parábolas e os milagres que tinha feito

De repente, a aurora se repartia
Dando a cada criança um pedaço de suas cores
A outros ofereceu um quinhão de nostalgia
– Um bêbado inerte dormia na calçada
Entre cacos de sonhos de antigos carnavais
– A menina-moça deixou de ser virgem
E constipou o coração com seus primeiros amores

De repente, aquele amor ficou murcho
E o que era azul ficou triste
– O verde perdeu a esperança
– O cristal se fez opaco

De repente, os sinos da cidade dobraram
Nos arredores de velhas catedrais
– O morto não conseguiu chegar ao cemitério
E dispersou a multidão aflita
– As mulheres expulsavam de casa seus maridos
– Os homens pediam perdão às suas mulheres
Mas tudo isto era feito com “inocência e candura”

De repente, os cambueiros de setembro
Estalavam na esquina das montanhas
Relâmpagos, trovões e raios de chuva
Arrancando árvores e telhados de casas
Em redemoinhos de poeira e torrão seco
– As lâmpadas elétricas se apagavam
E todos, desapontados, iam dormir cedo

De repente, “mais que de repente”
Perdi o gosto lírico da tristeza
Mas ganhei a felicidade que invadiu a minha alma
E espancou todos os santos demônios
Que arruinavam o relógio do coração

Fonte:
Adelmo Oliveira. Cântico para o Deus dos Ventos e das Águas. 1987.

Aluisio de Azevedo (Do Vendeiro ao Poeta)

I

Meu Deus! como o Rio de Janeiro ainda está longe de ser uma cidade artística e principalmente um centro literário.

Nas grandes capitais do velho mundo civilizado a primeira camada social é formada pelos homens de espírito, pelos sábios, pelos homens de letras, pelos artistas de talento, pelos investigadores e reformadores científicos, pelos exploradores notáveis; depois seguem-se os políticos em evidência, os estadistas de pulso e os militares distintos pelo saber profissional, pela honra e pela coragem; depois os grandes funcionários jurídicos; depois os homens da alta indústria, os que movem grandes massas de operários; depois os banqueiros milionários; depois os grandes agricultores; depois vêm os artistas auxiliares, os cortesãos de merecimento, os reprodutores dos quadros vitoriosos, os propagadores da ciência e das letras, os peritos executores da boa música, os cantores, os gravadores, os tipógrafos, os atores de gênero ligeiro; enfim, todo esse mundo de habilidosos, que são incapazes de criar, mas que servem de veículo à grande obra dos artistas criadores; e afinal, em último plano, chega a vez dos mercadores, isto é, daqueles que, por falta de talento para conceber e por falta de técnica para executar ou reproduzir qualquer trabalho científico ou artístico, limitam-se a servir de intermediários entre a ciência, a arte e a indústria e entre o público que o consome.

Esta última camada social constitui o comércio, em grosso e a retalho. Na Inglaterra, na Alemanha, na Itália, e na Rússia, as portas da boa sociedade lhe são vedadas escrupulosamente.

A França, depois que se democratizou, limita-se a empurrá-la para o fim da ordem social, e, se lhe não fecha as portas da alta sociedade, faz pior: despreza-a, trata-a com desdém e até com repugnância.

Em França, hoje essa classe só serve para fornecer sogros ricos e noivas com bom dote.

É que a França vê no comerciante o homem que nada produz e mais lucra; o homem que vive exclusivamente para a ganância e para a especulação.

E o negociante, com efeito, ao mesmo tempo que é o intermediário entre o produtor e o consumidor, é o feroz parasita do homem de ciência, do homem de letras, do artista e do inventor industrial.

Estes quase sempre acabam pobres, e o negociante acaba rico, rico e são, porque durante toda a sua vida de lucros nunca fez o menor esforço intelectual e por conseguinte nunca se gastou nervosamente. Em toda a extensa classe social o negociante é o único que não trabalha.

A sociedade dá-lhe o direito de viver sem produzir, comprando por dois para vender por dois e meio; mas o negociante abusa sempre desse direito, comprando por dois e vendendo por quatro quando não vende por seis ou por oito. A consciência do comércio e muito elástica quando se trata de negócios, porque faz parte dos principais requisitos do seu ofício enganar o comprador. E tanto assim é, que eles inventaram para uso prático, provérbios da ordem filosófica deste: "Amigos, amigos - negócios à parte".

