sábado, 11 de janeiro de 2014

Simões Lopes Neto (O Meu Rosilho "Piolho")

Não gosto nem admito fanfarrices perto de mim.

Frequentemente encontro sujeitos maturrangos contando façanhas e fazendo gatimoribas de campeiros e a todo instante falando - no meu cavalo, porque o meu cavalo e o meu cavalo, e vai-se a ver e trata-se de um sotreta qualquer, assoleado ou manco.

Cavalo, o que se diz - cavalo -, de chapéu na mão, foi o meu rosilho "Piolho"!

Isso, sim, era de se lavar com um bochecho d'água; de cômodo, era uma rede! de patas, um raio! de rédea, como uma balança! E manso como um cordeiro, de boa boca como um frade, faceiro como uma rosa, e armado, de barba ao peito, como um conde de baralho!

A não ser um azulego do capitão Manduquinha Pereira nunca encontrei outro pingaço para cotejo. Foi domado pelo Chico Piola e não preciso dizer mais nada.

Morreu de garrotilho, até hoje ainda me treme a raiz da alma quando lembro o garbo do meu rosilho...

Uma vez, andava eu, de escoteiro, para as bandas do Alegrete. Calor de rachar. Lá pelas tantas, desviei-me da cruzada sobre uma restinga, disposto a dar um alce ao rosilho e ao mesmo tempo tirar uma sesteada, até abrandar a quentura.

Apeei-me à sombra de um salsal; dei água ao flete e maneei-o, para um verdeiozito. Era ele cavalo mui mestre nestas cousas.

Em seguida estendi os arreios e aplastei-me sobre os pelegos, de carnal pra cima; puxei o chapéu para os olhos e encruzei os braços sobre a boca do estômago, tendo antes posto de jeito o facão e a pistola, por um - se acaso.

Nem as folhas buliam, nem um passarinho cantava, apenas um que outro trilirim de gafanhoto vermelho saltando nas macegas. Nem quero-quero fazia ronda.

Assim tirei uma cochilada morruda e iria a mais se.

Amigo! ouvi um tronar forte, de tremer o chão! Era um temporal de verão, desses que não dão tempo nem para se apagar o cigarro!

Foi o quanto saltei das caronas e trouxe o rosilho, enfrenei-o - num vá! - sentei-lhe as garras - num vu - e montei de pulo. A trovoada roncava ali, logo no outro lado da canhada.

Via-se cair a chuva, em manga, em linha, e via-se muito bem porque o sol dava de refilão pela esquerda. E todo aquele borbotâo d'água que desabava corria sobre mim, no pé-do-vento.

Levantei as rédeas, firmei-me nos estribos e trepei a coxilha e no que achei campo em frente, rumbeei para a estância do falecido João Silvério, que branqueava lá longe, obra de três quartos de légua, cortando à direita.

Nisto senti um - tchá! tchá! tchá! -atrás de mim; olhei, de relancina apenas, porque nem tempo para mais, tive; era o temporal, a bomba d'água que se despenhava, quase nos garrões do rosilho! Foi o quanto amaguei o corpo e toquei, de meia rédea.

Cupins e buracos de caranguejos, tacurus, macegas e carquejas, sangas, lagoas, barrais - o diabo! - não vi nada! Se rodasse, nem o sebo da coalheira se me aproveitava!

Mas o rosilho "Piolho" era firme e bonzão, sem mais nada!

Eu corria, é verdade, porém a manga d'água também corria. A polvadeira que eu levantava a chuvarada engolia logo.

Eu sentia-lhe a frescura, percebia que ela estava-me na garupa, na anca dó rosilho, nos garrões dele! Um que outro pingo de chuva mais ponteiro batia-me às vezes na aba do chapéu.

Era um duelo esquisito. Um duelo, em que um valente fugia para ficar vencedor!

Vencer, aqui, era chegar enxuto.

E assim viemos, eu e a tormenta, na mesma disparada: a que te pego! a que te largo! a que te pego! a que te largo! - Já perto das casas, vi a gente do João Silvério, e ele mesmo, todos de mão em pala sobre os olhos, gozando aquela gauchada.

Isso foi rápido, pois logo todos entraram, a fechar portas e janelas, quando viram que eu vinha feito sobre o galpão.

Quando ia mesmo a entrar, saiu-me a cachorrada, furiosa, enovelando-se, em latidos e investidas: suspendi a rédea com pena de matar algum debaixo das patas.

Olhem que isto foi como um pensamento; mas foi o tempinho bastante para o demônio da chuva molhar a anca do cavalo!

Fiquei furioso! Se não tenho a pieguice de poupar um daqueles ladrões daqueles cachorros, a chuva não me tocava, nem na cola do rosilho: chegaria enxuto!

Assim é que entendo cavalo bom.

O João Silvério ficou doudo pelo "Piolho"; dava-me cem onças de outro, um apero completo, de prataria lavrada, por fim, de quebra, por cima de tudo, ainda me tenteou com um rodeio tambeiro.

Um horror de propostas. Mas eu não quis. Durante muitos anos aí esteve ele vivo e são, que podia contar este caso, tal qual eu. Hoje não sei que fim levou essa gente, e mesmo se eu quisesse ir agora a essa estância, talvez não atinasse mais com o caminho, por causa da divisão dos campos, estradas novas, cercas e corredores que despistam muito um vaqueano. Mas que o caso passou-se, isso, passou-se!! mal apenas a chuva tocou a anca do baio e isso mesmo por causa dos cachorros do João Silvério!
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continua… mais casos

Fonte:
Wikipedia

Humberto de Campos (A Epilética)

- Estás, então, separado de tua esposa?

- É verdade; internei-a em uma casa de saúde.

E como se tratasse de uma palestra afetuosa, entre amigos que lia muito se não viam, o mais moço dos dois, o Sr. Nataniel de Miranda, caixeiro viajante de uma conceituada casa da praça, justificou a sua conduta:

- A situação em que dia me colocou era intolerável. Eu seria um perverso, um miserável, um desumano, se conservasse na minha companhia uma senhora sabidamente enferma, perseguida por moléstia tão delicada.

- Era, então, doente?

- Doentíssima! - confirmou o esposo inconsolável.

E como se visse nos olhos do amigo uma interrogação luminosa, um desejo de conhecer, fase por fase, os detalhes daquela tragédia de coração, tomou-o pelo braço e, fazendo-o sentar-se em uma das mesas do botequim, principiou, calmo, a descrever-lhe o caso, deixando esfriar, entre voltas de fumaça, as duas xícaras de café.

- Há muito tempo eu andava desconfiado da moléstia da Luisinha. Afastado sempre de casa por exigência mesmo do meu gênero de vida, ora em excursão pelo interior de Minas, ora por S. Paulo, era com estranheza, com mágoa íntima, que eu observava, de mês para mês, a mudança nos modos de minha mulher. A transformação do seu caráter, das suas maneiras, do modo, enfim, por que definhava, a olhos vistos, fazia-me triste, aflito, preocupado, na suspeita de que alguma coisa de grave, de anormal, se estava passando na sua saúde. Em uma dessas viagens, com a alma carregada de preocupações, confessei a um parente meu, fazendeiro em Uberaba, a desconfiança, que eu tinha, de que ela sofria de ataques, na minha ausência. Ele escutou-me, pensou um momento, e, chamando-me para o interior da casa, perguntou-me porque eu não tirava a limpo essa dúvida, empregando, no caso, a experiência da tigela de leite.

- Da tigela de leite? - interrompeu o amigo.

- Da tigela de leite, sim.

E continuando:

- Esse fazendeiro explicou-me, então como era a prova. Pega-se uma tigela de leite, e põe-se debaixo da cama, em um lugar que corresponda ao meio do colchão. Em seguida, toma-se de uma colher, ou de uma vara de uns dois palmos, e amarra-se no estrado de arame, de ponta para baixo, exatamente sobre a tigela, de modo que, com o peso natural de uma pessoa, não chegue até o leite, mas de maneira que, com um movimento mais forte, como nos ataques de epilepsia, a colher, ou coisa semelhante, molhe a ponta no liquido da tigela, registrando o fenômeno.

- E fizeste a experiência?

- Espera aí. Chegado ao Rio, procurei um momento em que a Luisinha se achava ausente, e fiz o que me haviam aconselhado. com a diferença, apenas, da colher, que, por ser a cama um pouco alta, foi substituída na ocasião, por um batedor de doce, que encontrei na dispensa da casa. Feito isso, declarei que ia a São Paulo, e parti. Dois dias depois, voltei.

- E então? - indagou o amigo, ansioso, com a curiosidade nos olhos.

- O batedor tinha batido tanto, tanto, que a tigela...

