quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Geraldo Markan

Geraldo Markan Ferreira Gomes (Fortaleza, 1929 - 2001) é autor dos livros de conto O Mundo Refletido nas Armas Brilhantes do Guerreiro, Edições Siriará, 1979, e Canoa Quebrada – Oniricrônicas, 1980, além de peças de teatro. Reuniu-se a outros contistas em O Talento Cearense em Contos, com “Primeira Rosa para Norma Jean”, e Antologia Literária (1.º Prêmio Domingos Olímpio de Literatura, 1998, Sobral), com “Quem Resiste ao Tango?” (2º. lugar).

Dias da Silva, no artigo de título igual ao do livro, integrante do volume III de Da Pena ao Vento (2001), enuncia: “De começo, devo dizer que não é tão simples determinar-se o gênero da obra. Livro de contos? Livro de crônicas? Momentos de puros devaneios da imaginação sensível? Textos fantásticos? De gênero maravilhoso? De gênero estranho?”

Uma das características da prosa de Markan é a diluição do enredo. Os dramas se desenrolam ao longo de dias e dias. O narrador onisciente manipula os personagens e acompanha seus passos, como se fossem bonecos, ou conduzisse ele uma câmera, um gravador e um aparelho de captar pensamentos e emoções. Alberto, na peça que dá título à coleção, caminha por ruas, entra em lojas, vai para casa, segue o irmão. No entanto, a locomoção do personagem é mero pretexto para a narração de ações interiores nele. Assim, os verbos de ação (“saiu do cinema”, “tomou uma condução”, “viu um rosto”) assumem nele posição subalterna, enquanto os verbos inativos ou neutros conduzem o fluxo das frases. Às vezes os próprios verbos de ação se vestem de inatividade: “Fugia da realidade, buscava um signo que a revelasse diferente”. Em “Deborah” a protagonista fala para si mesma e não se movimenta. Ou suas ações são apenas imaginadas: “Súbito chegara àquela conclusão”; “Deu uma importância ciclópica ao conteúdo da frase” (...); “Um novo susto a percorreu” (...). A trama é toda “imaginada”. Em razão disso, não há diálogo. Entretanto, há composições em que predominam as falas, como em “Suzana, o Gramophone e a Comunhão dos Santos ou A Reinvenção do Amor”. Em diversos quadros, Suzana e Alberto, tia e sobrinho, dialogam. Entre um quadro e outro, o narrador onisciente faz uso do flashback e de comentários a fatos.

Na maioria das composições as cenas são fragmentadas, mas unidas entre si. Em “Ecidujerp, ou seja, Otiecnocerp” (prejudice, inglês, e preconceito, se escritas ao contrário), o narrador aciona os irmãos Cristina e Lula. No primeiro quadro desenha os dois protagonistas e apresenta outros personagens. No segundo, os irmãos mantêm curto diálogo, seguido de comentário do narrador, que pode ser entendido também como monólogo interior dela. Segue-se outra cena com falas. E assim até o desenlace, composto de três linhas: “Um dia ele disse sério: – Cristina, que vida louca a nossa. – A deles. Ecidujerp. Ou seja, otiecnocerp”.

Geraldo Markam é escritor urbano. Entretanto, a urbe é apenas o palco de seus dramas. E o espaço é secundário, porque essenciais são os personagens e seus dramas interiores. Os seres fictícios de suas obras têm as mais diversas origens. Uns vêm da velha aristocracia rural nordestina, como Suzana. Rica, solteirona, vive numa fazenda perto de Sobral, a tomar leite mugido, bater bolo, enfeitar os santos, levar mangas para a vaca Flor do Campo e a sonhar com o jovem sobrinho em estudos na capital. Cristina mora em Recife; Lula, no Rio de Janeiro. A família de Alberto também vive na antiga capital federal. Mas há ainda os mais pobres, como Fogoió, o de cabelos de fogo, ajudante de mecânico, “independente, doido, sozinho no mundo”, em São Luís, Maranhão. Ou Manuel, o empregado doméstico de “Os Angorás ou Uma noite, talvez, em Alexandria”. Retirante do sertão, torna-se tratador de jardim, limpador de piscina de mansão. Faz-se personagem, interlocutor de doutor, de ricaço. Acostumado a beber cachaça, é convidado a beber uísque com o patrão. E a ouvir confidências.

Raras vezes, um diálogo menos artificial ou uma narração de fatos. Talvez porque o interlocutor está sempre indo embora, fugindo, escorregadio ou inacessível. E o protagonista termina só, ruminando seu desespero. Isso se reflete no próprio corpo das narrativas. Nas peças menores, Geraldo Markan faz poesia ou crônica leve, apesar de se dizer o nunca-poeta. Termina fazendo markanices, ele também personagem.

O Mundo Refletido nas Armas Brilhantes do Guerreiro é título poético e metafórico, porque, na verdade, o mundo refletido naquilo que simboliza o poder: à época de Alexandre e companhia, as armas brilhantes do guerreiro; hoje, o ouro, a moeda, o carro, a piscina – adereços e o próprio ser, a um só tempo. O mundo refletido no ouro do burguês.

Passeiam, pelas páginas quase sempre de uma delicadeza e uma pureza clássicas, personagens de voz amena, alguns falando inglês ou citando Baudelaire, Fernando Pessoa e o lírico Camões. Remoendo seus vazios, tateando os muros escuros de seus labirintos pegajosos. Vez por outra, um deslize imperdoável ante a poesia a minar de cada palavra. E surge quase uma historinha de fotonovela: “Ecidujerp, ou seja, Otiecnocerp”. Apesar disso, um ranço bom de naturalismo ainda inexplorado – a nostalgia do domínio holandês no Nordeste.

Geraldo Markan não se satisfaz com as aparências, os perfis, as biografias. Interessam-lhe muito mais o oculto, a invisível, o impalpável, o incontável. Em vez de olhar para a topografia e a arquitetura, prefere ouvir/sentir as emoções, os sentimentos, os pensamentos dos seres. Glória, de “Plict”, atravessa o “longo subterrâneo, impaciente, como se este fosse sua própria vida”. Solitária, “virgem por vício”, anda pelas ruas à procura de corpos e almas. Os narradores, se é que narram, de algumas peças mais parecem ascetas, místicos. O de “Beta Splendens ou O Sétimo Dia” faz elocubrações, diante de um aquário, um peixe. Em razão disso, não há desfechos, pelo menos os tradicionais.

Markan não permanece na superfície. Seus personagens são muito mais do que cidadãos: são seres que voam ou se afundam no chão. Vão às nuvens e descem aos abismos de si mesmos. Sondam-se, como se se martirizassem ou buscassem a salvação. O insondável, o incognoscível, o fundo do abismo.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

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