Efetivamente, entre os negociantes não se respeita a amizade, nem se observam certos deveres de consciência quando se trata de vender. Uma vez recebi de certa família do interior, a quem devo obrigações, o pedido de comprar aqui uma dúzia de certos lenços especiais de cambraia de linho que então estavam em grande moda e custavam bastante caro.

Como não entendo de fazendas e não queria servir mal a quem me fez a encomenda, dirigi-me a certo dono de armarinho, que eu conhecia de muito tempo e a quem tinha na conta de homem sério.

- Não podias cair melhor! disse-me ele, quando lhe expus o que me levava à sua casa. Não encontrarias em outra parte fazenda como a que tenho no gênero que precisas. É o que há de melhor, vais ver!

- Não preciso ver, porque, já disse, não entendo da matéria. Uma vez me afianças que tens o que procuro, é quanto basta.

Ele embrulhou os lenços, paguei e saí.

Daí a alguns passos encontro outro negociante meu amigo.

Paramos a conversar um instante e contei-lhe a compra que fizera, dizendo que supunha aviar bem a encomenda recebida.

Ele pediu para ver os lenços, observou-os um instante e segredou-me:

- Foste enganado... Isto não é cambraia de linho. Se queres servir bem a família que te encomendou os lenços, não lhe mandes estes, vai à casa do Leite (e ensinou-me onde era) que é o único no mercado que possui hoje dessa fazenda. E tive de ir eu de novo comprar os lenços, pagando também quanto paguei pelos primeiros.

E agora digam-me com franqueza: Fui ou não fui roubado?

E se com efeito fui; se o dono do primeiro armarinho é um tratante, porque motivo hei de eu tratá-lo com mais consideração do que aos outros gatunos, menos velhacos e que mais se expõem, desses que roubam um queijo à porta de uma venda?...

Esses ao menos são mais sinceros e arriscam a dormir na cadeia.

Os negociantes, em geral, são como o amigo que me vendeu os lenços falsos; unicamente, eles lá na sua alta filosofia comercial entendem que não praticam ato desonesto quando nos impingem gato por lebre.

Concordo que assim vivam; concordo que enganem o freguês sempre que possam; concordo que enriqueçam, sem jamais produzir, concordo que o livreiro seja rico e que o autor que mais o enriqueceu morra de fome; concordo que o empresário de teatro tenha milhões, enquanto os artistas que trabalham para ele, escrevendo comédias, representando os papéis, fazendo música, pintando cenografia, não tenham onde cair mortos; concordo que o especulador engorde e que o produtor entisique e estoure de esgotamento nervoso a força de trabalhar; mas com um milhão de raios! não queiram que o parasita ignorante e sem escrúpulo venha colocar-se ao lado do artista de talento, do escritor de espírito, do homem de ciência ou do soldado de honra.

Dois proveitos não cabem no mesmo saco! As cocotes não sofrem as provocações da mulher honesta, mas também não gozam das regalias que esta goza!

Pois bem: para se calcular com justiça do nosso estado de civilização e cultivo intelectual, basta lembrar-nos de que aqui a escala social acha-se rigorosamente invertida.

Aqui, a primeira camada é feita pela classe comercial, e a última pelos homens de espírito.

Rompe a marcha na ordem social, em primeiro plano, o glorioso e brutal comendador, o vendeiro com o seu ventre de monstro, a sua indecorosa fortuna e a sua obscena estupidez.

E quando precisamos alugar ~a casa, diz-nos o proprietário:

- Não alugo sem carta de fiança de vendeiro ou negociante matriculado.

Não! Definitivamente o Brasil poderá ser um país civilizado, enquanto a grande revolução, a verdadeira, a única, não o tomar pelas duas extremidades e sacudi-lo violentamente, até deslocar todas as camadas sociais e obriga-las a tomar o lugar que lhes compete.

Antes disso, não passará esta terra de um grande porto comercial, onde os estrangeiros aventurosos vêm procurar fortuna rápida.

(O Combate, 6 de março de 1892.)

II

 Começo a convencer-me de que esta seção não tem razão de ser e não devia existir, porque infelizmente a vida literária de hoje no Brasil é uma cousa tão hipotética como a vida elegante na costa d'África.

Dantes surgia ainda um livro de vez em quando; vinha à tona, de longe em longe, um volume de versos ou de contos; mas agora, valha-me Deus! não aparece com que dar à gente uma hora de regalo ao apetite de letras pátrias.

E no entanto, o que dantes inspirava versos aos poetas, e o que dantes fornecia aos romancistas capítulos de enredo ou páginas de observação, continua por aí afora, inalteravelmente, enchendo a vida de cousas bonitas, de cousas tristes e de cousas heróicas.