- Que é que tem? - interrompeu o outro.

E o desgraçado, enxugando os olhos:

- Estava cheia... de manteiga!…

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze.

Nilto Maciel (O Descanso do Criador)

E havendo Deus terminado no dia sétimo a sua obra, que fizera, descansou nesse dia de toda a sua obra que tinha feito.
Gênesis

O mágico chegou a Palma falando pouco e dizendo-se dinamarquês. Para facilitar a comunicação com os palmenses, escreveu numa folha de papel, em grandes letras, duas palavras: Egill Raunkiaer. E, rindo, apontou um dedo para o próprio peito.

As primeiras mágicas aconteceram imediatamente após a sua chegada. E só então o povo soube estar diante de um mágico. Egill se cercou de mais gente. A praça parecia em dia de festa religiosa.

Mais tarde e no dia seguinte disseram estar a cidade repleta de coelhos e coberta de pombas. Uma sujeira nunca vista. Tudo saído da cartola e do lenço do mágico. Algumas senhoras piedosas até não estariam contra o estranho, se os pobres do Potiú, do Beco do Labirinto, das Lajes matassem e comessem os coelhos e os pombos.

Indignado, o prefeito ordenou a captura dos bichos e multou o mágico em um cruzeiro por cada animal por ele criado. Revoltado, Egill enviou uma revoada de pombas em direção à casa do edil, cobrindo-a de excremento. E pagou com prisão pelo ato de desrespeito e desacato à autoridade-mor de Palma.

Para espanto de todos, o mágico fugiu da cela, sem quebrar o cadeado, sem abrir o portão, sem esburacar chão, paredes ou teto. E voltou à mesma praça. O primeiro coelho saltou da cartola, andou ao redor do seu criador e desapareceu aos olhos dos poucos espectadores. Uma caixa de fósforos se transformou num relógio, uma caneta sumiu, outra pomba saiu do lenço, e logo a multidão se extasiava diante do dinamarquês. No entanto, queriam coelhos e pombas. Egill sorria, alisava a cartola e amassava o lenço. “Um coelhinho branco para o meu filho, seu mágico.” Uma pombinha surgia trêmula nas mãos do estrangeiro. Batia as asinhas, voava, voava, e sumia no céu. Um coelhinho saltava da cartola, olhinhos vermelhos de espanto, focinho inquieto, e as primeiras mãos do povo o agarravam sangrentas.

Ora, o mágico precisava banhar-se, alimentar-se, descansar. E, mais tarde estaria de novo na praça. Não, a multidão não aceitava intervalos no espetáculo. Mágico não podia descansar, não sentia fome, não se sujava. Ou criava mais coelhos e pombas, ou se preparasse para o pior. Alguém mais sensato sugeriu deixarem a decisão nas mãos do vigário, do prefeito e do delegado. O estranho podia voltar ao hotel. O povo ia ouvir as autoridades.

Chamado à presença do prefeito, Egill tentou ser claro: para criar tantos coelhos e pombas necessitava de alguns cruzeiros. Nesse caso, criasse também outros bichos. Sim, por que não criar bichos de estimação? Melhor, animais exóticos, selvagens. Leões, elefantes, girafas. Sim, um zoológico. Ora, o Jardim Zoológico de Palma. A grande realização de sua gestão na prefeitura. Eleição garantida para deputado.

Inteirado do projeto zoogênico, o padre concordou com o prefeito. A cidade precisava mesmo desenvolver-se, crescer. Pensou noutra direção e se fez atônito. Ora, um homem não podia criar animais. O administrador quis se irritar, por que um homem não podia criar animais? E os criadores de gado? Por acaso a Igreja então se opunha aos fazendeiros? O vigário também se exaltou. Qualquer pessoa tinha o direito de criar bois, bodes, porcos, galinhas. Porém, toda criação era obra de Deus. O boi nascia da vaca, o bode nascia da cabra, o porco nascia da porca, a galinha nascia de outra galinha. O prefeito não concordou com a lição do padre. Da vaca nascia bezerro e não boi, e da galinha saía ovo, e deste nascia pinto.

Ameaçado de excomunhão, o edil custou a entender a descrença do pároco. Porém, acreditava nas mágicas do estrangeiro. E correu em busca de apoio do delegado ao seu projeto. O zoológico serviria de diversão para o povo. Palma ficaria famosa em todo o Ceará. E ele, prefeito, se elegeria deputado ou mesmo governador. O tenente passaria a capitão. Não, a major. Quem sabe, a coronel. Envaidecido, o delegado aplaudiu de pé o discurso-plano do chefe.

Convocado mais uma vez à prefeitura, o mágico deixou o povo na praça a ver nuvens. E os cruzeiros, bem, o Cruzeiro não podia ser destruído. Talvez um bom local para o zoológico fosse o campo de futebol. Ou a Praça da Matriz. Não, o vigário não aceitaria ver os bichos diante da igreja. Melhor sacrificar o jogo.

A notícia se espalhou pela cidade feito água. E todos gritaram de felicidade. O prefeito merecia todos os mais pomposos adjetivos. Porém, um homem se levantou contra o projeto do jardim zoológico. Redigia e editava havia mais de cem anos um jornaleco. Sempre em oposição ao prefeito, ao delegado, ao deputado, ao governador, ao presidente. Para que gastar milhares de cruzeiros num jardim zoológico, se na cidade faltavam jardins de infância? Chamaram-no de louco, inimigo da criação de coelhos e pombas, anticristo.

O prefeito convocou e contratou todos os homens do município para a construção do jardim. E se iniciou o grande projeto.

No hotel, já reformado e melhorado por exigência do mágico, se refestelava o estrangeiro. E passeava de jipe pela cidade, corria os sítios a cavalo, olhos e mãos nas mocinhas, esquecido de coelhos e pombas. Tratado como lorde, marquês ou rei.

No antigo campo de futebol os muros iam altos, as jaulas se fortaleciam para receber as feras, buracos se escavavam no chão, pequenos lagos se formavam.

Entusiasmado, o prefeito anunciou o dia da inauguração da obra. E convocou de novo Egill Raunkiaer: os animais seriam criados num só dia, no dia da inauguração do zoológico. E por que não em sete dias? Porque ali estavam os seus cruzeiros. E apontou para uma mala a um canto.

Tudo em vão: no dia da criação dos bichos que povoariam o jardim, o mágico desapareceu da cidade.

Fonte:
MACIEL, Nilto. A leste da morte. Editora Bestiário, 2006.

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Paulo Véras

Paulo Roberto da Trindade Véras (Parnaíba, Piauí, 1953 – Fortaleza, 1983), poeta, contista, novelista e romancista, cedo se mudou para Fortaleza, onde se formou em Letras pela Universidade Federal do Ceará. Exerceu o magistério. Membro do Grupo Siriará. Publicou o livro de contos Cabeça de Cuia (São Paulo: Ed. Moderna, 1979). Em parceria com Leila Mícolis, editou o livro de poesia Maus Antecedentes, em 1981. Também de poesia lançou O Centro da Pedra. Escreveu um livro de literatura-infantil e poemas. Publicou também a novela Ita. Participou da revista Escrita, nº. 6, de São Paulo, com o poema “Tranlucidez”, e de O Saco Cultural, nº. 5, do Ceará, com o conto “O circo do vidro ou a Imitação da Fantasia”. Em Queda de Braço: uma antologia do conto marginal saíram os contos “O aniversário” e “Os corações devem ser postos na lata de lixo”.

Na opinião de Ligia Morrone Averbuck, “os vagos limites entre o real e o fantástico, a razão e a loucura, a verdade e o faz-de-conta emergem das páginas de O Cabeça-de-Cuia” (...)

Seus contos são quase todos tecidos a partir do fio da memória, razão por que os personagens situam-se entre a infância e a adolescência.

Como está nos manuais, o conto é uma peça literária curta, de poucos personagens, de um só núcleo fático. É o caso dos contos de O Cabeça-de-Cuia. Todos curtos, quase sintéticos, quase à maneira de Dalton Trevisan. Períodos incisivos, sem rodeios, sem malabarismos de linguagem. Espécie de roteiro para elaboração de narrativas mais extensas. Ao lado disso, um linguajar bem nordestino, tal como em Graciliano Ramos ou Juarez Barroso, sem o folclorismo da literatura regionalista, apesar dos “num” em vez de “não”, dos “tá” em vez de “está”. O povo rude fala assim. Mas também não diz, por exemplo: “duas bilas de vidro”. Diz: “duas bila de vrido”. Isto, que Graciliano não fazia, não pode desmerecer a literatura de Paulo Véras. Não chega a ser um grande pecado.

Os vinte e seis contos de O Cabeça-de-Cuia carregam esta mesma maneira de escrever, apesar de não haver homogeneidade temática. Uns são mais voltados para o interior das personagens, outros para o binômio homem-ambiente. E são estes últimos, quase todos circunscritos ao espaço rural, os que apresentam melhor feição. Gravitam em torno de personagens situados entre a infância e a adolescência. Neles o contista melhor se revela. Certamente Paulo é dono de prodigiosa memória, pois, movimentando personagens antigos e complexos, como as crianças no mundo rural, pinta quadros tão coloridos que é de se imaginar ter ele escrito os contos quando ainda criança. Não menos coloridas e vivas são as personagens.

Porém, um senão deve ser registrado – o conto “O Equívoco”, de tão comum, tão falto de criatividade, deveria ter sido excluído do livro. Apesar disso, Paulo Véras se situa ao lado dos bons narradores das pequeninas criaturas do interior nordestino.

Não fosse o conto “O Equívoco” (título excelente para um trocadilho), O Cabeça-de-Cuia poderia ser incluído no rol dos bons livros de contos surgidos no período histórico aqui estudado. E é justamente o único em que o contista tenta mostrar-se engajado. É o caso de se dizer: quem nasceu para Cornélio Pena nunca chega a Lima Barreto.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

Machado de Assis (Gazeta de Holanda) N.° 19 – 12 de junho de 1887

Parece que há divergências
Entre câmara e senado;
Comparam-se as influências,
Fala-se em patriciado.

Soube disso ultimamente
Pelas folhas... Pelas folhas
Sabe tudo toda a gente,
Votos, lãs, óbitos, rolhas.

E, antes de ir ao parlamento,
Direi que soube por elas
Negócio de algum momento,
De varões e moças belas.

Li que uma sociedade,
Sociedade Protetora
Dos Animais da cidade
(Ó minha Nossa Senhora!)

Ia dissolver-se, e dava
A razão do ato; era, em suma,
Que nenhum esteio achava
Nas leis nem em parte alguma.

Ora, eu que me ri, há meses,
De vê-la, toda capricho,
Falar de si muitas vezes
E mui rara vez de um bicho,

Injusto fui. Ora o vejo,
E confesso os meus remorsos.
Não fiz justiça ao desejo
Dela nem aos seus esforços,

Nem também principalmente
À sua audácia provada
De falar do bruto à gente,
Sem ser para bordoada.

Cuidar de cães... Ter piedade
De um triste e magro orelhudo,
Que arrasta pela cidade
Carroça, este mundo e tudo;

Isto a sério, isto sem medo
Do riso de outras pessoas;
Fazer disto ofício ledo,
Pôr isto entre as ações boas;

Quando é certo que cachorro,
Nem burro, cavalo ou gato,
Não sabem de tal socorro,
Nem dão charanga ou retrato;

Trabalhar sem recompensa
Imediata e tangível,
Não é de gente que pensa,
É maluquice visível.

Entretanto, a sociedade,
Depois de pensar uns dias,
Fica, e não se persuade
Que entra em baldadas porfias.

Baldadas e generosas...
Fique-lhe este prêmio, ao menos:
Espalha as mãos dadivosas
Aos pequenos mais pequenos.

Mas, voltando à vaca fria:
Li que a câmara conhece
No senado a primazia,
E se dói, e se aborrece.

Não tédio em dar, a ponto
De brigar abertamente;
Faz com tristeza o confronto
Sem magoar a outra gente.

Quando muito, ouve calada,
Alguma palavra nua,
E confessa encalistrada
Que ou cede ou vai para a rua.

Busca-se agora um remédio,
Alguma cousa que faça
Cessar esse amargo tédio...
Aqui lh'o trago de graça.

Deu-m'o um espírito agudo,
Que também é deputado,
Varão conspícuo e sisudo,
Não sei se desanimado.

Droga fácil e sumária,
Que não traz dor, mas delícia;
É fazer da temporária
Uma cousa vitalícia.

Então, sim; iguais as damas,
Serão iguais os vestidos,
Iguais as perpétuas chamas
Nos peitos endurecidos.

Não respondi à pessoa
Que isto me dizia, nada;
Se a idéia é ruim ou boa,
Aí a deixo estampada.

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

Aluízio Azevedo (Vida Literária) Gasparoni

Ora, até que afinal apareceu um livro de literatura amena. E' o primeiro que surge depois que O Combate existe.
 
CONTOS DE UM DILETTANTI
por Alexandre Gasparoni

Seja benvindo!

O autor é um bom rapaz, simpático e honesto; inteligente e trabalhador, que, em vez de dar as suas horas de descanso à pândega ou à preguiça, entendeu de aproveitá-las escrevendo contos para diversas folhas; e agora, depois de reuni-las em volume, oferece-os ao público.

Como declara logo no prólogo, o Sr. Gasparoni não tem pretensões artísticas e não tem filiação literária. Faz contos, como o Sr. Taunay faz música e como o espirituoso escritor França Júnior fazia pintura, por gosto, para matar o tempo e divertir os amigos.

Nada mais natural e mais de direito. Eu, porém, é que não vou com semelhante sistema. A arte é cousa muito séria e respeitável para ser cultivada assim, nas horas vagas, descansando de outros trabalhos.

A vida inteira de um artista é muito pouco ainda para a sua obra. Na arte, seja literatura, música, pintura ou estatuária, não há meios termos - ou é arte ou não é arte!

Se é arte pertence ao público, pertence à nação, pertence ao mundo, se não é arte pertence ao dono ou dona da prenda, e não deve sair de casa do autor; deve ficar na sala de visitas, sobre os consolos, entre os bibelots e os bordados da família.

Se é arte, pertence à crítica que a julgará, sem nunca tirar nem pôr do seu merecimento. Forte, ela atravessará os séculos, marcando eternamente na história a época em que veio ao mundo; fraca, morrerá logo ao nascer, desconhecida de todos e esquecida até pelo próprio autor.

A arte é honesta e só se entrega a quem a ama mediante rigoroso casamento. Não quer amantes passageiros. É egoísta e cruel: não admite que o seu idólatra volva uni só momento os olhos para outro ideal; quer que ele se dê todo inteiro, todo de corpo, todo de alma; quer beber-lhe a existência, gota a gota, instante a instante, até deixá-lo totalmente vazio, seco, inutilizado para todas as outras aspirações da vida.

O artista não vive: o artista trabalha. O artista não descansa: o artista pensa. Deitado, passeando, comendo, enquanto as mãos deixaram o pincel, ou o escopro ou a pena, o pensamento continua a executar a obra interrompida.

Dormindo, ele trabalha ainda. Não é raro vê-lo levantar-se ao meio da noite, no meio do sono, e, esquecido da mulher que tem ao lado na cama, ir, como um sonâmbulo, acender a vela e correr ao seu quadro, ou à sua estátua, ou ao seu poema, para modificar uma linha ou corrigir uma frase.

A obra concebida nestas condições, o filho legítimo dessa união indissolúvel do artista com n sua arte estremecida, não pede desculpas quando aparece, nem aparece ao público enquanto não se sente capaz de impor a sua passagem.

A arte nunca deve pedir; deve sempre surgir de pé, armada e pronta, altiva, superior, e seguir tranquilamente o seu destino, sem olhar para trás, nem para os lados, nem para o chão.

Como, por conseguinte, aceitar, no prólogo de um livro de contos, esta confissão do autor: "Sou apenas um dilettanti" o que quer dizer: "não sou um artista; não sou um escritor"?

Mas, valha-me Deus! se não é escritor, não escreva! Se não é pintor, não pinte! Se não é flautista, para que se mete a tocar flauta fora de casa, em concertos públicos?

Isto faz-me lembrar certos quadros que às vezes se expõem por aí com esta declaração por baixo: "O autor não aprendeu desenho!"

Como se fosse preciso semelhante declaração, quando o quadro aí está para não deixar dúvidas a esse respeito.

E, no entanto, a declaração mais necessária não a faz o autor, explicando por que diabo é que ele pinta e expõe quadros, tendo consciência de que não está habilitado para isso.

Mas o Sr. Gasparoni, apesar de pregar por debaixo do seu quadro um letreiro em que declara não passar de simples dilettanti despretensioso e sem preocupação de escolas literárias, diz-nos também que, para escrever, se inspirou "na encantadora simplicidade de linguagem destes três mestres da literatura francesa: Alfonse Daudet, Guy de Maupassant e Paul Bourget".

E' caso para dizer: Bem lembrado! Unicamente convém notar que a chamada simplicidade desses três escritores parisienses, que nada têm de comum com as nossas letras, é resultado de muita arte, de muito esforço e de longos anos de trabalho e de estudo.