O amor, o grande manancial onde os líricos e os românticos abeberaram por longos séculos as suas musas, não nos consta que fosse também deposto, antes pelo contrário parece que se tem desenvolvido ultimamente e que hoje é o único que não morre de fome no Brasil.

Eva continua, como Jesus Cristo, a atravessar as gerações de braços abertos, à espera dos aflitos que precisam de consolo e que se queiram abrigar na religião da ternura e do carinho. As flores, ao que me consta, nada perderam da integridade do seu perfume primitivo e as rosas continuam a ser belas e os lírios a ser cândidos que faz gosto. Os lagos e os vales, afogados de verdura, perseveram em ter-se misteriosos e as brisas não deixaram ainda de ciciar depois que o Sr. Floriano tomou conta da República.

Segundo as minhas observações, o azul do céu não desbotou e está novinho em folha como saísse da fábrica; as estrelas são inalteravelmente as mesmas; e eu seria capaz de apostar que os sabiás cantam tal qual como no bom tempo de Gonçalves Das, e que as roas não são menos legítimas e gemebundas que as do falecido Casimiro de Abreu.

Por que pois acabaram-se os poetas? Se há azul de céu, se há crepúsculos, e há lua, como pois não há versos?

Como diabo não há versos e poetas, havendo tudo aquilo e, o que é mais, o soberbo e inestimável elemento da fome, da fome e da miséria?

Os senhores sabem quanto vale a fome para os poetas!...

Não sei que mais desejam, os exigentes!

Boa lua, mágoas de primeira ordem, estrelas a discrição, um ditador sanguinário no poder, que é uma tetéia; mulheres que só desejam ser cantadas e decantadas; lágrimas e luto por toda a parte, do que se pode desejar de melhor; uma ótima peste desoladora, um belo sol de rachar, uma falta absoluta de residências, e, por cima de tudo isso, que já é muito, a carne seca a 1$200 o quilo!

Pois mesmo assim, com todas essas vantagens, incrível! os senhores poetas conservam-se na moita e - nem pio! nem um verso!

Os romancistas e os contistas e novelistas, pelo eu lado, também não sei do que se possam queixar. Já não há Portelas para desviá-los do trabalho literário; o governo da legalidade fornece-lhes por dia assassinatos e tenebrosas perseguições, que dão para uma enfiada de volumes; os conspiradores esfervilham de todos os lados; há no ar gritos de agonia e fartum de sangue; rosna-se a respeito de fuzilamentos e cabeças cortadas e assaltos a mão armada; um tesouro!

E os romancistas - moita!

Pelo teatro a mesma cousa: as revoluções sucedem-se; os chefes políticos lutam como atletas; os estados transformam-se em campos de batalha; a peste e a fome, de mãos dadas, invadem a casa do pobre e promovem cenas de grande sensação. E, no entanto, não aparece um dramazinho, uma tragédia, e nem sequer uma comédia em um ato, apesar de que o elemento cômico não abunda menos que o dramático, se dermos crédito ao vizinho da Vida fluminense que conhece muita gente engraçada e capaz de provocar as maiores pilhérias e as mais largas gargalhadas.

Os Melos, por exemplo! Como aqueles dois gaiatos irmãos estão a pedir por amor de Deus que os ponham em cena, de cócoras, um defronte do outro, a torcerem-se de patriotismo! E que belo efeito não faria o Floriano de guarda ao tesouro, como o descreveu Pierrot, de espingarda ao ombro e vela de sebo ao lado? E o batalhão patriótico a gingar na frente da música? E a manifestação popular, obrigada a balõezinhos chineses e descompostura às folhas da oposição?

Oh! definitivamente, não vejo razões para não haver comédias, dramas, romances e poemas!

Se os Srs. literatos não aproveitarem esta boa ocasião, se não aproveitarem enquanto Brás é tesoureiro do Estado do Rio de Janeiro, nunca mais pilharão outra tão boa.

E é pena, porque o momento histórico que atravessamos, devia passar à história, cantado em prosa e verso, para gozo e regalo dos futuros brasileiros.

Um Floriano não se bispa duas vezes no mesmo século!

Vamos, coragem, meus senhores! mãos à obra, que a literatura brasileira precisa, para a sua glória, de ter também, como a literatura italiana, o seu Bertoldinho e o seu Cacasseno.

Vá o país à garra, mas salvem-se as letras, com um milhão de raios!

(O Combate, 10 de março de 1892.)

Fonte:
Biblioteca Virtual de Literatura