Qualquer desses três artistas para alcançar essa bela simplicidade sedutora, de que fala o Sr. Gasparoni, deu em troca, durante uma vida de calceta, tudo o que de melhor possuíam: a sua força cerebral e a sua força física. Daudet está moribundo em conseqüência de esgotamento nervoso, e Maupassant está perdido e louco para sempre; de Bourget nada me consta por enquanto, mas não dou muito pela integridade dos seus músculos e dos seus nervos.

Tome cuidado o Sr. Gasparoni e mude de mestres enquanto é tempo! Além de que, não há necessidade de pedir esmolas à literatura francesa, tendo a quem recorrer na própria, e até aqui mesmo, em nossa querida pátria. Volva o Sr. Gasparoni as vistas para Machado de Assis, para Lúcio de Mendonça, para Raul Pompéia, para Artur Azevedo e para os nossos outros bons narradores de contos e me dirá se o engano!

E é isso principalmente o que não perdôo ao estimável autor dos Contos de um dilettanti, é a sua pretensão de ser discípulo daqueles três escritores franceses. Não perdôo, porque além de tudo, não é verdade. O seu livro, onde figuram mulatinhas parafinas, das que gostam de ser beliscadas na festa da Glória, e de primos Jojocas, nenhum parentesco tem com a doentia, preciosa e amorfinada literatura parisiense; o seu livro é um netinho franzino dos nossos velhos e engraçados escritores; descendo do Pena, do Mace do, do França Júnior, e um pouco também do diletantismo alegre e burguês de Ferreira de Araújo.

Que isso que fica dito não seja traduzido por má vontade contra o autor; que sirva antes para lhe chamar o apetite de trabalhar forte e rijo nas letras, porque no seu livro há revelações de bons qualidades, que, uma vez cultivadas a sério, podem desabrochar em trabalho de arte.

Será com o maior prazer que um belo dia, falando de Alexandre Gasparoni, em vez de "Bom rapaz", tenha eu que dizer "Bom escritor".

O comércio e a bolsa perderão um dos seus agentes mais esperançosos, mas as letras pátrias rejubilarão de gozo.

O Combate, 12 de março de 1892.

Fonte:
Biblioteca Virtual de Literatura
Imagem = Aluizio de Azevedo, por William Medeiros

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Arlindo Tadeu Hagen (Saudade... Eterna Saudade)


2º Concurso da UBT de San António/Texas (Resultado Final)

Tema: Honestidade
para Trovadores Brasil e Portugal

TROFÉU A. A. DE ASSIS

Vencedores:

 1º Lugar


Para viver sigo o rastro
dos que acreditam e entendem,
que a honestidade é o lastro
dos homens que não se vendem.
MESSIAS DA ROCHA

2º Lugar


Durante a candidatura,
honestidade é bandeira.
Eleito, nova postura:
mostra a face verdadeira.
EDWEINE LOUREIRO DA SILVA

3º Lugar


Sonho um mundo diferente
em que sempre a Humanidade
possa  vestir toda gente,
com traje de Honestidade! ....
IVONE TAGLIALEGNA PRADO

4º Lugar


Seria o viver bem doce
sem o amargo da maldade,
se toda ação do homem fosse
pautada na honestidade!...
LUCILIA TRINDADE DE CARLI

5º Lugar


Valorize a honestidade
e guarde a lição de cor:
quem fala sempre a verdade
constrói um mundo melhor.
OLYMPIO DA CRUZ SIMÕES COUTINHO

Menção Honrosa

1º Lugar


HONESTIDADE é a conduta
de quem escolhe na vida
a liberdade, absoluta,
de andar de cabeça erguida.
 WANDIRA FAGUNDES QUEIROZ

2º Lugar


Agir com honestidade,
sem pecha de hipocrisia
é princípio, na verdade,
de muita sabedoria.
JOSEL HIRENALDO

3º Lugar


Só quem respeita a verdade
pode mesmo compreender
que agir com honestidade
é ter paz para viver!
GLÓRIA TABET MARSON

4º Lugar


De olhos nos olhos, sem pressa,
cumprimenta os teus Irmãos,
que a honestidade começa
já nesse aperto de mãos!
CAROLINA RAMOS
 
5º Lugar


Quem fala sempre a verdade
cultiva em seu coração
um rosal de honestidade
que o conduz à perfeição.
MARINA VALENTE

Menção Especial

1º Lugar
 

Honestidade, na essência,
é compostura, altivez,
é ter verdade, decência,
ter probidade, honradez!
FABIANO DE CRISTO MAGALHÃES WANDERLEY

2º Lugar
 
Ergo os olhos para o céu
e agradeço, de verdade,
pois eu tiro meu chapéu
em louvor à honestidade.
  DARI PEREIRA

3º Lugar


Se quer ter felicidade
e na vida se dar bem,
haja com honestidade
não prejudique ninguém.
 IGNEZ FREITAS FONSECA

4º Lugar


Que eu ponha, na honestidade,
a minha razão de ser,
fazendo da dignidade
o orgulho do meu viver!
DELCY CANALLES

5º Lugar


Hoje em dia, a honestidade
é difícil de encontrar
pois a tal impunidade
tem ensinado a roubar.
CECY BARBOSA CAMPOS

 Trovas Destaque


Não é somente a fartura
que faz rica a sociedade.
– É o alto grau de cultura,
sobretudo a honestidade.
A. A. DE ASSIS

A liberdade prospera
onde existe honestidade.
Muito mais que uma quimera,
ela é a expressão da verdade.
 AGOSTINHO RODRIGUES

Longe de todas as críticas,
feliz a sociedade,
se o Governo tem políticas
pautadas na honestidade.
DODORA GALINARI

 Unir laços de irmandade
entre todas as nações
se faz com honestidade
na mais grata das missões!
ABILIO KAC

De que vale ter riqueza,
no lodo da improbidade ?
O tesouro da pobreza
¡é a joia da honestidade !
ALBA HELENA CORRÊA

Se naquela ou nesta idade,
tanto fez ou tanto faz;
vale sempre a Honestidade
no tempo que a vida traz.
 JOSE CACILDO

 O homem, ainda..., sonha
com um "mundo de verdade",
onde não haja a vergonha
de se ter a honestidade!!!
ROBERTO TCHEPELENTYKY

Toda honestidade tem
o grande e forte poder
que faz o brio de alguém
bom crédito merecer.
RUTH FARAH NACIF LUTTERBACK
 

Vendo em crise a honestidade,
lanço ao mundo o meu protesto,
ensinando à mocidade:
- Morra pobre,... mas honesto!!!
ERCY MARIA MARQUES DE FARIA

 Viver com honestidade
enobrece o cidadão...
Pois quem vive na verdade
tem amor no coração.
NEIVA FERNANDES

 A “ erosão “, em andamento,
compromete a humanidade:
- Honestidade é o “cimento “,
que dá liga à sociedade...
DARLY O.BARROS

 A honestidade devia
ser integrante do ser,
ela nos traz alegria
e faz feliz o viver!
GISLAINE CANALES

 Sendo a ganância o defeito
que seduz a humanidade
merece grande respeito
quem conserva a honestidade.
ARGEMIRA FERNANDES MARCONDES

 Dos atos de honestidade
brota uma íntegra pessoa
que expande com dignidade
os valores que apregoa.
MARIA CRISTINA CACOSSI CAPODEFERRO

 Quando ajustamos o passo
com o próximo, primeiro,
honestidade é o abraço
da paz com o travesseiro.
JOÃO BATISTA XAVIER OLIVEIRA

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Comissão Julgadora para 2º Concurso Internacional de la UBT de San António  Texas-2013-
Tema: HONESTIDADE- para Trovadores Brasil e Portugal
Dorothy Jansson Moretti
José Lucas de Barros
Amilton Maciel Monteiro
Clênio Borges
Alice Brandão
Ari Santos de Campos
Thalma Tavares

Fonte:
Messias da Rocha

Irmãos Grimm (A Duração da Vida)

Quando Deus tinha criado o mundo e decidiu fixar o tempo de vida de cada criatura, o asno veio e perguntou:

— Senhor, quanto tempo viverei?

— Trinta anos, Deus respondeu, isso está bom para você?

— Ah, Senhor, respondeu o asno, — isso é muito tempo. Pense na minha existência penosa! Carregando cargas pesadas de manhã até a noite, arrastando sacos de milho até o moinho, para que outros possam comer o pão, não ser consolado ou reanimado com nada exceto com socos e pontapés. Liberte-me de uma parte desta longa vida.

Então Deus teve piedade dele e o libertou de dezoito anos. O asno saiu consolado e o cachorro apareceu.

— Quanto tempo gostarias de viver?, disse Deus a ele.

— Trinta anos é muito tempo para o asno, mas tu ficarias contente com isso?

— Senhor, respondeu o cachorro, - seria essa vossa vontade? Leve em consideração como terei de correr, meus pés não aguentariam tanto tempo, e quando eu tiver perdido a minha voz de tanto latir, e meus dentes de tanto comer, o que restará para eu fazer, a não ser correr de um canto para outro, e ficar rosnando?

Deus viu que ele tinha razão, e o libertou de doze anos de vida.

Em seguida veio o macaco, — Tu certamente viverás trinta anos com alegria? Disse o Senhor a ele. Não tens necessidade de trabalhar como o asno e o cachorro precisam fazer, e sempre estarás feliz contigo mesmo;

— Ah!, Senhor, respondeu ele, — pode ser que esse pareça ser o meu caso, mas é totalmente diferente. Quando sobra mingau, eu não tenho colher. Devo sempre brincar alegremente, e fazer caretas para que as pessoas riam, e se eles me dão uma maçã, e eu a mordo, ela é sempre azeda! Quantas vezes a tristeza se oculta por trás da alegria! Jamais conseguirei suportar trinta anos.

Como Deus teve muita pena do macaco, lhe tirou dez anos.

Finalmente o homem apareceu, alegre, saudável e vigoroso, e pediu a Deus que lhe dissesse quanto tempo iria viver.

— Viverás trinta anos, disse o Senhor. — Isso basta para ti?

— Porquê um tempo tão curto, reclamou o homem, — quando eu tiver construído a minha casa e o meu fogo estiver queimando na minha própria lareira; quando eu tiver plantado árvores que florescem e dão frutos, e estiver pretendendo desfrutar a minha vida, eu tenho de morrer! Oh, Senhor, aumente o meu tempo.

— Eu te darei os dezoito anos que o asno recusou, disse Deus.

— Isso é pouco, respondeu o homem. — Terás então os doze anos do cachorro.

— Ainda é muito pouco!

— Bem, disse Deus, — eu te darei também os dez anos do macaco, porém, mais que isso não será possível.

O homem foi embora, mas não estava satisfeito.

É por isso que o homem vive setenta anos. Os primeiros trinta anos são os anos que Deus lhe deu, os quais passam rápido; depois ele fica saudável, feliz e trabalha com prazer, e tem alegria em viver.

Depois seguem-se os dezoito anos do asno, quando uma carga atrás da outra é posta sobre ele, ele precisa levar o milho que alimenta os outros, e tapas e pontapés são a recompensa por seus serviços de fidelidade.

Depois vem os doze anos do cachorro, quando ele fica num canto, resmunga e não tem mais dentes para comer, e decorrido este tempo os dez anos do macaco terminam sua vida.

Nesse período, o homem é fraco da cabeça e tolo, comete doidices, e imita os gestos das crianças.

Fonte:
Wikipedia

Hernando Feitosa Bezerra Chagall (Cantares) X

URBANOS

O silêncio nos ensina
Que o caos
É nossa rotina.

PROVOCAÇÃO
 

Cultivo inimigos
Porque deles retiro
A veracidade do ser humano.

POR QUÊ?

Sabendo-se a razão do meu desejo
Teu corpo foge a galope
Dos meus beijos.

QUESTIONS
 

Acabamos nos esquecendo
De que somos perguntas
Que a vida vai respondendo.

BOOOMMM!
 

Falar é bom
Calar é om
Amar é mmmmm...

PAZ

O sol equilibra o dia.
O fôlego sustenta a vida.
À noite é melhor amar.

BOÊMIOS

Rua lua bar...
Para alguns, boêmia;
Para muitos, lar.

POETA
 

É poeta
Aquele que colhe sol
Num simples brilho de luar.

DOCE LOUCURA

Amar é um risco louco
Traçado no caminho de poucos
E felizes “anormais”.

PIETÁ

A sensibilidade muitas vezes
Transforma pedra bruta
Em reluzentes deuses.

TEMPESTADE

Relâmpagos avisam
É hora de arrumar
Os móveis do céu.

HÁ! HÁ! HÁ!

A vida cria abismos
Quando destruímos
A antiga ponte do humor.

FUGAZ

Se a fuga
For inevitável
Fuja com Bach.

HUMANOS
 

Aos sonhadores o viço das flores
Aos racionalistas
O cadáver da florista.

ENGANO
 

Pensei ter visto
Um sinal verde
No brilho dos teus olhos.

LIBERDADE

Mãos postas, educação imposta
Porta transposta
Como é bom voar!!!

OURIVES

Enquanto palavras inúteis
Prometiam-me tesouros eu lapidava
Um silêncio de ouro.

VELHO
 

Quem não muda
Não cresce
Estagnado apodrece.

MATEMÁGICA

Amar conta salutar
Onde a gente soma e divide
Para se multiplicar.

E = M.C

Depois de Einstein
Tudo
É relativo.

HANGAR

O pensamento parado movimenta
Um sentimento abandonado
Na tormenta.

PINÓQUIO

E agora o que faço
Com esse sorriso triste
Esculpido na minha cara de pau?

ULTRALEVE
 

Vi uma criança com o crucifixo na mão
Não rezava não chorava
Simplesmente brincava de avião.

ALCOVA

Cama
Altar maior
De quem ama.

ONDE CANTA O SABIA?

Nos falta carinho
Quando prendemos em gaiolas
O canto dos passarinhos.

EGOISTA
 

Quem não sabe dividir
O encanto de ser livre
É simplesmente só.

P.A.L.A.V.R.A
 

A palavra
Não paga a bebida
Porém é meu exercício de vida.

POETAÇO

Com presteza de cirurgião
Sua caneta escreve
Toda frieza do coração.

DENTRO

Quebrado o espelho
Vejo-me
Por inteiro.


 

Confiante e ateu
Sofro paciente
As demoras de Deus.

JOGO

A sorte é uma linda virgem
Que foge desesperada
Para ser agarrada.

SAMURAI
 

Experimente!
Experiente
Leminsk-se.

À SOMBRA
 

Água fresca
Cântaro de barro
Dou-me a beber.

PRENÚNCIO

Cheiro de chuva no ar
Jeito de noite
O céu vai chorar!

Fonte:
Hernando Feitosa Bezerra. Cantares.  Universidade da Amazônia – NEAD.

Heloísa Crespo (Folia de Reis)

No Palácio da Cultura
assisti uma folia.
Não me lembrava como era
e nem como se vestia.
Revivi no meu passado
um medo que eu trazia.

Não era bem mais um medo,
era lembrança ruim.
Eu nunca me animava
nem nunca estava a fim
de ver nenhuma folia
ou cantoria assim.

Descobri que associando
a figura do palhaço
ao compasso de um bumbo,
ritmando todo o passo .
Pra criança apavorada
era mesmo que estilhaço.

Na minha mente infantil
aquela alegoria
era tão horripilante
que um monstro mais parecia.
Guardei a impressão errada
do artista e da magia.

Foi tão gostoso ouvir
agora o bumbo bater,
anunciando a chegada,
cumprindo o seu dever,
o grupo de foliões
representando o que crê.

O apito diz avisando:
Olha a Folia de Reis.
Formada por personagem
com farda nada burguês,
simples em azul e branco,
dançando com altivez.

Os homens enfileirados
tocando acordeão,
tambor, viola, pandeiro,
o bumbo e violão.
Também andando e dançando,
cantando uma canção.

Na frente uma bandeira
abrindo o lindo cortejo,
trazendo no interior
os magos, reis do festejo.
Vendo seu Rei pequenino
realizando um desejo.

A linda luz da bandeira
iluminando o Cristo,
Maria e o bom José
e tudo o mais sendo visto,
as flores tão coloridas
e a Ceia de Jesus Cristo.

O palhaço Ventania
de cabelo colorido,
na mão levava uma cobra
com seu jeito divertido.
Um monstro mais parecia.
Monstro nada, bem sabido!

Escondido atrás da mascara
um homem letrado é,
fazendo, dizendo versos,
um brasileiro de fé,
criticando a política,
cheia de Nando e Mané.

- Toca a sanfona, ah, ah!
Grita para o sanfoneiro,
após dizer a quadrinhas
em tom meio zombeteiro,
as trovinhas de cordel,
parece um benzedeiro.

Benze tudo que encontra,
critica o que puder.
Pede  arrecada dinheiro,
a quantia que se der.
De maneira irrequieta
canta, dança o que vir.

Se a folia acontecesse
na casa de um morador
seria bem mais completa
um verdadeiro esplendor,
ocupando a casa toda
e benzendo o morador;

os quartos, sala, cozinha,
banheiro e corredor,
seguindo um ritual
com respeito e calor
ao entrar e ao sair,
licença pede com amor.

Pede a Deus, Nosso Senhor,
pelos donos da tal casa
e por todos os presentes
e com oração arrasa.
Dali só parte pra outra
onde já foi convidada.

Essa folia tão rara
que no Café Literário,
a convite do poeta,
com seu rico vestuário
e os seus vinte componentes,
todos eles necessários.

Vieram de São Fidélis,
um município vizinho,
onde nasceu os Antônios
Roberto e Agostinho.
Roberto o nosso poeta,
o folião, Agostinho,

que com essa turma toda,
é único na cidade
com a folia brincar,
Estrela Belém do Norte,
que nunca deve acabar
e tem que ficar mais forte.

Parabéns e obrigado
a todos os foliões
que levam muito a sério,
passando de gerações
essa Folia de Reis,
mantendo as tradições.

Fontes:
A Autora
Imagem = http://www.robertomoraes.com.br

Simões Lopes Neto (Casos do Romualdo) Quinta de São Romualdo

Compre chácara quem quiser; eu, por mim, estou farto, e jurei nunca mais!...

Cansado de viagens e de caçadas, e desejando repousar, comprei uma bonita quinta, com muito arvoredo frutífero, boas águas, casa cômoda. Uma pechincha! Pra não estar debalde, resolvi fazer uma plantação de abóboras, para vender as pevides, que, informaram-me, é remédio infalível para a solitária.
 
Cada abóbora produz mais de cento e cinquenta pevides; e bastam três destas para expelir uma solitária; cada uma destas a cinco mil-réis, eram duzentos e cinqüenta mil-réis que eu apurava, só em solitárias, afora a massa das abóboras... de que eu faria goiabada.
 
Era ou não era negócio?... Ora bem:
 
Comprei - não me lembro bem - se sete ou quinze sacos de semente, da melhor; virei as terras, encanteirei-as e semeei as minhas solitárias, digo, as minhas abóboras, numa lua nova, para grelarem com força.

Pois, passado um mês... a lavoura era pura barba-de-bode!... Dura, empenachada, parecia uma plantação de vassouras de piaçava, verdes!.... Briguei, e forte, com o vendedor das sementes, que desculpou-se dizendo ter havido troca de volumes: a semente de barba-de-bode era para um armazeneiro, que vendia-a - e caro - como tempêro estrangeiro, de luxo; que o homem tinha-se dado ao diabo, quando pelo engano tinha recebido as pevides de abóbora, mas que afinal agradou-se e havia já pedido segunda remessa, para jorrar e misturar ao café, para dar-lhe mais gosto de café.
 
Não achei graça nenhuma à esfarrapada explicação; o que era certo é que estava com a minha lavoura perdida,inçada daquela praga. Ensinaram-me então que para destruir barba-de-bode, para nunca mais nascer, o único remédio era... a preá.
 
Comecei pois a comprar preás a torto e a direito; mandei preás a todos os rumos, escrevi a amigos e conhecidos, encomendando preás. Foi então unia chuva dos tais bichinhos, recebia-os em sacos, em gongás, em caixões, e até tocados por diante, como tropa.
 
Contava, pagava e soltava, logo, na lavoura. Realmente:uma maravilha!
 
Ao cabo de duas semanas não havia mais um fio de barba-de-bode.
 
E eu, satisfeitissimo!
 
Mas logo em seguida, as preás, acossadas pela fome, deram na roça do milho e do feijão; foram-me as hortaliças, aos alegretes do jardim; treparam às laranjeiras, tudo devoraram - menos marmelos. Uma devastação!
 
Refleti um momento; e para extinguir as preás, resolvi meter... gatos.
 
Nova trabalheira; vieram-me gatos de todos os tamanhos e sexos e idades, gatos mimosos - roubados - e gatos ladrões - escorraçados - e rabões, pelados e peludos, e desorelhados, queimados, gordos, sarnentos. Foi um jorro, uma inundação de gatos, sobre a minha quinta.
 
Contava, pagava e soltava-os, logo, às preás.

Efetivamente, um assombro!

Em menos duma semana não havia mais uma preá, para remédio. Liquidadas. E eu, esfregando as mãos. Mas - nem tudo lembra! - os bichanos, já sem pitança, miavam que era um desespero... e quando menos eu sonhava...

Olha a gatalhada no galinheiro E não me ficou viva uma só ave, desde os pintos até os galos de rinha!

Uma calamidade!

Nem por isso dei parte de fraco; pensei, e para acabar com os gatos, resolvi soltar-lhes... cachorros!

E vá! Na estrada!

A peonada andava numa contradança, trazendo cachorros e logo voltando a buscar mais; pelas estradas só se via passarem andantes conduzindo matilhas, e trelas de até vinte cachorros. Apareceram-me perdigueiros, veadeiros, paqueiros, onceiros, rateiros, tatuzeiros; e galgos, d'água, terras-novas, crespinhos; e grandes e pequenos, brigadores, ranhentos.

Eram centos e centos de cachorros!

Contava, pagava e soltava-os logo, aos gatos!

Indiscutivelmente: um sucesso.

Em poucos dias não se acharia nem mais um único gato, um só que fosse, para salvar um condenado da forca!

E eu, assobiando, satisfeito.

Mas - é que andei precipitado... - a cachorrada sem mais gatos... gania de jeito, que só a chumbo! E como eu não tivesse mais gatos. -. os cães, uma bela noite, atiraram-se às ovelhas, e com tal gana, que nem as maçarocas ficaram!

Um cataclismo!

Aí, meio que desanimei; mas depois de coçar-me forte, durante uns minutos largos pensei, e para acabar com os cachorros, resolvi contratar gringos, tocadores de realejo!...

Custou-me um pouco a organizar o batalhão: mas a notícia de que a paga era boa correu, e começaram a aparecer-me gringos, vindos até de onde o diabo perdeu as botas!...

Cachorro tem um terror doudo pelo realejo; é tocar-se um desses moinhos de música e o cão, mesmo preso na corrente, uiva, chora, apavora-se..., e não bá nada que o detenha na fuga; nem água fervendo, nem tição de fogo, nem comida, nem pau... só outro realejo, que o faça mudar de rumo!

Quando botei a gringalhada a manobrar os realejos, toda ao mesmo tempo, marchas, polcas, funerais, o miserere, o caranguejo, a Esteia confidente, o bitu, valsas, o solo Inglês... o maxixe quando tudo isso estrondeou nos ares... Oh! Deus do céu!...

Senhor S. Pedro!... Meu anjo da Guarda!... cachorro houve, que tão desnorteado de horror ficou, que até sobre os próprios gringos atirou-se... atirou-se..., e caiu, estrebuchando, espumando, rilhando os dentes, como danado! ...

O cachorrio pegou numa uivaçada tão espantosa que chegou a abafar o barulho dos realejos: mas logo desatou a disparar... a disparar... a disparar... e foram-se, campo fora, para os lados da rosa-dos-ventos, como assombrados!

Inegavelmente: soberbo!

E eu, cheguei a fazer uns passos de gavota, rejubilando-me; sim, senhor! Mas - e aqui tive um baque no coração.. - os gringos, sem mais cachorros para espantar, pediam comida. E eu, que não contava com a rapidez do negócio, havia-os contratado por três dias, calculando que com três dias de realejo não haveria cachorro - nem morto! - capaz de resistir...

E errei feio, porque os próprios buldogues não chegaram a agüentar nem uma hora...

E eles a pedirem comida!

E a chegarem mais gringos, que pelas estradas tinham tido notícias do meu anúncio; outros que eram ainda mandados expressamente pelos meus amigos e conhecidos e comissionados!

E cada desgraçado que chegava, como saudação, tocava-me uma peça de realejo; e quando foi de noite, todos eles, de combinação - eram cento e cinqüenta e três - resolveram fazer-me uma surpresa, e todos a um tempo, como um furacão que desaba, manobraram uma serenata sem fôlego, que durou da uma às três horas da madrugada.

Comecei a deitar sangue pelo nariz, pelos ouvidos, pelas gengivas, e desmaiei.

Ao clarear do dia recobrei os sentidos; chamei os capatazes, a peonada, uns hóspedes que tinha, e armei-os de revólveres, de davinas, de pistolas, de bacamartes; meti em quadrado os gringos, com os realejos; todos nós, armas engatilhadas, facas reluzindo, prontos a matar, tocamo-los porteira fora, aos gritos imperiosos de - silêncio! silêncio! silêncio!

Passei então um dia delicioso; sesteei regaladamente!

Mas - sempre aparece cada uma! - logo começaram a aparecer-me em casa advogados, escrivães, meirinhos, autoridades.

Ora dá-se! Um homem quieto na sua quinta, sem se preocupar da vida alheia e a vida alheia atrapalhando a sua! ...

Eram os vizinhos, queixosos, que me processavam, pediam indenizações, reclamavam contra prejuízos de que eu era causante!

Estes, porque as preás que conseguiram escapar-se haviam-se-lhes entocado nas plantações; aqueles, porque, gatos danados - dos meus - tinham-lhes mordido as criações; outros, porque os cachorros corridos comiam-lhes os rebanhos.., e até um violento protesto do cônsul, acusando-me de tentativa de morte sobre trezentos e sete gringos e meio!...

E eram citações, requerimentos, autos, contrafes, termos, inquirições.., um inferno!

Chamei advogados para a minha defesa, estes pegaram-se a discutir com os contrários: então é que a complicação complicou-se mesmo!

Os peões despediram-se medrosos os capatazes foram saindo, por causa das dúvidas...

Fiquei sozinho, na quinta solitária.

Então adoeci.

Veio um doutor para salvar-me. Mostrei-lhe a língua, tateou o pulso, rufou-me na barriga e... chamou um colega. Depois os dois chamaram um terceiro, os três, um outro; os quatro, um quinto... Já era uma dúzia deles; vieram mais ainda: cheguei a contar um quarteirão!

Desde a nuca até a sola dos pés, o meu corpo era um mapa geográfico de manchas e vergões; estava todo sanado e empolado de ventosas, inflamado dos sinapismos, lambuzado dos ungüentos, queimado dos vesicatórios, encorrilhado das embrocações, cruzado das pinceladas...

Na casca consenti tudo: no miolo, nada. Engolir, isso sim, isso é que nem à mão de Deus-Padre nenhum deles foi homem para me obrigar!

Certo dia, por doze votos fui considerado ainda vivo, e por treze dado por morto.

Venceu o um da maioria: passaram atestado de óbito e foram-se... e veio o defunteiro tomar as medidas do caixão... Que cena, esta, da tomada das medidas ... que cena!..

Dormi... até acordar-me; depois levantei-me, fiz um churrasquinho, chupei dois mates e pitei um cigarro de fumo crioulo. Sol alto montei a cavalo, para ir-me embora, de vez.

Tinha vencido sete pragas: bastava de combate.

Mas, ao sair a cancela do terreiro, vi o que nunca imaginei mais ver! ...

Vi a barba-de-bode renascendo na lavoura, algumas preás roendo ervas, três gatos em cima do telhado; dois cachorros coçando as pulgas; um gringo de realejo à sombra de um moirão, um meirinho que chegava a trote..., e um doutor que apeava-se da carriola!...

Amigo!

Cerrei pernas ao baio e só parei... quando vendi a quinta.

Pagas as contas, sobraram-me três patacas, em cobre: comprei as espoletas, pólvora e balas, e ganhei, outra vez, no sertão!

Tenha chácara quem quiser: eu, Romualdo, é que nunca mais!

Nem atado!
======================
continua… mais casos

Fonte:
http://pt.wikisource.org/wiki/Casos_do_Romualdo/III

Machado de Assis (Gazeta de Holanda) N.° 18 – 13 de maio de 1887

Não neguei Bahia ou Minas,
Nem nunca fora capaz
De negar Crato ou Campinas...
Neguei, é certo, Goiás.

Pois que Goiás eu supunha
Uma simples convenção,
Sem existência nenhuma,
Menos inda que ilusão.

E achava uma prova disto
Naquele caso sem par,
Nunca dantes, nunca visto,
Nem por terra nem por mar:

O caso do presidente
Que por dez anos ficou
Presidenciando... Ó gente!
Dez anos! Quem tal sonhou?

Dez meses, vá; é costume,
E ninguém pode exigir
Que um homem perca o chorume
A trabalhar e a delir...

Ou, se é lícito em matéria
De tanta ponderação
Tão avessa ao chasco e à léria,
Ter alguma opinião,

Digo que nem dez semanas...
Dez dias podia ser.
Traduziria em bananas
O chegar, ver e vencer.

Não se impõe aos nossos climas
Ars longa... É abreviar,
Como eu abrevio as rimas;
Não coser, alinhavar.

Quem podia, em nossa terra,
A não ser entre galés,
Como os comuns de Inglaterra?
Trabalhar dez horas, dez?

Os nossos comuns gastaram
Três dias em eleger
Mesa e comissões; e andaram
Perfeitamente, a meu ver.

Não vamos crer, porque temos
Sistema parlamentar,
Que só copiar devemos
Os costumes de além-mar,

Mas, voltando à vaca fria...
Que vaca? Onde íamos nós?
Que diabo é que eu dizia?
A digressão, vício atroz.

Não era a dívida, creio,
Lamberti chamada, uns mil
Contos de papo e recheio,
Contos ou contões com til.

Também não era o desfalque
Do Recife... ai, uma flor
De esperanças... ai, não calque,
Não calque nisso, leitor!

Eu, que tinha o meu bilhete,
Pronto para enriquecer,
Estou como se um cacete
Me houvesse dado a valer.

Mas, com todos os diabos,
Que era então? Não eras tu,
Nariz dos grandes nababos;
Nem tu, céu de Honolulu.

Ah! Goiás... Goiás existe;
E tanto que, a vinte e dois
De março, saiu um triste
E longo bando de grous,

Como os de que fala o Dante,
Que van cantando lor lai;
Mas cá o pio ora ovante,
Era só: quebrai, quebrai!

Um dos grous é delegado,
Outros dizem que juiz;
E tudo foi arrasado,
Ou ficou só por um triz.

Defuntos, lavras do Abade,
Mulheres, que ora gemeis
De dor e necessidade,
Justiça esperar deveis.

Mas eu daquela ocorrência
Tiro uma lição vivaz:
Goiás tem certa a existência,
Goiás existe, Goiás.

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

Nilto Maciel (Restos de Feijoada)

Depois do almoço, Alexandre dormiu. E logo se viu rei. Sim, rei de verdade, rei negro, rei ardente. Seu corpo ardia como nunca, mais do que nos dias de muito calor, de muita febre. Punha a mão no espaldar da cadeira real e logo os súditos gritavam: tire a mão daí, rei nosso, senão o trono pega fogo. Por onde passava, tudo se queimava. O chão se fazia vermelho, feito brasa. Ninguém ousava se aproximar dele. A rainha se esquivava a todo momento. Longe do pai, os príncipes corriam pelos campos, aos gritinhos. Alexandre se irritava com tanto medo. “Têm medo de morrer, desgraçados?” Furioso, agarrava até a morte os súditos mal-educados, mentirosos, impiedosos, desleixados, vaidosos... Aos prantos, os mais covardes se ajoelhavam aos seus pés, pedindo misericórdia. E mais ele os abraçava, ardorosamente. Amarrados pelos pés, os inimigos tremiam ao vê-lo. “Aproximem-se de mim.” Eles não saíam do chão, como se pregados. Os algozes os arrastavam. Os inimigos choravam, berravam, pediam clemência. Porém, o rei os atraía e, vagarosamente, os ia queimando. Os inimigos viravam montes de carne assada. “Joguem tudo nas panelas. Hoje teremos feijoada para todo o reino.” Os cozinheiros do castelo haviam posto à sua frente panelões de água temperada. Para que isto, majestade? Para cozinhar os perversos, os maus, os inimigos do nosso reino. Fabricassem grandes caldeirões. Cozinharia todos os inimigos. Faria grandes feijoadas. Plantassem mais feijão preto, engordassem os porcos. Trouxessem feijão, água, toucinho, linguiça, paio, orelhas e pés de porco, todos os ingredientes da melhor feijoada. E ria, gargalhava, bebia, enchia-se de cachaça, água, ardente como sempre. Súbito alguns de seus melhores amigos, conselheiros e parentes o agarraram e ameaçaram lançá-lo ao fogo ou dentro de um dos caldeirões. Iriam comê-lo com arroz, farofa e cachaça. E gargalhavam.

Então Alexandre acordou, aos gritos, o corpo em brasa. Assustada, Maria correu para junto dele, mãos na cabeça, olhos esbugalhados. Estava doido? Parasse de gritar. Talvez estivesse doido mesmo. Porém, sentia muita febre, o corpo em chamas. Assim desde o começo do dia. Havia acordado tarde, a cabeça doendo, o corpo moído. Então voltasse a dormir. “Vou fazer um chá.” Não, não podia ficar em casa, enquanto o carnaval fervilhava na cidade. “Eu sou sambista, minha negra.” E pôs-se a cantar um samba medonho. Maria se irritou. Só podia ser a bebida. Andava bebendo muito. “Eu queria ser jogador de futebol, negra. Queria ser outro Pelé. Jogar no Flamengo. Virar estrela no Maracanã. Não deu certo, não me quiseram.” E os meninos? Ora, os meninos não comiam, não brincavam, não estudavam? Mal, muito mal. “E eu mais mal ainda.” Vivia fazendo faxinas nas casas das grã-finas, por uma ninharia. E ele se embriagando, sambando, sonhando com samba e fama. Acordasse enquanto era tempo. Os meninos se chegaram, chorando.  Alexandre se meteu no banheiro. Somente um banho frio, gelado, para aplacar o fogo do corpo. Sentiu tonturas. Febre, muita febre. Maria se apavorou. Nunca um banho. Queria morrer? Fosse direto para a cama. E Alexandre se abraçou aos lençóis. E logo se viu rei. Por onde passava, tudo se queimava.

Um bloco de sujos desfilava pelos becos. Vamos, Alex. É carnaval, negrão. Ele pulou da cama e saiu porta fora. E gritava: eu sou o rei do fogo, eu sou o rei do fogo. Os foliões não paravam de pular, dançar, cantar. Maria gritava: volta, Alexandre, volta, você está doente. Ele dançava, se retorcia, se requebrava. E subitamente caiu, a contorcer-se no chão. Os foliões se puseram a dançar ao redor dele, como num ritual macabro. A mulher e os meninos acorreram e agarraram-lhe pernas e braços. Os dançarinos sumiram. Maria e seus filhos depuseram o corpo no chão da sala. O rei morria, a vomitar pequeninas cabeças, minúsculas mãos, despedaçados corações humanos – restos de feijoada.

Fonte:
MACIEL, Nilto. A leste da morte. Editora Bestiário, 2006.

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Geraldo Markan

Geraldo Markan Ferreira Gomes (Fortaleza, 1929 - 2001) é autor dos livros de conto O Mundo Refletido nas Armas Brilhantes do Guerreiro, Edições Siriará, 1979, e Canoa Quebrada – Oniricrônicas, 1980, além de peças de teatro. Reuniu-se a outros contistas em O Talento Cearense em Contos, com “Primeira Rosa para Norma Jean”, e Antologia Literária (1.º Prêmio Domingos Olímpio de Literatura, 1998, Sobral), com “Quem Resiste ao Tango?” (2º. lugar).

Dias da Silva, no artigo de título igual ao do livro, integrante do volume III de Da Pena ao Vento (2001), enuncia: “De começo, devo dizer que não é tão simples determinar-se o gênero da obra. Livro de contos? Livro de crônicas? Momentos de puros devaneios da imaginação sensível? Textos fantásticos? De gênero maravilhoso? De gênero estranho?”

Uma das características da prosa de Markan é a diluição do enredo. Os dramas se desenrolam ao longo de dias e dias. O narrador onisciente manipula os personagens e acompanha seus passos, como se fossem bonecos, ou conduzisse ele uma câmera, um gravador e um aparelho de captar pensamentos e emoções. Alberto, na peça que dá título à coleção, caminha por ruas, entra em lojas, vai para casa, segue o irmão. No entanto, a locomoção do personagem é mero pretexto para a narração de ações interiores nele. Assim, os verbos de ação (“saiu do cinema”, “tomou uma condução”, “viu um rosto”) assumem nele posição subalterna, enquanto os verbos inativos ou neutros conduzem o fluxo das frases. Às vezes os próprios verbos de ação se vestem de inatividade: “Fugia da realidade, buscava um signo que a revelasse diferente”. Em “Deborah” a protagonista fala para si mesma e não se movimenta. Ou suas ações são apenas imaginadas: “Súbito chegara àquela conclusão”; “Deu uma importância ciclópica ao conteúdo da frase” (...); “Um novo susto a percorreu” (...). A trama é toda “imaginada”. Em razão disso, não há diálogo. Entretanto, há composições em que predominam as falas, como em “Suzana, o Gramophone e a Comunhão dos Santos ou A Reinvenção do Amor”. Em diversos quadros, Suzana e Alberto, tia e sobrinho, dialogam. Entre um quadro e outro, o narrador onisciente faz uso do flashback e de comentários a fatos.

Na maioria das composições as cenas são fragmentadas, mas unidas entre si. Em “Ecidujerp, ou seja, Otiecnocerp” (prejudice, inglês, e preconceito, se escritas ao contrário), o narrador aciona os irmãos Cristina e Lula. No primeiro quadro desenha os dois protagonistas e apresenta outros personagens. No segundo, os irmãos mantêm curto diálogo, seguido de comentário do narrador, que pode ser entendido também como monólogo interior dela. Segue-se outra cena com falas. E assim até o desenlace, composto de três linhas: “Um dia ele disse sério: – Cristina, que vida louca a nossa. – A deles. Ecidujerp. Ou seja, otiecnocerp”.

Geraldo Markam é escritor urbano. Entretanto, a urbe é apenas o palco de seus dramas. E o espaço é secundário, porque essenciais são os personagens e seus dramas interiores. Os seres fictícios de suas obras têm as mais diversas origens. Uns vêm da velha aristocracia rural nordestina, como Suzana. Rica, solteirona, vive numa fazenda perto de Sobral, a tomar leite mugido, bater bolo, enfeitar os santos, levar mangas para a vaca Flor do Campo e a sonhar com o jovem sobrinho em estudos na capital. Cristina mora em Recife; Lula, no Rio de Janeiro. A família de Alberto também vive na antiga capital federal. Mas há ainda os mais pobres, como Fogoió, o de cabelos de fogo, ajudante de mecânico, “independente, doido, sozinho no mundo”, em São Luís, Maranhão. Ou Manuel, o empregado doméstico de “Os Angorás ou Uma noite, talvez, em Alexandria”. Retirante do sertão, torna-se tratador de jardim, limpador de piscina de mansão. Faz-se personagem, interlocutor de doutor, de ricaço. Acostumado a beber cachaça, é convidado a beber uísque com o patrão. E a ouvir confidências.

Raras vezes, um diálogo menos artificial ou uma narração de fatos. Talvez porque o interlocutor está sempre indo embora, fugindo, escorregadio ou inacessível. E o protagonista termina só, ruminando seu desespero. Isso se reflete no próprio corpo das narrativas. Nas peças menores, Geraldo Markan faz poesia ou crônica leve, apesar de se dizer o nunca-poeta. Termina fazendo markanices, ele também personagem.

O Mundo Refletido nas Armas Brilhantes do Guerreiro é título poético e metafórico, porque, na verdade, o mundo refletido naquilo que simboliza o poder: à época de Alexandre e companhia, as armas brilhantes do guerreiro; hoje, o ouro, a moeda, o carro, a piscina – adereços e o próprio ser, a um só tempo. O mundo refletido no ouro do burguês.

Passeiam, pelas páginas quase sempre de uma delicadeza e uma pureza clássicas, personagens de voz amena, alguns falando inglês ou citando Baudelaire, Fernando Pessoa e o lírico Camões. Remoendo seus vazios, tateando os muros escuros de seus labirintos pegajosos. Vez por outra, um deslize imperdoável ante a poesia a minar de cada palavra. E surge quase uma historinha de fotonovela: “Ecidujerp, ou seja, Otiecnocerp”. Apesar disso, um ranço bom de naturalismo ainda inexplorado – a nostalgia do domínio holandês no Nordeste.

Geraldo Markan não se satisfaz com as aparências, os perfis, as biografias. Interessam-lhe muito mais o oculto, a invisível, o impalpável, o incontável. Em vez de olhar para a topografia e a arquitetura, prefere ouvir/sentir as emoções, os sentimentos, os pensamentos dos seres. Glória, de “Plict”, atravessa o “longo subterrâneo, impaciente, como se este fosse sua própria vida”. Solitária, “virgem por vício”, anda pelas ruas à procura de corpos e almas. Os narradores, se é que narram, de algumas peças mais parecem ascetas, místicos. O de “Beta Splendens ou O Sétimo Dia” faz elocubrações, diante de um aquário, um peixe. Em razão disso, não há desfechos, pelo menos os tradicionais.

Markan não permanece na superfície. Seus personagens são muito mais do que cidadãos: são seres que voam ou se afundam no chão. Vão às nuvens e descem aos abismos de si mesmos. Sondam-se, como se se martirizassem ou buscassem a salvação. O insondável, o incognoscível, o fundo do abismo.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.